Bem-vinda à América
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Sobre este e-book
De uma hora para outra, Ellen decide parar de falar. Não sabemos ao certo o motivo que a levou a se calar indefinidamente. Talvez tenha sido a culpa por ter pedido a Deus a morte do pai, morto pouco tempo depois. Um pai ameaçador e abusivo, cuja presença aterrorizante, no entanto, parecia ser o único elemento que mantinha a mãe, o irmão e a narradora unidos. Uma família não tão radiante quanto insiste em afirmar a mãe, atriz de personalidade magnética e controladora.
Talvez seja o fato de não encontrar correspondência entre o mundo exterior e o interior: "Antigamente eu dizia coisas que não conferiam. Dizia que o sol estava brilhando quando de fato chovia. Que o mingau de aveia era verde como um gramado e tinha gosto de terra". Apenas no silêncio e na introspecção da escrita Ellen se sente livre e capaz de vislumbrar algum sentido para o mundo e para a própria existência. "O silêncio não faz diferença alguma. Não crê nisso. Não crê que o sol se levanta de manhã, pois, não, a gente não pode ter certeza dessas coisas".
O silêncio de Ellen não é uma simples fuga: "Aquilo era a verdade. A verdade ao meu respeito" Mais do que uma renúncia, calar-se é a saída encontrada por uma criança que luta para não enlouquecer em um ambiente inóspito. Afinal de contas, no sono Ellen fala como qualquer pessoa: "Desarmada e sem controlar meus pensamentos".
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Pré-visualização do livro
Bem-vinda à América - Linda Boström Knausgård
Välkommen till Amerika
Copyright © Linda Boström Knausgård, 2016
Published by agreement with Copenhagen Literary Agency ApS, Copenhagen.
Esta tradução foi subsidiada pelo Conselho de Cultura da Suécia, aqui reconhecido com gratidão.
Grafia atualizada segundo o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990, que entrou em vigor no Brasil em 2009.
Edição: Felipe Damorim e Leonardo Garzaro
Tradução e notas: Luciano Dutra
Arte e diagramação: Vinicius Oliveira
Revisão: Carmen T. S. Costa e Francesca Cricelli
Preparação: Lígia Garzaro e Ana Helena Oliveira
Foto de capa: Andréa Iseki
Modelo: Patricia Pamella Leone
Posfácio: Ronaldo Bressane
Imprensa: Beatriz Reingenheim
Conselho editorial: Felipe Damorim, Leonardo Garzaro, Lígia Garzaro, Vinícius Oliveira e Ana Helena Oliveira
Catalogação na publicação
Elaborada por Bibliotecária Janaina Ramos – CRB-8/9166
K67
Knausgård, Linda Boström
Bem-vinda à América / Linda Boström Knausgård; Tradução de Luciano Dutra – Santo André - SP: Rua do Sabão, 2021.
Título original: Välkommen till Amerika
120 p.; 14 X 21 cm
ISBN 978-65-86460-26-1 1. Literatura sueca. I. Knausgård, Linda Boström. II. Dutra, Luciano (Tradução). III. Título.
CDD 848.5
Índice para catálogo sistemático
I. Literatura sueca
[2021]
Todos os direitos desta edição reservados à Editora Rua do Sabão
Rua da Fonte, 275, sala 62 B, 09040-270 — Santo André — SP
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Já fazia bastante tempo desde que eu havia parado de falar. Todos já tinham se acostumado. A minha mãe, o meu irmão. O meu pai está morto, então, não sei o que ele iria dizer a respeito. Talvez ele dissesse que aquilo era hereditário. A hereditariedade golpeia com força na minha família. É implacável. Em linha direta. Talvez eu carregasse o silêncio dentro de mim o tempo todo. Antigamente, eu dizia coisas que não conferiam. Dizia que o sol estava brilhando quando de fato chovia. Que o mingau de aveia era verde como um gramado e tinha gosto de terra. Eu dizia que ir à escola era como adentrar na escuridão mais profunda a cada dia. Era como se agarrar num corrimão até o dia acabar. O que é que eu fazia depois das aulas? Eu não brincava com o meu irmão, pois ele se trancava no quarto com a sua música. Passava o ferrolho na porta. E mijava em garrafas que guardava no quarto. Exatamente com essa finalidade.
O silêncio não faz diferença alguma. Não crê nisso. Não crê que o sol se levanta de manhã, pois a gente não pode ter certeza dessas coisas. Eu não uso o caderno que a minha mãe me deu. Se precisares informar algo, ela disse. O caderno foi uma forma de rendição. Ela aceitava o meu silêncio. Eu podia ficar na minha. Aquilo iria passar, afinal. Talvez passe mesmo.
Passei a mão no parapeito da janela, depois desenhei no pó que se acumulou na minha mão. Desenhei uma árvore de Natal e um Papai Noel. Foi só o que me ocorreu. Os pensamentos vêm tão arrastados e se expressam tão monossilábicos: pé, pão, pó.
Eu já contei que morávamos num apartamento? Não éramos muito dessa coisa de natureza, a não ser pelo parque, onde vi o meu primeiro exibicionista. Eu estava brincando no trepa-trepa e o homem parou lá embaixo e mostrou tudo o que tinha. Tirou as calças completamente. O membro dele era rígido e roxo. Observei a cor atentamente.
Eu tinha amigos, mas eles não existem mais. Começaram a ir a outros apartamentos depois dessa coisa de não falar mais. Antigamente, sempre havia outras crianças na nossa casa. A minha mãe não dava a mínima bola. Na nossa casa podíamos bater com um disco de hóquei nas portas de madeira maciça. Construímos uma rampa de esqueite apoiada numa estante de livros e o apartamento era tão grande que podíamos dar voltas e mais voltas de patins de rodinhas. O parque ficou todo detonado, mas as crianças têm que brincar. Agora aqui é só silêncio. Já é uma diferença.
Parei de falar quando o meu crescimento ocupou um espaço grande demais. Eu tinha certeza de que não podia falar e crescer ao mesmo tempo. Talvez eu fosse alguém que liderava os demais. Foi ótimo parar com isso. Tantas pessoas para controlar. Tantos sonhos que realizar. Deseja algo para eu realizar, eu podia dizer. Porém, eu nunca conseguia realizar qualquer desejo. Ao menos não conseguia direito.
Eu podia falar da minha mãe. Mas calei. Não queria o sorriso loiro dela. Os cabelos bem cortados dela. O desejo dela de que eu me tornasse uma garota bonita. Para ela, a beleza é algo especial. Uma característica importante que a gente cultiva como as flores. Semeia, rega, vê crescer. Eu podia ser parecida com ela. Morena mas parecida com ela com direito àquele frescor. Porém, me faltava alguma coisa. Eu não era um prodígio da natureza. Eu estava contagiada pela dúvida. A dúvida estava por tudo. Instalava-se na espinha e de lá se espalhava. Eu sentia a dúvida me dominando. Eram dias e noites, eram pores do sol banhados na dúvida.
Eu não escrevia nada no meu caderno, mas mesmo assim sabia o tempo todo onde o caderno estava. Tirei ele da prateleira mais alta do roupeiro e guardei embaixo do travesseiro, depois de volta ao roupeiro. Uma vez o escondi atrás do assento do vaso sanitário, caso eu precisasse escrever exatamente naquele momento.
O meu pai está morto. Já contei isso? Foi culpa minha. Orei a Deus em voz alta pedindo que ele morresse e então ele morreu. Uma manhã, ele jazia rígido na cama. Ou seja, a minha fala tinha esse poder. Talvez o que eu disse sobre o meu crescimento não seja verdade? Talvez eu tenha parado de falar porque o meu desejo tinha se realizado. A gente acha que quer que o que pedimos aconteça. Mas a gente não quer. A gente nunca quer que os nossos desejos sejam realizados. Isso perturba a ordem das coisas. A ordem tal como de fato a gente quer. A gente quer ficar desapontado. A gente quer se machucar e lutar pela própria sobrevivência. A gente quer ganhar presentes de aniversário errados. A gente pode até achar que quer ganhar aquilo que imaginou, mas na verdade não quer.
Os dias e as noites eram todos parecidos. O silêncio dissolve os contornos até que tudo se veste de uma certa névoa. Podemos chamar isso de semidias. Podemos chamar isso de o que quer que seja.
Antigamente, eu ia muitas vezes ao teatro com a minha mãe. Mas não vou mais. Ouço quando ela sai e quando ela volta. A última vez que a vi no palco ela era uma deusa da liberdade caída que dava as boas-vindas à América aos imigrantes. Ela estava careca e tinha um caco de espelho cravado na testa. Ela perdera a tocha. Eu amei aquilo tudo. A aparência dela. A sua figura que brilhava e rebrilhava naquele palco. Bem-vinda à América. Bem-vinda à América.
Acontecia de eu querer escrever apenas essas palavras no meu caderno. Mas eu me continha. É preciso ser firme. Não seguir os impulsos que passam de um lado para o outro da cabeça, como que em pequenos túneis cercados de luz. Eu conseguia ver os pensamentos. Eles andavam por tudo. Desciam pelo corpo, davam voltas e mais voltas em torno do coração, brincavam com os músculos cardíacos, comprimiam. Os pensamentos não eram algo que eu conseguia controlar.
Já cantei no coral da escola. A nossa professora de música se chamava Hildegard. Ela era austríaca. Se eu cantasse como tu, ela escreveu na dedicatória de um livro que me deram de prêmio no encerramento do ano letivo. Ela realmente cantava mal. Com uma voz estridente e aguda. Mas ela conhecia todas as vozes. Uma vez cantei como solista numa igreja. The sun is shining, the grass is green, the orange and palm tree sway, there’s never been such a day in Beverly Hills, L. A. But it’s December the twenty-fourth, and I am longing to be up north.¹ Eu estava tão nervosa que cheguei a tremer, mas deu tudo certo. E a minha mãe disse que qualquer um ficaria nervoso.
O meu pai falou comigo nos meus sonhos. Tens algum problema nas cordas vocais?, ele perguntou. Não, pai. Mas as palavras são tão difíceis. Tão difíceis de espalhá-las à nossa volta.
O que mais ele disse? Minha garotinha. Nunca houve problema algum contigo. Não, pai, eu respondi. Nunca houve problema algum comigo.
Era preciso acalmá-lo. Apesar de ele estar morto. Não há qualquer diferença