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Elogio da loucura
Elogio da loucura
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E-book189 páginas6 horas

Elogio da loucura

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Sobre este e-book

"Elogio da loucura" (Moriae Encomium, sive Stultitiae Laus,
1509) foi escrito durante viagem à Inglaterra para uma visita a
seu grande amigo Thomas More. Publicado em 1511, foi sem
dúvida um dos maiores sucessos editoriais do século XVI e
permanece ainda como o livro mais conhecido de Erasmo.
Sátira cujos antecedentes encontram-se no estilo de Luciano de
Samósata, autor de predileção de Erasmo e More, o Elogio foi,
por sua vez, uma para influência de Rabelais, Cervantes e
Voltaire. Segundo o próprio Erasmo, tratava-se de uma obra
moralizante, espelho em chave cômica de seu tratado Manual
do soldado cristão, reflexão sobre os ensinamentos cristãos e as
práticas diárias que adviriam de sua aceitação como doutrina.
Assim, quando criticado pela irreverência com que a Loucura
tratou os temas religiosos, Erasmo alega que o Manual e o
Elogio dizem a mesma coisa e servem ao mesmo propósito. A
eficácia do segundo reside precisamente no fato de que a
verdade, em si mesma austera, torna-se mais capaz de atingir o
espírito dos homens quando traz consigo a recomendação do
prazer, ou seja, do riso.
IdiomaPortuguês
EditoraHedra
Data de lançamento13 de jun. de 2023
ISBN9788577157426
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    Pré-visualização do livro

    Elogio da loucura - Erasmo de Rotterdam

    Introdução

    Elaine C. Sartorelli

    Nascido em meados do século xv,1 quando a novidade da invenção de Gutenberg começara já uma revolução que viria a ser um dos marcos fundadores da Idade Moderna,2 e falecido em 1536, quando a Reforma já havia se firmado e perseguições religiosas conviviam com o recrudescimento da Inquisição, Erasmo é um desses homens que representam, eles mesmos e em si mesmos, toda uma época. Época de crises profundas, de que ele participou ou foi testemunha, sem jamais ter aderido a qualquer partido ou facção. Suas correções à Bíblia Vulgata de Jerônimo e suas ácidas críticas à Igreja Romana da época lhe renderam a acusação de ter botado o ovo que Lutero chocou; mas Erasmo jamais aderiu à Reforma, e polemizou com Lutero ao escrever a defesa do livre-arbítrio contra o servo-arbítrio dos protestantes. Da mesma forma, entre suas edições, todas em latim, estão alguns dos livros mais lidos na época, e seu manual De Copia alcançou a marca de 169 reedições, 41 das quais na década de 30 do século xvi;3 mas Erasmo jamais foi aceito como latinista pelos ciceronianos italianos… Nome fundamental na didática, Erasmo, o preceptor da Europa e o primeiro a pensar em escolas de ensino universal que incluíssem também as meninas, recusou o tom professoral, tanto quanto preferia recusar os convites para exercer a atividade de professor. Conselheiro de Carlos v, abominava a guerra e escreveu sátiras contra os poderosos. Instado a tornar-se cardeal por Paulo iii, preferiu recolher-se para morrer cercado apenas por uns poucos amigos, na Basileia. Tendo sido nome fundamental do Humanismo mesmo na Espanha dos reis católicos, morreu antes de que seus textos fossem incluídos no Index dos livros proibidos pela Igreja Romana.

    De origem modesta, Desidério Erasmo nasceu Gerrit ou Gerard Gerritzsoon, e recebeu o acréscimo do nome Herasmus provavelmente em honra de Santo Erasmo. Filho ilegítimo de um padre e originário de uma região periférica no movimento humanístico, veio a tornar-se o nome mais importante e influente do humanismo e o autor mais lido e publicado no século xvi. Herói três vezes grande, príncipe das belas letras, astro da Germânia, estrela solitária dos estudos, sumo sacerdote das ciências humanas, campeão de uma teologia mais autêntica são alguns dos elogios que Erasmo, em carta de março de 1523,4 admite haver recebido. Duas caras e uma enguia são alguns dos apelidos com que seu adversário Lutero o descreveu.5

    Em sua introdução à tradução francesa do Elogio, Margolin6 afirma que, se é verdade que é impossível apreender Erasmo completamente, há, porém, duas palavras que nos servem de fio de Ariadne quando seguimos suas pistas: varietas e decorum. A primeira dá conta de sua mobilidade e natureza proteiforme, camaleônica,7 enquanto que a segunda atende à necessidade de adaptação segundo as circunstâncias naquele momento em particular. Ambas são palavras extraídas da Retórica, e ambas remetem à necessidade de estar atento à singularidade, ao individualizado. Por isso Erasmo parece afirmar no decorrer de toda a sua obra que um conceito que se pretenda ontológico e universalmente válido deixaria escapar o que é real, sempre singular e impermanente. No De Copia, Erasmo mostrou que é possível dizer litterae tuae magnopere me delectarunt (tua carta me agradou enormemente) de duzentas formas diferentes; e semper dum vivam te meminero (enquanto eu viver, me lembrarei de ti), de 195 outras maneiras. Isso não apenas rompe com a ideia de que uma palavra está ligada àquilo a que ela se refere de forma natural e necessária, mas também afirma que, se a vida é variegada e transitória, e porque a diversidade dos objetos exige variedade do dizer, um discurso monótono não é apenas tedioso, mas algo como a própria morte. O mesmo se aplica a toda a sua argumentação acerca da imitatio em suas controvérsias contra os ciceronianos, em que todos os seus argumentos estão subordinados ao conceito de decorum, ou seja, de conveniência, adaptação, cabimento. Se a principal qualidade de um orador é falar apropriadamente, é preciso ensinar que isso não é possível a menos que se considere o orador e seu discurso em relação com o público, o momento e as circunstâncias, caracteres e situações. Se há uma mensagem em Erasmo, é a da diversidade e do diálogo, e sendo assim, ela, por sua própria natureza, não visa a se impor pela força, de forma irrefletida, mas busca antes convencer o leitor, apelando a seu raciocínio lógico, nunca a argumentos de autoridade que não possam passar pelo crivo da dúvida e do humor. Mestre da ambivalência e da convivência das contradições, Erasmo tem como arma filosófica o paradoxo, desconcertando e desarmando frequentemente seus adversários mais ferozes, que praticam com mais boa vontade a linguagem assertiva e monossêmica que a linguagem erasmiana polissêmica, de fato indireta, oblíqua, numa estrutura em que a racionalidade permanece impecável, mas desviada de seu sentido habitual e falsamente evidente.8

    Chomarat9 afirma que não há nada mais erasmiano que a percepção do equívoco ou da polivalência. E, como veremos a seguir, acreditamos que, mesmo na sátira, esse espírito que não se deixa comprometer ou apreender possa ter presidido a própria escolha do gênero do Elogio da loucura, que é o de uma declamatio.

    A declamatio

    Na Antiguidade, as declamationes eram discursos escritos como exercício escolar, acerca de uma causa fictícia, apenas para aquecimento ou treino nos cursos de oratória. Tratava-se, portanto, de preparação para a ocasião em que a fala de fato se faria necessária (o tribunal, a assembleia) e uma demonstração de habilidade. O exercitar-se era o essencial, para manter-se em forma para um público cujos ouvidos estavam acostumados ao mais alto nível de eloquência, e que não deixaria passar um deslize por parte daquele que discursava.

    Outra característica da declamação é pertencer, na divisão dos discursos segundo a causa, ao gênero demonstrativo. A característica principal desse discurso é descrever algo ou alguém com vistas ao elogio ou ao vitupério. Como encômio, era muito usado em discursos fúnebres, e tinha como objetivo exaltar certos valores, tais como o heroísmo, o amor à pátria, a fidelidade. Podia, porém, ser usado com finalidade satírica, caso em que apresentava, no lugar de uma descrição elogiosa, uma caricatura. O retratado era então, em vez de exaltado, rebaixado, com a finalidade de produzir o riso. Um riso moralizador, em todo caso.

    A declamatio era, portanto, um exercício praticado por alunos de oratória, a partir de um tema fictício, e que pertencia ao gênero demonstrativo. As duas noções fundamentais, relacionadas entre si, são essas do exercício e da ficção. Os humanistas herdaram esses preceitos, e em geral atribuíam a Quintiliano suas definições de declamatio. Segundo as Elegantiae (iv, 81) de Valla, o declamator é aquele que pleiteia uma causa fictícia diante dos alunos reunidos, a fim de poder em seguida pleitear causas reais. Contemporâneo de Erasmo, Cornélio Agripa, dá a seguinte definição:

    por conseguinte, a declamatio não julga, não dogmatiza, mas […] fala por vezes como brincadeira (ioco), por vezes seriamente (serio), às vezes com falsidade (false), às vezes com rigor (saeuere); ela fala às vezes segundo meu próprio pensamento (mea sententia), às vezes segundo o pensamento de outrem (aliorum); ela propõe verdades (uera), falsidades (falsa), afirmações dúbias (dubia); […] ela aduz muitos argumentos sem valor (inualida argumenta).10

    Erasmo traduziu — e produziu — declamações, mas não discursos reais, de tribunal ou assembleia, o que seria mais uma prova de sua aversão ao engajamento direto na vida pública ou em qualquer empreendimento que pudesse parecer propagandístico para qualquer dos lados da questão. É também, à maneira sofística, uma recusa do dogmatismo e da presunção de certeza, uma vez que a declamatio propunha tratar o tema de qualquer um dos lados. Precisamente por ser um exercício sobre uma causa fictícia, possibilitava a Erasmo argumentar pró e contra de forma descomprometida. É também, erasmianamente, um apelo discreto à coexistência pacífica de opiniões diversas, a certa tolerância piedosa, que se apresenta correta sob o disfarce da brincadeira, mas que procede de um sentimento muito vivo do perigo do dogmatismo, uma vez que, determinar uma questão resulta em condenar e excluir.11

    Além disso, o elogio e o vitupério erasmianos são avaliações e julgamentos de valor, mas não acerca de pessoas, e sim de tipos de vida, de comportamentos, da vida humana tomada em geral. Talvez também por isso, Erasmo foi ainda o introdutor de uma abstração personificada (a Loucura, a Paz), uma alegoria, enfim, que pronunciava seu discurso como orador diante do auditório. Assim, as alegorias personificadas de Erasmo talvez sejam antes como um resumo do que é humano, uma caracterização arquetípica, com a qual todos, sem distinção, podem de alguma forma se identificar em alguma medida; e, ao mesmo tempo, os atingidos não têm elementos para acusar o autor de um ataque direto. Assim, chamar sua obra paródica e moralizante de declamatio garantia a Erasmo uma espécie de licença para atacar, uma vez que inseria sua obra no contexto das obras fictícias, sem se dirigir a ninguém em especial.

    A declamatio, tal como praticada por Erasmo, seria ainda um modelo para os ensaios de Montaigne, uma vez que subjaz em seu humor um ceticismo que traz em si a expressão de um contemptum mundi, um desprezo do mundo. Erasmo, que, segundo as evidências, não conhecia Epicuro senão por intermédio dos romanos, faz, com seu convite ao riso, o elogio da ataraxia filosófica, e, por meio da observação da particularidade e da transitoriedade, convida a pensar naquilo que permanece como valor evidente depois de ter resistido ao filtro da ironia.

    O Elogio da loucura e o riso

    O Elogio da loucura, a rainha das declamações,12 é, segundo Mikhail Bakhtin, uma das maiores criações do riso na literatura mundial e o auge da literatura cômica latina, essencialmente paródica, cuja característica principal seria, segundo o teórico russo, uma concepção carnavalesca do mundo.13 Segundo essa visão, a liberdade do discurso da Loucura advém da garantia fornecida por essa licença especial para rir que é proporcionada pelo momento festivo em que se dá a inversão de valores, numa certeza de impunidade que não lhe seria garantida em outras condições.

    Mas a primeira e mais flagrante influência de Erasmo nesta obra, além de ser também a referência explícita e confessa, é Luciano de Samósata, escritor cuja predileção dividia com Thomas More.

    Mas havia ainda toda uma tradição acerca da Loucura na Europa do norte em que Erasmo nasceu. Trata-se da tradição germânica do carro dos loucos ou nave dos loucos, em que a Loucura era figurada como uma dama que presidia o cortejo, especialmente na época do carnaval. Dentro desse ramo, o humanista alemão Sebastian Brant publicou, com grande êxito, seu Barco dos loucos (Das Narrenschiff) em 1492. Uma outra A nave dos loucos foi publicada por Josse Bade em 1500 e uma Conjuração dos loucos, de Thomas Murner, veio à luz em 1512. Como era frequente na arte com viés medieval, o tema da loucura aparecia associado ao tema da morte, e muitas das extravagâncias que os loucos praticavam em sua nave tinham parentesco próximo com as danças macabras que se popularizaram na Europa do final da Idade Média, assolada por sucessivos surtos de peste e fome. Essas danças podem ser vistas na obra de Hieronymus Bosch (cujo quadro A nave dos loucos está hoje exposto no Louvre) e Pieter Brueghel. Hans Holbein, que enriqueceu a edição de Basileia do Elogio de Erasmo com gravuras, demonstra que as partes do livro mais passíveis de serem representadas graficamente são aquelas de fundo medieval mais evidente.14

    Estrutura

    Para pronunciar esse discurso pensado em junho de 1509, durante uma viagem da Itália à Inglaterra, e redigido em agosto do mesmo ano, na casa de Thomas More, Erasmo convoca ao palco a própria Loucura; partindo do princípio de que a humanidade, que lhe deve tudo, jamais consentiu em elogiá-la, a Stultitia, apresentada como uma divindade pagã, um numen, usa da licença que lhe é concedida por sua própria condição de louca para pronunciar um discurso como um orador, diante de um auditório que a ouve e cujas reações ela às vezes descreve.

    Vários dos traços genéricos da sátira estão presentes, como cenas ou retratos típicos, que podem ser deformados para ressaltar o ridículo, recorrer à animalização ou à comparação com animais, e a caricaturas. A acumulação (congeries) faz com que o efeito satírico de cada frase seja multiplicado pela vizinhança de outras frases de estrutura análoga, em repetições que criam a sensação de um movimento mecânico. Como num palco de teatro, personagens cômicas desfilam rapidamente diante de um leitor convidado a desnaturalizar, pela hipérbole, aquilo que, pela familiaridade, se lhe tornara invisível. A ironia satírica chama a atenção, transforma em espetáculo aquilo que, fora do palco ocupado pelo orador (aqui, a Loucura), talvez passasse despercebido. E tudo isso numa sátira conduzida prestissimo e allegretto.15

    O discurso se comporta segundo as regras da retórica, uma confutatio das objeções que os sábios, sobretudo estoicos, poderiam apresentar, aos quais a Stultitia responde.

    A declamatio está assim configurada:

    Exordium

    A Loucura abre mão da captatio beneuolentiae, e esse início é, em si mesmo, uma aparente inversão das regras da retórica, que recomendam que o orador inicie sua fala pela presunção de modéstia. Mas tal inversão está autorizada pelo ethos da falante, que lhe garante a quebra de todas as normas. A Loucura atribui a felicidade reinante a si mesma, uma vez que sua aparição é suficiente para causar a alegria dos presentes. Trata-se, portanto, de uma captatio às avessas.

    Propositio

    Assim como os sofistas fazem os elogios dos deuses e dos heróis, a Stultitia vai fazer o elogio de si mesma. Uma vez que se trata de algo totalmente desusado na oratória, a Loucura prevê a contestação e a responde em três pontos:

    Agir assim convém perfeitamente à Loucura e, portanto, ela está perfeitamente dentro das regras do decorum retórico;

    Há mais modéstia em elogiar-se a si mesmo que em apelar a panegiristas contratados;

    Os homens deveriam ter elogiado há muito tempo aquela a quem deviam tanto.

    Diuisio

    Também a diuisio será construída por meio da inversão dos usos retóricos. Em lugar da divisão do plano da argumentação, ela apresenta considerações preliminares: uma vez

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