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Modernismos em modernidades incipientes: Mário de Andrade e Almada Negreiros
Modernismos em modernidades incipientes: Mário de Andrade e Almada Negreiros
Modernismos em modernidades incipientes: Mário de Andrade e Almada Negreiros
E-book343 páginas2 horas

Modernismos em modernidades incipientes: Mário de Andrade e Almada Negreiros

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Sobre este e-book

O livro Modernismos em modernidades incipientes discute as propostas estéticas do autor brasileiro Mário de Andrade e do autor português Almada Negreiros como respostas específicas a uma experiência de crise civilizacional. Este entendimento do seu tempo como período de viragem histórica suscitou diferentes abordagens artísticas baseadas em expectativas diversas de futuro. A análise aqui presente se propõe a situar as doutrinas e práticas estéticas agrupadas sob o conceito de modernismo em relação a conjunturas internas de cada país e a conjunturas internacionais num complexo mapa de coordenadas geopolíticas.
IdiomaPortuguês
EditoraEdUFSCar
Data de lançamento14 de out. de 2022
ISBN9788576005278
Modernismos em modernidades incipientes: Mário de Andrade e Almada Negreiros

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    Modernismos em modernidades incipientes - Daniel Marinho Laks

    modernismos em modernidades incipientes

    Logotipo da Universidade Federal de São Carlos

    EdUFSCar – Editora da Universidade Federal de São Carlos

    UNIVERSIDADE FEDERAL DE SÃO CARLOS

    Editora da Universidade Federal de São Carlos

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    Daniel Marinho Laks

    modernismos em modernidades incipientes

    Mário de Andrade e Almada Negreiros

    Logotipo da Editora da Universidade Federal de São Carlos

    © 2020, Daniel Marinho Laks

    Capa

    Thiago Borges

    Projeto gráfico

    Vitor Massola Gonzales Lopes

    Preparação e revisão de texto

    Marcelo Dias Saes Peres

    Editoração eletrônica

    Alyson Tonioli Massoli

    Editoração eletrônica (eBook)

    Alyson Tonioli Massoli

    Coordenadoria de administração, finanças e contratos

    Fernanda do Nascimento

    Ficha catalográfica elaborada pelo DePT da Biblioteca Comunitária da UFSCar

    Laks, Daniel Marinho.

    L192m           Modernismos em modernidades incipientes : Mário de Andrade e Almada Negreiros / Daniel Marinho Laks. -- Documento eletrônico. -- São Carlos: EdUFSCar, 2022.

    ePub: 1.5 MB.

    ISBN: 978-85-7600-527-8

    1. Literatura comparada. 2. Modernismos. 3. Andrade, Mário de, 1893-1945. 4. Negreiros, José de Almada, 1893-1970. 5. Autoconsciência histórica. I. Título.

    CDD – 809 (20a)

    CDU – 82.091.16

    Bibliotecário responsável: Ronildo Santos Prado – CRB/8 7325

    Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzida ou transmitida por qualquer forma e/ou quaisquer meios (eletrônicos ou mecânicos, incluindo fotocópia e gravação) ou arquivada em qualquer sistema de banco de dados sem permissão escrita do titular do direito autoral.

    Para Carol, sempre.

    Agradecimentos

    Agradeço ao professor Alexandre Montaury Baptista Coutinho e ao professor António Pedro Pita pelos ensinamentos, pelas leituras e indicações, sem os quais este trabalho não seria possível.

    Agradeço ao CECH-UFSCar pelo financiamento do presente livro.

    Sumário

    1. Introdução

    2. Modernos, modernidades e modernismos

    3. Futurista?!: Em busca de uma expressão moderna de nacionalidade

    4. Modernismos em modernidades incipientes: a insuficiência de invenções características da segunda revolução industrial nas narrativas romanescas de Mário de Andrade e Almada Negreiros

    5. Modernismos e Estados Novos: Os projetos de transformação cultural na esfera política do Salazarismo e do Varguismo

    6. Conclusões e considerações finais

    Referências

    1. Introdução

    O mundo que está por vir já se encontra embutido no presente, completamente modelado.

    (Gottfried Wilhelm Leibnitz)

    Decorrido aproximadamente um século do surgimento dos movimentos modernistas inaugurados em Portugal, com a publicação da revista Orpheu em 1915, e no Brasil, com a Semana de Arte Moderna de 1922, é possível verificar que as sintonias e as clivagens estabelecidas entre estas duas expressões nacionais do modernismo continuam atraindo o interesse de diversos pesquisadores das mais variadas áreas. As análises comparativas estudadas até aqui buscam mapear as aproximações e os afastamentos, assim como pontos de encontro e divergências que se revelam nas diferentes expressões do modernismo, tal como surgiu em Portugal e no Brasil.

    Estas análises apontam para um amplo campo de investigação e de problemas que ainda requer investimento de estudo. Porém, mais do que um estudo comparativo, este livro organiza-se como um improvável confronto de singularidades ao privilegiar o estudo de dois escritores aparentemente incomparáveis, porque radicalmente individuais. Através da produção de dois intelectuais modernos, Almada Negreiros e Mário de Andrade, pretende-se ainda formular argumentos que possam funcionar como entendimentos acerca do que foi o modernismo, com as especificidades com que se manifestou em Portugal e no Brasil ao longo do século XX.

    Diferentes expressões dos modernismos parecem confluir para uma possível articulação entre valor estético e valor nacional. Segundo Mariza Veloso e Angélica Madeira, o projeto de implementar no Brasil parâmetros estéticos que estivessem atualizados com a modernidade e verdadeiramente afinados com seu tempo levou os artistas e intelectuais modernistas à reflexão em torno do papel das manifestações culturais para a afirmação da nação.[1] Desta forma, as diferentes proposições de artistas brasileiros para a atualização dos padrões estéticos possuiriam como ponto comum a ênfase no poder da arte – por ser fruto de uma produção especial e histórica singular – de integrar o local, o nacional e o universal, afirmando a universalidade como valor intrínseco à expressão estética.[2] Ainda que de outra maneira, em Portugal, as relações entre nacionalismo e modernismo também se fizeram presentes desde os marcos iniciais do movimento, para Cecília Barreira, revistas como Orpheu (1915), Centauro (1916), Exílio (1916), Ícaro (1916) e Portugal Futurista (1917) podem ser citadas como algumas das publicações que se lançaram na busca de formulários novos ou na procura duma via diferente, dum rumo-outro para o desencanto e morbidez nacional,[3] inscrevendo, desta forma, o nacionalismo no projeto modernista.

    A relação entre projetos artísticos e nacionalismos aponta para um viés de construção crítica da nação no panorama das ambições modernistas. Em diferentes países, diversos intelectuais dedicaram-se a pensar o presente como um período de transição. Essa visão do presente como transição para novos tempos relaciona o modernismo com uma conjuntura de crise, em que as estruturas existentes não seriam mais capazes de dar conta dos problemas que se apresentavam. Esse sentimento de crise anunciava-se também no sentido de uma crise civilizacional, em que formas de organização da sociedade estavam sendo problematizadas. Nesse sentido, o que parecia estar em questão eram modelos de racionalidade, sensibilidade, individualidade e coletividade fundadores de maneiras de organização social. Essa possibilidade vislumbrada de transformar o mundo a partir da experiência estética, de transformar conjunturas sociopolíticas através de agenciamentos no campo do sensível, situou na superfície da linguagem expectativas, esperanças e prognósticos variados para o futuro. A estabilização de um imaginário de ruptura conjugava-se com a ideia de que a arte era capaz de interferir na dinâmica do real, de que a arte, na forma de linguagem, seria capaz de consolidar ou desarticular a organização das ideias e das sensibilidades que proporcionavam as condições imateriais da vida.

    Essa relação entre a arte e as transformações no campo sociopolítico dentro do panorama das ambições modernistas gerou prenúncios heterogêneos de futuro. Estas expectativas de futuro relacionavam-se com visões específicas do tempo histórico. Modernismo, conforme antecipado pelo nome, apresenta algum tipo de relação com o conceito de modernização. Entretanto, quais eram as valências possíveis do conceito de modernização? O que significava ser moderno nos contextos no século XX? Seria o modernismo uma resposta cultural à experiência da modernidade, iniciada no século XVII, ou pertencer às vanguardas modernistas significava entender seu período como a quebra com o período histórico que se iniciara no iluminismo, fundando a modernidade e as formas demoliberais de organização social? As diferentes respostas possíveis para essas perguntas geraram interpretações diversas do conceito de modernismo. Mais ainda, as variadas interpretações sobre as relações entre modernismo, modernização e modernidade propiciaram uma gama heterogênea de visões sobre a dinâmica da história e sobre o lugar do homem no tempo e no espaço. Esta heterogeneidade apresentou-se tanto nas propostas artísticas quanto nos textos críticos que abordam os modernismos.

    Dada a importância dos intelectuais modernistas nos seus respectivos contextos nacionais e a crescente centralidade conferida aos seus projetos no panorama das realizações artísticas de sua época, os modernismos passaram a constituir, cada vez mais, um enfoque inescapável para pensar as relações entre arte, cultura e política durante o século XX. Entretanto, diversos trabalhos que se dedicaram a pensar, a partir dos modernismos, as relações entre experiência estética e transformações sociopolíticas são anteriores à eclosão de focos modernistas, responsáveis por objetivações artísticas indissociáveis do que contemporaneamente entendemos como efetivações características dos projetos modernistas.

    Muitas das interpretações sobre o conceito de modernismo surgiram dos próprios artistas envolvidos nos diferentes movimentos. Não foram raros os intelectuais filiados a alguma vertente modernista que além de efetivações artísticas produzissem críticas literárias sobre os seus pares, conterrâneos ou não. Nesse sentido, estudos pioneiros sobre modernismos datam do início das produções estéticas e acabaram por fundar uma visão ortodoxa do conceito. Essa visão está centrada em especificidades de modernismos provenientes de países europeus considerados cultural e economicamente centrais. A visão ortodoxa e normativa do modernismo constituiu-se como um cânone na história da literatura e, em boa parte, permanece assente até os dias de hoje, resultando em uma menor importância conferida às propostas modernistas provenientes de territórios periféricos e criando uma divisão entre propostas modernistas consideradas originais e propostas consideradas como aplicação de um discurso estrangeiro em uma realidade nacional vista como cultural e economicamente subdesenvolvida.

    A proposta deste livro é pensar os modernismos como respostas particulares a uma conjuntura de crises, específica do século XX, que eclodiram em diferentes momentos e espaços geopolíticos. Os diversos projetos modernistas articulavam-se com conjunturas internas de cada país, ao mesmo tempo que respondiam a pressões externas em um campo de contingências em que, cada vez mais, os acontecimentos em um lugar refletiam numa dinâmica de trocas internacionais.

    A escolha de Mário de Andrade e Almada Negreiros não se deu ao acaso. Ambos autores participaram de vertentes modernistas em seus respectivos países desde o início da eclosão dos focos do movimento no Brasil e em Portugal, estando, dessa forma, presentes nos diferentes momentos da produção modernista, desde seu surgimento como novidade até a sua estabilização como cânone. Além disso, tanto Almada Negreiros quanto Mário de Andrade produziram uma vasta obra que combinou diferentes linguagens artísticas com uma extensa produção teórico-crítica.

    A originalidade das propostas estéticas de Almada Negreiros e Mário de Andrade os torna particularmente interessantes para focalizar especificidades dos projetos de modernização cultural no Brasil e em Portugal. Este enfoque na diferença, na inventividade de autores como Mário de Andrade e Almada Negreiros, visa a problematizar a ideia de que o modernismo em territórios periféricos funcionou como importação de um discurso estrangeiro, como aplicação de ideias que não faziam parte do caldo cultural nacional. Mais ainda, a extensa participação de Mário de Andrade no cenário intelectual brasileiro e de Almada Negreiros no cenário intelectual português permite a possibilidade de se lançarem entendimentos sobre as relações entre os intelectuais e as novas formas de organização sociopolítica das individualidades e das coletividades, representadas pelos Estados Novos, que surgiram durante o século XX no Brasil e em Portugal.

    Os argumentos apresentados dividem-se em quatro eixos temáticos e se organizam na forma de discussões sobre temas específicos que se relacionam com os projetos modernistas dos dois autores e se combinam para formar o conjunto do livro. O primeiro capítulo aborda as relações entre conceitos inescapáveis para discutir as produções estéticas de Almada Negreiros e de Mário de Andrade: modernismo, modernidade e modernização. O enfoque tenta dar conta da heterogeneidade das maneiras como as ideias de modernidade e modernização emergiram para a superfície da linguagem artística durante o século XX, relacionando experiências específicas de passado e presente com expectativas particulares de futuro veiculadas em projetos estéticos. Além disso, o capítulo propõe uma genealogia do substantivo modernidade e do adjetivo moderno a fim de demonstrar como estes conceitos foram utilizados e transformados em diferentes momentos ao longo da história, relacionando-se sempre com interpretações singulares de experiência de tempo e espaço. O objetivo da análise é situar a eclosão de focos modernistas em espaços geopolíticos diversos dentro do panorama das transformações históricas do século XX. Diferentes modelos de exame dos modernismos são apresentados e discutidos para delimitar uma proposta de linha teórica, para pensar os projetos de modernização cultural de Mário de Andrade e de Almada Negreiros, que se seguirá pelo restante do livro.

    O segundo capítulo centra-se na originalidade e na inventividade de Almada Negreiros e de Mário de Andrade e nas suas relações com projetos estéticos modernistas provenientes de outros territórios geopolíticos em sua contemporaneidade. A proposta é desfazer a premissa, muitas vezes utilizada para pensar as produções de ambos artistas, de que o conhecimento de diferentes doutrinas estéticas e políticas compõe necessariamente um regime de influências capaz de elucidar completamente as obras de intelectuais e artistas provenientes de territórios periféricos. As relações de Mário de Andrade e de Almada Negreiros com doutrinas estéticas provenientes de outros locais de enunciação, particularmente o futurismo, são abordadas a fim de focalizar particularidades das vertentes cosmopolitas de ambos autores.

    Os conhecimentos e experimentações de Almada Negreiros e de Mário de Andrade das mais variadas formas artísticas são abordados como uma teia de referências em detrimento de um sistema de influências. Essa diferenciação permite afastar os projetos de Mário de Andrade e de Almada Negreiros da ideia de importação de discursos estrangeiros. Além disso, permite discutir a forma como a confluência entre as funções de artista e de intelectual em ambos autores estava ligada, desde o início, à ideia de que os agentes culturais brasileiros e portugueses e agentes culturais provenientes de locais considerados cultural ou economicamente mais centrais estavam inseridos no mesmo campo de forças. Essa perspectiva foi defendida tanto por Almada Negreiros quanto por Mário de Andrade em diversos momentos, que buscavam a valorização das potências de seus respectivos países para adaptar as experiências de espaço aos tempos modernos que se anunciavam. A valorização de especificidades nacionais aponta para particularidades nas maneiras escolhidas por cada um dos autores para tentar intervir no tecido social através de seus projetos estéticos e ressalta o caráter de originalidade nas propostas de Mário de Andrade e de Almada Negreiros.

    O terceiro capítulo analisa a incipiência da modernidade tecnológica nos projetos modernistas de Almada Negreiros e de Mário de Andrade. A pouca importância conferida aos avanços tecnológicos para dar sentido às formas de vida que se planejavam transformar aponta para projetos de modernização cultural em espaços onde o elogio à máquina moderna manteria um sistema de dependência contra o qual se erguiam as vanguardas modernistas provenientes de territórios periféricos. A abordagem de se pensar a insuficiência da máquina moderna como símbolo dos novos tempos, tanto no Brasil quanto em Portugal, baseia-se na análise do espaço literário representado em produções romanescas de Mário de Andrade e de Almada Negreiros. Os textos de cada autor, escolhidos para compor o capítulo, apresentam narrativas de aprendizado das condições necessárias para se viver em Portugal e no Brasil modernos a partir do deslocamento.

    Apesar de condensar diversos elementos dos projetos estéticos de modernidade de ambos autores, a narrativa de viagem funcionou de maneira diferenciada em Almada Negreiros e em Mário de Andrade. Mário saiu de São Paulo, um dos locais mais modernos do Brasil, para narrar suas incursões para partes remotas do território nacional, lugares que revelaram para o autor as potencialidades das tradições populares brasileiras para responder a questões que se apresentavam em sua contemporaneidade. Almada ficcionaliza uma viagem para Lisboa, capital e principal polo de desenvolvimento em Portugal, a fim de demonstrar como o aprendizado das condições necessárias para se habitar a coletividade portuguesa dentro de seu projeto modernista não estava relacionado com a vida que se vivia nos centros urbanos, mas com a descoberta do eu interno de cada pessoa. Ainda que através de deslocamentos opostos – do centro para a província ou província para o centro –, as narrativas de viagem de Mário de Andrade e de Almada Negreiros apontam para projetos de modernização cultural que prescindiam de modernizações tecnológicas, revelando uma dinâmica particular entre projetos modernistas e modernidade no horizonte dos autores.

    O quarto capítulo visa a situar as propostas de transformação cultural de Almada Negreiros e de Mário de Andrade dentro do panorama das relações entre arte e política no século XX. Brasil e Portugal vivenciaram experiências de viragem política, em que, a partir de meados da década de 1930, instauraram-se governos de matriz autoritária em ambos países. Essas mudanças nas formas de governo buscaram novas maneiras de estabelecer as individualidades e as coletividades. A busca por outros mecanismos de subjetivação para organizar a vida parece em consonância com a ideia de crise civilizacional. Os mesmos sintomas de crise que motivaram propostas de transformação cultural no campo artístico manifestaram-se em outros campos de representação, suscitando vetores de força diversos que apontavam para soluções distintas e em constante tensão umas com as outras.

    A consonância entre maneiras de se perceber a realidade como início de novos tempos, nos diversos campos de representação (artístico, filosófico, geopolítico etc.), relaciona-se com a prerrogativa de que existe uma necessidade de repercussão interna para que algo floresça como processo social em dada comunidade. Pensar os modernismos como respostas culturais a uma conjuntura de crise, que se expressou de forma contígua em campos heterogêneos de representação, serve também como contraponto à ideia de que os modernismos em espaços periféricos foram importações de discursos estrangeiros, corroborando o recorte desenvolvido até aqui de focalizar a originalidade das produções de Mário de Andrade e de Almada Negreiros.

    A partir da localização dos projetos de Almada Negreiros e de Mário de Andrade na interface das relações entre arte e política em seus respectivos países, o capítulo se propõe também a produzir algum entendimento sobre as dinâmicas entre os artistas e intelectuais nos contextos das ditaduras de Getúlio Vargas no Brasil e de Oliveira Salazar em Portugal. As congruências e divergências entre os projetos de modernização dos artistas e os projetos dos Estados Novos são focalizadas para se pensar a capacidade do varguismo e do salazarismo de capitalizar a vontade de participação de artistas e intelectuais na reformulação do campo cultural e suscitar a criação de amplas bases de apoio. O varguismo no Brasil e o salazarismo em Portugal adaptaram-se a diferentes conjunturas históricas do século XX para garantir sua longevidade. Essa capacidade de adaptação é apresentada como um mecanismo sistêmico de sobrevivência que ora incluiu determinado artista ou intelectual, ora o excluiu, dependendo da contingência que se apresentava.

    Este livro constitui um esforço de pensar os modernismos a partir de visões contemporâneas sobre as relações entre arte e política no século XX. Nesse sentido, o conjunto dos argumentos visa a problematizar aspectos que se consolidaram como prerrogativas para a análise das produções estéticas de Mário de Andrade e de Almada Negreiros e contrapor-se a uma divisão hierárquica entre produções modernistas provenientes de territórios geopolíticos vistos como centrais e territórios geopolíticos considerados periféricos em um contexto internacional de trocas simbólicas.


    1 Veloso e Madeira (2000, p. 96).

    2 Id. ibid., p. 96.

    3 Barreira (1981, p. 64).

    2. Modernos, modernidades e modernismos

    O passado é uma terra estrangeira.

    (L. P. Hartley)

    Pensados de forma singular, os conceitos de moderno, modernidade e modernismo partem da ideia de que a modernização e as possibilidades de subjetividade que surgem a partir desta são a expressão intempestiva de um processo único que se expande continuamente. Esta forma singular de relação entre os termos serviu de arcabouço conceitual para um sistema de dominação cultural e política contra o qual se ergueu e se definiu o modernismo periférico no seu viés de crítica à modernidade.

    No livro O discurso filosófico da modernidade, Jurgen Habermas explica que a ideia de modernidade como processo unívoco e contínuo a relaciona intimamente com o conceito de racionalismo ocidental desenvolvido por Max Weber: não foi apenas a profanização da cultura ocidental que Max Weber descreveu do ponto de vista da racionalização, foi sobretudo o desenvolvimento das sociedades modernas.[4] Assim, o cotidiano passa a ser transformado pelo desenvolvimento de um processo de racionalização social e cultural responsável por dissolver as formas tradicionais de organizações humanas. Agora, no lugar destas identidades que se baseavam nas funções laborais exercidas nas sociedades tradicionais, surgem novos modelos de socialização formadores de subjetividades e identidades abstratas do eu, proporcionando assim uma ideia de individualização do corpo social.

    Esta relação entre modernidade e racionalismo ocidental estabelece o conceito de modernidade como um conceito de época: os novos tempos são os tempos modernos. Dessa forma, a separação entre a Idade Média e a Idade Moderna se faz de acordo com eventos marcantes na história europeia, como a Reforma Protestante, a descoberta do Novo Mundo e o Iluminismo. Esta cisão temporal que coloca a Idade Moderna como novos tempos cria a representação da história como um processo homogêneo: A Idade Moderna confere a todo o passado uma qualidade de história universal […]. O diagnóstico dos novos tempos e a análise das eras passadas estão em mútua relação.[5] Assim, a separação epocal localizada a partir do Iluminismo não opera apenas o movimento de criar um novo paradigma de organização sociopolítica, mas está ligada à ideia de que a modernidade é um prosseguimento natural de uma evolução histórica linear.

    A partir da ideia de que a modernidade é a expressão do racionalismo ocidental, criou-se a contingência da universalização da cultura eurocêntrica como um evento natural do desencadeamento histórico. Este sistema de pensamento cria uma lógica de superioridade cultural que mascara a possibilidade de se pensar a modernidade como uma complexa e heterogênea dinâmica geopolítica. Assim, mais do que estabelecer a diferença etimológica entre esses conceitos-chave para se pensar a produção estética modernista de Mário de Andrade e Almada Negreiros, torna-se necessário desfazer um entrave epistêmico comum em trabalhos que discutem o chamado modernismo periférico: a ideia de atraso ou a ideia de que a produção modernista, em determinados espaços geopolíticos, se configura como aplicação de um discurso tecnicamente inovador, gerado em locais onde se experimentava a autoconsciência histórica de uma viragem de época, posto a serviço de uma temática nacional em países periféricos.

    Marshall Berman, em seu seminal ensaio sobre a modernidade intitulado Tudo que é sólido desmancha no ar, propõe o argumento

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