Cabala e a arte de apreciação do afeto: Apreciando o desejo, a percepção, a motivação e o vínculo
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Sobre este e-book
Do que somos feitos nós, seres humanos, tal que nos distinguimos de tudo o mais que povoa o universo? Se nos tempos atuais o estudo da mente toma o nome de Psicologia, em todas as culturas encontramos uma visão da natureza humana, a qual se coaduna com as ideias daquela civilização sobre o que é, ou seja, sobre a realidade em geral.
Do ponto de vista psicológico, um fator que singulariza a vasta literatura judaica é o seu robusto realismo: sendo a psique humana constituída por forças e tendências contraditórias, todos e cada um dos seus componentes são indispensáveis ao seu funcionamento adequado. Esta tese leva em conta que os impulsos fundamentais não podem ser suprimidos – não somos anjos – e, por isso, toda tentativa ascética de silenciá-los está fadada ao fracasso. Por outro lado, para que seja possível a vida em sociedade é necessário que eles sejam submetidos a um processo "educativo" ou "civilizatório" – sinônimos sob a pena de Bonder – e é justamente a interação paradoxal entre ambas as vertentes o fio condutor das análises que nos aguardam no decorrer destas páginas.
Como bússola, elas tomam a distinção entre existir e viver, o primeiro sendo o modo de ser dos seres inanimados, plantas e animais.
No nosso caso, porém, a ele se acrescenta a vida propriamente dita, que consiste na dinâmica dos afetos. A palavra afeto não designa aqui o "terno" ("afetuoso"), mas a força com que algo impacta outro algo, e em particular o que faz com que um ato humano produza efeitos tanto em quem o realiza quanto naquele ou naqueles a quem é dirigido. Por sua vez, os afetos são constantemente objeto de apreciação, isto é, de uma avaliação, que a razão e a consciência efetuam por meio de comparações calcadas em valores e princípios.
Com esses instrumentos de base, Bonder vai construindo em linguagem clara e acessível um sistema de conceitos para situar as várias dimensões em que operam os impulsos fundamentais. Cada momento da argumentação é ilustrado com uma história, parábola ou frase extraída da literatura rabínica, que o autor interpreta com criatividade e sutileza.
Assim, do Talmude aos rebes hassídicos e a filósofos como Martin Buber, descortinamos um panorama ao mesmo tempo exigente do ponto de vista ético e tolerante frente à fragilidade intrínseca de quem foi feito "do pó da terra". O ápice desse percurso pelos mecanismos da alma é a discussão do vínculo, a forma mais elevada de relacionamento de que somos capazes. E por quê? Porque "há respostas e revelações no outro que você jamais conhecerá em si".
Não é uma ótima razão, caro leitor, para descobrir o que este "outro" – o presente livro – tem a lhe oferecer?
- RENATO MEZAN, Psicanalista
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Cabala e a arte de apreciação do afeto - Nilton Bonder
I
CABALA e AFETO
O afeto está em toda parte. É preciso estar receptivo para acolhê-lo.
A Criação do Universo é em essência feita de afetos, de partes que se afetam.
Qualquer forma de afeto é determinada pela aptidão de abalar-se ou impactar-se por algo. Seja o afeto entre partículas subatômicas, ou a compatibilidade entre elementos da tabela periódica, ou o fototropismo de folhas que se movem na direção da luz, ou mesmo a sublime atração do amor, todos esses exemplos são manifestações do princípio do afeto.
A Criação se evidencia por duas grandes leis que possibilitam sua realização: 1) a de que as coisas se afetam e 2) a de que, ao afetarem umas às outras, elas aumentam ou diminuem, acrescentam ou subtraem, intensificam ou atenuam.
No sistema da Árvore da Vida – Chessed e Gevurá –, esses dois polos representam os eixos basilares e opostos da realidade. O primeiro – objeto de interesse neste livro – é o Afeto; o outro, já abordado no livro Cabala e a arte de manutenção da carroça, equivale ao Risco. A exposição ao Risco está relacionada à lei complementar ao Afeto. Ela determina que tudo aumente ou diminua. A estabilidade ou o equilíbrio que identificamos é um mero registro temporário de processos imperceptíveis de ampliação ou redução, crescimento ou decrescimento.
O Afeto e o Risco estão representados na Árvore, respectivamente pelas folhas e pelos galhos. As folhas são manifestações dos afetos; os galhos são manifestações do crescimento ou da ampliação. Um se afeta com o exterior e interage, o outro experimenta o crescimento e amplia a si mesmo, impondo-se ao mundo.
Em geral, nos preocupamos mais com a gestão do tamanho e do acúmulo porque privilegiamos a existência, ou seja, a necessidade de fortalecer e afirmar. E assim depreendemos, equivocadamente, que a vida se expressa com mais intensidade neste eixo dos acréscimos e decréscimos associados ao existir. A existência equivale a impor e garantir espaços.
Porém, aquilo que se produz a partir da esfera dos Afetos tem uma participação tão intensa ou maior do que a da existência. Trata-se da esfera do Viver, constituída da potência que temos de nos impactar pelo mundo e pelos outros e vice-versa. Feliz daquele que afeta e se afeta! O afeto é o propósito da vida, a condição essencial para que se conheça o bom
. Nenhum recurso ou aptidão é capaz de experimentar o bom
sem estar atrelado a uma função; e nenhuma função existe sem estar atrelada a um propósito. Esta cadeia entre o bom, a função e o propósito é efeito do afeto.
Vulnerabilidade –
E viu que era bom!
E disse Deus: Haja luz; e houve luz.
E viu Deus que era boa a luz.
Gênesis 1:3,4
O texto de Gênesis abre com a declaração genérica do Criador estabelecendo céus e terra. Seu primeiro ato no contexto dessa nova realidade é o abrakedabra (literalmente, "crie-se-o-que-digo") que produz a luz. A luz não é o que clareia, mas o que esclarece. A luz é uma ordem, é uma função.
A partir daí o Criador desencadeia uma sucessão de afetos que serão as etapas do processo de criar. Nesse ato não há apenas a criação do fenômeno, mas a descrição de seu impacto imediato – foi bom! E o que seria esse bom
? Dessa expressão, podemos inferir uma repercussão do ato em si, ou seja, de como ele afeta o Criador. O fato de ser bom
revela que o ato de criar atendeu a alguma necessidade ou expectativa do Criador... e isso é extraordinário.
Caracterizar o Criador com vulnerabilidades é, sem dúvida, a maior inovação teológica do texto bíblico. Não estamos falando de fraquezas, que seriam incompatíveis com o conceito de onipotência. A vulnerabilidade não é um defeito, uma imperfeição, mas o único recurso capaz de ampliar o que já é infinito. E isso, obviamente, não por alargamento, mas por interdependência, por afeto. Paradoxalmente, as vulnerabilidades permitem que tudo se expanda através de interação e cumplicidade em um todo. E o todo
é muito maior que o tudo
, visto que revela as possíveis relações de tudo com tudo.
A vulnerabilidade
revela quereres e estabelece relações. Quando cria e afeta a si mesmo, o Criador manifesta um desejo, uma expectativa que se expressa pelo efeito bom
. Nasce aqui o propósito originado não nesse mundo, mas no pó de estrelas, na mais intrínseca substância de toda matéria.
A Inteligência Artificial, por exemplo, tem nessa questão seu maior desafio: como iniciar um processo de afetação que não tenha que ser estipulado por seu criador. O propósito de um robô será sempre um subpropósito de quem o criou, o que demonstra que não sabemos inocular desejo em nossas criações. Quanto a nós, humanos, possuímos essa faculdade por meio de uma conexão interna e orgânica com a vontade inicial que nos foi implantada. Somos, porém, incapazes de dar luz própria
a nossas invenções e, assim, seguimos capacitando nossas máquinas sem termos a capacidade, ao mesmo tempo, de personificá-las. Elas são afetadas pela vida em sua dimensão atômica e em suas trocas físicas e químicas, mas seu desejo como artefato, como sistema, é sempre subsidiário ao desejo de quem as criou.
Se esse é um limite definitivo, uma forma de Censura Cósmica, trata-se de uma questão em aberto. Porém é inquestionável que o elemento mais sofisticado do universo não é existir – materializar-se e ocupar espaço –, mas viver, ou seja, participar das relações de afeto de forma consciente.
A realidade é consolidada pelo somatório desses afetos, ou seja, a realidade é um efeito. Ela não é a verdade
, não é genuinamente real e tampouco põe em ação os impactos e as influências. As intenções originais pertencem à esfera dos propósitos. A realidade, em si, é secundária, um agora cujas características talvez não se façam presentes depois. O propósito, no entanto, pode até não se manifestar dentro da realidade, mas orquestra o resultado de seus incontáveis afetos. E são os afetos que, por sua vez, determinam os destinos.
Nosso desafio maior não é existir como produto de todas as interações da realidade, mas viver alinhados com a esfera do propósito.
Propósito e o pilar lateral da Árvore
Estamos na coluna lateral da Árvore, mais exatamente no primeiro atributo dessa lateralidade (ver ilustração abaixo). Como já apontamos em outros livros desta série, as colunas laterais da Árvore representam interação. No caso deste livro estamos em Chessed, normalmente traduzido como compaixão
e tratado, aqui, a partir do conceito de afeto.
Chessed é o portal inicial da Criação e representa as primeiras interações de afeto que colocam em andamento a realidade. Chessed é o elemento que corporifica a Árvore
. Contrariando o senso comum, que imagina que a árvore se origina das raízes,