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Fethullah Gülen: Uma Vida de Hizmet 
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Fethullah Gülen: Uma Vida de Hizmet 
E-book688 páginas9 horas

Fethullah Gülen: Uma Vida de Hizmet 

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Sobre este e-book

Nesta primeira biografia crítica de Fethullah Gülen em inglês, o historiador Jon Pahl nos leva em uma jornada onde descobrimos sabedoria e controvérsia, da Turquia de 1940 aos EUA no século XXI. Pahl explora a história de uma das figuras mais controversas de nossos tempos tanto como a biografia pessoal como a biografia pública do movimento social que ele inspirou, o Movimento Hizmet. Com prosa viva e extensa pesquisa, Pahl traça a vida e o pensamento de Fethullah Gülen em seus contextos, afirma claramente suas próprias posições e, em seguida, permite que os leitores tirem suas próprias conclusões a partir das evidências sobre essa figura histórica inegavelmente significativa.
IdiomaPortuguês
Editorae-galáxia
Data de lançamento27 de jul. de 2022
ISBN9786587639994
Fethullah Gülen: Uma Vida de Hizmet 

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    Fethullah Gülen - Jon Pahl

    Jon Pahl

    FETHULLAH GÜLEN

    UMA VIDA DE HIZMET

    Por que um estudioso muçulmano na Pensilvânia tem importância para o mundo

    Tradução

    Gilberto Arlindo Banze

    Sandra Espilotro

    Para Justin, com amor

    Sumário

    Guia de pronúncia

    Glossário

    Introdução

    Capítulo I | Aprendendo – Erzurum e Edirne, 1938-1966

    Capítulo 2 | Nós éramos jovens – Izmir, 1966-1971

    Capítulo 3 | Empatia e lágrimas – o Egeu, 1971-1980

    Capítulo 4 | Melancolia e diálogo – Istambul, 1980-1999

    Capítulo 5 | Hizmet global − América, 1999

    Bibliografia

    Entrevistas

    Sobre o autor

    Guia de pronúncia

    Na pronúncia da língua turca, o alfabeto apresenta alguns fonemas bastante distintos dos da língua portuguesa:

    ş = fonema com som de sh, como em chave e chuva.

    ğ = o som deste fonema é produzido na garganta, sem articulação dos lábios ou da língua. É usado para prolongar o som da vogal que vem antes dele.

    h = h-ha: o som é de h aspirado e não temos similar em português. Pode ser exemplificado pelo som de palavras inglesas como hi e hello.

    ö e ü = ou e ew: no fonema ü, consegue-se o som como na letra i, tendo os lábios em forma de u. No fonema ö, o som é produzido pronunciando a letra i com os lábios em formato de o.

    c = som de j curto ou um som leve de g.

    ç = som de che longo, como na pronúncia da palavra inglesa "cheese, alongando-se o e".

    Glossário

    Durante todo o processo, usei em geral o alfabeto turco, com algumas exceções fonéticas para facilitar a leitura, principalmente em Hodjaefendi (para Hodjaefendi) e algumas outras.

    agabey (também abi, pl. abiler): irmão mais velho – um papel informal importante dentro do Hizmet.

    abla (pl. ablalar): irmã mais velha – um papel informal importante dentro do Hizmet.

    cemaat (gema-aht): comunidade – amplamente utilizado para descrever o Movimento Hizmet de pessoas inspiradas em Fethullah Gülen; assim como camia (dja-miâ), um termo preferido por Hodjaefendi para descrever um grupo aberto e mais permeável dos Estados Unidos mais como um movimento do que como uma comunidade.

    dershane (ders-han-ay): centros de tutoria, também conhecidos como escolas de cursinhos para preparação de alunos para os exames de vestibular turco. Também se refere aos apartamentos onde os estudantes afiliados ao Hizmet ficam durante os anos de faculdade e formam seus círculos de leitura. Esses apartamentos costumavam ser chamados de casas de luz (ışık evler).

    ghurba: separação – usado como uma solidão mais ampla, sendo estrangeiros e renunciando aos prazeres do mundo.

    Gülen (Gue-len): sobrenome do Fethullah Gülen.

    Hodjaefendi (Ho-ja-ef-en-dee): professor honrado – usado para falar de Fethullah Gülen.

    hicret (hij-ret, de hijrah em árabe): peregrinação – deixando a terra por uma causa divina; uma ideal chave do Hizmet.

    himmet: apoio financeiro voluntário ou doação a atividades, esforços e projetos filantrópicos.

    hizmet: serviço – mas de forma mais ampla; trabalho realizado em nome da humanidade por meio de relacionamentos de confiança, para o prazer de Deus; também o movimento de pessoas inspiradas por Gülen para servir.

    hoşgörü (hosh-goeru): tolerância – no sentido de pluralismo de princípios mais amplos; aceitando diferenças com empatia, mas trabalhando juntos por meio do diálogo para encontrar um terreno comum.

    hüzün (hue-zuen): melancolia – profunda tristeza e dor; mágoa.

    ihlas (ikh-las): abnegação, pureza, sinceridade ou integridade.

    istişare (de istishara em árabe): consulta mútua – um princípio e prática de organização central no Hizmet.

    mütevelli (mue-te-vel-lee): curadores, doadores, líderes empresariais que se dedicam ao Hizmet e que contribuem para a tomada de decisões.

    riza-ı ilahi (às vezes apenas riza): renúncia – mas também contentamento com os decretos de Deus; fazer algo pelo prazer de Deus, sem esperar retorno.

    sohbet (sokh-bet): conversa – discussões de leitura em pequenos grupos; um princípio de organização central e prática no Hizmet.

    sufi/sufism/tasawwuuf: espiritualidade islâmica; quem é informado e pratica a espiritualidade islâmica.

    uns: no sufismo – comunidade ou mesmo intimidade entre um ser humano e Deus.

    Prefácio

    Em outubro de 2006, recebi um convite que mudaria minha vida para melhor. O convite foi para um iftar, que é a refeição para quebrar o jejum de um dia inteiro dos muçulmanos durante o mês do Ramadan. O iftar foi anunciado como um evento inter-religioso, a ser realizado no Sheraton Center City Hotel, na Filadélfia, e veio de um grupo chamado Dialog Forum. Eu não sabia quem ou o que era esse fórum de diálogo, mas ensinei engajamento inter-religioso como professor no Seminário Teológico Luterano da Filadélfia, gostei da ideia de um jantar grátis e o Sheraton me pareceu agradável.

    Assim, respondi sim e apareci no local, onde fui direcionado por alguns sinais para um modesto salão no andar inferior. Do lado de fora do salão de baile, fui recebido por duas jovens sentadas a uma mesa carregada de livros e outras publicações. Ambas usavam o hijab – a cobertura de cabeça que é típica das mulheres muçulmanas devotas. Mas uma delas, Yasemin – como ela se identificou –, era excepcionalmente amigável e rapidamente verificou meu nome em uma lista, me deu o crachá e direcionou-me para o salão de baile. Lá, misturei-me com cerca de duzentas outras pessoas trajando ternos e vestidos bonitos – algumas das quais reconheci como colegas de outras universidades ou faculdades da região da Filadélfia. Não havia bebida alcoólica, é claro. E tivemos a chance de experimentar um pouco de suco de cereja azedo – o vişne turco – que eu nunca havia provado antes, mas que viria a se tornar uma das minhas bebidas favoritas.

    O jantar foi agradável. O doutor Thomas Michel, que foi apresentado como o Secretário Jesuíta para a Unidade de Diálogo Inter-religiosa do Vaticano, foi o orador principal. Michel leu para nós – sim, ele leu para nós – um texto de um livro intitulado Rumo a uma civilização global do amor e da tolerância [em livre tradução], de um autor chamado Fethullah Gülen (pronuncia-se aproximadamente como eu o ouvi naquela noite: Fet-hoo-la Gue-len). Superei a atitude pedante e comecei a ouvir o que as palavras diziam. E depois do jantar comprei um exemplar do livro na mesa em frente. E mais tarde, naquela noite, comecei a ler. Na manhã seguinte, escrevi uma breve coluna agradecendo aos organizadores do jantar. Essa coluna contrastou minha experiência de hospitalidade entre os muçulmanos com a islamofobia cristã e a máquina de guerra dos Estados Unidos que prejudicaram nossa cultura desde 2001 (ainda estávamos atolados no Iraque). No dia seguinte, o The Philadelphia Inquirer a publicou.[1]

    Aquela noite foi o início da minha trajetória acadêmica, como é chamada, que levou a esta biografia. Durante meu doutorado no programa da Escola de Divindade da Universidade de Chicago, estudei Tradições religiosas ocidentais, incluindo o Islam. Mas a maioria das minhas pesquisas tem sido no campo da história religiosa americana. Minhas publicações geralmente exploram como as pessoas de fé nos Estados Unidos se envolvem com a sociedade civil para o melhor e para o pior. Mais recentemente, escrevi principalmente sobre o pior em um livro intitulado Empire of Sacrifice: The Religious Origins of American Violence.[2] E como professor, primeiro em uma pequena universidade luterana de artes liberais e depois no seminário, e alternadamente como professor visitante em uma grande universidade (Temple) urbana, relacionada ao estado, ou na Ivy League (Princeton), eu procurei integrar meu trabalho como historiador com um crescente comprometimento como ativista por um mundo mais justo e pacífico. Nesse trabalho, vivi e tentei reconciliar uma tensão que considero inerente ao mundo moderno. Também aprendi, por meio de minha pesquisa para esta biografia, que essa tensão e esse esforço para reconciliá-la também se manifestaram de maneira dramática e às vezes trágica na vida de Fethullah Gülen.

    Essa tensão pode ser colocada de maneira simples, embora tenha muitas facetas: uma pessoa fiel não pode ser racional; uma pessoa racional não pode ser fiel. Em contraste, o paradoxo com o qual vivi e estudei, e que a vida de Fethullah Gülen ilumina, é que uma pessoa fiel pode ser racional, e uma pessoa racional pode ser fiel. Ele colocaria isso de maneira ainda mais forte. É irracional ser infiel. E é infiel ser irracional. Gülen também argumentaria, e eu concordo com ele, que a racionalidade fiel deve se expressar em ações concretas por justiça e paz no mundo. Devemos construir pontes, argumentou ele ao longo da vida, entre o fiel e o científico, traduzindo a profunda confiança que a religião promove em projetos práticos para ajudar a aliviar o sofrimento amplo e desnecessário do mundo.

    Comecei a escrever esta biografia muito antes de Fethullah Gülen ser uma figura regular na mídia americana. Muitas vezes lamentei não conseguir terminar o livro com mais rapidez. No entanto, a controvérsia tem sido uma característica consistente da vida de Gülen, assim como a perseguição a ele e às pessoas que lhe são próximas, a qual, nos últimos anos, atingiu um pico febril. Gülen também tem sido consistentemente – embora por fontes muito diferentes – incompreendido e mal-interpretado. Sua reputação pública foi marcada por acusações de que, após um pouco de investigação, pode-se revelar que ele possui motivos políticos básicos (se não corruptos). Por outro lado, as pessoas, sobretudo na Turquia, não entenderam Gülen por causa da ignorância secular generalizada sobre como a religião opera, especificamente o Islam. Esta biografia visa corrigir o registro.

    Eu li tudo o que Fethullah Gülen escreveu e que foi traduzido para o inglês, além de todas as fontes secundárias sobre ele em inglês – um corpo bastante amplo de literatura. E estudei turco o suficiente para percorrer a maioria das histórias de jornais e outros documentos públicos dele ou a seu respeito, com a ajuda de um bom dicionário. Também tive ajuda para traduzir do turco para o inglês alguns dos sermões de Gülen, e para traduzir algumas entrevistas dadas a pessoas próximas a ele. Meu principal assistente de pesquisa nesse processo era um jovem porta-voz do Dialog Forum (hoje Peace Islands Institute) na Filadélfia. O nome dele é Feyzi Eygören, e ele conheceu Fethullah Gülen a vida toda. Como tantas pessoas inspiradas por Gülen, enquanto trabalhava comigo neste livro, Feyzi também fazia pós-graduação. Recentemente, ele recebeu seu Juris Doctor da Villanova Law School. No verão de 2015, Feyzi e eu viajamos juntos por um mês pela Turquia. Traduzimos algumas entrevistas em vídeos de pessoas próximas a Gülen e, em seguida, seguimos os passos dele por Erzurum, Edirne, Izmir e, finalmente, Istambul. Em cada parada, entrevistamos alguns dos colegas mais antigos e mais próximos de Gülen. No total, reunimos cerca de três dúzias de entrevistas, e eu fiz outras três dezenas desde então nos Estados Unidos. Este livro não poderia ter sido escrito sem os esforços generosos (e incansáveis) de Feyzi.

    Mas a gênese específica deste projeto, além do convite para o iftar, foi na verdade uma conferência realizada em 2010 na Universidade de Chicago e dedicada à exploração do tema: O Islam e a construção da paz. Fui convidado como palestrante e, certa noite, no caminho de volta ao nosso hotel em um ônibus, conversei com M. Sait Yavuz. Sait estava estudando para seu doutorado em história na Universidade de Maryland, mas havia se mudado recentemente para Houston para servir como diretor administrativo do Instituto Gülen – um think tank (instituição ou evento que produz e difunde pensamento e reflexão sobre economia, ciência, política ou religião). Sait mencionou que o instituto estava planejando encomendar uma biografia crítica de Gülen. Eu já havia visto alguns projetos encomendados anteriormente e tinha apreciado a natureza colaborativa desse tipo de pesquisa. Sugeri a Sait que conversássemos mais. E em alguns meses esse projeto estava em andamento.

    Recebi apoio financeiro de pessoas próximas a Fethullah Gülen para pesquisa e suporte editorial a esta biografia. Eles pagaram minha viagem de ida e volta à Turquia em três ocasiões, e para várias escolas e outras instituições ao redor do mundo, desenvolvidas por pessoas inspiradas por Gülen – principalmente em Gana, Quênia, Uganda, Albânia, Austrália e Indonésia. E em 2016-2017 recebi uma bolsa de pesquisa modesta da Alliance for Shared Values – outro think tank associado a Gülen – para completar o livro que você está lendo agora. Sou grato por esse apoio.

    Também não acredito que o apoio tenha mudado a maneira como abordo ou entendo Fethullah Gülen. Em todo o meu trabalho inter-religioso – agora já com décadas de experiência –, fui guiado por uma máxima de Martinho Lutero, reformador protestante do século XVI. Essa máxima − na versão do rei James I, da Inglaterra e Irlanda, e a qual memorizei quando criança − diz respeito ao Oitavo Mandamento: Não prestarás falso testemunho. Segundo a interpretação de Lutero desse mandamento, em seu Pequeno Catecismo (que também memorizei): Devemos temer e amar a Deus para que não possamos enganar, trair, caluniar ou difamar o próximo, mas defendê-lo, falar bem dele e colocar a melhor construção em tudo. Infelizmente, os muçulmanos sofreram muita calúnia e difamação nos últimos anos, e houve também muita calúnia em relação a Fethullah Gülen.

    Assim, escrevi uma biografia que busca, do ponto de vista de alguém de fora do Islam, colocar a melhor construção na vida de Gülen e no Movimento Hizmet. Isso não significa que o que se segue seja uma hagiografia. Esse tipo de biografia não serviria bem a ninguém. Seria apenas substituir um tipo de mentira por outro. Colocar a melhor construção em tudo na vida de Fethullah Gülen, como eu a interpreto, significa lembrar de forma autocrítica que minha perspectiva é parcial. Sou uma pessoa de fora – do Islam e do movimento global Hizmet (Serviço) associado a Gülen. Essa perspectiva definitivamente é uma vantagem. Posso peneirar as evidências que surgem em associação com a vida de Gülen usando todo o rigor que trago para qualquer investigação histórica. Não hesitei em fazer perguntas sobre as evidências, e em entrevistas procurei vozes e perspectivas críticas a Gülen. Dito isso, também busquei praticar uma hospitalidade mental que espelha aquela que experimentei ao ser convidado e recebido em uma comunidade. E procuro corrigir o registro histórico quando as evidências parecem exigir isso. Permitir que calúnias e falsidades permaneçam não é colocar a melhor construção na reputação de um indivíduo.

    Em suma, tentei ser justo. Isso significou integrar minhas convicções de fé como cristão luterano com minhas habilidades como historiador de religiões para narrar a história de Gülen dentro do seu contexto. Eu me envolvi, quando as evidências me levaram até lá, com áreas em que Gülen foi criticado com razão – principalmente por falta de transparência, desequilíbrio de gêneros e por algum nostálgico nacionalismo turco. Colocar a melhor construção em tudo não significa negligenciar nada. Descobri ao longo do caminho que a tarefa de entender como uma única vida se desenrolava em uma cultura complexa e rica é um desafio intelectual (e às vezes pessoal). Mas também foi um prazer. Com a ajuda de muitas pessoas, montei a história de como o filho mais velho de uma família devota na Turquia aprendeu a ser um construtor de paz religiosa no mundo moderno. Ele fez isso ajudando mulheres e homens a reconciliar, a meu ver, o que parecem ser profundas contradições e a viver uma vida com maior integridade do que antes de se familiarizarem com sua vida e obra.

    Espero que seja uma história que você considere criticamente correta e espiritualmente inspiradora. Esta é a história de uma vida que as pessoas na Turquia, e agora ao redor do mundo, chamam de hizmet: uma vida de serviço.

    ***

    Mas comecei este prefácio dizendo que minha participação no jantar de iftar em 2006 mudou minha vida para melhor. Foi o que aconteceu porque, com minha pesquisa, conheci muitas mulheres e homens – acadêmicos, simples cidadãos, ativistas, estudantes, professores e muito mais, em todo o mundo. Infelizmente não posso nomear todos eles. Fazer isso, dada a atual perseguição política turca contra qualquer pessoa remotamente conectada a Fethullah Gülen, colocaria vidas e meios de subsistência em risco. Às vezes, tive que mudar o nome das pessoas que entrevistei para protegê-las, embora nesta biografia elas sejam conhecidas, em sua maioria, como associadas a Gülen. Mas sou profundamente grato por cada momento que compartilhamos, e por sua generosidade e honestidade. Minha experiência de hospitalidade, oferecida por tantos ao redor do mundo, me deu um exemplo de cordialidade e integridade ao qual só posso aspirar.

    Também tive a sorte de receber feedback crítico sobre o livro de uma ampla gama de leitores e parceiros de conversação. Alp Aslandogan, Akin Öztoprak, Ahmet Kurucan e Hakan Yesilova eram leitores intrépidos de cada palavra, e sua verificação de fatos me ajudou a evitar muitas potenciais armadilhas. Eles também me incentivaram a explorar caminhos específicos de investigação e questionaram direções que não faziam sentido para eles. Nem sempre concordamos e às vezes debatemos vigorosamente, mas, no decorrer de nosso trabalho juntos, nos tornamos não apenas colegas, mas amigos – arkadaşlar. Sou verdadeiramente grato a cada um deles por suas ideias generosas, sabedoria e amizade, e especialmente a Hakan por sua experiência editorial. David Grafton, que era meu colega no Seminário Teológico Luterano na Filadélfia e que agora ensina relações entre cristãos e muçulmanos no Seminário Hartford, também foi um leitor cuidadoso e extremamente útil em todo o trabalho; sinceros agradecimentos a ele. Outros estudiosos também leram todo ou parte do trabalho e/ou conversaram comigo de forma crítica e construtiva. Yasemin Aydin, Züleyha Çolak, Shirley Robbins, TL Hill, Dani Rodrik e Mustafa Akyol foram todos parceiros de conversação sobre questões interpretativas que surgiram e sobre arcos narrativos e organização. Yasemin foi particularmente generosa com seu tempo e encorajadora em seus comentários. Mark Wallace não era apenas um anfitrião frequente para mim, junto com sua esposa Audrey Beach, em sua adorável casa em Swarthmore, mas Mark também era um leitor valioso do manuscrito, parceiro de conversa sobre o projeto e um amigo querido. O doutor Richard Mandei, Dan e Melissa Muroff, e Andy e Christina Andrews foram verdadeiros amigos que uivavam comigo para a lua (às vezes literalmente) [uivar para a lua é uma expressão americana que significa gastar tempo e energia tentando obter, ou fazer, algo impossível] quando necessário; profundas graças a eles. Meu decano do United Lutheran Seminary, Jayakiran Sebastian, também reconheceu a importância deste livro e me deu assistência constante; meus agradecimentos a ele e aos meus outros colegas no seminário. Quando o projeto estava próximo da conclusão, Hayrunnisa Kalaç se mostrou particularmente útil na conversão de minhas grafias anglicizadas em formas turcas apropriadas, e ela e seu pai também compartilharam generosamente comigo muitas das fotos que você vê no livro. Finalmente, meu agradecimento às pessoas boas da Union Congregational United Church of Christ, em Green Bay – onde comecei a servir como pastor em abril de 2018 –, que formaram uma maravilhosa comunidade de apoio e que foram muito pacientes ao ver meu trabalho acadêmico como uma extensão do que faço na congregação. E para minha esposa amorosa, Lisa, que realmente lutou ao meu lado nas aulas de turco em um verão quente em Istambul: não há sol quando você se vai! Dedico este livro ao nosso filho Justin – companheiro de palavras e boa escrita.

    Em suma, foi uma alegria e uma honra trabalhar neste projeto na companhia de tais colegas e amigos. Espero que a biografia atenda às expectativas delas e que atenda às expectativas de muitas outras pessoas ao redor do mundo que me incentivaram e me deram feedback em conversas e diálogos. As falhas do trabalho são naturalmente minhas.

    1 Jon Pahl, Muslims teach lesson in sacrifice, The Philadelphia Inquirer, 23 de outubro de 2006, como repostado em CAIR—Philadelphia em: http://pa.cair.com/actionalert/thank-philadelphia-inquirer/

    2 Jon Pahl, Empire of Sacrifice: The Religious Origins of American Violence (NY: New York University Press, 2012).

    Introdução

    Como se conta a história de um homem que foi elevado por alguns a quase santo e vilipendiado por outros como terrorista? Em uma visita a Izmir em 2015, os riscos que enfrentei ao escrever a biografia de Fethullah Gülen se materializaram para mim. Quando fui para o meu quarto de hotel, já no elevador após o check-in, entraram junto vários policiais carregando dossiês. Olhando para baixo – evitando o contato visual da maneira típica de elevador – notei nesses dossiês o nome do homem cuja vida eu estava estudando. Como soube no noticiário nos dois dias seguintes, os dossiês provavelmente eram ordens para caçar e prender associados de Fethullah Gülen em uma varredura que acontecia em toda a cidade. Orei para que a polícia não soubesse quem eu era ou o que estava fazendo. No jantar daquela noite, no encantador restaurante na cobertura do hotel, que tinha uma vista deslumbrante de Izmir e do mar Egeu, minha refeição foi parcialmente arruinada pela presença de policiais sentados às mesas à minha frente e atrás de mim. Seguindo o conselho dos meus colegas e amigos, mudei de quarto no hotel todas as noites. Provavelmente não tinha nada a temer. Eu havia escrito apenas alguns ensaios modestos em publicações acadêmicas sobre Gülen, e era um cidadão norte-americano. Mas, como os eventos ao longo dos próximos anos mostrariam, mesmo um cidadão norte-americano, como o pastor Andrew Brunson, poderia ser pego na onda de histeria que levava qualquer pessoa tangencialmente ligada a Gülen a ser alvo de detenção e prisão.

    Intrigas políticas à parte – haverá espaço de sobra para isso nas páginas seguintes –, este livro tem três objetivos inter-relacionados. O primeiro são as páginas que narram com precisão uma história única de vida. Descobri que isso é mais difícil do que possa parecer. Eu já sabia disso antes, mas redescobri que toda a vida humana é irredutivelmente complexa. Nenhuma escolha é simples. Ninguém, para citar uma antiga máxima, é uma ilha. Assim, embora a vida de Fethullah Gülen tenha sido singular, ela também foi constituída, como qualquer outra, por incontáveis relações. A seguir, enfatizo muito seletivamente algumas delas. Começo com a família dele, passo por alguns dos seus colegas e amigos de longa data e rastreio até o presente e a rede global de indivíduos que conheceram suas ideias, ou até mesmo a ele pessoalmente. Os leitores da biografia tendem a esperar uma trama focada no heroísmo ou na tragédia individual, e há esses momentos ao longo deste texto. Mas a história mais interessante para mim, e certamente a mais acessível e significativa historicamente, é a influência pública desse indivíduo singular. Você pode dizer, então, que esta é uma biografia pública. Essa qualificação faz sentido por razões de princípios e práticas. O próprio Gülen desviou continuamente a atenção da sua vida individual. Ensinou que a jihad primária de um muçulmano é a luta para subjugar o ego – para remover o obstáculo do eu que impede a geração de um nós. E no coração dos seus ensinamentos, e talvez da sua vida, tem sido um desejo agir de maneira a buscar o prazer de Deus, e não o dele próprio. Como biógrafo desse homem, achei necessário e importante respeitar esse ensino e desejo. Por conseguinte, até que eu concluísse um primeiro rascunho completo deste livro, optei por não o conhecer pessoalmente. Essa escolha pareceu estranha a muitos dos meus colegas acadêmicos. Suponho que tenha tornado a minha pesquisa mais difícil do que poderia ter sido. Mas acho que foi a escolha certa. Quando me encontrei pessoalmente com ele – em duas entrevistas que, juntas, levaram cerca de três horas de conversa –, pude fazer perguntas focadas, já com uma base de informação. Esses encontros não alteraram substancialmente as linhas de interpretação que eu já havia desenvolvido. Elas esclareceram alguns detalhes e acrescentaram algumas nuances. E também confirmaram o meu senso geral sobre a sua personalidade, adquirida através de registros públicos. Ainda assim, os leitores interessados numa biografia que explore a subjetividade de uma figura tendem a se decepcionar com o meu esforço neste livro. No entanto, esta é a história de uma vida, uma história que, espero, seja precisa tanto para com as evidências como com o poder explicativo nos seus contextos.

    O segundo objetivo do livro é descrever para um leitor instruído a história de um movimento islâmico (e inter-religioso) que se enraizou nessa vida singular, mas que agora tem um significado muito além disso. Outra maneira de colocar esse objetivo é dizer que, através da biografia, desenvolvi uma história muito focada na introdução ao Islam para leitores não muçulmanos. Escrevo, assumidamente, como um não muçulmano. Mas também escrevo, com décadas atrás de mim, em diálogo com muçulmanos – estudei e ensinei o Islam em inúmeras salas de aula para uma grande variedade de estudantes. É lógico que também era impossível não estar a par, como deixo claro, de que alguns leitores podem abrigar medos ou estereótipos sobre os muçulmanos consciente ou inconscientemente. Esses medos e estereótipos circularam ampla e livremente no mundo de língua inglesa, ultimamente inflamados pelo comportamento chocante de terroristas que alegavam agir em nome de Deus, mas também exacerbados e amplificados pelos governos, forças armadas e corporações que se beneficiaram da circulação contínua de falsidades e medos. Espero que as perguntas que eu trouxe para a história de vida de Gülen sejam as mesmas que outras pessoas trazem para o Islam de maneira mais ampla. Sei que não vou convencer terroristas ou aproveitadores de guerra. Mas meu esforço neste livro foi escrever para a grande maioria das pessoas de boa vontade, que podem honestamente se perguntar se o Islam é realmente uma religião de paz. Como diz o subtítulo do livro, esta é a história de uma vida de hizmet – uma vida de serviço. Mas essa palavra contém uma ambiguidade, pois, por um lado, refere-se ao próprio hizmet de Gülen: ao trabalho que ele fez como pregador e professor e às relações que estabeleceu com pessoas próximas e distantes. Por outro lado, refere-se ao movimento chamado Hizmet e ao serviço daqueles que são inspirados por Gülen. Assim sendo, esta é a biografia de um indivíduo e a história de um movimento inconfundivelmente islâmico que, acredito, representa o coração não violento dessa tradição.

    Meu terceiro objetivo é narrar a história de como uma vida individual e um movimento contribuíram para a construção da paz. Estranhamente, esse pode ser o objetivo mais difícil de alcançar. Assim como há um profundo mal-entendido sobre Gülen e o Islam no discurso popular de língua inglesa, também existe um forte preconceito contra ver as religiões como catalisadoras da paz – a menos que a religião (qualquer que seja ela) pareça ser a sua. Sou de opinião de que todo o mundo tem algo a ver com uma religião. Também tenho a convicção de que as religiões menos reconhecidas como tais também são as mais perigosas. Religiões: matam as pessoas, diz a camiseta. No entanto, as mortes diretamente atribuíveis a qualquer uma das tradições religiosas históricas, dos hindus, budistas, judeus, cristãos ou muçulmanos, para citar apenas algumas, são pálidas em comparação com as mortes que as religiões da ganância, do nacionalismo, da luxúria, cobiça, inveja ou glória, para ficarmos só em algumas delas, produziram. E essas religiões atravessam as tradições históricas e, de fato, as minam e as contradizem em inúmeros pontos. Assim como a religião não é necessariamente irracional, como Gülen tem sustentado de maneira consistente, também não é inerentemente violenta. Portanto, meu objetivo a seguir é mostrar como, a partir do registro histórico, a vida religiosa de Fethullah Gülen e o movimento religioso por ele inspirado contribuíram para um mundo mais justo e pacífico. Se as evidências sustentam essa visão, isso é assunto para os leitores julgarem. Mas deixo a minha aposta clara.

    A questão central que anima o livro é: como um menino muçulmano religioso nascido em 1938 numa pequena e remota aldeia turca inspirou um movimento global de milhões de indivíduos dedicados à alfabetização, ao empreendimento social e ao diálogo inter-religioso? Outra pergunta relacionada a esta se segue imediatamente: como Fethullah Gülen, aquele menino muçulmano que se tornou um líder religioso global, também motivou a animosidade que o levou a ser preso repetidamente, a ser monitorado pela polícia e agências de inteligência e (mais recentemente) a ser caluniado como um terrorista? Essas perguntas são históricas e biográficas, mas focalizo minha abordagem num problema que abrange vários ângulos; a saber, a capacidade dos líderes religiosos de provocar violência e a capacidade deles de promover a paz. É amplamente reconhecido que as religiões podem produzir violência. As Cruzadas e os ataques terroristas em 11 de setembro de 2001 são exemplos claros. É sabido que os principais construtores da paz do século passado trabalharam em grande parte, se não exclusivamente, por motivos religiosos. Entre eles estavam, dentre muitos candidatos em potencial: Mohandas Gandhi, Jane Addams, Rosa Parks, Badshah Khan, Desmond Tutu, Thich Nhat Hanh, Leymah Gbowee. Muitas vezes, as religiões são estereotipadas apenas pelas suas tendências violentas. Essas tendências são reais e trágicas quando mobilizadas, mas não é menos real a capacidade das tradições religiosas de promoverem a bondade, a beleza, a verdade – e outras práticas positivas de vida. Elas fizeram isso por bilhões de pessoas e por milênios. E fizeram isso para um número crescente de pessoas ao longo dos séculos XX e XXI (os Estados Unidos e a Europa Ocidental são discrepantes a essa tendência). É interessante notar que, enquanto os construtores da paz religiosa, como os da lista acima, recebem elogios em retrospecto durante a vida, muitas vezes experimentam oposição, difamação, resistência, prisão e perseguição, se não o martírio e a morte.

    Portanto, nas páginas a seguir exploraremos os eventos que aconteceram ao longo da vida de Fethullah Gülen, mas também tentaremos entender como sua existência ganhou o significado que passou a ter (positivo ou não) para muitos. Como obra de história, as questões de causa e efeito são centrais. Quais foram as causas que deram destaque a Fethullah Gülen? Como aquele menino, hoje já um senhor de idade avançada, desenvolveu a influência que o tornou um santo para alguns e alguém odiado por outros? Obviamente, minhas respostas a essas perguntas são hipóteses, e, como qualquer hipótese científica, a minha deve ser guiada pela evidência. Assim, seguirei as trilhas deixadas pelos documentos de fontes primárias, declarações de contemporâneos e interpretações de fatos de muitos outros estudiosos para tirar a minha conclusão. O meu método tem sido o de qualquer explorador intelectual: observei, li, analisei, ouvi e aprendi – e só depois narrei. Também procurei ser tão autocrítico quanto crítico. Ouvi aliados de Gülen e aqueles que discordam dele. As respostas a que cheguei me levaram a ver a vida desse personagem marcada por cinco elementos, padrões ou relacionamentos principais: 1) integridade da participação nas práticas não violentas do Islam; 2) pluralismo de princípios – manifestado no compromisso com o diálogo; 3) o que chamo de empatia engajada – sentimento profundo pelo sofrimento do mundo e vontade de se engajar em nome de aliviar esse sofrimento; 4) um compromisso com a alfabetização espiritual e científica; 5) um modelo organizacional de empresa social. Estudar a vida de Gülen e descobrir esses cinco aspectos do seu trabalho têm sido um empolgante esforço intelectual que ocupou mais de oito anos da minha vida. Espero que seja emocionante ler esta obra, enquanto você explora esse personagem junto comigo.

    A vida de Gülen certamente teve mais do que sua cota de emoção. Apesar dos esforços declarados para ficar fora dos holofotes – a fama, para ele, seguindo Said Nursi, é um mel venenoso –, Gülen não rarose encontra em grandes palcos do mundo. Havia boas razões para a Time Magazine chamá-lo de uma das cem figuras mais influentes do mundo em 2013. Mas a atenção também se tornou desagradável algumas vezes, principalmente quando ele foi preso ou quando pessoas próximas a ele foram perseguidas. Dado que esses seus encontros desagradáveis com a influência muitas vezes tiveram causas políticas, também se pode esperar uma explicação política para o seu significado histórico. Ele poderia ter tido uma grande ambição pelo poder político? Ou um plano estratégico guiado por uma cuidadosa pesquisa de mercado, pelo menos? Mas, enquanto leio as evidências, a vida de Fethullah Gülen não tem sido mormente política. Sua influência deriva do fato de ele ter sido um muçulmano particularmente consistente e autêntico, e ao mesmo tempo um pensador moderno, que motivou os muçulmanos a abraçar e contribuir com o mundo contemporâneo. Uma explicação tão simples não é suficiente para explicar a vida e o significado de Fethullah Gülen. Aqueles inspirados por ele tiveram muitas razões para isso. Os que o odiavam, pelo contrário, quase sempre o faziam por razões políticas. Portanto, interpretar Gülen, sobretudo através de uma lente política, é confundir ou deturpar o ponto principal da sua vida – que tem sido ser um muçulmano fiel, que aplica a fé numa era moderna e global.

    Ao longo da minha pesquisa, ouvi repetidamente daqueles próximos a Gülen que eles foram atraídos pela sua sinceridade ou integridade como muçulmano. E ouvi igualmente, e de forma consistente, dos críticos de Gülen, que ele tinha uma agenda oculta ou que organizava um estado paralelo. Não encontrei nenhuma evidência concreta e imparcial para apoiar o último tipo de teorização da conspiração. Minha conclusão? Se a autenticidade e a integridade são importantes no mundo moderno, a vida de Fethullah Gülen parece ser um estudo de caso singular disso numa veia muçulmana turca. A perspectiva verdadeiramente assustadora, para mim, como sugerem as polícias federais de Izmir, é que eles estão apenas fazendo o seu trabalho e caçando terroristas, e que a autenticidade e integridade podem não importar mais em alguns contextos.

    Um problema que impediu o entendimento justo de Gülen é que muitos leitores ocidentais entendem tão pouco sobre a Turquia quanto sobre o Islam. Outro é que poucas pessoas percebem ou apreciam o potencial da construção da paz pelas tradições religiosas. Esse pode ser o caso mesmo quando eles recorrem aos recursos de uma dessas tradições para encontrar paz para si mesmos. Consequentemente, esta introdução deve gastar um pouco de tempo, antes de entrarmos no conteúdo de cada capítulo, explorando os três contextos em que Gülen ganhou o seu significado: o Islam e as suas práticas, a Turquia do século XX e a ascensão da construção da paz religiosa.

    Gülen nasceu em 1938 numa família devota na pequena aldeia de Korucuk, no nordeste da Turquia, perto de uma cidade maior, Erzurum. Desde a infância, foi um muçulmano dedicado à unicidade de Deus e ao testemunho do profeta – a afirmação do credo, que é o primeiro dos cinco pilares do Islam. Tal ênfase na unidade não é sem significado histórico. Desde os quatro anos de idade, Fethullah passa horas durante todos os dias em oração, o segundo dos cinco pilares do Islam. O significado dessa prática não deve ser esquecido. A oração não é mágica, mas é uma fonte de poder cultural. A oração influencia a prática de outros crentes e, no caso de Gülen, é como um sinal definitivo da sua autenticidade como muçulmano.

    Gülen também fez três vezes o Hajj – a peregrinação a Meca, que é o terceiro pilar do Islam. Isto também pode ter significado social e histórico, pois, à medida que a globalização encolheu o mundo, lugares sagrados assumiram uma significância extraordinária e às vezes explosiva – pense em Jerusalém. O quarto pilar do Islam é o jejum de um mês no Ramadan, que Gülen observou fielmente. Ele também pregou e escreveu sobre como o jejum produz paz, entre outros benefícios. Finalmente, como forma de demonstrar a sua boa-fé islâmica, Gülen praticou e inspirou maneiras extraordinárias de Zakat – a frugalidade financeira e a caridade que constituem a quinta das principais práticas de muçulmanos devotos em todo o mundo. Mais uma vez, a fiel observância de Gülen desses fundamentos teológicos e dos rituais do Islam podem ser historicamente mais importantes para explicar o seu significado do que muitos estudiosos reconheceram. Eu chamo esses fundamentos teológicos e rituais na vida de Fethullah Gülen – porque isso é, no final, o que são –de práticas não violentas. Tais crenças e práticas cultivam hábitos sociáveis, como paciência, hospitalidade, gratificação postergada [quando a pessoa resiste a uma gratificação imediata em prol de uma posterior], cooperação, caridade e outras virtudes, e são inerentemente não violentas. Ninguém nunca matou outro enquanto se curvava em direção a Meca. Na linguagem que usarei ao longo deste livro, Gülen procurou mostrar, ao longo da sua vida de ensinamentos, como as práticas não violentas – as orações, a peregrinação e a caridade – podem ajudar os muçulmanos a crescer num mundo mais justo e pacífico.[1]

    Obviamente, o compromisso com essas cinco práticas não violentas está amplamente disseminado entre os muçulmanos. Obter um entendimento introdutório da vida e do significado de Gülen também requer compreender algo sobre o contexto turco moderno em que ele viveu a maior parte da sua vida. Desde o nascimento de Gülen até hoje, a República da Turquia passou por mudanças drásticas de continuidades duráveis. É complicado descrevê-las, pois as mudanças ocorreram rápida e às vezes violentamente, e as continuidades às vezes foram opressivas. Em 1923, Mustafa Kemal Atatürk – um herói militar que nas primeiras décadas do século XX havia defendido (muitas vezes brutalmente) a integridade do Império Otomano do ataque colonial europeu e da corrupção interna – começou a instituir uma série de mudanças que transformavam o sultanato e o califado otomanos, baseados na religião, numa república secular conhecida como Turquia. Entre 1924 e sua morte, em 1938, Atatürk impôs (e esse fato é importante) um amplo programa de reforma conhecido como laicismo. Laicismo é um termo francês de origem latina que significa do povo. Como o termo sugere, no entanto, sua origem histórica não teve ouvintes entre os cidadãos da Anatólia – o nome da península que hoje em dia constitui a Turquia –, mas sim entre aqueles da Revolução Francesa. Assim como na Revolução Francesa, Atatürk na Turquia procurou, e teve sucesso, diminuir o papel da religião na vida pública. Colocado em termos positivos, a visão de Atatürk era salvar algum vestígio do Império Otomano, estabelecendo uma república secular moderna. Ele conseguiu isso em grande parte e num período de tempo notavelmente curto. A República Oficial da Turquia, na qual o adulto Fethullah Gülen vivia, seria praticamente irreconhecível para os seus avós: no idioma, no governo e na cultura. As mulheres conquistaram o voto em 1929. A Turquia tornou-se membro da Otan em 1952. Juntou-se à Comunidade Econômica Europeia (um precursor da UE) como membro associado em 1964. E de 1970 até o presente a Turquia experimentou um rápido desenvolvimento econômico com as empresas estatais que Atatürk estabeleceu nas décadas de 1920 e 1930 e que foram privatizadas sob políticas liberalizantes e econômicas.

    Mas, se a mudança marcou a Turquia oficial através das reformas forçadas de Atatürk, as continuidades persistiram no dia a dia de muitos turcos, especialmente nas aldeias do Leste e no Norte rural. Entre essas continuidades estavam as práticas do Islam. Se Atatürk cultivou a devoção a si mesmo como um homem moderno e forte, nos moldes de Josef Stalin na Rússia, ele também achou necessário permitir que certas práticas do Islam continuassem pela Anatólia, mesmo enquanto tentava eliminá-las. Outra continuidade entre a Turquia otomana e a republicana, talvez mais durável que as práticas do Islam, foi a existência de redes de clientelismo. Essas redes circulavam recursos em meio a uma elite minoritária.[2] Elisabeth Özdalga, uma estudiosa da história moderna da Turquia, afirmou: O Estado não conseguiu integrar cidadãos como indivíduos ... [e] o Estado, mais frequentemente do que não, dissuadiu iniciativas civis por meio de várias medidas repressivas.[3] Por exemplo, o patriarcado – o domínio da vida pública pelos homens – terminou oficialmente na nova República. As mulheres tinham acesso a liberdades legais muito além das de muitos países da Europa Ocidental. Mas, na prática, os homens continuavam administrando as coisas, agora em limites definidos pelo Estado, bem como pela cultura. Uma parte da elite resistiu. Os militares haviam substituído os paxás, imãs, pregadores e líderes das irmandades sufis – todos homens, assim como as principais autoridades culturais. Os políticos habitavam um nível de poder decididamente secundário. Sucintamente, durante a maior parte da vida de Fethullah Gülen, os militares foram os guardiões do legado de Atatürk, das táticas laicistas de homens fortes.

    Como consequência, os militares intervieram em golpes por três (alguns diriam cinco e outros veriam seis) vezes durante a vida de Gülen. Os golpes indiscutíveis foram em 27 de maio de 1960, 12 de março de 1971 e 12 de setembro de 1980 (as datas específicas são conhecidas por todos os turcos informados e são famosas ou reverenciadas, dependendo da opinião pessoal sobre a política turca). A quarta intervenção, considerada por alguns como um golpe pós-moderno, ocorreu em 28 de fevereiro de 1997. Nessa data, o Conselho de Segurança Nacional – o braço político das Forças Armadas − divulgou um memorando que levou a uma série de renúncias políticas e que (re)impôs restrições à prática religiosa. O quinto surgiu na forma de um memorando eletrônico em 2007, quando o Estado-Maior divulgou uma declaração no seu site, com comentários sobre as eleições presidenciais e sua posição firme como um partido, em discussões sobre secularismo. Após essa declaração, a eleição presidencial falhou e uma eleição geral foi convocada. E o sexto golpe, fracassado, encenado e silencioso (de novo dependendo da perspectiva), ocorreu em 15 de julho de 2016. Esse evento, que foi um fiasco militar e levou a mais de duzentas mortes, resultou em acusações de que Gülen e os inspirados por ele conspiraram para conduzir esse golpe.

    Como, você pode perguntar, poderia um pregador e estudioso muçulmano, que sempre pregou a paz (como veremos), e que havia sido repetidamente vítima de golpes anteriores nas mãos dos militares (como também veremos) e que (finalmente) estava vivendo à época isolado nas montanhas de Pocono, na Pensilvânia, vir a ser acusado de ser um conspirador junto com os militares para realizar um golpe na Turquia? Excelente pergunta! Explorarei no capítulo 5 as minhas razões para pensar que essas acusações contra Gülen, de conspiração para derrubar o governo, são evidentemente falsas. E também explorarei as reais rupturas e traumas, para Gülen e para muitas das pessoas inspiradas por ele, que se seguiram a essas acusações. E deixarei claro, por fim, que é evidente que o golpe fracassado beneficiou principalmente o presidente (ex-primeiro-ministro) Recep Tayyip Erdoğan.

    Quaisquer que sejam as causas por trás dos eventos de 15 de julho de 2016, e provavelmente os historiadores levarão décadas para descobri-las, deve haver pouca dúvida de que Erdoğan se baseou num longo legado de políticas autoritárias na Turquia para permanecer no poder, restringindo as liberdades de associação, de imprensa e as propriedades que haviam marcado o anterior progresso democrático da Turquia. O fato de esse homem forte estar agora vestido com um verniz da prática democrática e islâmica não mudou as evidências.

    Há muitas ironias nesta breve narração da história recente da Turquia. Os golpes militares de meados do século XX haviam resolvido a instabilidade e o caos social reais, se não a anarquia, na República da Turquia. Não raro, eles o faziam apelando a uma ameaça à segurança nacional. Essa frase havia sido astutamente escondida em afirmações de liberdade de expressão e associação presentes na Constituição de 1961. E até 2015 os militares geralmente viam o Islam como a principal ameaça à segurança nacional (o comunismo era o outro bode expiatório durante a guerra fria). Em 2015, no entanto, o governo sob o primeiro-ministro e depois presidente Erdoğan reivindicava agora o manto do Islam. Erdoğan chegou ao poder como prefeito de Istambul, como um islamita político declarado. Então, uma vez no poder no cenário nacional, tirou o poder das Forças Armadas através de uma série de processos judiciais complexos demais para tratarmos desse ponto. O resultado foi que Fethullah Gülen e as pessoas inspiradas por ele, que já consideravam Erdoğan meio que um aliado nos seus esforços para unir o Islam e a democracia moderna, agora se tornaram bodes expiatórios e alvos de uma intensa campanha de discurso de ódio e perseguição política.

    Tragicamente, porém, esse alvo de um grupo de muçulmanos como inimigos do Estado também representou uma certa continuidade na história turca. Desde Atatürk, o governo controlava ostensivamente a religião: todas as escolas religiosas e todos os imãs e pregadores tinham que ser licenciados pelo Estado. Às vezes, a carreira de Gülen se beneficiava de pessoas em altos cargos políticos. Muito mais frequentemente, no entanto, Gülen sofria perseguição política. Mas, seja qual for a posição política de Gülen, seu apoio entre as pessoas comuns cresceu de forma contínua e consistente.

    As práticas populares dos muçulmanos turcos tinham como sobreviver à opressão do regime secular. E cada vez mais, à medida que se expandiam em redes globais, Gülen e os inspirados por ele criavam comunidades de prática que alguns estudiosos chamaram de Islam civil. Esse Islam civil, ou seja, um Islam cujo significado social veio de baixo, e que era compatível com a democracia, deve ser contrastado com o Islam político, ou seja, um Islam imposto de cima, que alimentou, por exemplo, a Revolução Islâmica de 1979 no Irã, vizinho da Turquia. Esse era o modelo original de Erdoğan. Depois de encontrar resistência ao longo do seu caminho político islâmico – mesmo tendo sido preso brevemente em 1979 –, Erdoğan chegou ao poder apresentando-se como democrata e defensor do Islam civil. Em 2017, no entanto, depois de integrar muitos dos centros muçulmanos do país à sua base política, ele mudou impiedosamente para silenciar a dissidência e garantir o controle autoritário de todas as facetas da vida turca. Ele o fez oferecendo Gülen como bode expiatório para aplacar as Forças Armadas seculares à sua esquerda e os islamistas e nacionalistas políticos à sua direita. Ser o bode expiatório não era novidade para Gülen, já que ele experimentou problemas repetidamente na sua vida, como veremos. Mas, para os muitos indivíduos atraídos pela visão de Gülen de um Islam civil moderno, educado, baseado no mercado e internacionalista, e que apoiaram a aparente integração do Islam por Erdoğan com a democracia na Turquia, essa nova perseguição por alguém que alegou praticar a mesma fé parecia particularmente virulento, surpreendente e doloroso.

    De qualquer forma, foi nesse contexto volátil que Fethullah Gülen nasceu e emergiu como líder público. Foi durante os seus anos em Izmir (1966-1971) que as pessoas começaram a se identificar coletivamente com o que chamavam de Hodjaefendi, professor de honra, e um movimento começou a surgir. A maioria das pessoas nesse movimento é turca e, na Turquia, são chamadas de muitas coisas, entre as quais algumas não muito lisonjeiras. Mas um termo que Gülen usou para elas, e que me parece exato nos registros históricos, as caracteriza como pessoas do hizmet. Hizmet é um termo turco de raízes árabes que significa serviço. Para além de quaisquer envolvimentos políticos na Turquia que as enredaram, essas pessoas inspiradas por Gülen buscaram viver uma vida de serviços. Em 2018, elas já estavam com o Hizmet em prática e o levaram para a África, Ásia, Europa, Austrália e América do Sul e do Norte. No centro dessa prática, independentemente de onde ela ocorre, está seu esforço para manter a integridade como muçulmanos e defender e promover o conhecimento secular, os ideais democráticos e o desenvolvimento econômico. Em outras palavras, à medida que Fethullah Gülen se desenvolveu como pregador e professor, ele afirmou cada vez mais que alguém podia ser muçulmano fiel e cidadão leal de uma democracia diversa e secular; de fato, às vezes as pessoas inspiradas por ele faziam parecer que uma implicava necessariamente a outra. Essa conjunção paradoxal do que para muitos observadores parecem opostos – Islam/secularidade, religião/ciência, fé/democracia – marcou o ensino de Gülen desde o início da sua carreira. A negociação dessas tensões continua sendo central para as pessoas do Hizmet em todo o mundo.[4] De uma forma abreviada, chamo as tentativas de Gülen e do povo do Hizmet de serem muçulmanos fiéis e bons cidadãos – o que também incluiu a participação e defesa do diálogo inter-religioso, de pluralismo de princípios. Vamos explorar este tema do pluralismo de princípios como um aspecto da vida de Gülen e do Movimento Hizmet mais detalhadamente no capítulo 4. O esforço de Gülen para promover uma geração de muçulmanos comprometidos com sua fé e ainda dispostos a dialogar com qualquer pessoa tem sido um drama fascinante que ainda está em andamento em todo o mundo.

    Quanto às pessoas que vieram participar do Hizmet, nem todas chegaram pelo mesmo caminho. Algumas aprenderam indiretamente, através do exemplo de líderes locais que podem (ou não) ter sido diretamente influenciados por Gülen. Outras aprenderam mais diretamente com os ensinamentos e conselhos de Gülen, articulados em sermões, em palestras públicas ou em pequenos grupos, em livros e artigos e em consultas individuais. Gülen negou firmemente qualquer liderança de qualquer tipo. Ele resistiu à ideia de que um movimento deveria levar seu nome (como acontece em muitos círculos acadêmicos). Ao mesmo tempo, Gülen se identificou claramente com as pessoas que escolheram se dedicar a Deus e construir a sociedade civil por meio da sua inspiração. Ele tem sido professor, numa adaptação distinta das práticas de um sheikh sufi, ao longo da sua vida. Sem dúvida, apesar das suas rejeições, um quebra-cabeça chave que tive que explorar para entender a vida e a influência de Gülen é essa relação entre o líder do movimento e seus seguidores. Quanto é que o Hizmet depende de um indivíduo, e quanto ele é institucionalizado? Uma parte para descobrir esse quebra-cabeça pode ser encontrada numa característica um tanto surpreendente da vida de Gülen: enquanto pregava ou orava, ele frequentemente chorava. As pessoas que se reuniam com ele em oração às vezes choravam também, muitas vezes a ponto de soluçar, ou manifestavam outras formas de liberação emocional. Isso era incomum, se não sem precedentes, no culto público turco – em especial entre os homens –, embora algo semelhante tivesse acontecido em alguns alojamentos sufistas. O sociólogo Max Weber identificou esse tipo de liderança como carismático. E, embora haja indubitavelmente um elemento de carisma na personalidade de Gülen, a atração que as pessoas sentiam por ele costuma ser difícil de ser entendida por cidadãos da Europa e dos Estados Unidos. Gülen pode, portanto, ser alvo de mal-entendidos e caricaturas

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