Sidney Magal: Muito Mais Que Um Amante Latino
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Sidney Magal - Bruna Ramos da Fonte
Quero deixar uma coisa
registrada, definitiva,
de uma carreira da
qual eu me orgulho
muito. E espero que
as pessoas se divirtam
com a minha vida
porque ela me
divertiu bastante.
SIDNEY MAGAL PARA A REVISTA TRIP
Meu sangue ferve,
por Renan Dissenha Fagundes
03∕05∕2017 ∙ Edição 264
Na fotografia,
Sônia Brandão, minha mãe.
Rio de Janeiro, década de 40 (Fotografia:
Acervo Pessoal)
MINHA MÃE
SÔNIA
A minha história começa anos antes de eu nascer, com Sônia, minha mãe, que sonhava em ser cantora e tinha uma voz belíssima que poderia ter feito dela um grande nome da nossa música.
Minha mãe começou a sua carreira cantando em um programa de calouros da Rádio Nacional muito famoso na década de 40 chamado Papel Carbono [apresentado pelo radialista Renato Murce] e na época ganhou até um concurso de rádio cantando boleros em espanhol; ela cantava muito bem em castelhano e competiu com várias daquelas cantoras antigas que faziam sucesso, e ela, ainda no comecinho de carreira, ganhou o concurso. Mas, naquela época, a mulher que escolhia seguir carreira artística era muito mal vista e, como não era o sonho de praticamente homem nenhum ter uma esposa cantando no rádio, logo depois dela ter ganhado esse concurso o meu pai exigiu que ela escolhesse entre ele ou a música. Completamente apaixonada, minha mãe escolheu deixar a música pra se casar.
UMA SENHORA CANTORA
Eu cresci muito acostumado a sentir a grande frustração dela por não ter sido cantora. Isso era uma coisa que me incomodava muito, porque a todo o momento ela mostrava fotografias e repetia a história desse concurso que ela ganhou na Rádio Nacional. Mas, apesar de abrir mão da sua carreira, ela nunca abriu mão da música, e a nossa vida sempre foi muito musical: cresci ouvindo ela cantar para eu dormir e também nas festas de família, nos bingos que os amigos promoviam. Quando ela cantava, o meu pai acompanhava e até se orgulhava dela, que era uma senhora cantora.
CANÇÃO DE NATAL
Tem um disco, que ainda hoje roda pela família, que é uma gravação da minha mãe cantando uma música de Vinicius de Moraes com Tom Jobim tocando piano. Faz muito tempo que não escuto essa gravação, mas eu me lembro que era uma canção de Natal muito bonita, muito singela, que eles fizeram para que a família deles curtisse.
O CENTRO DAS ATENÇÕES
Minha mãe tinha um temperamento muito forte e uma sensibilidade como poucas vezes eu vi na vida. Ela era uma pessoa muito falante, que adorava ser o centro das atenções: quando percebia que o assunto se desviava dela, ela logo criava uma confusão para que voltassem a prestar atenção nela. Ela tinha um gosto musical apuradíssimo e foi a pessoa que, desde cedo, me apresentou um mundo de músicas lindíssimas, bem brasileiras, que eu adoro até hoje e que influenciaram a minha vida e a minha música
TRABÁIA, NEGO
Minha mãe tinha um gosto musical muito sofisticado, então ela cantava músicas pra mim que dificilmente se cantaria para uma criança pequena por serem músicas mais complexas, mais refinadas. Me lembro de duas músicas que ela cantava sempre pra mim e que marcaram muito a minha infância. Uma delas era João Valentão do Dorival Caymmi, que até hoje eu considero a música mais linda de todas as músicas que existem no mundo e que representa muito o meu estado de espírito. A outra era Terra seca, do Ary Barroso, que é uma música que eu nunca entendi bem o porquê dela sempre cantar tanto pra mim porque a letra diz assim Trabáia, trabáia, nego. O nêgo não pode mais trabaiá
; se era para me fazer acreditar que eu deveria trabalhar pesado, o efeito foi contrário porque eu nunca quis trabalhar com nada que não fosse música.
O ARTISTA EM MIM
Minha mãe foi a primeira pessoa que enxergou o artista que existia em mim, me apoiou e desde sempre me incentivou. Quando iniciei a minha carreira, ela tinha total certeza que eu era o maior cantor do mundo – aquelas coisas de mãe, né? – e que eu seria um grande sucesso. Então desde o início ela estava sempre na primeira fileira, aplaudindo, torcendo e, de certa forma, realizando o sonho da carreira que ela acabou projetando totalmente em mim.
Ao lado,
quando eu
era bebê.
Rio de Janeiro, década de 50 (Fotografia:
Acervo Pessoal)
MEU PAI
DARCY
Darcy, meu pai era um cara grandão, boa pinta, muito discreto e muito querido por todos. Eu sempre admirei o respeito que ele tinha pelas pessoas e principalmente pela família. Por ter esse respeito tão grande pela família, por muitas vezes, até o final da sua vida, ele se desculpou comigo por ter se separado de minha mãe.
UM CARA TRANQUILO
Ao contrário da minha mãe – que tinha um temperamento muito forte – meu pai era tranquilo e nada musical, mas nem por isso menos artista: ele tinha uma habilidade incrível para trabalhos manuais. Ele foi um grande gráfico e chegou a trabalhar na Editora Abril e nas revistas Manchete e O Cruzeiro, que na época faziam muito sucesso. Ele desenhava maravilhosamente bem e fazia maquetes inacreditáveis usando apenas gilete e papelão; as maquetes dele tinham carros antigos, casas, postes de luz… uma cidade completa feita com muita paciência e papelão.
UM VERDADEIRO ESCÂNDALO
Meu pai vinha de uma família simples: o meu avô era padeiro e tinha uma padaria ali no bairro do Jardim Botânico, onde os meus pais se conheceram. Já a minha mãe vinha de uma família carioca muito rica e tradicional, que vivia numa mansão fenomenal, pertinho da padaria do meu avô, e que não aceitou de jeito nenhum ela ter se apaixonado pelo filho do padeiro. O amor deles foi um verdadeiro escândalo na família porque os meus avós não aceitaram esse desnível social
e fizeram de tudo para impedir esse amor. E nisso os meus avós foram realmente muito cruéis com a minha mãe: eles chegaram a cortar os cabelos compridos que ela adorava, só pra que ela tivesse vergonha de sair na rua e não se encontrasse mais com o meu pai.
Mas quando ficou grávida, ela abandonou tudo, fugiu de casa e foi morar com ele num verdadeiro pardieiro só pra que eles pudessem viver esse amor sem a interferência da família dela. Em nome desse amor louco, alucinado, que ela sentia pelo meu pai, minha mãe abriu mão de muita coisa – não só da música – e, por isso, ela nunca aceitou a separação.
SIDNEY
Apesar da separação, que aconteceu quando eu já era adulto, os meus pais se amaram muito e foi desse grande amor que eu nasci, filho de Sonia e Darcy, uma mistura dos dois até no nome, já que eles escolheram Sidney porque começa com S – primeira letra do nome da minha mãe – e termina com Y – última letra do nome do meu pai. Por um erro do cartório, o meu registro foi feito com I no final.
A separação deles aconteceu por uma total incompatibilidade de gênios porque minha mãe sempre foi muito geniosa, muito ciumenta, muito barraqueira, enquanto que papai era um cara muito discreto, muito reservado. Muito sonso
, dizia a minha mãe.
A PERSONALIDADE DE CADA UM
Eu tenho um pouquinho da personalidade de cada um: essa coisa de eu falar muito vem da minha mãe com toda a certeza, mas ao mesmo tempo eu tenho a discrição do meu pai. No meu inconsciente eu devo ser exatamente igual a ela no sentido de querer chamar a atenção das pessoas porque eu falo alto, sou espalhafatoso, gosto de ser o centro das atenções – até porque se eu não fosse assim, não teria escolhido a profissão que escolhi. Então da minha mãe eu tenho também a música e essa sensibilidade que é toda dela. Do meu pai, a discrição e o respeito pela família.
Teve uma vida bastante comum: filho de um
gráfico e uma funcionária pública, deixou de acreditar em Papai Noel aos 6 anos, queria ser arqueólogo
quando crescesse,
estudou até o primeiro científico num colégio
da Zona Sul do Rio.
REVISTA VEJA
O garanhão de proveta,
por Joaquim Ferreira dos Santos
Edição 553 ∙11 de abril de 1979 ∙ Página 106
Na página 22
e 23, com os meus pais e a minha prima
Ecy Maria.
Rio de Janeiro, década de 50 (Fotografia:
Acervo Pessoal)
INFÂNCIA
EM FAMÍLIA
Depois do meu nascimento, a família da minha mãe no final das contas acabou se entendendo com os meus pais e eu pude crescer cercado pelos meus avós, tios e primos.
Quando eu era ainda bem pequeno nós morávamos na Rua Lopes Quintas, na Jardim Botânico, onde vivia quase toda a família da minha mãe; eram quase três quarteirões de casas onde nossa família inteira vivia e onde todos nós fomos criados. Uma das casas era da minha avó: uma mansão enorme de esquina, que tinha uma piscina dentro de casa – muito maior do que a que eu tenho hoje no meu jardim. E era nessa piscina que todos os netos e bisnetos tomavam banho – era uma verdadeira farra! Nessa época eu ficava em casa com a minha avó, com uma babá e com todos os primos que também moravam ali porque a minha mãe ainda não tinha se aposentado; ela era funcionária pública, trabalhava na secretaria do Hospital Miguel Couto, mas se aposentou cedo por invalidez, por conta de um problema que tinha na perna. Depois da aposentadoria ela passou a ficar direto comigo em casa, mas não me lembro a partir de que idade exatamente.
BANANEIRAS
O jardim da casa da minha avó era maravilhoso, e eu passava o dia inteiro correndo e brincando pra todo lado. Tinha ali todas as árvores frutíferas que você puder imaginar e umas bananeiras enormes; me lembro que eu gostava de botar umas musiquinhas e ficava ali, dançando no meio das bananeiras. Do outro lado da rua, morava a família do Cesar Thedim – que foi um cara que viveu durante muito tempo com a atriz Tonia Carrero – e às vezes o Cesar e a Tonia iam pra varanda e ficavam olhando praquele guri se divertindo e dançando do outro lado da rua. É lógico que a Tonia não se lembra mais disso, mas aquele guri era eu!
OS MEUS CARRINHOS
Eu tive uma infância muito boa e muito livre, porque eu cresci brincando na rua com os meus amigos – que eram muitos! – e com todos os meus primos – que eram sete – e que moravam ali também. Eu adorava brincar de carrinho, e tenho fotos sentado na escada lá de casa com todos eles. Eu era muito organizado, como sou até hoje, então eu brincava com os meus carrinhos, mas depois limpava todos, botava um do lado do outro, bem guardados. Não largava tudo jogado no quintal não!
PERALTINHA
Eu tive pais maravilhosos e cresci sem nenhum grande trauma ou drama de infância para contar. Como eu era muito peraltinha, fiz coisas malucas e me lembro de ter me machucado algumas vezes porque eu adorava subir em árvores, e às vezes acontecia do galho quebrar e eu me cortar inteiro! Mas não me lembro de ter tomado uma surra homérica dos meus pais por motivo nenhum.
ALGUMAS CICATRIZES
Me lembro que uma vez, eu estava sentado no braço de uma cadeira e, por várias vezes, minha mãe mandou que eu saísse dali. Mas é claro que eu não saí e acabei caindo pra trás, com a cabeça dentro de uma lata de lixo; a tampa era de alumínio, me fez um corte enorme na cabeça e eu tive que ser levado para o hospital no colo de uma tia. Enfim, coisas normais de infância que deixaram só lembranças boas e algumas cicatrizes.
Na próxima página, eu no jardim da casa da minha avó. Na sequência, na escada de casa com os meus carrinhos.
Rio de Janeiro,
década de 50 (Fotografia:
Acervo Pessoal)
VÓ ZULEIKA
COISAS DO DESTINO
O meu avô materno eu não cheguei a conhecer, mas a minha avó Zuleika, mãe da minha mãe, no final da vida veio viver com a gente. E olha só as coisas que o destino apronta pra nós: a quem ela acabou se apegando no final da vida dela? Ao meu pai, a quem no início ela não aceitava de jeito nenhum.
UM BEIJO NA VOVÓ
Eu tinha verdadeira adoração pela minha avó. Ela tinha reumatismo e vivia praticamente o tempo inteiro deitada na cama, então todos os dias quando chegava do colégio eu corria até o quarto pra dar um beijo nela.
Naquele dia cheguei em casa e, como sempre, fui correndo em direção ao quarto, quando minha mãe chamou o meu nome e me pegou pelo braço. Eu disse a ela:
– Vou lá dar um beijo na vovó.
– Peraí meu filho, eu quero conversar com você.
Eu tinha uns nove anos de idade e achei aquilo tudo muito estranho. Insisti mais uma vez que, antes de falar com ela, iria até o quarto dar um beijo na minha avó. Ela então me explicou que a minha avó não estava mais com a gente: ela tinha morrido poucos minutos antes nos braços do meu pai enquanto ele dava para ela a vitamina de abacate que ela tanto gostava. Eu tive uma crise de choro, fui até o quarto correndo, dei um beijo no rosto dela. Me lembro que era final de ano e a casa estava toda decorada para o Natal. Eu voltei pra sala, derrubei a árvore de Natal, arranquei todos os enfeites das paredes. Que raio de Natal era aquele se eu tinha acabado de perder a minha avó?
A PRIMEIRA GRANDE PERDA
Essa foi a primeira grande perda que a vida me trouxe. Foi uma perda que me marcou muito e, como ela aconteceu no final do ano, eu acabei ficando com um certo trauma do Natal. Depois disso, eu também vivi outras perdas e separações nessa época; o Natal só voltaria a ter um significado bom com o meu casamento e o nascimento dos meus filhos.
ZONA SUL
SUBÚRBIO
Minha mãe fazia qualquer sacrifício pra não ter que sair da Zona Sul do Rio. Depois que saiu da casa da minha avó ela nunca mais teve casa própria, então alugávamos apartamento o tempo todo; moramos no Horto Florestal, na Gávea, em Botafogo. Meu pai vivia dizendo:
– Minha grana não dá pra gente morar aqui na Zona Sul!
– A gente se vira, mas eu não vou de jeito nenhum morar em Cascadura – dizia minha mãe. Para ela, Cascadura – onde os meus avós paternos foram viver após o casamento dos meus pais – era a maior representação do subúrbio possível.
COISA DE FAMÍLIA
Minha mãe aparentemente se dava bem com os meus avós paternos, mas não sei se verdadeira ou fingidamente, porque aconteceu da minha avó paterna ter dito uma vez quando a minha mãe estava grávida: Será que essa criança é do meu filho mesmo?
. Enfim, aquelas coisas que as pessoas falavam muito na época. Minha mãe tomou bronca disso, então acho que a vida inteira ela conviveu meio na bronca com os meus avós. Mas, eu não percebi muito isso porque era muito garoto. Enfim, coisa de família, né?
ESTUDOS
EU SOU BOTAFOGO
Eu tive um tio, que era também meu padrinho, e que era professor de matemática no colégio militar; era ele quem me dava aulas de reforço.
Meu tio era Flamenguista doente e eu Botafoguense por causa do meu pai. Então, às vezes, ele dizia assim nas aulas:
– Pra quem é Flamenguista eu vou passar dez exercícios do Ary Quintela [professor e autor de livros de matemática]. Agora, pra quem é de outro time, eu vou passar vinte exercícios!
E eu, valentão, dizia a ele:
– Pode passar vinte que eu sou Botafogo!
E voltava para casa em prantos, por ter o dobro de exercícios para fazer, mas orgulhoso e ansioso para contar pro meu pai que tinha