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Dicionário Brasileiro de Comunicação e Religiões
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Dicionário Brasileiro de Comunicação e Religiões
E-book900 páginas11 horas

Dicionário Brasileiro de Comunicação e Religiões

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Sobre este e-book

O Dicionário Brasileiro de Comunicação & Religiões é resultado da parceria entre a Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação (Intercom), através do Grupo de Pesquisa Comunicação e Religião, e do Centro Universitário Adventista de São Paulo (Unasp), através do Excelsior!, Grupo de Pesquisa em Religião e Cultura da Mídia. É uma obra inédita no Brasil com dezenas de verbetes analíticos sobre a interface comunicação e religiões, a partir dos eixos temáticos: Instituições, movimentos religiosos e poder; Linguagens e práticas religiosas; Processos e produtos midiáticos; e Teorias da comunicação e religiões. Este livro é importante guia na descoberta de um novo universo comunicacional.
IdiomaPortuguês
EditoraUnaspress
Data de lançamento4 de mai. de 2022
ISBN9786589185802
Dicionário Brasileiro de Comunicação e Religiões

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    Dicionário Brasileiro de Comunicação e Religiões - Magali Cunha

    Instituições, movimentos religiosos e poder

    (In)tolerância religiosa

    Roseli Fischmann

    Conceitos-chave articulados: Crenças e formas de crença; Laicidade, secularidade; Memória, identidade, tradição; Diálogo, interação.

    O termo tolerância, etimologicamente, vem do latim tolerantĭa, no sentido de constância em sofrer. Tomando o verbo original tolĕro, as, āvi, ātum, āre tem o sentido de suportar, sofrer, aturar, sustentar, manter, alimentar, nutrir. De acordo com o Dicionário Houaiss, intolerância apresenta-se como antônimo à tolerância, intolerantĭa, -ae, de intolĕrans, -antis no sentido de intolerante, particípio presente de intolerāre, no sentido de não tolerar. Tratando da análise semântica sobre a palavra tolerância, o dicionário informa: ato ou efeito de tolerar; indulgência, condescendência; tendência a admitir, nos outros, maneiras de pensar, de agir e de sentir diferentes ou mesmo diametralmente opostas às nossas. Uma das dificuldades do termo se evidencia quando o dicionário indica outros sentidos, ligados a diferentes campos, como: na medicina (resistência do corpo a determinadas substâncias); na organização universitária (limites aceitos quanto a prazos, cumprimento de exigências); na composição ou dimensão de diversos materiais ou produtos (limites aceitos quanto à variação do padrão estabelecido). Já em relação à palavra intolerância, não é apresentado como simples antônimo de tolerância, mas sim como a falta de tolerância, comportamento condescendente com problemas/fraquezas de outros, atitude intransigente relativa a ações, opiniões, crenças ou modos de ser reprovados pelo julgador.

    Uma vez que as mensagens das religiões são geralmente de elevação, de vida e de proximidade ao sagrado ou espiritual, torna-se paradoxal o fato de que a história das religiões, desde seus primórdios, é marcada por conflitos muitas vezes violentos e até mesmo bélicos, tanto no Oriente como no Ocidente – lembrando que é importante tomar essas referências globais do modo mais abrangente e diverso possível, evitando os estereótipos frequentes do cenário estrutural mundial. Cada religião tem histórias para contar sobre matanças perpetradas em nome da disputa pela afirmação de uma verdade maior, distinta para cada um dos grupos envolvidos. Perseguições motivadas inicialmente por intolerância religiosa, invocando o eterno ou o espiritual, frequentemente atravessam o salão da história para atender, ainda que de forma silenciosa e oculta, a motivações políticas e econômicas, estritamente mundanas e, não raro, pessoais.

    Os primórdios. Compondo um campo antigo e relevante do pensamento humano, o desenvolvimento intencional e organizado das reflexões sobre a tolerância no mundo ocidental surgiu, preliminarmente, vinculado diretamente à religião e ao tema da salvação, para dirigir-se, historicamente, da filosofia à justiça e ao direito. Os termos tolerância e intolerância – como par inseparável, no sentido do contínuo debate, da controvérsia e até da ambiguidade que provocam ainda atualmente – remontam ao final da idade média e à renascença, manifestando-se de modo mais desenvolvido e completo a partir do iluminismo. As transições entre períodos que trazem os termos tolerância e intolerância à tona são processos históricos que não podem ser demarcados de modo estanque e inquestionável, mas servem como referências.

    Em plena idade média, bases da pluralidade. Primeiramente, analisemos o período entre a idade média e a renascença, com as violências cometidas pela inquisição ou santa inquisição – organismo do sistema jurídico da igreja católica romana que desde o século 12 procurou combater de modo violento o que identificava como heresia, bruxaria e pessoas ligadas a manifestações consideradas contrárias à fé católica, como os judeus. Nessa época, o termo tolerância era utilizado especificamente em relação à igreja católica romana.

    Em meio a diversos doutores da igreja, como eram denominados os teólogos que se dedicavam a aprofundar-se em temas complexos, destaca-se o franciscano Guilherme de Ockham, considerado então controverso, cuja obra marcou as décadas de 1330 e 1340. Foi Ockham que propôs como seu colorário a recusa da plenitudo potestatis ao papa na esfera espiritual, de maneira mais que inesperada para aquele momento, afirmando a independência do poder temporal, pois, em sua visão, a igreja católica romana era a soma de todos os indivíduos dela participantes, não apenas o clero e sua hierarquia.

    Assim, ao negar a doutrina hierocrática elaborada entre os séculos 13 e 14 sob influência da cúria romana, ligada ao direito romano e ao direito canônico, Ockham também colocou em debate a primazia do poder do papa em relação ao poder do imperador. A criação das universidades no século 13 foi a base para que Ockham negasse aos juristas do imperador ou aos canonistas do papa a decisão sobre a infalibilidade do papa e, assim, a superioridade do poder papal sobre o imperial; ele deixou esse debate a cargo dos professores de teologia das universidades recém-criadas. O que propunha, então, era que a base para a decisão fosse a abordagem hermenêutica do tema, mediante aprofundamento que seria possível apenas aos doutores em teologia, os quais poderiam apresentar argumentos racionais, reelaborando-os no debate em busca permanente da verdade.

    Vale observar que o cristianismo surgiu como um grupo de pessoas que se constituiu uma comunidade em torno da fé em Jesus como Cristo, mas não por um código de crenças e normas jurídicas. O tempo ofereceu a oportunidade de desenvolver o pensamento racional, da resolução por meio de argumentos, sem violência, de modo que Ockham julgou ser tempo de tomar esse princípio para as grandes questões que se colocavam entre as duas esferas que ele considerava independentes, conforme informado por autores como De Boni (2006). Esse autor, um medievalista brasileiro de grande importância, informa ainda que Ockham entendia que a liberdade era um direito pré-estatal e pré-eclesial, levando-o a defender o que é chamado contemporaneamente, como notado por Hannah Arendt, de pluralidade humana. Por isso, ele foi considerado um dos principais antecessores do jusnaturalismo, uma das correntes do direito.

    Ou seja, há duas dimensões que decorrem do pensamento de Ockham. Dentro da primeira, podemos citar sua afirmação, citada por Abbagnano, de que não é impossível que Deus designe como digno da vida eterna todo aquele que viva segundo os ditames da justa razão e que só creia naquilo que sua razão natural indicar como digno de crença, antevendo, assim, a possibilidade de salvação para essas pessoas que não eram adeptas ao catolicismo. A segunda dimensão postulou a convivência pacífica, mesmo que eventualmente controversa, entre o poder eclesiástico e o poder imperial, desde que baseada na argumentação racional, ou seja, em bases reconhecidas como meramente humanas. Por isso é visto como detentor de um posicionamento avançado para a época, o qual pode se considerar que antecede e, ao mesmo tempo, ultrapassa o marco que foi o pensamento de Lutero na questão. Além disso, colaborou para estabelecer as bases de um pensamento humano independente da referência religiosa como modo de construir permanentemente uma convivência pacífica.

    Em suma, o início do século 14, período de forte intolerância, assistiu ao nascimento de ideias fundamentais para o estabelecimento da tolerância em qualquer tempo: (a) a delimitação entre o poder que se reconhece simplesmente humano e o poder que invoca a revelação e uma divindade; (b) o reconhecimento do prévio direito à liberdade como base para a adesão a uma instituição religiosa; (c) pela liberdade individual, o reconhecimento da pluralidade humana e a impossibilidade de que simples seres humanos, estabelecidos em uma ordem hierocrática ou não, possam definir quem está destinado à salvação eterna de modo irredutível; (d) a argumentação racional informada como base para a convivência pacífica, ainda que controversa, com a busca constante e permanente da verdade. Essas bases, naquele momento, não prevaleceram, mas permaneceram e, vindo de sementes anteriores, deixaram que suas marcas permitissem novos avanços. Especialmente relevante, seu pensamento explicita relações fundamentais entre tolerância, intolerância e o direito.

    Reforma, renascença, iluminismo. O segundo período a considerar para melhor compreensão dos termos tolerância e intolerância, abrange a renascença e o iluminismo. Nesse longo período, o primeiro marco – o mais marcante para o Ocidente e, em certa medida, para o mundo – é a reforma de Lutero. É com ela que se inicia a divisão do cristianismo em diferentes grupos a partir de conflitos de fundo teológico e, por extensão, relativos à organização eclesiástica, incluindo, consequentemente, sua estrutura de poder e o papel de leigos e leigas em relação aos que detêm postos clericais. Com o decorrer do tempo, rompimentos no interior da igreja católica romana acabam por se traduzir em uma variedade de denominações, instaurando um dos mais decisivos elementos para a plena percepção da urgência premente e permanente da reflexão/ação sobre esses termos.

    Trata-se de um período em que se faz evidente a tendência expansiva da intolerância, que, uma vez iniciada, tem dificuldade quanto a parar, encontrar ou respeitar limites já dados. A expansão em descontrole se dá, em especial, quando ocorre a transição ou incorporação, antes mencionada, da motivação religiosa para a política, econômica ou mesmo pessoal. O amplo movimento católico contrário, ou intolerante, à reforma, ou seja, a contrarreforma, encontrou nas denominadas grandes navegações, entre o fim do século 15 e século 16, um modo efetivo de expansão. Observe-se que, mesmo tendo ocorrido quando a humanidade não dispunha de meios de transporte ágeis e desenvolvidos, levou para muito além da península ibérica o combate intolerante a tudo que não fosse católico. Os muitos grupos indígenas que viviam nas terras que passaram a formar a América Latina, ainda que muito longe das questões ligadas à reforma, sofreram esse golpe, resultando em um genocídio que dizimou populações indígenas por todo o território, o qual passou a ser chamado latino-americano. Não se trata de desconsiderar que o colonialismo dificilmente teve desenvolvimentos distintos desse em outras terras, movidos por outras inspirações religiosas. Trata-se, porém, de trazer à reflexão para um espaço geopolítico específico que ainda sofre, quase seis séculos depois, os impactos resultantes da intolerância de então, infiltrando-se de modo insidioso nas estruturas nascentes dos novos países que então se desenhavam. São motivações que, por isso, permanecem e inclinam a nau da história para a intolerância e exemplificam como o discurso religioso pode servir de anteparo para outras intenções e objetivos.

    No século 16, além da reforma de Lutero, na Alemanha, ocorreu a reforma de Calvino, na Suíça, as quais foram concorrentes para o impacto no mundo religioso ocidental – impacto esse que acabou por extrapolar para a ordem política entre Estados, ao dividir o cristianismo em três denominações principais. Ao analisar antecedentes e condicionantes da paz da Westfália, o filósofo Roberto Romano relembra que passam a ser contestadas, naquela época, estruturas de poder que, por séculos, entrelaçavam o catolicismo e a política. Era nessas estruturas que o papa assumia o papel de maior figura internacional e a Santa Sé desempenhava o papel de árbitro entre soberanos. Desencadeia-se, então, a guerra dos trinta anos, encerrada pelos tratados da Westfália, em 1648, introduzindo a perspectiva laica como base da paz. Sem organismos internacionais que garantissem a paz que se buscava firmar, coube aos Estados desejosos pelo fim da guerra entre as religiões (de fato, três denominações cristãs) e de uma política de boa vizinhança, providenciar essa garantia como uma obrigação civil entre soberanos (seculares), à moda de Grotius. Dessa forma, para findar a guerra dos trinta anos, foi necessário haver a possibilidade de garantir a tolerância entre as três instituições religiosas – cujos participantes eram todos católicos, até antes dos respectivos movimentos reformistas. Mais ainda, a base para a tolerância foi o solo comum entre os Estados, ou seja, o poder estatal secular (ao modo dos reinos de então) – mais propriamente dito, laico – e não os poderes religiosos em conflito eclesiástico (com repercussões para a vida civil, logicamente), cuja interação, afinal, resultara na guerra de tão longa duração.

    Especificamente voltado para a temática da liberdade de expressão pela imprensa, como lembra Alberto Dines (de abençoada memória), em 1644 o poeta John Milton apresentou ao parlamento inglês o famoso panfleto em prosa, de sua autoria, denominado Areopagítica, e seis dias depois ouviu-se o relatório do lorde-juiz Brian Leveson sobre o tema. A inspiração de Milton foi o discurso homônimo de Isócrates, dado no século 5 antes da era comum. Ora, o ateniense pretendia restabelecer o poder do tribunal que se realizava no monte Areópago, em Atenas, para os grandes debates e julgamentos. Sob semelhante inspiração, vinte e dois séculos depois, John Milton pretendia restabelecer o tribunal de debates e julgamentos, em plena guerra civil, asseverando a relevância da liberdade de expressão e da liberdade da imprensa para esses debates. Ou seja, Milton retoma também, ainda que não diretamente, a perspectiva de Ockham quanto à relevância da argumentação fundamentada e informada em prol da tolerância e respeito às diferenças de opinião – nesse caso, trazendo a relevância da imprensa aberta à livre expressão como fundamento daquela prática.

    Dessa forma, a tolerância religiosa se torna não apenas um instrumento de convivência pacífica entre diferentes grupos religiosos, mas também impede que uma religião – qualquer religião – se transforme em instrumento de governo, gerando e fomentando intolerância e injustiça. Esse posicionamento é esposado por John Locke quando se anunciava o iluminismo, em sua Carta sobre a tolerância, publicada em 1689. Abbagnano lembra que Locke sistematiza as conclusões que a guerra dos trinta anos havia propiciado, ou seja, que a tarefa do Estado é promover os bens civis, isso é: a vida, a liberdade, a integridade, o bem-estar físico, a posse dos bens externos, mas não o cuidado das almas e a salvação eterna, que é tarefa da(s) igreja(s). Por isso, Locke conclui que a tolerância é o que há em comum entre poder secular e poder eclesiástico, promovendo o interesse religioso da(s) igreja(s) e o interesse político do Estado. Três quartos de século depois, em 1763, Voltaire publicou o tratado sobre a tolerância, que alcançou grande impacto e influência ao tornar-se um dos elementos a consolidar a percepção e atitude legadas pelo iluminismo quanto à diversidade e pluralidade serem tomadas como base da democracia. Duzentos e cinquenta anos depois, Celso Lafer, destacado jusfilósofo, retomou o tema ao celebrar os 60 anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos. Assim se percebe que se trata de um movimento de permanente renovação e aprofundamento, de uma tradição filosófica e política que sustenta a prática democrática.

    As razões da tolerância. Um importante subsídio contemporâneo, proveniente da filosofia do direito, para o aprofundamento do tema é dado pelo indispensável estudo As razões da tolerância, do jusfilósofo Norberto Bobbio. Trata-se de reflexão que demonstra a dificuldade de se lidar com o conceito e como, do ponto de vista ético, é inevitável a adesão à prática. Metodologicamente, compara-se a tolerância com a intolerância. O autor afirma que o tolerante acusa o intolerante de fanático, que o acusa de ser cético ou pelo menos indiferente, como se entendesse não existir verdade pela qual valeria a pena lutar. Bobbio refuta a posição, dizendo que o binômio intolerância-tolerância não encontra correspondência no binômio fanatismo-indiferença, ou seja, que não seria exatamente formado por oposição. A partir daí ele discute as boas razões da tolerância.

    A primeira é que a verdade ganha quando suporta o erro alheio – embora Bobbio relembre que essa é uma opinião a ser revista em cada caso concreto, por prudência política. O mais forte pode ser tolerante por ser astuto, procurando não perseguir para não ver crescer a posição de que discorda pelo escândalo da perseguição. Por outro lado, o mais fraco pode ser tolerante por necessidade, já que a rebelião pode levar ao esmagamento do fragilizado. Se somos iguais, é por reciprocidade, que é a base de todos os compromissos. Aqui, portanto, tolerância é um problema de cálculo, que nada tem a ver com a verdade.

    A segunda boa razão é que a tolerância seria um método universal de convivência civil. Seria utilizada a persuasão, ao invés da força e da coerção, e praticada a confiança na capacidade alheia de entender o bem comum, recusando conscientemente a violência como se fosse o único meio para fazer triunfar as próprias ideias. Aqui, portanto, trata-se de uma questão de método, em que a argumentação na retórica tem relação direta com o método democrático, na prática.

    A terceira boa razão seria entendida como princípio moral absoluto, dever ético, em que o respeito à pessoa alheia é profundamente ligado aos direitos de liberdade, naturais ou invioláveis.

    Ora, da segunda e da terceira razão depreende-se a íntima ligação da temática da tolerância com o Estado liberal e democrático. Ao mesmo tempo, do ponto de vista da teoria, a aceitação da tolerância como princípio coloca a afirmação de que a verdade só pode ser alcançada pelo confronto de opiniões uma vez que nenhuma, isoladamente, daria conta dela; haveria sempre, pois, necessidade da síntese de diferentes visões. Trata-se, nas palavras de Bobbio, não de universo, mas de multiverso. Daí a tolerância apresenta-se como necessidade inerente à natureza da verdade.

    Aqui é o ponto em que Bobbio trata das boas razões da intolerância, que se manifesta sempre que há a imperiosa necessidade de dizer é intolerável que (...). Lembra o filósofo que, se é possível atribuir à tolerância um sentido positivo, ligado a rigor, firmeza, há também um sentido negativo, que identifica a tolerância com indulgência culposa, ou condescendência com o mal e com o erro. Esse sentido negativo se dá, então, por falta de princípios, por apego à tranquilidade, ou por escolher ficar cego frente aos valores. Portanto, destacando um sentido positivo e um negativo, tanto para tolerância como para intolerância, Bobbio ressalta que a tolerância absoluta é uma abstração e que a tolerância histórica sempre é relativa, havendo mesmo um tipo de zona cinzenta que leva a contar com alternativas que se resumem a nem isso nem aquilo já que a história é ambígua.

    A Declaração Mundial de Princípios sobre a Tolerância. Cumpre tratar, agora, da Declaração Mundial de Princípios sobre a Tolerância, que traz a mensagem da urgência de trabalharmos sobre nós mesmos, de cooperação dos meios de comunicação e da escola, da ação responsável do Estado. A declaração afirma que a educação para a tolerância deve visar a contrariar as influências que levam ao medo e à exclusão do outro e deve ajudar os jovens a desenvolver sua capacidade de exercer um juízo autônomo, de realizar uma reflexão crítica e de raciocinar em termos éticos. Exercer e exercitar a reflexão crítica, assim como o respeito ao outro, não é mera retórica, mas sim questão de sobrevivência da própria espécie humana. Por sua relevância, é necessário, então, tratar do modo como se decidiu por elaborar uma declaração dedicada à tolerância e do processo desenvolvido para isso, assim como anunciar pontos de seu conteúdo, que redefiniu o sentido do termo tolerância.

    Em 1993, a Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas (ONU) decidiu que em 1995, na comemoração de seu cinquentenário, seria o ano internacional da tolerância. A decisão vinculava-se ao reconhecimento de que, cinquenta anos após sua criação, a Organização das Nações Unidas se encontrava longe de atingir o objetivo para o qual havia sido criada, ou seja, o de promover o entendimento entre os povos e alcançar a paz mundial. No contexto da época, a guerra da Bósnia, com forte componente de intolerância religiosa, e conflitos étnicos na África, além de diversos outros confrontos conflagrados no planeta que seguiam o roteiro da intolerância, em especial étnica e religiosa, demonstravam que seria necessário, meio século depois, repensar o primeiro passo, o mais básico — que traz em si o todo da jornada.

    Ao longo de 1994 e 1995, foram realizados diversos encontros regionais preparatórios pelo mundo, sob patrocínio da Unesco, escolhida pela assembleia geral da ONU como responsável pelo evento, tendo sido criada a unidade da tolerância na sede da organização, em Paris. Tais encontros discutiram o termo tolerância tendo em conta as definições que historicamente a filosofia buscava alcançar, combinada de modo atento às diversas realidades regionais. Tudo culminou com a elaboração e a aprovação, pela conferência geral da Unesco, em 16 de novembro de 1995, da Declaração Mundial de Princípios sobre a Tolerância.

    No Brasil, a Unesco promoveu em âmbito preparatório, em 1994, o Encontro sobre Tolerância na América Latina e Caribe, em cooperação com a Universidade Federal do Rio de Janeiro, e, em 1997, o Seminário Internacional Ciência, Cientistas e a Tolerância, em cooperação com a Universidade de São Paulo, do qual resultou a criação da Rede Unesco das Américas e Caribe para a Tolerância e a Solidariedade, com amplo apoio de órgãos governamentais, não-governamentais, agências financiadoras e mídia.

    Desde a época daqueles debates regionais, a adoção do termo tolerância foi, muitas vezes, duramente criticada. Houve quem lembrasse que seria até indesejável ser tolerado, quando o mínimo que se espera é ser respeitado. Contudo, a noção de tolerância como mobilizadora de consciências não pode ser confundida com seu uso trivial. Vale transcrever o artigo primeiro da Declaração:

    A tolerância é o respeito, a aceitação e o apreço da riqueza e da diversidade das culturas de nosso mundo, de nossos modos de expressão e de nossas maneiras de exprimir nossa qualidade de seres humanos. É fomentada pelo conhecimento, abertura de espírito, a comunicação e a liberdade de pensamento, de consciência e de crença. A tolerância é harmonia na diferença. Não só é um dever de ordem ética; é igualmente uma necessidade política e de justiça. A tolerância é uma virtude que torna a paz possível e contribui para substituir uma cultura de guerra por uma cultura de paz.

    A declaração trata do papel do Estado, da educação, da sociedade e dos meios de comunicação como os quatro focos fundamentais de ação para consolidar a tolerância na prática. Ou seja, depois de encontros regionais desenvolvidos por todo o mundo, a necessidade de síntese dos resultados mundialmente levantados para elaborar a declaração destaca, além do Estado e da sociedade, a educação e os meios de comunicação como cruciais para garantir a tolerância no sentido promulgado pela declaração. Apresenta-se, sempre, de maneira central, a perspectiva do pleno respeito aos direitos universais e às liberdades fundamentais de todos como base da construção da paz. Voltando-se para a temática dos riscos da intolerância, a declaração afirma, no artigo 4º, que a educação para a tolerância deve visar a contrariar as influências que levam ao medo e à exclusão do outro e deve ajudar os jovens a desenvolver sua capacidade de exercer um juízo autônomo, de realizar uma reflexão crítica e de raciocinar em termos éticos.

    Com relação aos meios de comunicação, a declaração afirma que devem desempenhar um papel construtivo, favorecendo o diálogo e debate livres e abertos, propagando os valores da tolerância e ressaltando os riscos da indiferença à expansão das ideologias e dos grupos intolerantes. É parte do aprendizado da abertura do espírito, da ouvida mútua e da solidariedade.

    O sentido de educar para a tolerância e de praticar a tolerância está em conhecer o outro, todos os outros, que vivem de forma distinta daquela que conhecemos. Apenas o conhecimento pode levar à superação do medo que gera preconceito e discriminação. Por isso, o sentido da tolerância é o da valorização da diversidade humana e o da busca de viver com o outro de forma respeitosa, saudável, pautando a resolução de problemas e desacordos pela via do diálogo.

    Da mesma forma, falar em respeito é falar de como é inaceitável a miséria e a injustiça da desigualdade, que não se confunde com a diversidade. Por isso, falar de tolerância é falar também do intolerável: a violação de direitos, a injustiça, a desigualdade, as muitas faces da violência.

    Tomando a declaração aprovada pela conferência geral da Unesco, a tolerância é compreendida como um princípio e uma virtude que torna a paz possível e contribui para substituir uma cultura de guerra por uma cultura de paz. Invocando documentos anteriormente aprovados pela ONU, a declaração engloba o respeito à liberdade de pensamento e de crença, assim como a diversidade de aparência física, do modo de expressar-se, de comportamento e de valores. Tudo isso no sentido de que os seres humanos têm o direito de viver em paz e de ser tais como são e que ninguém deve impor suas opiniões a outrem.

    Em consonância com a proposta presente nos documentos da ONU, afirma-se ali que sem tolerância não há paz e sem paz não há desenvolvimento nem democracia, enquanto a declaração acrescenta de forma indispensável que a exclusão e a marginalização podem conduzir à frustração, à hostilidade e ao fanatismo. Assevera, ainda, a importância do respeito aos direitos humanos como forma de garantir igualdade de tratamento e de oportunidades aos diferentes grupos e indivíduos da sociedade.

    Relembrando que não há sob a face da terra grupo humano que não seja marcado pela diversidade, mesmo que interna, a declaração alertava, em 1995, que a intensificação da intolerância e dos confrontos constitui ameaça potencial para cada região, não se tratando, pois, de ameaça limitada a esse ou aquele país, mas de ameaça universal.

    Contudo, entre as incompreensões sofridas pelo termo, encontra-se a de que a tolerância tenderia a gerar uma sociedade que permitiria a expansão da própria barbárie em nome do respeito à diferença. Ora, não pode haver equívoco maior. A tolerância não é concessão, condescendência, indulgência, afirma a declaração, e praticá-la não significa tolerar a injustiça social, nem renunciar às próprias convicções, nem fazer concessões a respeito.

    Intolerância religiosa e comunicação. São muitas as modalidades de manifestações de intolerância religiosa, sendo o impulso de propagar a intolerância uma das marcas de quem é intolerante. Anteriormente, foi mencionado que a intolerância tem uma característica expansiva ao ser deixada sem controle. No campo religioso, a intolerância pode se encaminhar para diferentes direções que precisam ser identificadas junto com riscos, que precisam ser conhecidos para que melhor se possa vencê-la, antes que seja a intolerância a controlar o intolerante.

    A busca por informações objetivas é o modo de identificar e conhecer a intolerância religiosa ou de outro tipo, sendo muitas vezes difícil encontrar uma forma única de manifestação. Relatórios nacionais e internacionais realizados por instituições ou entidades reconhecidamente sérias e rigorosas no modo de tratar esse tipo de instrumento de abordagem da realidade são excelentes meios para se obter dados que permitam avançar na compreensão do que ocorre em dada sociedade.

    Nesse sentido, o Relatório sobre intolerância e violência religiosa no Brasil (2011-2015): resultados preliminares, publicado em 2016, operou coleta de dados sobre intolerância e violência relatados pela imprensa escrita, de denúncias em ouvidorias e de processos em andamento no poder judiciário. Um cuidadoso e excelente estudo desse relatório, publicado em 2020, foi desenvolvido por Magali Cunha, permitindo compreender o envolvimento do governo federal, por intermédio da Secretaria Especial dos Direitos Humanos, na realização do relatório em colaboração com seus parceiros, propiciando, no caso desse estudo de Cunha, especial visão sobre os registros realizados pela imprensa escrita. O texto apresenta um quadro sobre os crimes de ódio praticados no Brasil atualmente, sobre a violência e a perseguição por motivo religioso noticiadas pela imprensa escrita.

    Um aspecto importante que é frequentemente desconsiderado pela mídia e pelas redes sociais é o caráter transversal e interseccional que a intolerância religiosa pode assumir, chegando a combinar, em um único caso, diferentes violações de direitos. Vale lembrar que a intolerância pode ser sofrida e praticada por um mesmo grupo, ou pessoa, motivado por uma questão religiosa. Além da mídia tradicional, e mesmo sem considerar aqui as redes sociais, grupos religiosos são organizados contando com seus próprios veículos de comunicação, que podem relativizar, minimizar ou amplificar focos de intolerância religiosa.

    Como antes abordado, já se passaram quase nove séculos desde que Ockham elaborou seu pensamento sobre a relevância de considerar e manter o poder temporal separado do poder espiritual. Mais ainda, essa proposta ganhou relevância, aprofundou-se com novos argumentos e novas estruturações da humanidade, especialmente em termos das agências internacionais em torno da ONU. Além dela própria, há documentos jurídicos que foram criados com interesse pela proteção dos indivíduos, em contrapartida à atenção que recebem os Estados e instituições nesse e desse sistema internacional – o conjunto de instrumentos e meios, voltado para a liberdade, a igualdade e a dignidade humana. A comunicação, então, é partícipe da ampliação do conhecimento das oportunidades em termos jurídicos e institucionais.

    A mobilização mundial que ocorreu entre 1993 e 1995, quando foi proclamada a Declaração Mundial de Princípios sobre a Tolerância convocada e animada pela UNESCO, teve como focos prioritários dois setores maiores da sociedade: a educação e os meios de comunicação. Esse chamado teve impacto modulado pelas características de cada Estado partícipe da ONU. No caso do Brasil, o ano mundial da tolerância, em 1995, ocorreu apenas sete anos após a promulgação da Constituição Cidadã e 10 anos depois do primeiro governo civil eleito ainda pelo sistema indireto.

    Naturalmente, as características do momento marcaram o modo de pensar a tolerância no Brasil naquele momento em tudo que se referia à comunicação, pelo que a ditadura civil-militar havia representado em termos de censura, perseguição a jornalistas, artistas, intelectuais. Porém, o andamento da política interna nas décadas seguintes, somada à consciência trazida pelos conflitos internacionais, propiciaram o aprimoramento da comunicação em direção à tolerância, ao mesmo tempo que os desafios se multiplicaram, tornando-se cada vez mais complexos. Há veículos de imprensa que mantêm sessões voltadas para a questão da tolerância, assim como periódicos acadêmicos da área da comunicação que igualmente o fazem. São exemplos, atualmente: a Intercom: Revista Brasileira de Ciências da Comunicação, a Tempo & Presença, da organização Koinonia, entre outros.

    Voltando ao tema da transversalidade e interseccionalidade da intolerância religiosa, há um desafio único em cada caso ao lidar com temas afeitos ao estado laico, como direitos humanos, racismo, direitos indígenas, discriminação, direitos sexuais e reprodutivos, identidades de gêneros, direitos de crianças e adolescentes, apenas para citar alguns exemplos. Os meios de comunicação igualmente sofrem o impacto desses desafios, em especial pelo ritmo da produção das matérias e do suceder de notícias. Ou seja, além do que será tratado, a demanda que recebe a pessoa do comunicador por preparo específico não é absolutamente simples de atender.

    Ademais, como já abordado, o mundo jurídico constitui um campo específico nas questões de (in)tolerância religiosa, tanto em razão da busca por proteção da cidadania, como pelos embates que ainda ocorrem entre o que é a autoridade civil e a autoridade religiosa; o que diz a letra da lei, em termos do sistema legal do país, e o que dizem as ordenanças religiosas ou espirituais – o que se torna mais complexo ainda quando se enredam dois (ou mais) sistemas religiosos distintos e o sistema legal nacional. Instituições, entidades e associações jurídicas têm estado cada vez mais atentas a esse delicado tema, estabelecendo setores específicos para tratar da questão, assim como programas profissionais de comunicação para oferecer a melhor informação à população. Isso se dá em termos dos diversos níveis do poder judiciário, incluindo o Ministério Público, no âmbito federal, estadual e municipal, tribunais de justiça, tribunais superiores como o Tribunal Superior Eleitoral, Supremo Tribunal Federal (STF). A tolerância é e deve ser tão valorizada por ser a garantia do pluralismo, que é um dos princípios da democracia.

    Um tema que entrelaça questões de comunicação, aspectos jurídicos e intolerância frequentemente de fundo religioso é o discurso de ódio. O fenômeno já existia, porém ainda inominado. No entanto, com a multiplicação de sua ocorrência, foi necessário conceituá-lo. O aparecimento do termo hate speech, primeiramente entre filósofos do direito nos Estados Unidos, como Richard Dowrkin, cumpriu um primeiro desafio, que foi delimitar até onde pode ir a liberdade de expressão e onde deixa de ser exercício de liberdade para se enquadrar como crime. No Brasil, os juristas Celso Lafer e Daniel Sarmento foram pioneiros no estudo e reflexão do tema. Celso Lafer atuou como amicus curiae junto ao STF, em 2003, exarando histórico parecer no célebre caso Ellwanger – Siegfried Ellwanger Castan – réu posteriormente condenado por editar, divulgar e distribuir livros negacionistas e revisionistas do holocausto. Esse julgamento foi marcado por lidar com temas árduos e complexos, como os limites da liberdade de expressão, a condenação do revisionismo e do negacionismo do holocausto, o direito ao respeito à memória dos mortos, vítimas do holocausto, a caracterização da discriminação dos judeus como racismo, por isso imprescritível e inafiancável, como determina a Constituição Federal de 1988. O parecer de Celso Lafer é uma peça jurídica magistral que merece ser conhecida, para além do julgamento encerrado que condenou o criminoso, por oferecer elementos altamente esclarecedores do tema da intolerância religiosa que, sem conhecer limites, extrapola sua própria natureza.

    A questão do discurso de ódio tem assumido tal gravidade no Brasil que a Confederação Israelilta do Brasil (Conib) solicitou que a Faculdade de Direito da Fundação Getúlio Vargas (FGV), São Paulo, realizasse uma pesquisa sobre essa chaga contemporânea. Desse esforço conjunto resultaram seminários, livros e o guia de análise de discurso de ódio, disponível de modo aberto na internet. São recursos de instituições que se uniram para promover a reflexão, a elaboração conceitual e a oferta de materiais para quem esteja interessado em sua própria e constante formação.

    Para saber mais:

    ARMSTRONG, K. Campos de sangue: religião e a história da violência. São Paulo: Companhia das Letras, 2016.

    BOBBIO, N. A era dos direitos. Rio de Janeiro: Campus, 1992.

    BIASOLI-ALVES, Z. M. M.; FISCHMANN, R. (Orgs.). Crianças e adolescentes: construindo uma cultura da tolerância. São Paulo: Edusp, 2008.

    CUNHA, M. N. Intolerância e violência religiosas nas mídias noticiosas: a propósito do Relatório Brasil (2011 – 2015). Reflexões, v. 42, n. 1, jul./dez. 2017.

    FISCHMANN, R. Estado laico, educação, tolerância e cidadania: para uma análise da Concordata Brasil-Santa Sé. São Paulo: Factash Editora, 2012.

    FISCHMANN, R. Educação, direitos humanos, tolerância e paz. Paidéia, v. 11, n. 20, 2001, p. 67-77.

    GRUPIONI, L. D. B.; VIDAL, L.; FISCHMANN, R. (Org.). Povos Indígenas e Tolerância: Construindo Práticas de Respeito e Solidariedade. São Paulo: Edusp, 2001.

    KUNSCH, M. M. K.; FISCHMANN, R. (Org.). Midia e Tolerância: A Ciência Construindo Caminhos de Liberdade. São Paulo: Edusp, 2002.

    LAFER, C. A Declaração Universal dos Direitos Humanos: sua relevância para a afirmação da tolerância e do pluralismo. In: MARCÍLIO, M. L. (Org.). A Declaração Universal dos Direitos Humanos – Sessenta anos: sonhos e realidades. São Paulo: Edusp, 2008.

    SARMENTO, D. Livres e iguais: estudos de direito constitucional. Rio de Janeiro: Lumens Juris, 2006.

    SILVA, V. G. (Org.). Intolerância religiosa: impactos do neopentecostalismo no campo religioso afro-brasileiro. São Paulo: Edusp, 2015.

    UNESCO. Declaração de princípios sobre a tolerância. Brasília: Unesco, 1995. Disponível em: https://bit.ly/2WPw5lg. Acesso em: 20 jun. 2021.

    Autoridade religiosa

    Claudio de Oliveira Ribeiro

    Conceitos-chave articulados: Memória, identidade, tradição; Crenças e formas de crença; Religiosidades, espiritualidades; Teologias.

    Os variados temas relativos às religiões e às formas similares de espiritualidades, tanto no contexto brasileiro quanto no mundial, não podem ser abordados sem se levar em conta a realidade de pluralismo que marca as sociedades hoje. As reflexões em torno do tema da autoridade religiosa não fogem a essa regra. Há uma considerável diversidade de práticas e compreensões do que seja uma autoridade religiosa, tudo isso envolvendo as mais diferentes instituições e movimentos religiosos.

    Em geral, essas múltiplas compreensões estão intimamente articuladas com as formas pelas quais o poder é exercido internamente, tanto em nível macro (que pode abarcar, por exemplo, uma religião com inserção mundial), quanto em níveis do cotidiano e das relações internas de uma pequena comunidade religiosa. A compreensão relativa às autoridades religiosas também se diversifica de acordo com os diferentes ângulos em que podem ser vistas pelos setores externos.

    Em geral, os grupos externos a determinada comunidade religiosa (as mídias, outros grupos religiosos, os poderes públicos etc.) olham-na sob perspectivas mais formais e institucionalizadas. Esses nem sempre estão atentos aos movimentos internos de maior ou menor legitimação das autoridades, à heterogeneidade dos grupos e das confissões religiosas, tanto em níveis mais gerais (mundiais, nacionais ou regionais) quanto no âmbito de uma comunidade ou grupo local.

    Historicamente, ainda que haja uma variação de religião para religião, tanto os fatores internos, que configuram as relações de poder, quanto as visões externas tendem a concentrar o foco de autoridade em homens brancos e de poder econômico e escolaridade mais elevados. No entanto, em quase todos os ramos religiosos há movimentos e situações alternativos. Isso desafia os setores externos – incluindo as mídias e variados campos da sociedade civil – a perceberem as ambiguidades e pluralidades internas de cada grupo e a criarem canais de visibilidade e expressão para eles.

    No Brasil, é considerável, por exemplo, o papel de mulheres no campo cristão-evangélico, com a presença de pastoras e bispas, bem como no universo afro-brasileiro, com as mães de santo. Além disso, é possível destacar o exercício da autoridade religiosa de pessoas com escolaridade básica, pouco letradas e pobres, especialmente no campo pentecostal, com pastores que atuam em áreas periféricas, além do importante papel dos pais de santo, no campo das religiões afro-brasileiras. Esses grupos praticamente ficam ausentes dos espaços das mídias convencionais.

    Tendo em vista esse quadro, é importante destacar a importância do princípio pluralista como instrumento de análise da diversidade religiosa no Brasil. Ele procura olhar a realidade a partir dos entre-lugares das culturas, das zonas fronteiriças que cada grupo religioso possui, seja com outras expressões religiosas, com as diferentes culturas ou aquelas forjadas com as próprias divisões políticas e ideológicas internas de cada grupo. Com isso, o princípio pluralista facilita a visibilidade e o empoderamento de grupos subalternos e contribui para maior explicitação das diversidades.

    As mídias convencionais, quase sempre desprovidas do referido princípio, costumam olhar a realidade religiosa sob um prisma de homogeneidade, formalidade e institucionalidade hegemônica, não valorizando as diversidades internas de cada religião, nem dando voz aos grupos dissidentes, alternativos e contra hegemônicos.

    Fontes de autoridade religiosa. São muitos os elementos que conferem autoridade às pessoas que pertencem a grupos religiosos, permitindo, assim, que passem a exercer liderança, representação e legitimidade nos grupos a que estão vinculadas. Pode-se destacar, ao menos, quatro deles:

    1. o conhecimento formal ou informal do texto sagrado, no caso das religiões que o possuem;

    2. um tipo de sapiência, fruto do acúmulo de experiências de vida;

    3. o carisma que determinadas pessoas ou grupos cultivam, e que reforça a capacidade de articulação e mobilização coletiva, bem como a gerência da vida comunitária ou institucional;

    4. o status socioeconômico e cultural conferido pelas próprias comunidades ou instituições religiosas, ou por setores externos. Na atualidade, esses elementos estão cada vez mais interligados, permitindo a fácil identificação popular de figuras que que exercem a autoridade religiosa baseada em um ou mais desses aspectos.

    Conhecimento dos textos sagrados. No que diz respeito ao conhecimento dos textos sagrados, há que se destacar que eles podem se dar de maneira formal ou informal. Ambas conferem autoridade às pessoas que a eles têm acesso e os dominam.

    No tocante ao conhecimento formal, as instituições religiosas têm estruturas de formação e de verificação da assimilação do conhecimento. Assim, se recorre às faculdades de teologia e aos seminários cristãos, de nível universitário ou médio, para a formação de padres, pastores e pastoras, às escolas rabínicas, às universidades islâmicas para formação em ciências islâmicas, com especificações no conhecimento, como tafsir do Alcorão (especialista em explicação dos seus significados), e a outros espaços institucionais similares. Esses oferecem, com maior ou menor rigor acadêmico, um padrão formal que, em geral, possibilita que as pessoas que os dominam exerçam cargos e recebam títulos religiosos, respeitadas as regras internas de cada grupo religioso.

    Ao conhecimento dos textos sagrados somam-se o domínio sobre as doutrinas e o desenvolvimento histórico e institucional delas. Assim, são formados os rabinos, os padres, os pastores e as pastoras, os sheikhs e sheikhas do islam, que passam a exercer autoridade religiosa em diferentes níveis. A ideia de conhecimento sagrado também é fundamental no espiritismo, visto que os livros da codificação kardecista são fundamentais para que o sujeito se forme como espírita e médium. A doutrina espírita, como herança da visão positivista, valoriza o letramento na busca de comunicações mais aprimoradas e na manutenção da autoridade religiosa. De forma seletiva, sobretudo por priorizar a visibilidade de líderes católicos (como o papa, arcebispos, bispos e padres), é esse elemento de autoridade formal que as mídias convencionais costumam priorizar em suas abordagens.

    Há outro tipo de conhecimento dos textos sagrados que é adquirido pela leitura ou pela escuta, sem mediações escolares ou acadêmicas. Até a década de 1980, isso foi um fator de forte caracterização das igrejas e grupos pentecostais. Os pastores, com base nos ensinamentos vindos da própria comunidade desde a infância ou juventude, passavam a ser escolhidos e consagrados tendo como base o conhecimento da Bíblia. O mesmo pode ocorrer com pessoas leigas, ou seja, não somente com pastores. Esse conhecimento era associado a outros fatores de empoderamento, como o exemplo pessoal público quanto à ética religiosa e à fidelidade aos costumes da comunidade. A soma desses elementos conferia (e, em certo sentido, ainda confere hoje) maior ou menor poder no exercício da autoridade religiosa. As mídias convencionais, provavelmente por não abrirem espaços para vozes subalternas, reproduzem concepções elitistas e não consideram devidamente o exercício de autoridade religiosa por parte de uma parcela significativa de líderes de diferentes expressões religiosas do campo popular.

    Sapiência com base em experiências de vida. Outro elemento que confere autoridade é o que denominamos sapiência. Trata-se da capacidade de oferecer, por meio de exemplos pessoais e do conhecimento dos ritos, mitos e símbolos de suas tradições, indicações práticas às comunidades no que se refere ao enfrentamento dos principais dilemas da vida. De alguma forma, ela está ligada ao último aspecto acima descrito, isso é, de que a capacidade de se articular a trajetória pessoal com os valores e práticas comuns de uma comunidade ou instituição possibilita reconhecimento, liderança e adesão por parte dos fiéis. No entanto, a sapiência como expressão de conhecimento experiencial, vivido e assimilado com base em laços de convivência e trocas mútuas, se dá mais incisivamente nas formas religiosas menos institucionalizadas ou fora do padrão hegemônico formal do cristianismo.

    Essa dimensão está bastante presente nas expressões religiosas e espiritualidades do universo afro-brasileiro. Pais e mães de santo, líderes de federações ou articulações de terreiros são legitimados, em geral, pelo reconhecimento da comunidade daquilo que foi acumulado nas experiências de vida e no conhecimento das raízes de suas tradições, boa parte delas preservada pela oralidade. Isso é feito, geralmente, com base em indicações práticas para as comunidades e grupos no que diz respeito às demandas do cotidiano. Esse reconhecimento oferece credibilidade às pessoas que o possuem e confere a elas bases para o exercício da liderança e da representatividade. Em função da natureza desse tipo de conhecimento, há maior valorização dos idosos e idosas. Para uma compreensão mais apurada sobre autoridade no universo afro-brasileiro, são necessárias reflexões acerca da ancestralidade, da sabedoria e transmissão oral, do conhecimento da tradição vindo dos antepassados – dos pais e mães de santo antigos, que se expressam na genealogia de uma casa de santo. As mídias convencionais conferem pouco ou nenhum valor às expressões de autoridade que brotam ou são reforçadas pelo elemento sapiencial.

    Carisma e poder. O terceiro elemento, que, em circunstâncias e contextos específicos, se conjuga com os dois primeiros é o que denominamos carisma. Nos estudos sociológicos, há densa produção a respeito, sobretudo nos estudos weberianos, ressaltando o carisma como fator mobilizador que legitima a atuação crítico-profética e de crítica às tradições, efetuadas por líderes de movimentos emergentes. Associada também ao carisma está a capacidade pessoal ou coletiva de gerar admiração, respeito, atração ou até mesmo fascínio, despertando simpatia de pessoas e grupos com os quais se convive. No campo religioso, tal capacidade é geralmente compreendida como resultante de uma expressão divina ou sobrenatural, embora também possa ser vista como dom natural fortemente marcado por uma ambientação espiritual.

    O carisma é reconhecido por diferentes práticas. Uma das mais comuns nos meios religiosos, todavia também presente nos ambientes políticos e educacionais, é a da oratória. A forma e os conteúdos de homilias, pregações, estudos doutrinários, orações e rezas, se bem articulados e fundamentados, geram credibilidade, aceitação e autoridade. Tais condutas, em geral, reforçam a capacidade de articulação e de mobilização de grupos e incidem positivamente na gerência da vida comunitária ou institucional.

    Outro aspecto na diversidade do carisma, e que legitima a aceitação da autoridade religiosa, é a intervenção positiva nos processos de cura física e emocional. Isso se expressa em quase todas as religiões e espiritualidades, em maior ou menor grau, dependendo dos níveis de racionalidade que sustenta as propostas religiosas. É especialmente comum no campo cristão pentecostal, nos movimentos católicos de renovação carismática, nos centros de Jorey da religião messiânica, nas práticas xamânicas de grupos indígenas, nas espiritualidades dos candomblés, umbandas e encantarias, nas experiências do Santo Daime, nas cirurgias espirituais, expressões de mediunidade e psicografia no campo espírita, entre tantos outros. As mídias convencionais costumam apresentar tais exercícios de autoridade religiosa como expressão exótica e excêntrica.

    Status socioeconômico e cultural. O quarto elemento que confere autoridade no contexto dos grupos religiosos e que é articulado sobretudo com o primeiro, o do conhecimento formal dos textos sagrados, é a valorização, por parte das comunidades, instituições e mesmo de setores externos a elas, do status socioeconômico e cultural que uma pessoa ou grupo possuem. Quanto mais elevado esse for, mais facilidades terão para o exercício da autoridade. Embora de natureza sociológica, esse elemento é articulado no contexto das experiências religiosas a partir de justificativas de certo teor ideológico e de práticas excludentes, visíveis ou subliminares. Ele não é efetivado sem a consideração dos argumentos de natureza religiosa e das expressões culturais que, no caso brasileiro, são historicamente marcadas pelo coronelismo, pelo elitismo e pela supremacia político-cultural das classes sociais altas e médias.

    Esse elemento é fortemente desafiador para as religiões populares, especialmente as afro-indígenas e pentecostais. Em áreas periféricas, são comuns os exemplos de pessoas ou famílias que, por possuírem automóvel ou moradia em melhores condições do que as demais, encontram caminhos mais acessíveis ao exercício da autoridade religiosa. É importante reconhecer que isso não se dá sem o domínio dos aspectos específicos das tradições religiosas que integram.

    O status socioeconômico e cultural se revela em diferentes níveis, especialmente no acesso aos espaços acadêmicos, às esferas do poder público e à ocupação das mídias. Nesse último caso, por exemplo, um pastor evangélico ou um padre católico que possui certo destaque nas mídias pode exercer maior autoridade em determinada comunidade do que o pastor ou padre que a lidera. A noção de autoridade torna-se relativizada pela atuação dos líderes religiosos nas mídias, vários deles transformados em celebridades.

    Em todos os referidos níveis há exemplos que são extraídos da variedade de expressões religiosas que compõe o quadro brasileiro. Todos são desafiadores, tanto para as análises científicas da religião quanto para o exercício prático no campo da comunicação.

    Para saber mais:

    SILVA, E. M.; BELLOTTI, K. K.; CAMPOS, L. S. (Orgs.). Religião e sociedade na América Latina. São Bernardo do Campo: Universidade Metodista de São Paulo, 2010.

    CAMURÇA, M. A. Religião como organização. In: PASSOS, J. D.; USARSKI, F. (Orgs.). Compêndio de ciência da religião. São Paulo: Paulinas/Paulus, 2013, p. 287-299.

    CARNEIRO, E. J. Pluralidade religiosa afro-brasileira. In: RIBEIRO, C.; ARAGÃO, G.; PANASIEWICZ, R. (Orgs.). Dicionário do pluralismo religioso. São Paulo: Recriar, 2020, p. 181-186.

    HOOVER, S. Mídia e religião: premissas e implicações para os campos acadêmico e midiático. Comunicação e sociedade, v. 35, n. 2, p. 41-68, 2014.

    MARIZ, C. L. Instituições tradicionais e movimentos emergentes. In: PASSOS, J. D.; USARSKI, F. (Orgs.). Compêndio de ciência da religião. São Paulo: Paulinas/Paulus, 2013, p. 301-312.

    RIBEIRO, C. O. O princípio pluralista. São Paulo: Loyola, 2020.

    Catolicismos

    Luís Henrique Marques

    Conceitos-chave articulados: Crenças e formas de crença; Religiosidades, espiritualidades; Teologias.

    Por que catolicismos? Simplesmente porque, ao contrário do que o senso comum aqui no Brasil sugere, existem diferentes igrejas católicas no mundo. A Igreja Católica Apostólica Romana, por suas dimensões, é, certamente, a denominação religiosa mais conhecida no mundo ocidental, razão pela qual é comum a imprensa e opinião pública dessa parte do globo referirem-se a ela simplesmente como igreja católica. Mas, como a história do cristianismo nos revela, cismas no interior da igreja cristã, ainda nos primeiros séculos de sua história, fizeram surgir catolicismos de tradições diferentes, embora próximos em termos de profissão de fé e doutrina. Além disso, como veremos, no próprio seio da igreja católica, ao longo de sua história, surgiram diferentes concepções e práticas teológicas, demonstrando que, embora católica (termo de origem grega que quer dizer universal), essa igreja é marcada por uma diversidade no seu interior, o que corrobora o fato de que, na prática, são muitos os

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