Literatura e Bíblia: Interlocuções
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Literatura e Bíblia - Ricardo Alexandre Ramos
1. BÍBLIA E LITERATURA
Habituados que somos à leitura de narrativas em que se faz uma especialização muito mais densa dos dados ficcionais, temos de aprender, como demonstraram Perry e Sternberg, a reparar com mais sutileza na complexidade e na economia de detalhes expressivos do texto bíblico. (ALTER, 2007, p. 40).
O vento sopra onde quer, e tu ouves a sua voz, mas não sabes nem de onde vem, nem para onde vai. Assim acontece com todo aquele que nasceu do Espírito. (Bíblia Tradução Ecumênica, p. 2048, 1994).
É muito difícil esconder o amor
A poesia sopra onde quer
O poeta no meio da revolução
Para, aponta uma mulher branca
E diz alguma coisa sobre o Grande enigma
Os sábios sonham
Que estão mudando Deus de lugar
(Murilo Mendes)
Para falarmos do livro sagrado, é importante destacar que o consideramos, antes de tudo, como qualquer outro livro confeccionado pela capacidade e criatividade da mente humana. Assim, as reflexões que iremos discorrer sobre a Bíblia seguem a linha que a considera um conjunto de palavras concebidas por seres humanos reais, que viveram em locais e épocas diferentes, formando uma realidade harmônica, como todos os outros autores e artistas da literatura. Os autores das escrituras, como qualquer outra pessoa, usavam suas línguas nativas e as formas literárias então acessíveis para se expressar, elaborando, no processo, um material que pode ser apreciado e versado nas mesmas disposições com que se pratica a literatura.
Compreender as escrituras como literatura não deveria incomodar os defensores da Bíblia que a veem apenas como um texto teológico. Seja qual for a crença religiosa de uma pessoa, o livro sagrado é um patrimônio da humanidade e deveríamos ser capazes de estudá-lo sob o viés literário, sem entrar em indisposições religiosas, especialmente porque até as pessoas sem vínculo com instituições religiosas e/ou crença em seu caráter sagrado, de algum modo, supõem que essas escrituras sejam uma obra que requer um tratamento especial. Isto posto, não seria considerável apenas dizer que a Bíblia é literatura, como se isso simplificasse de imediato todos os objetivos que buscamos alcançar nesta pesquisa, ao discorrer sobre o tema. É condição, para as nossas reflexões, uma tentativa de esclarecer por que e como a Bíblia assemelha-se aos textos da arte literária.
Segundo Frye (2006), na década dos anos 80, conhecer a Bíblia seria fundamental para que se pudesse analisar a literatura inglesa de maneira contundente. Os motivos que levaram Frye a essa afirmação vão ao encontro do que disse o professor de estudos judaicos:
O que a obra de Homero foi para os gregos e o Corão para os árabes, a Bíblia se tornou para os ingleses: um patrimônio nacional. Por seu aspecto formativo, ela pode ser considerada o épico da Grã-Bretanha, conhecida por plebeus e aristocratas, no campo e na cidade. As diversas traduções de suas partes convergiram para versão encomendada pelo rei James em 1604 – e terminada em 1611 – para resolver as disputas religiosas que abalavam seu governo. A King James Version ou Authorized Version, como ficou conhecida, tornou-se o modelo linguístico e literário do império britânico e suas colônias, principalmente os Estados Unidos. (JEHA, 2009, p. 127).
Conforme já vínhamos discorrendo, diríamos que Frye se deu conta de que os clássicos da literatura inglesa eram partes de um mesmo sistema literário que, desde a sua base, adotaram a tradição bíblica como fonte de temas e enredos, intertextualizando-a, sendo a Bíblia King James o modelo literário. O crítico canadense já vinha manifestando-se, desde o século XX, sobre as dificuldades conhecidas pela Crítica Literária (e principalmente a inglesa) em aplicar à Bíblia um instrumental analítico literário, em razão de este livro, segundo seus escritos na obra Anatomia da Crítica, ser de uma época longínqua e carecer de uma estrutura conceitual que a legitimasse.
Frye (1973) continua dizendo que um dos obstáculos encontrados no caminho era o fato de os críticos literários considerarem as obras de forma individualizada, como um acúmulo de variados registros distintos, fenômenos artísticos, progênito de mentes geniais que se destacavam por virtudes próprias em seus tempos e lugares. Ainda não era comum pensar que a experiência literária se dá por meio de diferentes modos de integração entre autores, leitores, obras e mediadores; em sistemas. Frente às carências de sua profissão, Frye trouxe à luz a necessidade de se estabelecer um princípio organizador que fora descoberto na literatura, ou seja, o princípio da cronologia, uma hipótese central que veja os fenômenos com os quais lida como partes de um todo. Como chegar a esse princípio organizador é o que Frye explica nas linhas