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Ímola 1994: a trajetória de um repórter até o acidente que chocou o mundo
Ímola 1994: a trajetória de um repórter até o acidente que chocou o mundo
Ímola 1994: a trajetória de um repórter até o acidente que chocou o mundo
E-book327 páginas5 horas

Ímola 1994: a trajetória de um repórter até o acidente que chocou o mundo

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Sobre este e-book

Quando reviro meus recortes de jornais, vejo minhas fotos antigas, tento organizar as centenas de credenciais de corridas, Copas e Olimpíadas, percebo que uma história foi escrita. E tenho orgulho dela. Lembro com carinho dos primeiros passos no "Popular da Tarde", da insegurança nas entrevistas com cientistas para a SBPC, do espanto ao entrar no prédio de pastilhas da "Folha", da passagem por "Placar", do primeiro GP em Jacarepaguá, das viagens para a Europa, da timidez diante de microfones e câmeras de TV. Cada segundo nessa vida maluca valeu. O jornalismo é um belo ofício. Foi ele que me deu a chance de ver o mundo. E de contar aos outros o que vi. Porque, no fundo, é o que somos, os jornalistas: contadores de histórias.
IdiomaPortuguês
EditoraGulliver
Data de lançamento16 de jan. de 2023
ISBN9786589911920
Ímola 1994: a trajetória de um repórter até o acidente que chocou o mundo

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    Adorei o livro! Gosto muito da maneira como o Flávio escreve e as histórias me prenderam de uma maneira que eu não conseguia parar de ler.

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Ímola 1994 - Flavio Gomes

Copyright © 2021 by Flavio Magliari Gomes

Grafia atualizada segundo o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990, que entrou em vigor no Brasil em 2009.

Editor

Joubert Amaral

Capa

Gulliver Editora

Foto de capa

Arquivo Pessoal

Revisão

Versão Final

Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta edição pode ser utilizada ou reproduzida – em qualquer meio ou forma, seja mecânico ou eletrônico, fotocópia ou gravação etc. –  sem a expressa autorização da editora.

1ª Edição Digital – 2023 | 1ª Edição Impressa – 2021

ISBN: 978-65-89911-92-0

[2023]

Todos os direitos reservados à

GULLIVER EDITORA LTDA.

Rua Dom Pedro I, 250 - loja

Vila Cruzeiro - Divinópolis - MG

www.gullivereditora.com.br

"O jornalismo é apenas o primeiro

rascunho grosseiro da História."

Alan Barth (1906-1979), editorialista

do The Washington Post, em 1943.

PREFÁCIO

As viagens de Gomes: um livro de aventuras

Quem avisa amigo é: este livro padece de um mal incurável. Ímola 1994 passa rápido, zunindo como um carro de Fórmula 1 numa reta dos boxes. Depois da largada, não dá para parar – a leitura, bem entendido. O pit stop que espere outra hora.

Flavio Gomes escreveu um livro sobre jornalismo e jornalistas, uma confissão copiosa e generosa como raras vezes se viu na imprensa brasileira.

Quem quiser conhecer os bastidores de um grande jornal e os desafios de um repórter à caça de informações mundo afora terá à disposição um depoimento revelador. Que nasce com espaço assegurado na bibliografia acadêmica dos bons cursos de jornalismo.

Este é também um livro sobre automobilismo.

O autor rememora sua trajetória como repórter da Folha de S.Paulo que cobriu o circuito da Fórmula 1 do finzinho da década de 1980 até maio de 1994, quando Ayrton Senna se despediu da vida e a curva Tamburello entrou na história do Brasil. Num instante, de avental, o churrasqueiro Flavio pergunta ao campeão Michael Schumacher se ele prefere a carne ao ponto ou bem passada. Noutro, em um box do autódromo do Estoril, ouve confidências de Senna.

Este é um livro clássico de viagem, de seus prazeres e perrengues.

Dos prazeres, nenhum me pareceu apetitoso como a descoberta casual, no México, do melhor hambúrguer do planeta – grelhado na brasa, por supuesto.

Ímola 1994 é tudo isso, mas é sobretudo um livro de aventuras.

A fabulosa aventura do menino que editava jornaizinhos artesanais e colecionava miniaturas de automóveis e carrinhos de autorama. E que, mais tarde, virou habitué de Monza, Magny-Cours e Suzuka – vendo, ouvindo e contando as novidades.

É uma história de paixão arrebatadora pelo jornalismo. Paixão irreversível, que sobreviveu incólume aos desencantos do caminho. Com quase quatro décadas de profissão, Flavio compartilha suas memórias sem um só travo de ressentimento. A certa altura, ele segreda: nunca foi tão feliz.

Mas não se transformou em bobo alegre. Seu espírito crítico permanece afiado. E o humor, de corrosivo a escrachado, não poupa ninguém, a começar por ele mesmo. Viajar em sua companhia, parágrafo por parágrafo, é um divertidíssimo prazer.

À medida que o desfecho se avizinha, a narrativa se tinge de tensão. Sabemos o que vai acontecer. Ímola 1994 ajuda a entender por que aconteceu. Não é um livro sobre Ayrton Senna, e sim a respeito do repórter cuja vida jornalística cruzou para sempre com o destino do piloto que comoveu o Brasil.

O Senna das lembranças de Flavio é de uma humanidade tocante. É de carne e osso, e não personagem de hagiografia. Cresce, aos olhos da história. Dias depois da tragédia na Tamburello, Flavio se demitiu da Folha, em episódio que ele reconstitui nestas páginas.

Foi no jornal da alameda Barão de Limeira que eu tive a sorte de conviver com Flavio Gomes, nos breves intervalos entre as chegadas e partidas do nosso intrépido repórter de Fórmula 1. Não esqueci, porque é caso incomum: ele apura bem, escreve bem, edita bem, domina o processo jornalístico inteiro. Volta e meia elaboro, em passatempo para consumo próprio, um ranking dos jornalistas mais completos do país. O Flavio, um assombro, nunca sai da lista dos melhores.

Um dos seus dons mais notáveis é o de contar histórias, com prosa sedutora, provocadora e inteligente. Quando um contador de histórias talentoso encontra grandes histórias para contar, quem ganha são os leitores, como comprova este livro que não se consegue largar antes do ponto, ou bandeirada, final.

Mário Magalhães, jornalista e escritor

RIO DE JANEIRO, 1973

É mais fácil conseguir as coisas, qualquer coisa, quando se sabe desde cedo o que se quer. Ser um repórter era minha vontade desde sempre, ou pelo menos desde quando me lembro de ter alguma consciência das coisas. Ver, observar, testemunhar, interpretar e noticiar. Registrar os acontecimentos. Fazer o rascunho da História, com H maiúsculo, que é o que tentamos. Com isenção, distanciamento, fidelidade. E honestidade.

Seria um pouco presunçoso imaginar que minha carreira um dia mereceria uma biografia, mas remexendo velhos papéis nas minhas muitas mudanças de endereço, dia desses, notei que a vida do eventual biógrafo seria bem facilitada se ele, ou ela, abrisse as caixas de sapato certas. Numa delas, encontraria uma coleção de crachás. Em outra, páginas de cadernos com redações escritas no primeiro ano primário. Numa terceira, o começo de tudo: A Patada Quadrada.

Foi numa terça-feira, dia 7 de agosto de 1973, que coloquei nas ruas minha primeira publicação, o jornal A Patada Quadrada. Leitor voraz de gibis da Disney, tinha especial admiração pelo personagem Peninha, que trabalhava em A Patada, jornal que pertencia a Tio Patinhas e era concorrente de A Patranha, do milionário rival Patacôncio. Peninha era um dos repórteres de A Patada. O outro era seu primo Donald.

A Patada foi criada em janeiro de 1970 pelos roteiristas da Disney para as HQs que eram exportadas para o mundo inteiro. Nos gibis publicados nos EUA, ela nunca existiu. O jornal brigava com A Patranha pela condição de mais influente e importante diário de Patópolis. Sob pressão para furar a concorrência e incomodar Patacôncio, Peninha e Donald faziam das tripas coração para agradar o editor e proprietário, ameaçados permanentemente de demissão. Seus métodos eram pouco ortodoxos. Mas, anos depois, a Editora Abril publicou o Manual do Peninha ensinando direitinho a molecada a ser jornalista. Tinha tudo lá. Era o que eu queria ser na vida.

Coloquei nas ruas é uma evidente licença poética, quase uma homenagem à criança de 9 anos que vivia no Rio de Janeiro, no segundo andar do edifício Martha Pinheiro de Lima, na rua General Barbosa Lima, 95, em Copacabana. Morávamos no 201. No 101, logo abaixo, a família Cabral. Seu Sérgio, o patriarca, era escritor e jornalista conhecido. Homem do samba, da Bossa Nova, do Carnaval, das letras, do Vasco, da Última Hora, do Pasquim. Seu filho mais velho acabaria se tornando muitos anos depois governador do Rio.

Eu não sabia direito o que fazia seu Sérgio, e estaria mentindo se especulasse aqui alguma influência do vizinho famoso. Não. Lembro apenas de sua gentileza quando almoçávamos em seu apartamento junto com os três irmãos que tinham a mesma idade que a gente e, sei lá por quê, de um quadro emoldurado da cerveja Caracu pendurado na parede da sala de jantar como única peça de decoração. E de sua voz grave e rouca.

A decisão de ser jornalista na vida viera pouco antes do lançamento de A Patada Quadrada, na verdade. Foi quando ganhamos, eu e meus irmãos, um obscuro jogo de tabuleiro cujo nome não lembro e, por mais que pesquisasse no Google, Alta Vista, Yahoo! e na velha coleção de Conhecer – enciclopédia em vários volumes que até hoje ocupa um bom espaço num armário na casa dos meus pais –, nunca descobri.

Mas me recordo com impressionante nitidez do tabuleiro, dos personagens e das situações propostas aos jogadores, todos eles repórteres que nas ilustrações da caixa usavam chapéus de feltro com uma etiqueta presa à fita em torno da copa onde se lia, em letras maiúsculas, a palavra PRESS. Cada um tinha de se dirigir a um ponto do tabuleiro onde algo relevante estivesse acontecendo: um assalto a banco, um incêndio num prédio, um acidente de avião, um crime insolúvel. Ganhava aquele que chegasse primeiro ao evento e conseguisse voltar à redação de seu jornal munido de dados suficientes para explicar o que efetivamente tinha acontecido.

Aquele jogo de tabuleiro me fez ser jornalista. Queria usar o chapéu escrito PRESS, queria sair pelas ruas com uma máquina fotográfica pendurada no pescoço, queria anotar as coisas num bloquinho, queria voltar correndo ao jornal para contar logo para o maior número possível de pessoas o que tinha apurado.

Com exceção do chapéu, o resto é o que fiz por toda minha vida nos veículos disponíveis para tal: jornais, revistas, emissoras de rádio e televisão, plataformas de internet. E comecei com A Patada Quadrada.

A primeira edição não foi particularmente bem-sucedida, e talvez tenha sido o jornal de mais breve existência na história, porque acabou durando apenas dois dias. Das 25 páginas de caderno pautadas que foram grampeadas entre dois pedaços de cartolina da cor salmão, cuidadosamente recortadas no formato exato de 9,5 cm por 9,5 cm, apenas seis foram preenchidas. A última notícia publicada, no dia 8 de agosto, dá uma pista do que aconteceu: Hoje vou ter no colégio uma pesquisa sobre Santos Dumont. Ela, a pesquisa, deve ter ocupado todo meu tempo nos dias seguintes. E assim A Patada Quadrada, sem ter sido empastelada ou vetada pela censura, fechou as portas.

Mas, antes disso, publicou 12 notícias muito bem escritas, concisas, diretas, objetivas, que relatam precisamente o que aconteceu de mais importante no Brasil e no mundo naquela terça, 7 de agosto de 1973. Não há fartura de ilustrações, mas a primeira notícia era acompanhada de um desenho inequívoco para acompanhar a informação importante para seu público leitor: Hoje a Dona Wilma fez uma almofada nova.

Contando o ponto final, são 40 caracteres que dizem exatamente o que precisava ser dito. Menos que um tuíte. Dona Wilma é minha mãe, e o fato de ter feito uma almofada nova afetava diretamente a vida dos cinco moradores daquele apartamento, o redator inclusive. Seria disputada, a almofada, quando nos sentássemos à TV para ver, quem sabe, a final do Campeonato Paulista dali a algumas semanas, entre Portuguesa e Santos. Ou, mais provavelmente, para acompanhar a novidade que estreara dois dias antes na nossa Telefunken: A Rede Globo fez um novo show, é o Fantástico. É o que dizia a quarta notícia do jornal, antecedida por duas notas de menor interesse, a saber: O Sr. Fernando hoje não quis tomar banho porque não estava com vontade e Hoje eu fiz uma arminha de Plastito. Coisas do cotidiano, fofocas frívolas que, embora de pouco relevo, sempre têm leitura – alimentam as conversas de botequim no dia seguinte.

Na sequência, o que parece ser uma seção dedicada à TV informa que Na novela Cavalo de Aço ninguém sabe quem matou o velho Max, mas já adianta, em clara demonstração de técnica jornalística afiada – criar uma certa expectativa para a edição do dia seguinte –, que desconfiam do Atílio. A reportagem vem acompanhada do primeiro anúncio da publicação: Creditotal da Ultralar. Apenas isso. Não precisa mais para seduzir o leitor-consumidor, que ao se deparar com mensagem tão retilínea se sente tentado a pedir um crédito total na Ultralar sem pestanejar.

A página 4 foi dedicada ao noticiário policial, começando com O grande apelo dos pais do menino raptado. Consultem os arquivos dos jornais. É o caso mais misterioso de todos os tempos, que mobilizou o país por décadas. Carlos Ramires da Costa, o Carlinhos, 10 anos, foi levado de sua casa na rua Alice, em Laranjeiras, na noite do dia 2 – cinco dias antes da estreia de A Patada Quadrada, que talvez por isso não trouxesse muitos detalhes sobre o sequestro, e avançava no tema dando destaque ao apelo dos pais. O sequestrador pediu um resgate de 100 mil cruzeiros. No dia da entrega do dinheiro, ele não apareceu. Carlinhos nunca mais foi encontrado. Suspeitos foram muitos, entre eles o pai do menino – um garoto sorridente de ar angelical, longos cabelos loiros em sua foto mais conhecida, que ilustrou as reportagens sobre o caso por anos a fio. Até hoje ninguém sabe quem sequestrou Carlinhos. Ou, melhor, quem raptou Carlinhos. Ninguém falava sequestro. Dizia-se rapto. Daí o uso do verbo na manchete de A Patada Quadrada, um retrato estilístico da época.

Como em toda página policial – a isso se chama hierarquia das informações, outra técnica jornalística essencial –, a notícia que vinha a seguir carregava um certo tom pessoal, mas como não causaria muito impacto, foi bem resumida e fria: Quando eu fui no médico teve um assalto na loja do lado. Simples assim. Foi na loja ao lado, assaltos a lojas no Rio em 1973 não eram exatamente uma raridade. Maiores detalhes não eram necessários.

A nota seguinte claramente foi redigida para agradar os censores na redação, já que a ditadura corria solta àquela altura e os jornais tinham de se submeter aos caprichos dos militares: O ministro Jarbas Passarinho abriu uma sala de conferências que funcionará até o dia 9-8-73, informava o texto sucinto e formal. Por fim, fechando a edição, as seções de meio-ambiente e esportes. Primeiro, Uma baleia está dando cria nas praias do Guarujá. Depois, O Gilson vai entrar no Campeonato de Autorama, óbvio agrado a algum amigo do redator, e O jogo Flamengo x Bonsucesso, que ia ser hoje, foi adiado para o dia 14. A isso se chama prestação de serviço. Quem abriu A Patada Quadrada se preparando para ir ao Maracanã naquela noite soube que a partida tinha mudado de data e não perdeu a viagem.

A última notícia do dia 7, pela localização no pé da página de esportes, certamente chegou em cima da hora do fechamento e por isso foi publicada ali: A agência União de Bancos foi assaltada. Os ladrões levaram 143.900 cruzeiros. Mesmo na pressa, nota-se, a informação é completa e precisa, inclusive com o valor subtraído pelos meliantes. E ainda deu tempo de entrar mais um anúncio: Assista a Disney On Parade, alocado às pressas no rodapé da página 2, onde antes havia um calhau.

Depois desse registro e do encerramento do expediente no comercial, creio que fui dormir, porque no dia seguinte tinha aula pela manhã, quando soube da tal pesquisa sobre Santos Dumont que abreviaria a vida de A Patada Quadrada. O único exemplar sobrevivente, e produzido, está bem conservado e ostenta na capa uma imagem da bela Maga Patalógica, explicitando o caráter feminista da publicação, e na contracapa os irmãos Huguinho, Zezinho e Luisinho em trajes atléticos, reforçando a linha editorial que sempre defendeu a prática de esportes pelas crianças – eu mesmo jogava bola na rua quase todos os dias, detinha o que se chama hoje de lugar de fala.

O que A Patada Quadrada tem a ver com o que você lerá nas próximas páginas? Tudo, basicamente. No meu pequeno e fracassado jornal, com alguma boa vontade, é possível identificar os anseios daquele menino de 9 anos que se ligava no que a TV levava ao ar (Fantástico), acompanhava o noticiário (Carlinhos), seguia novelas (Cavalo de Aço), se ocupava do dia a dia mais comezinho (almofada nova em casa, irmão que não queria tomar banho), se preocupava com a violência cotidiana (assalto à loja ao lado do consultório, roubo da agência bancária) e tinha uma certa paranoia com agendas (adiamento do jogo entre Flamengo e Bonsucesso).

Os fatos, em resumo, precisavam ser registrados, e cabia a mim, o repórter, editor e diretor do periódico, decidir o que era relevante o bastante para ser noticiado. Nada muito diferente do que viria a fazer pelos anos seguintes. Contar aos outros o que vi. Em casa, no meu prédio, na rua, no bairro, na cidade, no país, e mais tarde em autódromos espalhados pelo mundo.

É isso que você vai encontrar aqui. Vou contar o que vi e vivi.

SÃO PAULO, 1975

Depois de um jornal, um museu.

Dois anos após o malogro de A Patada Quadrada, o menino que já tinha decidido ser repórter na vida decidiu diversificar seus investimentos, para o caso de dar com os burros n’água na desejada carreira jornalística. Ela seria retomada no momento devido. As notícias podiam esperar mais um pouco. O negócio agora eram os automóveis.

Tendo ideia no museu de Roberto Lee, Flavio Magliari Gomes criou, à 1° de agosto de 1975 o MCVFD, que um dia depois de sua fundação tornou-se MCAFD. O ‘V’ no 1° nome, quer dizer ‘velhos’ e no 2° o ‘A’ quer dizer ‘antigos’.

Assim começava o texto datilografado numa Olivetti cor-de-laranja, cujas letras não eram típicas de uma máquina de escrever – antes, a fonte lembrava letras cursivas, e nem sei se nos tempos das máquinas de escrever se usava o termo fonte para tipos de letras.

Uma crase errada, algumas vírgulas a mais, outra a menos, mas nada de muito grave. O DKW no nome é por causa do grande número de DKWs que o museu tinha, informava ainda o texto de apresentação daquele importante empreendimento, chamando a atenção para outras datas importantes de sua história: 2 de janeiro de 1976, 29 de julho do mesmo ano e 14 de janeiro de 1977. As chamadas épocas de reconstituição, quando muitos carros foram retirados do museu, e somente dois permaneceram sem perigo de serem retirados: os DKWs.

Não briguem com o menino que bateu o texto à máquina por errar um ou outro plural. Ele tinha 12 anos quando chegou ao formato definitivo de seu museu, depois das marcantes épocas de reconstituição, instalado numa escrivaninha antiga revestida pelo pai de papel ConTact com motivos psicodélicos, até onde me lembro.

MCAFD era a sigla para Museu de Carros Antigos Flavio & DKW, com seu distintivo redondo em laranja com letras azuis no centro, criado com canetinhas Sylvapen, certamente, e ao visitar as caixas de sapatos que guardam minhas memórias compreendo bem quando e como tudo começou. Há uma vantagem em ser uma criança organizada. A gente encontra datas e eventos muito precisos. Flavio Gomes fundou seu primeiro museu em 1° de agosto de 1975, poderá cravar aquele meu biógrafo do capítulo anterior sem medo algum de errar.

Pois foi assim, então, no dia 1° de agosto de 1975, com a fundação do MCAFD, que comecei minha história com os automóveis e com os carros antigos. O texto fazia parte de um programa completinho para os visitantes, devia ser lido antes que eu abrisse a escrivaninha para começar a falar de cada carro, um por um, de sua história, de sua importância, de seu caminho até vir parar no acervo do museu.

O MCAFD era uma entidade séria, que tinha sócios e cobrava ingressos. Até carteirinha emitia, mas a adesão não foi das maiores, nem mesmo em casa. No fim das contas, o sócio da carteirinha número 001 era seu fundador, porteiro, segurança e tesoureiro, e da número 001 não passou. A venda de carnês, que dava direito a visitas durante o ano inteiro por Cr$ 200,00, também não vingou. Os ingressos individuais custavam Cr$ 2,50 e igualmente encalhavam mesmo quando vinham os amigos adultos jantar em casa. Ninguém se interessava demais por meus carrinhos, ou talvez as pessoas achassem caras as entradas, mesmo sabendo que menores de 4 anos não pagavam nada e houvesse pacotes de cinco ingressos por Cr$ 10,00, um ótimo desconto.

Desconfio que os adendos ao rigoroso regulamento de visitas também possam ter afugentado os visitantes. O artigo I em seu parágrafo a dizia: Caso um sócio ou visitante quebre algum automóvel do MCAFD, terá que pagar o dobro do valor do automóvel danificado.

Eu também ficaria reticente para visitar o museu, diante dessas condições draconianas.

O que é uma pena, porque o MCAFD até que era bem montado, dividido em seções de carros argentinos (todos comprados numa viagem para Buenos Aires e Bariloche em 1977), americanos, europeus, de corrida e, claro, os dois DKWs que eram as grandes estrelas da coleção.

No libreto descritivo de cada modelo, eles estão listados com os números 16 e 17, seguidos das informações: Estes DKWs da ATMA foram conseguidos na AEROBRÁS. É uma história muito longa. A Aerobrás pretendia montar um museu somente com brinquedos antigos, que não fabricassem mais. No fundo da loja, eu vi os DKWs e perguntei se estavam a venda. Não estavam. Só que o papai foi lá no dia seguinte, e viu 4 frentes de DKWs na vitrine do fundo da loja. Conseguiu convencer o japonês de que haviam 2 DKWs e 2 peruas.

De novo, perdoem alguns deslizes gramaticais. O fato é que meu pai convenceu mesmo o japonês dono da Aerobrás de que ele tinha dois de cada, Belcar e Vemaguet, e comprou um de cada para mim. A lenda doméstica da época rezava que na verdade eram três Vemaguets e um Belcar, e que o japonês acabou ficando com duas peruinhas e nenhum sedã. Desgostoso, desistiu de fazer seu museu na loja.

A disputa entre museus é até hoje muito agressiva e virulenta no mundo inteiro, cheia de histórias de trapaças e comportamentos insidiosos. O MCAFD ganhou aquela batalha. Lamento pelo japonês, mas é a lei da selva. Os DKWs da ATMA ainda existem e provavelmente irão comigo para o túmulo. Um é verde com a capota branca, o sedã. A outra é bege, quase uma Caiçara – modelo popular da Vemag financiado pela Caixa Econômica Federal. Quando ganhei os dois no meu aniversário de 11 anos, jurei que um dia teria aqueles carros de verdade. Tenho, o que não deixa de ser uma pequena vitória pessoal, mas é, sobretudo, uma atitude de respeito à criança que fui.

O acervo original do MCAFD está praticamente intacto, hoje preservado numa caixa de papelão junto da literatura da época, que contava com vários exemplares da Enciclopédia do Automóvel e até com a planta baixa da edificação, que poderá ser reconstruída um dia se eu encontrar uma escrivaninha igual, o que não será fácil.

Os carrinhos não se estragaram. Um minúsculo Karmann-Ghia está sem capota, é verdade, mas o acidente ocorreu há anos, ainda quando do funcionamento do museu, o que levou à redação do parágrafo a do artigo I. Os pequenos calhambeques de plástico verde, salvo engano, eram kits de montar que vinham em caixas de Sucrilhos. O Jaguar prata e a Mercedes dourada faziam parte do Setor Europeu e o Topolino vinho e preto era um dos meus preferidos, embora tivesse perdido os faróis.

É curioso que durante toda minha vida nunca contei a história do glorioso MCAFD para ninguém, um pouco de vergonha da criança meio pretensiosa e metódica que eu era, zeloso daquela coleção como se dela dependesse o futuro da humanidade. Estabelecia regras imaginárias, normas pétreas que norteariam a minha e a vida de todos os habitantes do planeta até o fim dos tempos. Ao menos para o meu terreiro, meu pequeno mundo. Nele, as regras quem escrevia era eu.

Um estranho instinto de preservação que ficou no passado, acredito. No fundo, eu só queria contar histórias que as pessoas ouvissem, e prestassem atenção nelas. Achava importante explicar como aqueles DKWs foram parar no meu museu. Achava importante relatar a origem daquelas miniaturas de carrinhos argentinos aparentemente toscos, mas que tinham sido fruto da minha primeira viagem internacional. Achava importante organizar os fatos e as coisas.

A inspiração para montar meu próprio museu, como explicava o folheto de apresentação da exibição, viera de um museu de verdade visitado muitas vezes nos três anos em que minha família morou no Rio de Janeiro, de 1972 a 1974. Íamos muito a São Paulo nos feriados para visitar avós, tios, primos. No Rio, meu pai comprou uma Belina vermelha que numa dessas primeiras idas a São Paulo foi abalroada por um ônibus na rua Jorge Tibiriçá, uma ladeira íngreme na Vila Mariana. Ela estava parada diante da casa da minha tia Fina – irmã de meu pai – e o ônibus perdeu os freios. Parou na coitada da peruinha Ford. Perda total. A Belina seguinte, verde-maravilha, durou mais tempo.

Como éramos em três irmãos, viajávamos deitados no porta-malas, que se transformava em cama com o banco traseiro rebatido. Meu pai gostava de pegar a Dutra na sexta à noite para ir a São Paulo e voltava de dia, no domingo. Nesses trajetos diurnos, três paradas eram obrigatórias: o Clube dos 500, um restaurante de beira de estrada em Guaratinguetá, a fábrica da Ovomaltine, em Resende, e o museu de carros antigos do colecionador Roberto Lee, em Caçapava. Ali comecei a me apaixonar por carros inapelavelmente. O museu tinha até um Tucker, cuja história foi contada alguns anos atrás numa fantástica série de reportagens da revista Classic Show. E o Maverick que fez o Raid da Integração Nacional em 1973, recentemente recuperado por entusiastas abnegados do modelo da Ford.

A relação com os automóveis de passeio e de competição, porém, já vinha sendo alimentada desde alguns anos antes. Meu pai nos levava com frequência para ver corridas em Interlagos, torcedor que era da carreteira amarela número 18 de Camillo Christófaro, o Lobo do Canindé. Numa dessas provas, em 1967, fui atropelado no autódromo e quase morri. No alto da arquibancada de alvenaria que hoje é chamada de Setor A quando há GP de Fórmula 1, existia uma via de circulação à qual era possível chegar com carros particulares, estacioná-los de frente para a pista e assistir às corridas de dentro deles comendo cachorro-quente ou chupando picolé. O que sei é que me desgarrei de meu avô Emílio, que me conduzia pela mão, atravessei essa rua sem olhar para os lados e um cara num Gordini me acertou em cheio. Tiveram de parar a corrida para que a ambulância de plantão nos boxes cruzasse a pista para me levar ao hospital. Levei dez pontos na cabeça. Tinha 3 anos de idade.

Em 1972, fomos ao primeiro GP do Brasil de Fórmula 1, aquela corrida

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