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A Tradução de Variantes Dialetais: O Caso Camilleri: Desafios, estratégias e reflexões
A Tradução de Variantes Dialetais: O Caso Camilleri: Desafios, estratégias e reflexões
A Tradução de Variantes Dialetais: O Caso Camilleri: Desafios, estratégias e reflexões
E-book224 páginas2 horas

A Tradução de Variantes Dialetais: O Caso Camilleri: Desafios, estratégias e reflexões

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Sobre este e-book

Neste livro, partindo da obra do escritor italiano Andrea Camilleri, a autora aborda teorias da tradução de variantes linguísticas em textos literários; apresenta uma reflexão sobre a linguagem de Camilleri e sua recepção na Itália; discute as estratégias usadas pelo autor para incluir em seus romances as variantes, seus diferentes tipos de uso e os problemas de tradução relacionados a elas, exemplifican-do e justificando as soluções encontradas por ela em sua pesquisa com trechos traduzidos de alguns romances e análise das estratégias empregadas, colocando também a tradução das referências teóri-cas usadas ao longo do texto. É, sem dúvida, uma leitura essencial para tradutores, estudantes e professores de Tradução que trabalham ou desejam trabalhar com textos literários.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento15 de mai. de 2017
ISBN9788568382103
A Tradução de Variantes Dialetais: O Caso Camilleri: Desafios, estratégias e reflexões

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    A Tradução de Variantes Dialetais - Solange P.P. Carvalho

    Steiner

    CAPÍTULO 1

    1.1 – Breves considerações sobre tradução

    O estudo da tradução vem se expandindo nas últimas décadas, com novas pesquisas sendo constantemente publicadas sobre temas como ética, traduções de literaturas pouco divulgadas no país, o discurso na tradução. Entretanto, algumas questões parecem ser recorrentes, e teóricos, professores e tradutores são sempre confrontados por elas. Um desses pontos recorrentes, de grande importância para a análise das traduções de Camilleri no Brasil, é a posição ocupada pelo texto literário traduzido dentro da cultura na qual ele é (ou já foi, ou será) introduzido. Tomando como base duas reflexões citadas com certa frequência, detenho-me um pouco nelas antes de iniciar uma discussão sobre o problema específico das traduções de Camilleri.

    A primeira reflexão é a feita por Toury em Translating of literary texts vs. Literary Translation: A Distinction Reconsidered:

    Basicamente, a tradução tem por objetivo atender às necessidades de uma assim chamada ‘cultura-alvo’. Ela faz isso introduzindo nesse sistema uma versão de algo que já existe em outra cultura, a ‘fonte’, e que – por uma razão ou outra – é considerada digna de ser nela introduzida, utilizando uma linguagem diferente. A entidade introduzida nunca é completamente ‘nova’, ou seja, estranha à cultura que a recebe em todos os possíveis aspectos. Por outro lado, ela sempre é algo que nunca esteve lá antes. Essa última afirmação é verdadeira nos casos de retradução também; pois até quando o mesmo texto fonte está sendo traduzido outra vez, a entidade resultante – aquela que está realmente entrando na cultura-alvo – definitivamente não terá estado nela anteriormente (itálicos do autor).i

    Toury menciona dois pontos importantes, os quais acabam se interligando: as necessidades da cultura-alvo e o fato de o texto escolhido para tradução ser considerado digno de inserção em outra sociedade e cultura. Uma breve discussão desses dois aspectos é necessária para compreender como a obra de Camilleri passou a ser traduzida no Brasil.

    Ao falar em necessidades da cultura-alvo, Toury aborda uma questão multifacetada. Como são escolhidos os textos para tradução? Com certeza, o sucesso comercial de um escritor em seu país de origem é um fator que predispõe à sua tradução no exterior. Contudo, esse sucesso pode ser avaliado de duas formas muito diferentes: o de crítica e o de público, e eles nem sempre são coincidentes. No caso de Camilleri, a recepção de sua obra na Itália foi controversa a princípio (ver Capítulo 4, para mais detalhes), tanto por parte do público quanto da crítica. Ele passou a ser um autor reconhecido pelo público apenas depois de iniciar a publicação da série de romances policiais protagonizados pelo Commissario Montalbano. Todavia, a literatura policial sempre gozou de imensa e constante popularidade entre o público leitor, sendo vista pela crítica especializada como um gênero menor, de consumo fácil e esquecimento ainda mais fácil, e somente nos últimos anos tem recebido atenção de críticos e do mundo acadêmico como objeto de estudo detalhado. Considerando somente esse aspecto, diríamos que a introdução de literatura policial no mercado editorial é ditada somente pelo aspecto comercial, em oposição à literatura canônica, valorizada pela crítica; sua tradução, nesse caso, mereceria o mesmo cuidado? Camilleri e Petrarca (ou Dante, Manzoni, Leopardi, Machiavelli...) seriam igualmente dignos de figurar no sistema literário brasileiro? Ou as traduções das obras dos respectivos autores seriam concebidas a partir de projetos (estéticos e editoriais) totalmente diversos?

    Se um texto literário traduzido e inserido em determinado sistema não é necessariamente novo ou inédito, supõe-se que os leitores tenham certo repertório cultural e social que permita a compreensão e apreciação dessa obra na maior parte de seus aspectos. Essa consideração envolveria vários aspectos, como os gêneros ou subgêneros literários (incluímos neste tópico o romance policial, que tornou Camilleri conhecido em diversos países) e questões relacionadas ao tão discutido estilo do autor, entre as quais seria possível elencar o uso da língua, que caracteriza Camilleri e será abordada em detalhes mais adiante. Contudo, a linguagem camilleriana não seria uma inovação completa para todos os leitores estrangeiros, já que em vários países existe uma produção literária escrita em uma língua que foge da norma: no Brasil, por exemplo, Luiz Ruffato (1961 ) retrata personagens de classes mais desfavorecidas, incluindo elementos da oralidade e vocabulário coloquial em sua prosa; Ferréz (1975 ) usa a linguagem dos jovens da periferia de São Paulo em suas obras; temos o exemplo já canônico de Guimarães Rosa e de Bernardo Éllis, e a linguagem macarrônica de Juó Bananère.

    Assim sendo, estratégias para sua tradução que contemplassem os traços mais marcantes dessa linguagem poderiam ser aceitas pela maior parte do público sem grandes problemas. Essa questão será retomada adiante, no Capítulo 4, por enquanto cumpre apenas notar que, aplicando essa linha de pensamento proposta por Toury às reflexões sobre a tradução daquilo que foge da norma, é possível introduzir uma tradução não pautada unicamente na norma no sistema literário brasileiro.

    A segunda reflexão é suscitada pelo conhecido texto de Even-Zohar, The position of translated literature within the literary polysystem, artigo que, conforme observa Maria Clara Castellões de Oliveira (apud ESTEVES e VERAS, 2014, p. 53), tem duas versões diferentes (1978 e 1990), e a principal diferença entre as duas se encontra na nomenclatura usada por Even-Zohar: em 1978, ele identificou as posições ocupadas pela literatura traduzida em um polissistema literário como primária e secundária. No texto posterior, ele as identificou como central e periférica. Para as reflexões iniciais deste capítulo, a diferença de nomenclatura não implica em uma alteração no raciocínio a ser desenvolvido, pois a oposição central/periférico ou primário/secundário não é estanque dentro da própria produção literária do país: ela se constrói com o passar do tempo e de acordo com as opiniões valorativas de uma crítica especializada que, na maior parte das vezes, é composta por pessoas pertencentes às classes dominantes. Autores ou gêneros literários podem ser incluídos no cânone ou dele retirados dependendo da avaliação da crítica, e em determinados casos a opinião pública também pode influenciar tal categorização. Para nós, a consideração mais importante é a seguinte: se a tradução desempenha um papel inferior (secundário ou periférico) em oposição ao texto original, ou talvez ao conjunto de obras literárias nacionais de um país, como seriam feitas tais traduções? Quais fatores estão em jogo durante o longo processo de selecionar um texto literário, escolher o tradutor, entregar o texto ao tradutor, tempo dado para realização do trabalho, preparação do texto traduzido até a disponibilização e venda nas livrarias?

    A essas considerações acrescenta-se o fato de, segundo a visão dominante da crítica e da academia, os romances de Camilleri estarem em uma condição de dupla marginalidade: sua obra, dividida em romances policiais e romances históricos, não faz parte do cânone italiano; a linguagem por ele utilizada em seus romances foge da norma considerada culta da língua (em relação a ambas, ver Capítulo 4). Por isso a observação feita por Even-Zohar é pertinente para esta análise em qualquer uma de suas versões, 1978 ou 1990. Com pouquíssimas exceções, tudo que foge da norma tem uma inclusão mais difícil no cânone; consequentemente ocupa já em sua língua de partida uma posição secundária ou periférica. Sua tradução dificilmente terá lugar de destaque na cultura de chegada, o que não aconteceria se estivesse em jogo a obra de escritores consagrados do Novecento italiano, como Pirandello, Montale, Ungaretti ou Pavese, os dois primeiros ganhadores do Prêmio Nobel de Literatura.

    1.2 – Definição de socioleto literário e tradução de variantes dialetais

    Pensar na tradução da obra de Camilleri e daquilo que foge da norma envolve a consulta de teorias específicas sobre o tema. Nesta parte serão apresentadas algumas considerações baseadas em textos teóricos que auxiliam a compreensão do assunto.

    O desvio da norma nos textos literários é conhecido como eye-dialect, termo cunhado por George P. Krapp (1925) para descrever a ortografia não convencional usada por escritores para representar formas coloquiais da fala. Segundo Krapp, esse tipo de ortografia é, para o leitor, uma violação das convenções visuais, não auditivas; sua presença no texto literário não indicaria uma diferença genuína na pronúncia, mas seria um tipo de marca que estabeleceria a sensação de superioridade entre autor e leitores cultos em relação ao falante – com pouca instrução – da variante não padrão (MACARTHUR, 1992, p. 395).

    Durante o século XX, a posição de Krapp foi revista em várias pesquisas acadêmicas, que passaram a considerar o eye-dialect sob outras perspectivas. O estudo da presença de formas não padrão da língua no texto literário teve uma de suas primeiras manifestações mais conhecidas com o já clássico texto de Sumner Ives, A Theory of Literary Dialect (1950, p. 137), no qual ele apresenta seu conceito de dialeto literário:

    Um dialeto literário é a tentativa por parte de um autor de representar na linguagem escrita uma fala que é restrita regionalmente, socialmente, ou ambos. Sua representação pode consistir apenas no uso de uma alteração ocasional na ortografia, como FATHUH no lugar de father, ou o uso de uma palavra como servigrous; ou o autor pode tentar conseguir uma precisão científica representando todas as peculiaridades gramaticais, lexicais e fonéticas que observou. ii

    Em sua argumentação, Ives estabelece uma distinção entre escritores que fizeram uma tentativa séria de representar uma variante dialetal nos séculos XIX e XX, e outros, cujos resultados apresentam para os leitores uma visão errônea ou deturpada do assunto, e prossegue afirmando que pressuponho que os escritores de dialetos literários tenham realmente se preocupado com a validade e a justiça de suas representaçõesiii (p. 140). Para ele, assim como neste livro, esse ponto é fundamental, pois a seriedade da tentativa implica a ausência de um olhar valorativo como o que parece estar implícito na abordagem de Krapp (dialeto inferior à norma padrão; pessoas falantes do dialeto menos cultas ou educadas que os falantes da norma considerada padrão; local onde o dialeto é falado menos desenvolvido cultural e economicamente que as regiões onde a norma considerada padrão predomina), e a vontade de retratar uma realidade social e cultural diversificada, que não poderia ser introduzida para os leitores do texto literário somente com o uso da norma considerada culta da língua. Ives prossegue argumentando que o dialeto representa o uso, em uma localidade, de características de fala que podem ser encontradas individualmente em outro lugar, mas em nenhum outro lugar com exatamente a mesma combinaçãoiv (p. 144), e sustentando que, ao fazer uso desse dialeto, o escritor não se baseia em estudos linguísticos e formais, e sim, em seu conhecimento ou em suas ideias particulares a respeito daquilo que é a norma culta: Essa linguagem ‘padrão’ que foi mencionada só pode ser a variedade de linguagem que o próprio autor considera ser a ‘padrão’, e não aquela pela qual um dicionarista ou um crítico de uma época posterior possam querer julgá-lav (p. 150).

    A representação dessa norma considerada culta no texto escrito se baseia na ortografia oficial do país, estabelecida e recomendada por gramáticos e professores. Aquilo que se desvia da norma não poderia então seguir essa ortografia normativa, e um dos recursos usados pelos escritores para indicar a forma não padrão de falar é o desvio da ortografia padrão, o eye-dialect, definido por Ives como uma ortografia que nada significa foneticamente, ela é apenas um tipo de sinal visual para o leitor de que o falante não é letradovi (p. 147). Outro estudo sobre o assunto, também da década de 1950, foi feito por Francis: "Um artifício rude, mas muito comum frequentemente utilizado para transmitir a ilusão de uma pronúncia não padrão é o eye-dialect, uma forma quase fonética de reescrever palavras comuns"vii (1958, p. 541). A fuga da norma aconteceria principalmente na pronúncia ou no léxico, e os dois autores mencionam que, embora seja possível representar essa fuga também por meio de desvios sintáticos, o enfoque parece recair primordialmente nas mudanças ortográficas para retratar a forma de falar das personagens.

    A argumentação de Ives e Francis é retomada pelo brasileiro Milton Azevedo em Vozes em Branco e Preto (2003, p. 135):

    O conceito de dialeto literário como artifício representativo afigura-se suficientemente flexível para analisar qualquer forma de linguagem de ficção que, escapando aos parâmetros homogêneos da linguagem normativa, vise a representar a oralidade com verossimilhança. Formalmente, é uma técnica baseada na suspensão deliberada e sistemática das regras da escrita normativa, com o fim de refletir características essenciais de cada fala retratada. A escolha dos traços e sua combinação são parciais e seletivas, e dependem, em última análise, de uma decisão de cada autor sobre o grau de verossimilitude desejado. Alguns auto res limitam-se a uns quantos elementos, buscando uma representação estilizada, mais sugestiva do que descritiva. Outros lançam mão de um amplo rol de traços, combinando-os numa representação detalhada e específica.

    Azevedo menciona a verossimilitude na representação da oralidade, um ponto que pode causar certas controvérsias. Afinal, o que foge da norma no texto escrito, como destacou Ives, é uma criação do autor baseada no que ele considera ser a norma culta de sua língua. Sua criação, portanto, terá como fundamento as ideias do autor a respeito da fuga e do desvio, estando, por isso, sujeita a críticas, já que não há uma unanimidade para a representação daquilo que não tem lugar fixo no sistema linguístico e literário do país. A análise dessa verossimilitude envolve também argumentação teórica da área dos estudos estilísticos: mais que uma simples questão de escolhas do autor/tradutor, a presença da fala não padrão em textos literários traduzidos tem de ser analisada procurando levar em conta os efeitos que as variantes possam produzir nos leitores do texto original.

    As proposições de Ives, Francis e Azevedo destacam o fato de a representação da fuga ter uma base no conhecimento que o escritor tem de sua língua, e que ela pode ser feita de forma criteriosa, com o propósito de alcançar um resultado que, além de estético, traga para o leitor do texto a sensação de não estar lendo algo fantasioso, impossível de encontrar em sua realidade quotidiana. Não se espera que o leitor reconheça nas palavras e na forma de falar da personagem todos os traços de sua comunidade ou

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