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1979: O ano que ressignificou a MPB
1979: O ano que ressignificou a MPB
1979: O ano que ressignificou a MPB
E-book911 páginas10 horas

1979: O ano que ressignificou a MPB

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Sobre este e-book

No livro "1979 – O ano que ressignificou a MPB", 100 LPs da época ganham histórias escritas por artistas e jornalistas, e resgatam a memória de um ano em que a música popular brasileira falou por si só. Em forma de prosa, resenha, reportagem ou entrevista, cada autor dá o seu estilo ao seu capítulo (veja a lista de autores e discos no final). Com esse conteúdo organizado pelo jornalista Célio Albuquerque, "1979 – O ano que ressignificou a MPB" é um livro grande, que traz para leitores e leitoras momentos especiais sobre álbuns especiais.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento8 de ago. de 2023
ISBN9786599452482
1979: O ano que ressignificou a MPB

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    1979 - Célio Albuquerque

    14 Bis

    14 Bis

    por Emílio Pacheco

    No final dos anos 1970, o tecladista Flávio Venturini era mais conhecido como ex-integrante do Terço. Embora não fosse membro fundador, sua passagem pela banda havia sido marcante. Ele fez parte da formação que até hoje é considerada clássica (e se reuniu algumas vezes) ao lado do baixista Sérgio Magrão, o baterista Moreno e o guitarrista Sérgio Hinds. Mas, após participar dos LPs Criaturas da Noite (1975) e Casa Encantada (1976), o mineiro Flávio deixou o Terço e foi reencontrar sua velha turma. Reuniu-se com Vermelho, também tecladista, com quem já havia tocado e composto em parceria e que teve uma passagem pelo Bendegó. Desse grupo também fazia parte o baterista Hely Rodrigues. A ideia era formar uma nova banda e Beto Guedes quase chegou a fazer parte dela. Em vez disso, os três – Flávio, Vermelho e Hely – tocaram com Beto em seu primeiro disco solo, A Página do Relâmpago Elétrico, em 1977, e o acompanharam nos shows. O álbum incluía uma composição de Flávio com Murilo Antunes que se tornaria clássica, Nascente. No ano seguinte, ela seria gravada por Milton Nascimento em Clube da Esquina 2, também com participação de Flávio.

    Assim como lançou Beto Guedes como solista, a Odeon quis fazer o mesmo com Flávio Venturini. Mas o músico insistiu no objetivo de montar seu próprio conjunto. A princípio, a gravadora resistiu. Achava que logo haveria crises internas e o projeto não iria longe. Mas a ideia teve dois aliados importantes: o executivo Adail Lessa e o lendário Milton Nascimento, que inclusive se ofereceu para produzir o disco. Com o sinal verde, Flávio chamou o ex-colega de Terço, Sérgio Magrão, para o baixo, e seu irmão mais jovem Cláudio para a guitarra. Os três mais Vermelho e Hely completaram o que viria a se chamar 14 Bis, uma banda em que o único não-mineiro era o carioca Magrão.

    O primeiro LP do 14 Bis saiu no final de 1979, a tempo para as vendas de Natal. Sua fórmula pop foi inovadora, com baixo, guitarra, ocasionalmente violas, dois tecladistas e belíssimos arranjos para as vozes de Flávio, Cláudio, Sérgio e Vermelho. Comparações com o Terço foram inevitáveis, mas se a banda de Sérgio Hinds oscilava entre folk e progressivo, o 14 Bis ficava mais entre o country e o iê-iê-iê à mineira. A sonoridade eventualmente podia lembrar também Renato e Seus Blue Caps. Em depoimento para este livro, Flávio confirma a influência: Fui muito ligado aos Beatles, foi realmente uma banda que me fez a cabeça, e toquei em duas bandas de baile antes de descobrir a nova música que vinha nascendo em Minas, o Clube da Esquina. Nesse período de final dos 60 para início dos 70, me chamou a atenção a Jovem Guarda e tudo que gravitava em sua volta, inclusive Renato e Seus Blue Caps. Uma das coisas que me levou a ouvi-los foi o fato de eles seguirem um pouco o pop que se fazia lá fora e versões que faziam de canções dos Beatles. E faziam bem.

    As parcerias de Flávio e Vermelho predominam no LP e uma delas é a faixa de abertura, a acelerada Perdido em Abbey Road. A letra contém uma menção rápida aos amigos dispersos pelo mundo com quem a gente não se encontra mais pra cantar aquelas canções que disparavam nossos corações. Seria tentador enxergar aí uma alusão aos exilados políticos, ainda mais no ano em que eles começaram a ser anistiados. Mas o que prepondera é uma saudade da época áurea dos Beatles. A Beatlemania é eterna, mas quem viveu os anos 1960 lembra da emoção de aguardar novos discos do quarteto de Liverpool de tempos em tempos. A composição cita She’s leaving home no arranjo e também nos versos: A menina que saiu de casa / Numa quarta-feira / Já voltou há muito tempo / E nela nunca mais se ouviu falar. Rogério Duprat contribui com orquestração e regência.

    A segunda música do LP retoma o tema da saudade de velhos amigos, mas aqui num enfoque muito diverso. Unencounter era uma faixa do álbum Journey to Dawn, lançado por Milton Nascimento para o mercado estadunidense. O letrista Fernando Brant criou uma letra em português e assim nasceu Canção da América, dele e Milton. Hoje a versão mais lembrada é a do próprio compositor mineiro, de seu LP Sentinela, de 1980. Mas a gravação do 14 Bis saiu primeiro e tem uma interpretação primorosa, iniciando com o falsete de Flávio Venturini, logo inundado pelas demais vozes. A mensagem que persiste é de amizade e saudade, mas o título sugere que, aqui sim, há um recado a mais a ser ouvido: Mas quem cantava chorou ao ver seu amigo partir. Ao final, a esperança: Qualquer dia, amigo, a gente vai se encontrar. Muitos reencontros aconteceram no ano da anistia.

    Ponta de esperança é uma parceria a três: Flávio, Vermelho e Márcio Borges. É outra das mais aceleradas do disco, com letra de amor e sensualidade (agora imagine seu corpo sem nada / Sem nada que possa negar sua luz) e um arranjo de acordeon de Oswaldinho ao final. Pedra menina, de Flávio e Vermelho, homenageia uma serra situada próxima a Capela Nova (MG), usada como ponto de referência no antigo caminho para a região das minas de ouro, como explica o encarte. É uma das mais belas melodias do álbum, apresentada quase toda somente com violas e teclado. Baixo e bateria entram apenas no final, com reforço de gaita de boca de Kimura. Cinema de faroeste, de Flávio, Vermelho e Suzana Nunes, encerra o lado A bem no clima sugerido pelo título, lembrando temas de filmes e séries de bang-bang, incluindo um trecho incidental de música típica de saloon.

    No tempo do vinil, se um LP não contasse uma história, o ouvinte podia escolher por que lado iniciar sua audição. É possível que muitos começassem pelo lado B do disco do 14 Bis, pois ele abria com Natural, de Flávio e Tavinho Moura, um dos primeiros hits do álbum. Curiosamente, o grupo optou por uma execução acústica, com o reforço da viola de 10 cordas de Zé Eduardo. Com suas tinturas de folk rock, era perfeita para emplacar nas FMs. O vento, a chuva, o teu olhar é outra parceria de Flávio e Vermelho com melodia envolvente e bonita. A seguir vem Blue, de Flávio, a única composição sem palavras do disco, embora tenha vocais. Meio-dia, de Flávio, Vermelho e Sá, é marcada pela gaita de boca de Kimura e uma pegada mais pop-rock. Três ranchos, de Flávio, Zé Eduardo e Tavinho Moura, tem um clima bem mineiro, lembrando as canções mais lentas de Beto Guedes. Em Sonho de valsa, Flávio, que assina a música com Vermelho e Murilo Antunes, canta num registro mais baixo do que de costume, guardando o falsete para as notas altas.

    Nos discos seguintes, o 14 Bis haveria de aprimorar sua receita de sucesso, que se manteve sólida principalmente na primeira metade dos anos 1980. Flávio e Vermelho seguiram assinando a maioria das músicas, mas Cláudio e Sérgio deram suas contribuições. Com a saída de Flávio em 1989, Cláudio foi promovido a principal compositor e vocalista, um posto que ele assumiu com segurança e competência. Passados mais de 40 anos, o 14 Bis continua uma das bandas mais criativas e interessantes do pop brasileiro.

    Ficha técnica:

    14 Bis (EMI-Odeon − 31C 064 422850)

    Produtor fonográfico: EMI-Odeon, Fonográfica, Industrial e Eletrônica S.A. Direção de produção: Mariozinho Rocha

    Produção artística: Milton Nascimento

    Técnico de gravação: Mayrton, Franklin, Serginho e Guilherme

    Técnico de mixagem: Franklin e Nivaldo

    Corte: Osmar Furtado

    Capa: Pedro Alzaga (Dung Hill Studio)

    Foto: Paulo Fiscberg

    Flávio Venturini: teclados, violão, bandolim e vocal

    Vermelho: teclados, violão, baixo e vocal

    Sergio Magrão: baixo, violão e vocal

    Hely Rodrigues: bateria e percussão

    Claudio Venturini: guitarra, violão e vocal

    Arranjos de Base: 14 Bis

    Arranjo para Cello: Vermelho (A2)

    Orquestração e regência: Rogério Duprat (A1,B6)

    Participações especiais:

    Zé Eduardo: vocal e viola de 10 cordas (B5, B1) / Kimura: gaita (A4, A5, B4) / Suzana Nunes: vocal (A1/A5/B3) / Oswaldinho: acordeon (A3) / Zé Menezes: banjo (A5) / Alceu Reis: cello (A2)

    Lado A

    1 – Perdido em Abbey Road (Vermelho / Flávio Venturini)

    2 – Canção da América (Milton Nascimento / Fernando Brant)

    3 – Ponta de esperança (Vermelho / Flávio Venturini / Márcio Borges)

    4 – Pedra menina (Flávio Venturini / Vermelho)

    5 – Cinema de faroeste (Flávio Venturini / Vermelho / Suzana Nunes)

    Lado B

    1 – Natural (Flávio Venturini / Tavinho Moura)

    2 – O vento, a chuva, o teu olhar (Flávio Venturini / Vermelho)

    3 – Blue (Flávio Venturini)

    4 – Meio-dia (Flávio Venturini / Luiz Carlos Sá / Vermelho)

    5 – Três ranchos (Flávio Venturini / Zé Eduardo / Tavinho Moura)

    6 – Sonho de valsa (Flávio Venturini / Vermelho / Murilo Antunes)

    A Barca do Sol

    Pirata

    por Mehane Albuquerque

    A_Barca_do_Sol_Juca

    Antes de lançar o terceiro trabalho em 1979, o álbum Pirata , A Barca do Sol já não precisava de um cais para aportar ou de um farol para servir de guia nas águas agitadas da MPB. Com a carreira consolidada àquela altura, shows memoráveis, boas críticas nos dois discos anteriores — A Barca do Sol (1974) e Durante o Verão (1976), ambos lançados pela gravadora Continental —, além de uma parceria primorosa com a cantora Olivia Byington em Corra o Risco (1978, Continental), a nau navegava com tranquilidade quando os ventos se tornaram imprevisíveis e as rotas inteiramente desconhecidas.

    Pirata marcou a fase independente da banda, quando os barqueiros foram desligados da Continental de forma inesperada e resolveram criar uma produtora própria, a Verão, com o intuito de viabilizar a gravação e distribuição do novo álbum. O título — escolhido de forma coletiva e democrática, como tudo o que era decidido entre eles — foi a representação simbólica do rompimento com o mercado fonográfico tradicional.

    O período coincidiu com o anúncio do violoncelista Jacques Morelenbaum de que deixaria o grupo para estudar música nos Estados Unidos. Isso fez com que os integrantes, agora reduzidos a um sexteto, se desdobrassem para compensar a lacuna deixada pelo violoncelista — insubstituível — e pelo instrumento característico da banda, alma de grande parte dos arranjos.

    Substituições já haviam sido feitas antes na Barca. Marcelo Bernardes (flauta), Marcos Stul (baixo) e Richard Court, o Ritchie (flauta), tripulantes nos primeiros anos, deixaram seus postos para Alan Pierre (contrabaixo) e David Ganc (flauta). A partir do segundo disco (Durante o Verão, 1976), a banda seguiu com mesma formação em hepteto até depois da temporada de shows do lançamento de Corra o Risco, no qual desempenhou um papel bem mais relevante do que simplesmente acompanhar uma cantora de voz ímpar. Praticamente todas as músicas do disco de Olivia Byington são de autores da Barca.

    Sem o violoncelista, o grupo ficou com Muri e Marcelo Costa, Nando Carneiro, Beto Rezende, David Ganc e Alain Pierre. A saída de Jacquinho causou um grande impacto, embora o músico e compositor não tenha se desligado totalmente dos amigos barqueiros. Uma das faixas de Pirata, o baião instrumental Jando, é de autoria dele e Nando Carneiro.

    Com um a menos a bordo, os papéis foram repensados. A flauta de David Ganc passou a ter mais participação nos arranjos, assim como o violão e a guitarra de Beto Rezende. Nando Carneiro se dividia entre a voz e vários instrumentos, como os pianos elétrico e acústico, viola e cavaquinho. E Muri, que havia cantado menos nos discos anteriores, passou a cantar mais.

    Quando a temporada de shows com Olivia Byington terminou eles estavam diante de um impasse: queriam produzir um disco independente, mas não tinham dinheiro e não sabiam como fazer isso. Eram tempos analógicos. Não havia Internet, redes sociais ou plataformas digitais de música. Até aquele momento, poucos artistas brasileiros haviam se aventurado a lançar discos de forma alternativa. Um dos precursores foi o maestro, pianista, arranjador e compositor Antonio Adolfo, com o Feito em Casa, de 1977. Sem conseguir gravadora que se interessasse pelo trabalho, ele próprio assumiu os riscos de gravar, editar e distribuir sem o aparato do mercado e com relativo sucesso.

    Mesmo com o vento contra, os rapazes continuaram alimentando o sonho de fazer um novo disco de modo não convencional, inspirados pela ousadia do maestro. Foram falar com Antonio Adolfo para saber como produzir, prensar, encartar e, principalmente, como distribuir e vender — os principais gargalos Era uma viagem apenas para cumprir agenda. Um show da Barca na Concha Acústica do Teatro Castro Alves. Mas eles acabaram ficando por lá um tempo bem maior que o previsto, morando de improviso em um casarão no bairro da Boca do Rio, arranjado pela produtora do show. E aproveitaram para dar asas ao projeto. Tinham quase todas as músicas prontas, a maioria inédita. À exceção de Cavalo marinho (Cacaso e Nando Carneiro) e Jardim de infância (Beto Rezende, Nando Carneiro e Geraldo Carneiro), gravadas no ano anterior por Olivia em Corra o Risco.

    A incursão na Bahia trouxe para o repertório o samba de roda, na figura de Teresa Boca do Rio (Nando e Geraldo Carneiro), personagem popular local. E também a música de abertura do disco, Vô mimbora pru sertão, cantiga tradicional de autor desconhecido, cantada por Caetano no Araçá Azul, de 1973, e que se popularizou na voz de Edith do Prato. Com esse sopro final de brasilidade, Pirata estava pronto. Ao menos, conceitualmente.

    O período em Salvador foi como se, em meio à tempestade, a Barca do Sol tivesse encontrado acolhida nas águas protegidas da Baía de Todos os Santos. Uma parada tática necessária para que pudesse continuar seguindo seu curso, agora com uma bandeira pirata hasteada.

    De volta ao Rio, receberam convite para a quarta edição da Banana Progressyva, uma mostra de música produzida por Fernando Tibiriçá, em São Paulo, que reunia artistas e bandas como o Som Nosso de Cada Dia, Veludo, Vímana, Bolha, Edson Machado e a Rapaziada, Erasmo Carlos & Cia Paulista de Rock, Lúcia Turnbull e Hermeto Pascoal, entre outros. Ao final do show foram surpreendidos com uma proposta, feita pelo próprio Fernando, para tocar no Victoria Club, uma casa noturna que ele estava inaugurando na cidade. A temporada de duas semanas, de quinta a domingo, deu o impulso financeiro que eles precisavam para gravar as músicas.

    Contando com a ajuda de Luiz Carlos Sá — o Sá, do trio com Zé Rodrix e Guarabyra —, um dos donos do estúdio Vice-Versa, os barqueiros conseguiram um preço especial e gravaram as 11 músicas naquelas duas semanas entre maio e junho, dormindo pouco e trabalhando sem parar. Passavam o dia no estúdio com os técnicos Ricardo Franjinha e Nani Viola, que se afinaram perfeitamente às exigências do grupo. À noite, quando havia apresentação, tocavam no bar até tarde. Afonso Carlos Costa, já falecido, foi o coprodutor do álbum.

    Com a fita em mãos, os rapazes da Barca voltaram ao Rio. Mas havia ainda muito a ser feito antes que o disco pudesse tocar nas agulhas das vitrolas. Faltava a prensagem, a capa e a distribuição. Precisavam, ainda, abrir uma empresa. Uma produtora que amparasse legalmente a aventura, com um CGC para emitir notas fiscais. Criaram a Verão.

    A arte da capa foi encomendada ao artista Jejo Cornelsen, amigo de Muri e Nando da faculdade de Arquitetura. O desenho em preto e branco com detalhes intrigantes e imagens de realismo fantástico acompanhou a tendência das capas de discos das grandes bandas do rock progressivo internacional daquela época.

    Apesar de a arte da capa sugerir essa ideia, Pirata não é um álbum de rock progressivo. Nem de folk rock, outro estilo atribuído à banda. A Barca durante toda a sua trajetória foi, sobretudo, um grupo de música brasileira com um estilo tão próprio que, por isso mesmo, tornou-se inclassificável. Na produção musical nacional dos anos 1970, é referência daquilo que não pode ser pré-definido por gênero.

    Talvez isso possa ser atribuído à soma de contribuições singulares na construção de letras, melodias e arranjos. Ou ao fato de ser uma banda formada por estudantes de música, multi-instrumentistas, com letristas que eram poetas e escritores expoentes da chamada geração marginal carioca, como Cacaso e Geraldo Carneiro (hoje acadêmico da ABL) − todos ávidos por experimentar sonoridades e criar algo realmente novo. Não havia, no entanto, uma intencionalidade. Tudo na Barca acontecia de modo natural e o espírito coletivo norteava a construção de todo o trabalho.

    A síntese dessa integração pode ser percebida em Desencontro (João Carlos Pádua e Nando Carneiro), onde os autores fazem um jogo sintático de palavras, ou em Estrela, cuja força da letra se contrapõe à delicadeza do arranjo jazzístico, com destaque para o solo de guitarra de Beto Rezende. Ou, ainda, em Canção pra ela, de Alain Pierre, cujo arranjo vocal é construído em três vozes (canto, contracanto e resposta); e em Manuel, mistura de samba de breque com choro que traz a marca registrada da percussão de Marcelo Costa, autor da música em parceria com Geraldo Carneiro.

    Voltando à saga dos barqueiros-piratas, eles passaram dias no terraço da casa de Marcelo e Muri, em Ipanema, encartando as bolachas de vinil nas capas, além dos adesivos que eram oferecidos de brinde. Foram cinco mil cópias na primeira tiragem. Para distribuir, fizeram um mapa da cidade e cada um ficou responsável por cobrir uma área específica. Mais tarde, percebendo que não funcionaria, contrataram a Eldorado, distribuidora ligada à rádio de mesmo nome, do grupo Estadão. Entre os lançamentos independentes naquele ano, Pirata ficou em segundo no ranking de vendas, atrás apenas do Boca Livre. O sucesso rendeu mais uma tiragem de mil cópias.

    A Barca do Sol fez vários shows para lançar o álbum, especialmente em São Paulo. O último da temporada, em Campinas. Em 1981, a banda se dissolveu de modo tão repentino quanto surgiu. Os barqueiros continuaram amigos, mas nenhum deles sabe dizer ao certo qual a razão do fim da banda. Desencanto em relação às dificuldades, pouco retorno financeiro, falta de interesse das gravadoras por um tipo de música que não era comercial e não acompanhava as tendências do momento, outros planos individuais para o futuro. Tudo isso se somou à decisão.

    Embora o álbum Pirata nunca tenha sido lançado em CD, em fevereiro de 2020, por iniciativa do baterista e percussionista Marcelo Costa, a versão digital chegou às plataformas de música pelo selo Circus, juntando-se aos discos anteriores que já estavam disponíveis online. Além das 11 canções originais, a versão digital traz uma faixa bônus: Sonhar, música inédita de autoria de Alain Pierre que integraria um quarto disco da Barca jamais terminado.

    Ficha técnica:

    Pirata (Verão – LPV-001)

    Gravadora: Verão Produções Artísticas e Comércio de Discos Ltda.

    Gravado em Estúdio Vice-Versa

    Fabricado por Gravações Elétricas S.A.

    Direção de estúdio e produção: A Barca do Sol

    Coprodução: Afonso Carlos Costa

    Arranjos e vocais: A Barca Do Sol

    Contracapa: Christiane Coelho

    Desenho da capa e arte-final: Tejo Cornelsen

    Técnicos de estúdio: Nani Viola e Ricardo Franjinha

    Auxiliares técnicos: Paulo e Robson

    A Barca do Sol:

    Alain Pierre: contrabaixo

    Marcelo (Costa): bateria, berimbau e percussão

    Beto Rezende: guitarra, violão, violão de aço, viola caipira e percussão

    David Ganc: flautas G, C e Flautim

    Nando Carneiro: voz, violão, piano elétrico e acústico e viola caipira

    Muri Costa: voz, violão, piano elétrico, viola caipira e percussão

    Lado A

    1 − Vô mimbora pru Sertão (Tradicional)

    2 − Tereza Boca do Rio (Nando Carneiro / Geraldo Carneiro)

    3 − Mercado das flores (Muri Costa / Geraldo Carneiro)

    4 − Cavalo marinho (Nando Carneiro / Cacaso)

    5 − Jando (Nando Carneiro / Jaques Morelenbaum)

    6 − Jardim de infância (Nando Carneiro / Beto Resende / Geraldo Carneiro) Participação: Olivia Byington e Crianças do Instituto Nazareth

    Lado B

    1 − Desencontro (Nando Carneiro / João Carlos Pádua)

    2 − Estrela (Nando Carneiro / João Carlos Pádua)

    3 − Manoel (Muri Costa / Geraldo Carneiro)

    4 − Rio Preto (Alain Pierre) Participação: Geraldo Sanfoneiro

    5 − Canção pra ela (Alain Pierre)

    A Cor do Som

    Frutificar

    por Ricardo Pugialli

    Conheci A Cor do Som com 16 para 17 anos, em 1977, no 1º Festival Nacional do Choro, na Rede Bandeirantes. Eu não, na verdade, meu saudoso pai. Ele, na época com seus 55 anos, era um amante do chorinho. Ficou surpreso ao ver quatro garotos tocando um chorinho elétrico e me chamou. Curti a banda na hora. Ele comprou o LP do Festival. Eu, o primeiro disco d’A Cor do Som.

    A banda era formada por músicos experientes, apesar da pouca idade. O baixista Dadi (Eduardo Magalhães de Carvalho) vinha dos Novos Baianos, onde, além do regional, havia o braço elétrico chamado A Cor do Som. Depois fez parte da banda de Jorge Ben, que anos depois viria a mudar seu nome para Jorge Ben Jor. Seu irmão, o tecladista Mú (Maurício Magalhaes de Carvalho), também vinha da banda de Jorge Ben e já compunha sucessos. A música Sapato velho, de 1976, é uma parceria dele com Cláudio Nucci e Paulinho Tapajós. A música classificada no Festival de Choro, Espírito infantil, também era de sua autoria. O guitarrista Armandinho (Armando Macêdo) vinha do Trio Elétrico Armandinho, Dodô & Osmar. O baterista Gustavo (Gustavo Schroeter) vinha do The Bubbles, depois A Bolha, e de vários trabalhos com Zé Rodrix, Jorge Ben, Raul Seixas e Veludo.

    Em 1974, Moraes ia gravar seu primeiro disco e queria montar uma banda. Armandinho, que veio para o Rio para tocar com ele, sugeriu Dadi para o baixo, pois Moraes já tinha tocado com ele nos Novos Baianos. Para a bateria Dadi indicou Gustavo. Em 1975 eles gravam o disco, no qual Moraes pediu que Mú tocasse piano em uma música. Ele convidou os quatro para tocarem com ele e eles decidiram formar A Cor do Som.

    André Midani estava organizando a gravadora WEA (braço da Warner) no Brasil. Ele conhecia bem Dadi e contratou a banda para gravar três discos. O grupo lançou seu primeiro LP em 1977, que trazia todas as suas influências instrumentais. A banda tocou na festa de um ano da gravadora e foi convidada por Claude Nobs para tocar no Festival de Montreaux, organizado por ele. O show foi gravado ao vivo e virou o segundo LP, já contando com o percussionista Ary Dias, que tocou com Armandinho no Trio Elétrico. Do Trio, Armandinho trouxe seu irmão Aroldo e uma música inusitada: Eleanor Rigby, já gravada em um dos discos do Trio Elétrico e que fazia sucesso no carnaval da Bahia. Mas uma parte da plateia vaiou o aparente sacrilégio com o clássico dos Beatles.

    Os dois primeiros discos, instrumentais, não chegaram juntos a 10 mil cópias vendidas. Como o contrato com a gravadora previa três discos, André Midani chamou Dadi e Armandinho e sutilmente deu um ultimato: Ok, Ok. Vocês são muito bons, fazem sucesso nos shows, mas precisam levantar estas vendas ou não haverá renovação. A sugestão era terem um sucesso radiofônico. Ou seja, música cantada!

    Caetano Veloso curtia muito a banda e entregou Beleza pura, ainda inédita. Giberto Gil deu um belo presente, a igualmente inédita Abri a porta, em parceira com Dominguinhos. Mú não se sentia à vontade para cantar nesta época, ainda mais música de outro compositor. Compôs uma melodia e pediu para Moraes Moreira fazer a letra. Assim, ele cantou com tranquilidade a sua Swingue menina. O restante do disco seria com músicas instrumentais, o forte da banda até então.

    Logo na abertura Mú vem com o clássico instantâneo, a música-título Frutificar. Até hoje ela é o hino da banda. Vale ressaltar que antes da gravação deste LP, Mú compôs a trilha sonora do filme A Dama do Lotação, onde começou a explorar sua afinidade com a música dramatúrgica, em suas palavras. Dividida em duas partes, com teclados, orquestra, flautas e depois toda a banda, é uma das melhores aberturas de um LP nacional até então. Uma verdadeira Sinfonia que frutificava logo na primeira faixa do disco.

    Abri a porta veio logo em seguida. A composição de Gilberto Gil e Dominguinhos foi a primeira com vocal no disco. O escolhido foi Dadi, que não fez feio, e este foi um dos sucessos radiofônicos que Midani tanto queria e mostrava um novo lado da banda. A terceira foi Ticaricuriquetô, um instrumental elétrico de Armandinho, onde a banda mostrava toda sua habilidade como instrumentistas, numa bela mistura do molho baiano e a música progressiva, especialmente nas pinceladas de Mú nesta pintura. O segundo sucesso foi Beleza pura, cantada por Armandinho. Febre nas rádios e nos shows da banda. Um ótimo encerramento para o primeiro lado do vinil.

    O lado B abria com Pororocas, um belo chorinho acústico da banda. Armandinho mostra sua bela técnica no bandolim. A segunda era Swingue menina, com vocal de Mú, onde sua melodia evoca muito de suas influências. Foi o terceiro sucesso que Midani recebeu da banda. Em seguida, mais um chorinho, Assanhado, um clássico onde Armandinho rendeu homenagem ao gênio Jacob do Bandolim. Itacimirim, de Armandinho, foi mais um instrumental, com guitarras, bandolim, metais e a cozinha da banda. Armandinho e Mú contribuíram com um chorinho belíssimo, Viver para sorrir, que pode figurar em qualquer coletânea do gênero. Já seria um belíssimo encerramento do disco se não fosse a volta da segunda parte de Frutificar, o clássico d’A Cor do Som.

    O disco passou de 50 mil cópias vendidas e foi lançado na Argentina e no Japão. Isso não chegava a ser novidade para a banda, uma vez que os dois primeiros trabalhos saíram também em Portugal e na Alemanha. A gravadora ainda capitalizou em cima do sucesso do disco, lançando em 1979 dois compactos, Beleza Pura / Itacimirim (Atlantic − BR 10.099) e Frutificar / Abri a porta (Atlantic BR − 10.111). Em 1980 lançou um compacto duplo, Beleza pura / Abri a Porta / Swingue menina / Assanhado (Elektra − BR 92.010).

    Com este disco, apesar do repertório ligado à linguagem instrumental da banda, A Cor do Som atingiu um público que desconhecia estas habilidades instrumentais. Os fãs escreviam cartas para a gravadora dizendo que compraram o disco por Beleza pura e Abri a porta, mas que estavam encantados com as músicas sem letra!

    O show de lançamento do disco no Ibirapuera, em São Paulo, foi apoteótico. Milhares de fãs foram à loucura, ao ponto do Jornal Nacional, ao falar do evento na TV, pedir para que mais ninguém fosse para o local pois não havia mais espaço. No Rio de Janeiro, no Teatro Casa Grande, eu estava nas primeiras filas, com meu fiel gravador e pude testemunhar o lançamento carioca e curtir as belas músicas.

    A Cor do Som escreveu com letras maiúsculas a sua presença na história da música brasileira com este disco e segue até hoje encantando os admiradores de sua música.

    Ficha técnica:

    Frutificar (Atlantic BR − 30.107)

    Gravadora WEA

    Produtor: Guti

    Direção de produção: Guti

    Estúdio de gravação: Transamérica, RJ

    Técnicos de gravação: VItor Farias, Toninho, Claudio e Waldir

    Auxiliares de gravação: Rafael e Aníbal

    Assistente técnico: Edeltrudes Marques

    Mixagem: Guti, Vitor Farias e A Cor do Som

    Capa: Ruth Freihof

    Foto da capa: Antônio Guerreiro

    Fotos P/B: Paulo Vasconcelos

    Coordenação de capa: Claudio Carvalho

    Este disco foi gravado em Maio/Junho de 1979

    A Cor do Som:

    Mú: piano Yamaha, Minimoog, órgão Hammond e voz

    Dadi: baixo, violão e voz

    Armandinho: guitarra, guitarra baiana, bandolim e voz

    Gustavo: bateria e percussão

    Ary: percussão

    Lado A

    1 − Frutificar (Mú)

    2 − Abri a porta (Dominguinhos / Gilberto Gil)

    3 − Ticaricuriquetô (Armandinho)

    4 − Beleza pura (Caetano Veloso)

    Lado B

    1 − Pororocas (Armandinho / Luis Brasil)

    2 − Swingue menina (Moraes Moreira / Mú)

    3 − Assanhado (Jacob do Bandolim)

    4 − Itacimirim (Armandinho)

    5 − Viver para sorrir (Armandinho / Mú)

    6 − Frutificar (Mú)

    Alcione

    Gostoso Veneno

    por Vicente Dattoli

    Uma cantora de samba, mas muito romântica, formada na efervescente noite carioca e fazendo cada vez mais sucesso, vendendo mais discos, realizando mais shows, premiada e já totalmente identificada com um público fiel. Um time de compositores do mais alto nível, daqueles que é difícil conseguir reunir de uma só vez, sendo que, alguns, já até a acompanhavam.

    Essa soma resulta, obviamente, em mais e mais sucesso e, claro, canções para ficarem marcadas na história da Música Popular Brasileira. É assim, de forma simples e quase juvenil, que poderia constar no livro de recordações de qualquer fã, que se pode falar do disco Gostoso Veneno, lançado pela maranhense Alcione (Alcione Dias Nazareth), em 1979.

    A Marrom, como já era conhecida, vinha de (mais) um grande sucesso em seu LP anterior, de 1978. A música Sufoco, de Antônio José e Chico da Silva, fechara o ano como a 37ª mais tocada nas paradas de sucesso – a 16ª se considerarmos apenas as nacionais. A sucessão de grandes composições e sucessos (não podemos esquecer Não deixe o samba morrer, seu primeiro carro-chefe) fazia de Alcione uma das mais procuradas artistas para gravações. O LP Gostoso Veneno é prova disso.

    Com uma relação de compositores que incluía Wilson Moreira e Nei Lopes (autores justamente da música que dá nome ao disco), Paulo César Pinheiro, João Nogueira, Paulinho Rezende, Jorge Aragão, Gonzaguinha, Candeia, Nonato Buzar e Chico Anysio, entre outros, Gostoso Veneno emplacou. E deixou saudades.

    Na opinião do radialista e produtor musical Adelzon Alves, o Amigo da Madrugada, todos então queriam ter uma música gravada por Alcione. Ela era um sucesso..., relembra. E já que falamos de recordações, é importante recordar, também, que neste mesmo 1979 Alcione comandava um programa, toda primeira sexta-feira do mês, na TV Globo, o Alerta Geral.

    Claro que tudo isso convergia para uma catarse de talentos a seu redor. Fala de novo Adelzon: "Alcione reuniu, naquele disco, Gostoso Veneno, a elite dos compositores do Rio de Janeiro na época. Adelzon tem total autoridade para falar sobre o tema, afinal de contas, ele mesmo foi responsável pelo estouro de uma das canções do LP, a deliciosa Rio antigo", que abria seu programa, todas as madrugadas, logo após a edição do noticiário O Seu Redator Chefe.

    Apesar de não constar das listas das músicas mais tocadas, Rio antigo era um retrato da noite carioca dos velhos bons tempos. Curiosamente, composta por um maranhense (Nonato Buzar), como Alcione, e um cearense (Chico Anysio) – Alcione sempre se diverte quando lembra desse fato em entrevistas.

    Não há exagero em dizer que esta canção tocava fundo no coração da multi-instrumentista (Alcione toca, entre outros, trompete, clarinete e saxofone), que iniciara sua carreira justamente nas boates de Copacabana – chegou a ser detida uma vez, quase levando a famosa vadiagem. Salvou-se por ser reconhecida, justamente, como música e cantora, afinal, já se apresentava no Barroco, Bacarat, Holiday, Bolero...

    Com muita nostalgia e histórias para contar, Adelzon Alves afirma que Rio antigo deveria ser tombada. Era uma fotografia da cidade, de uma beleza poética e melódica difícil de encontrar, explica o radialista, que abria seu programa (líder de audiência no rádio carioca da época) com a música interpretada por Alcione.

    Eu trabalhava na madrugada. Morando em Copacabana, quando chegava em casa o bairro ainda fervilhava... E a música era um retrato perfeito do que encontrava, garante Adelzon, sabendo que sua opinião é muito semelhante e até compartilhada pela Marrom, que mais de uma vez afirmou que se tivesse de recomeçar sua carreira faria exatamente o mesmo caminho: começar na noite.

    O artista precisa sofrer um pouco para atingir a maturidade, já explicou Alcione. E para as canções escolhidas para compor o repertório de qualquer disco, a receita é simples: A música precisa emocionar a quem vai cantá-la. No meu caso, a música precisa parecer comigo. Simples assim.

    A canção cita outros tempos do Rio de Janeiro. Valorizando a Zona Sul, começa descrevendo a Lapa boêmia (não essa de hoje), a cidade ainda sem o Aterro do Flamengo, grandes cantores, bate-papo nas esquinas – sem o temor da violência – e mais, e mais, e mais. Talvez o único defeito da música tenha sido excluir as escolas de samba, a Zona Norte... Mas se levarmos em conta que era um retrato da porção do outro lado do túnel, não há como negar seu mérito, avalia Adelzon.

    Sem querer entrar no julgamento de como se juntaram tantos grandes compositores, e por ser também produtor musical, Adelzon faz questão de ressaltar a sintonia com o cantor. O produtor, como o radialista, serve de escada para o cantor. Ele reúne compositores, arruma, para o artista aparecer, destaca, citando que Gostoso Veneno tinha duas das chamadas músicas de trabalho: Menino sem juízo e, claro, Gostoso veneno.

    O disco era tão forte, tão fadado ao sucesso, que essas duas músicas estiveram na lista das mais executadas no país em 1979 e 1980. Gostoso veneno foi a 58ª da relação de sucessos do ano do lançamento (a 28ª apenas entre as canções nacionais); virando o ano, Menino sem juízo ficou em 54º (27º entre as brasileiras) em 1980.

    Não se cita, neste caso, Rio antigo. Menino sem juízo tinha Chico Roque e Paulinho Rezende (presença constante nos discos anteriores da cantora) sedimentando suas carreiras; Gostoso veneno, a canção, trazia as assinaturas de Wilson Moreira e Nei Lopes, que dispensam qualquer comentário. Por semanas ocupou os primeiros lugares das paradas, recorda Adelzon, para mais uma vez derreter-se por Rio antigo.

    Não era tão comercial, mas representava uma época, como uma pintura, uma escultura. Deveria ser peça de um museu sonoro por mostrar aos mais jovens um Rio que se perdeu, justifica.

    Com outras composições que deixaram saudade, apesar de não terem conseguido tanto sucesso comercial como Paraíba do Norte, Maranhão (Paulo César Pinheiro e João Nogueira), Salve a lama negra (Gonzaguinha) ou Quero sim (Darcy da Mangueira e Lecy Brandão), Gostoso Veneno teve espaço até para um samba, digamos, de protesto: Dia de graça, de Candeia, retratando um desfile de escola de samba e toda a majestade do negro. Tudo isso na voz da Marrom, e com muita emoção.

    Emoção que, aliás, marca a vida e a carreira de Alcione. Emoção e gratidão – além de algumas loucuras, como abandonar o programa A Grande Chance, depois de duas eliminatórias bem-sucedidas, para viajar para a Europa. Não se espere, também, jamais, que a Marrom vá esquecer de Jair Rodrigues e de Roberto Menescal.

    A razão? Foi o Cachorrão, que já conhecia seu trabalho e seu talento, que a levou até a Philips, apresentando Alcione a Menescal – que imediatamente viu na cantora potencial para o sucesso. Aposta, aliás, que foi bancada também por Heleno de Oliveira e pelo próprio presidente da gravadora, André Midani, que confiavam no olho clínico do renomado produtor.

    Menescal foi o primeiro a acreditar em mim. Disse que havia uma brecha para cantar samba e lá fui eu, recorda Alcione, que na época chegou a questionar essa opinião, citando outras cantoras já consagradas no mesmo nicho. Felizmente ela aceitou a opinião e está aí, há mais de quatro décadas, emocionando quem a ouve cantar.

    Ficha técnica:

    Gostoso Veneno (Philips – 6349420 - Série Ouro)

    Gravadora: Philips

    Direção de produção: Roberto Santana

    Direção de estúdio: Roberto Santana

    Seleção de repertório: Alcione, Roberto Menescal e Roberto Santana

    Técnicos de gravação: Jairo Gualberto e João Moreira

    Auxiliar de gravação: Rui Varella e Julinho

    Mixagem: Ary Carvalhães

    Arranjadores: Roberto Menescal, Luiz Roberto, Ivan Paulo, Perna Froes, Meirelles, Perinho Albuquerque e Sidney Toda Transa

    Capa: Aldo Luiz

    Fotos: Orlando Abrunhosa

    Arte: Jorge Vianna

    Maquiagem: Guilherme Pereira

    Lado A

    1 – Menino sem juízo (Chico Roque / Paulinho Rezende)

    2 – Faca de ponta (Roberto Corrêa / Sylvio Son)

    3 – Paraíba do Norte, Maranhão (Paulo César Pinheiro / João Nogueira)

    4 – Amantes da noite (Dedé da Portela / Dida)

    5 – Pra você não me esquecer (Chico da Silva / Venâncio)

    6 – Primeira escola (Neoci / Dida / Jorge Aragão)

    Lado B

    1 – Gostoso veneno (Wilson Moreira / Nei Lopes)

    2 – Rio antigo (Nonato Buzar / Chico Anysio)

    3 – Bom Jesus dos Navegantes (Walmir Lima / Lupa)

    4 – Salve a lama negra (Gonzaguinha)

    5 – Dia de graça (Candeia)

    6 – Quero sim (Darcy da Mangueira / Leci Brandão)

    Amelinha

    Frevo Mulher

    por Klaudia Alvarez

    O ano de 1979 foi regido por Mercúrio, o menor planeta do Sistema Solar, o mais próximo do Sol e aquele que representa o pensamento, o intelecto e, principalmente, a comunicação. Foi um ano em que, sem dúvida, as mulheres se destacaram. Madre Teresa de Calcutá ganhou o Prêmio Nobel da Paz, Margareth Thatcher se tornou a Primeira Ministra britânica e, por aqui, foi eleita a primeira senadora do Congresso, Eunice Michiles. Também foi o ano em que os brasileiros se encheram de esperança, com a assinatura da Lei da Anistia e a possibilidade da volta à tão sonhada democracia. Uma das grandes novidades que marcou o ano foi o lançamento do 1º walkman da história: o da Sony, que permitiu que as pessoas pudessem ouvir música de forma individual e privada, enquanto em movimento.

    Ainda era 1978 e Amélia Cláudia Garcia Collares, a nossa Amelinha, estava se preparando para lançar seu segundo disco, aquele que daria continuidade à sua carreira que começou de forma especial, ao excursionar pelo Uruguai com ninguém menos que Vinicius de Moraes e Toquinho. Morando em São Paulo, para onde tinha se mudado há algum tempo, a fim de cursar a Faculdade de Comunicação da FAAP, e vinda de um disco de estreia que fez sucesso e projetou seu nome, a intérprete cearense recebeu um ultimato de Jairo Pires, diretor artístico da CBS, gravadora da artista: agora eu quero um disco premiado. Amelinha não fez por menos e junto com Carlos Alberto Sion, o produtor do futuro disco, partiu para a realização do projeto.

    É importante lembrar que naqueles tempos as gravadoras eram muito fortes e tinham condições de fornecer aos seus contratados meios de trabalho que hoje parecem um sonho. Amelinha pôde sair de São Paulo, se instalar em um hotel na Zona Sul do Rio e começar o processo de garimpagem das canções que fariam parte de seu segundo disco. Outros artistas, no mesmo processo, também eram instalados pela CBS no mesmo hotel, então acontecia um grande encontro entre os artistas ali reunidos. As horas das refeições viravam uma troca de informações e o momento em que os compositores iam até o local com suas fitas cassetes mostrar suas canções. Nesse processo de seleção de repertório, Amelinha recebeu dezenas de músicas e também frequentou alguns shows de colegas para conhecer outras. É nessa época que ela conhece Zé Ramalho pessoalmente, pois já tinha tido contato com um pouco da obra dele anteriormente. Hospedado no mesmo hotel, o paraibano acabaria sendo o diretor musical do disco que estava sendo gestado e futuramente seria também seu marido.

    Depois de assistir a um show de Zé Ramalho, Amelinha resolveu que ia pedir uma música ao compositor que a impressionara pela levada, estilo e pelas letras tão cheias de imagens e metáforas. E a encomenda foi entregue: Galope rasante. Em um show de Geraldo Azevedo, Amelinha ouviu Dia branco e se encantou pela música, até então inédita. No camarim, depois do show, disse a Geraldinho que queria gravá-la e a resposta foi imediata: é sua.

    Walter Franco, outro artista contratado da CBS, também estava no mesmo hotel nessa época e foi outro compositor a quem Amelinha resolveu pedir uma canção. Uma noite, ela recebe uma ligação em seu quarto e mal podia acreditar na voz tão marcante que ouvia, recitando os versos de Divindade: é divindade que me bate no peito / é divindade o seu coração / é divindade, é bonito, é perfeito / é divindade, é satisfação. Mais uma que entraria no

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