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Aprendendo com os sonhos
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E-book304 páginas5 horas

Aprendendo com os sonhos

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Sobre este e-book

Este livro foi concebido para mostrar que, através de exercícios práticos, o ser humano pode entrar em contato com a multiplicidade de aspectos revelados pelos sonhos. A partir de sua experiência como coordenadora de Grupos de Vivência de Sonhos, a psicóloga Marion Rauscher Gallabach descreve como os sonhos se manifestam, sua dimensão simbólica, quais os percursos indicados por Jung para sua elaboração e, principalmente, novas formas de se trabalhar com os sonhos que facilitam a compreensão de seu significado pelo próprio sonhador. A riqueza dos relatos das experiências dos participantes dos Grupos de Sonhos ilustra como este trabalho foi significativo para o estabelecimento de um vínculo criativo e transformador para suas vidas. A obra de Marion abre novas perspectivas para o trabalho com os sonhos, levando em conta sua integração com o corpo e demonstrando que cada pessoa pode aprender a dialogar com os próprios sonhos e chegar, dessa forma, a um maior equilíbrio e crescimento pessoal.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento21 de set. de 2021
ISBN9786555623536
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    Aprendendo com os sonhos - Marion Rauscher Gallbach

    AGRADECIMENTOS

    Foram muitas as pessoas que contribuíram, direta ou indiretamente, para a realização deste livro. Gostaria de agradecer especialmente:

    Aos participantes de todos os Grupos de Vivência de Sonhos, pela disposição de compartilhar as experiências com seus sonhos e pelas frutíferas discussões. Aos clientes, alunos, colegas e mestres, pelo muito que me ensinaram.

    A Therezinha Moreira Leite, Doucy Douek, Brigitte Bräunlich, lzabel Ferreira, Eliane Rossi, Valéria Bastos, Fátima Cardillo, Roberto Fernandes, Rodney Taboada, Michelina Jabes, Isabel Labriola, Eliana Davini Rodrigues, Rosa Khoury, Ingrid Rauscher, Claudia Perrotta, Marina Teixeira de Mello, pelo incentivo, sugestões preciosas e valiosa colaboração na revisão do texto.

    A Ruth Ammann, por ceder a foto da entrada da torre de Bollingen.

    À minha família, pelo apoio carinhoso.

    PREFÁCIO

    Estudados desde a antiguidade até nossos dias, os sonhos têm se revelado objeto dos mais diferentes tipos de pesquisa e especulação. Mágicos, adivinhos e esotéricos têm explorado a procura, por vezes angustiada, de pessoas em sofrimento que buscam, nas interpretações adivinhatórias, alívio para seu sofrimento ou indicações de caminhos mais fáceis para o sucesso, o dinheiro e a solução de conflitos amorosos.

    Os antigos egípcios acreditavam que os sonhos evidenciavam forças ocultas e tinham uma natureza premonitória, frequentemente revelando a intencionalidade dos deuses. Era durante os sonhos que poderíamos entrar em contato com os mortos e com os deuses, de modo a tomar conhecimento de nosso destino. Entretanto, a técnica de interpretação era complexa e somente um treino rigoroso e extenso, semelhante ao do sacerdócio, habilitava a interpretação. Os escribas da Dupla Casa da Vida, como eram chamados os intérpretes, viviam em santuários que se tornaram famosos como templos de incubação.

    Deste modo, os egípcios criaram, provavelmente, a primeira forma institucionalizada de observar os sonhos de que se tem notícia. Mas foram os gregos, nos seus templos dedicados ao deus Esculápio, que desenvolveram técnicas sofisticadas de interpretação, usadas tanto no diagnóstico como no tratamento.

    Essas tradições e curiosidades sobre a vida onírica sempre estiveram presentes nas mais diferentes culturas ao longo da história, com maior ou menor ênfase, dependendo do período.

    Foi com esse tema que, no século XX, o mestre S. Freud propôs um estudo que revolucionou a área de psicologia. Seu livro A interpretação dos sonhos é considerado, por muitos, sua obra-prima, criando novos caminhos de investigação.

    Um século se passou entre suas formulações e as mais modernas teorias psicológicas. A escola de C. G. Jung, ao ampliar o campo de investigação psicológica, formulando novos conceitos e novas técnicas de interpretação, tem possibilitado novos caminhos na compreensão da psique.

    E é nesta direção que Marion R. Gallbach traz uma preciosa contribuição.

    Há anos, Marion vem pesquisando a função dos sonhos no desenvolvimento psicológico. Em seu livro Sonhos e gravidez (Paulus Editora), Marion já revela sua capacitação como investigadora da mente, ao trazer à tona um material até então pouco conhecido. Hoje, esse livro é um referencial tanto para estudiosos dos estados psicológicos durante a gravidez quanto para os pesquisadores do inconsciente.

    No livro que agora publica, Marion estende ainda mais sua contribuição propondo soluções para duas questões cruciais dentro da psicologia analítica: como trabalhar mais efetiva e praticamente com os sonhos no mundo moderno, e como trabalhar em grupo, já que o modelo tradicional de terapia individual prolongada já não mais se coaduna com os tempos em que vivemos. Apesar de sabermos o quão valioso pode ser o trabalho grupal na aprendizagem e na percepção intra e intergrupal, são muito raros os trabalhos nesta área.

    Nesse sentido, a contribuição de Marion R. Gallbach é inestimável tanto pela sistematização de um roteiro de observação da vida onírica quanto pelas técnicas inovadoras propostas.

    Sem abrir mão de dados científicos e acadêmicos, Marion brilhantemente dá continuidade à obra de C. G. Jung, descrevendo numa linguagem agradável, direta, as fases de processamento dos sonhos, resultado de anos de trabalho com pacientes e vários grupos de sonhos.

    Ao desenvolver a técnica da Imaginação Corpo-Ativa, Marion incorpora novos conceitos vindos da psicossomática e das técnicas de abordagem corporal, ampliando a possibilidade técnica tanto do profissional terapeuta quanto daqueles leigos que desejam ter mais instrumentos para melhor compreender seu inconsciente. Descrita com clareza, essa técnica: inovadora permite, como eu mesma já testei, um aprofundamento no inconsciente mobilizando com facilidade os símbolos e estabelecendo rapidamente conexões com a consciência. A própria prática dos exercícios já é, em si mesma, terapêutica. E o que é melhor, com um pouco de aprendizagem, qualquer pessoa poderá usufruir dela, aumentando o autoconhecimento e o bem-estar.

    E ainda mais, essa é uma proposta que deve sair das clínicas e consultórios psicológicos e ser levada para as escolas. Tenho certeza de que, se ensinadas às crianças, muito será feito na direção de seu desenvolvimento global, na promoção da saúde, que inclui inevitavelmente o equilíbrio mente-corpo.

    Como Marion bem atesta no seu trabalho, nosso ser é psique/corpo e somente por meio de técnicas integrativas é que poderemos caminhar na promoção global da saúde.

    Esse é um livro que propõe transformações e transforma quem o lê. Sorte nossa termos entre nós uma cientista, humanista e pesquisadora deste gabarito, legítima representante no século XXI dos pioneiros mestres da psicologia!

    Denise Gimenez Ramos

    INTRODUÇÃO

    Dentro de cada um de nós há um outro que não conhecemos. Ele fala conosco através dos sonhos (Jung, 1934, p. 62).

    Desde as mais remotas épocas os homens procuram entender as mensagens ou os significados dessa coisa intrigante, misteriosa e fascinante que são os sonhos. O que tem variado, ao longo do tempo, é a importância atribuída e a compreensão que se tem deles. Se os sonhos são vistos como séries de imagens que aparecem sem sentido, resíduos de memória ativados (ideia comum na neurologia); se têm um sentido para a personalidade do sonhador (conceito da psicologia), ou se são encarados como mensagens místicas, isso demonstra apenas diferentes interpretações, as quais refletem o status ou valorização dados a eles.

    O objetivo deste livro é apresentar formas de trabalho que enriqueçam e permitam uma compreensão e uma elaboração mais completa dos sonhos. Mais do que isso: procuro demonstrar como é possível, através de exercícios e técnicas específicas, não apenas ampliar os subsídios para sua interpretação, mas propiciar a vivência de sua mensagem pelo próprio sonhador. Já que a mensagem do sonho se encontra no interior de cada um, enquanto mensagem única para um sujeito único, então trata-se de criar condições para encontrá-la e compreendê-la.

    Para tal tarefa, retomo os percursos orientados por Jung, bem como caminhos que Jung indicou, mas não trilhou. Mostro alguns trajetos que vale a pena percorrer a pé, ou seja, com mais vagar, resistindo à tentação de alçar vôo em associações, após tocar somente alguns aspectos do sonho. Sistematizo um roteiro de observação acurada e urna proposta de trabalho que visa à elaboração do sonho e dos complexos presentes, o qual denomino processamento do sonho. Os caminhos das pessoas que vivenciaram as experiências ilustram a importância e o benefício de seguir este procedimento.

    A linguagem do sonho é precisa — em sua forma pictórica, simbólica — mas paradoxal, pois pode ter vários sentidos. Deve ser levada a sério, pois a experiência mostra que nela nada é à toa. Sua lógica é afetiva, figurativa. Não é linear, mas dramática, mitológica. Uma de suas funções é, justamente, contrabalançar a racionalidade do pensamento verbal, com um pensamento em imagens, fantástico, mais próximo da lógica dos mitos do que da lógica cartesiana. O sonho é importante por indicar inter-relações não sabidas, mas existentes. Mesmo que pareça fugaz, já que escapa à captação e retenção na memória, ele mobiliza impressões profundas que não podem ser transmitidas verbalmente, mas que o permeiam e deixam sua marca em nós.

    No teatro interior apresentado no sonho, o cenário é tão importante quanto a cena. As ligações entre os vários elementos encontram-se às vezes fragmentadas, pedindo para ainda serem associadas ou compondo uma história fantástica que não compreendemos de imediato. Através dos trabalhos aqui sugeridos, obtemos um vislumbre da sua coerência e da sua lógica. É o que procuramos explicar no capítulo sobre a linguagem profunda dos sonhos.

    Já que estamos lidando com um fenômeno vivo e multifacetado, toda tentativa de apreensão do significado e função do sonho conseguirá apenas captá-los parcialmente. Quando o compreendemos e vivenciamos, comungamos com um aspecto profundo de nós mesmos, recebendo daí sua energia e uma sensação de bem-estar. Recobramos um equilíbrio no qual questões entravadas podem fluir mais soltas e naturalmente.

    Para ajudar essa compreensão, proponho uma maneira de abordar os sonhos via Imaginação Corpo-Ativa que busca estabelecer a relação da imagem do sonho com processos corporais, de tal modo que o significado dos sonhos manifeste-se também no plano dos sentidos, trazendo luz a questões psicossomáticas e permitindo uma integração mais ampla e global. A Vivência Contemplativa dos Sonhos permite experimentarmos a intenção dramática da informação do sonho.

    Voltar um sonho à sua composição e origem, possibilita reconhecer a que configuração específica de elementos se refere aquele conteúdo onírico para, ao integrá-lo à consciência, libertar e deixar fluir o que está entravado. Memórias são reativadas por situações que as tocam ou com as quais ecoam. Situações não resolvidas buscam seu eco na vida para serem solucionadas, pedindo libertação do estado fantasmagórico, inconsciente, no qual só podem se manifestar veladamente. O que vem a ser esta resolução dificilmente é muito lógico, racionalmente - por isso não pode ser previsível.

    Os Grupos de Vivência de Sonhos, que coordeno há quinze anos, têm por meta ensinar aos participantes como trabalhar com seus sonhos. Equivalem a um laboratório, no qual pesquisamos métodos e exercícios que auxiliam o sonhador a compreendê-los. Compreender, aqui, é formulado da maneira mais ampla possível: implica entender seu sentido, realizá-lo, trazê-lo para a vida e deixar que exerça influência sobre ela. Ou seja, colocar uma ordem inteligível, clara, convincente, que deve passar tanto pela razão quanto pelos sentidos, alcançando o máximo de sua eficácia.

    O estudo e a elaboração de sonhos num contexto grupal proporcionam um número maior de experiências por parte dos participantes, tanto como sujeitos quanto como observadores de vários processos oníricos. Por isso mesmo, os Grupos de Vivência de Sonhos têm-se mostrado como uma forma importante do aprendizado, um vaso alquímico para a transformação dos conteúdos oníricos. Daí meu interesse em pesquisar o grupo em sua forma de atuação, bem como as técnicas de trabalho com sonhos experimentadas neles.

    Os exemplos concretos, aqui apresentados, constituem uma ilustração viva do quanto os sonhos estão ligados ao processo de individuação da pessoa que os tem e de quão significativos foram os trabalhos no sentido de colocá-las afinadas com este. Mostram também como foram surpreendentes os resultados obtidos em relação ao que se esperava do sonho, numa primeira observação. A utilização das diversas formas de trabalho nos grupos permite delinear o que elas mobilizam e o que favorecem, em termos de efeito terapêutico e no conhecimento sobre sonhos. Sua importância prática está em abrir mais uma possibilidade de um trabalho terapêutico na linha junguiana, sem perder em profundidade para um processo de análise mais longo.

    Por acreditar no valor deste trabalho, eu o escolhi como tema da minha tese de doutorado. Refletindo sobre o interesse do assunto, decidi transformá-la em um livro, transpondo o texto a uma linguagem mais leve e acessível. Este volume é, portanto, fruto das experiências, reflexões e insights surgidos nos Grupos de Vivência de Sonhos. Meu papel, até no seu relato, é o de coordenadora, já que muitas ideias vieram de integrantes dos grupos, a quem sou muito grata. Minha foi a disposição de compilá-las — de todos, a disposição de compartilhá-las.

    I

    OS SONHOS DE TODOS NÓS

    Os sonhos são natureza pura; eles nos mostram a verdade natural, sem maquiagem, e por isso se prestam, como nada mais, a dar-nos de volta uma atitude que está de acordo com nossa natureza humana básica, quando nossa consciência se desviou demais de seus fundamentos e chegou a um impasse (Jung, 1934, p. 51).

    Sempre que dormimos, entramos em contato com um processo que se manifesta através de ideias, sensações e emoções, imagens e situações que nos surgem, às quais assistimos ou vivenciamos e das quais participamos menos ou mais ativamente. À lembrança desse processo chamamos de sonho. No entanto, não é sempre que nos lembramos de nossos sonhos. Às vezes eles nos comunicam algo, fazem sentido imediato; em outras deparamos com imagens bizarras sem nenhuma lógica ou conexão com nossa vida ou personalidade; em certas ocasiões, ainda, sentimos uma continuidade com outros sonhos que já tivemos.

    O que são os sonhos? De onde vêm? Qual o sentido do processo onírico ao qual retornamos sempre que dormimos?

    Uma característica do sonho é a espontaneidade de seu surgimento e a falta de direcionamento por parte da consciência. Ele é fruto de um processo involuntário que ocorre num estado de consciência relaxado e não focalizado. Suas raízes se encontram no substrato escuro e desconhecido que, por isso, é chamado de inconsciente. Porém, o sonho não se caracteriza pela inconsciência total, pois parece ocorrer num estado limiar no qual há um resíduo de consciência e de percepção.

    O mesmo processo que caracteriza o sonho também ocorre durante a vigília. É o caso das alucinações e fantasias, às quais geralmente nos referimos como sonhar acordado (daydreaming). Nelas, também, as imagens, percepções e ideias surgem de maneira espontânea, independentemente de uma participação ativa intencional da pessoa que, assim como ocorre no sonho, assiste a elas ou é levada a delas participar.

    O processo psíquico inconsciente ocorre continuamente. Porém, durante o sono, esse processo torna-se mais ativo, tem mais energia, exterioriza-se na consciência. O sonho lembrado é um ponto de encontro, uma ligação que promove o contato e a inter-relação da consciência com seu substrato inconsciente.

    O que vemos ou vivenciamos nos sonhos tem continuidade e influência sobre nossa vida desperta. Às vezes, por exemplo, vamos dormir com uma ideia ou uma visão de certos acontecimentos, e acordamos com outra; há sonhos que modificam nosso estado de humor, ou que trazem à tona fatos que havíamos esquecido ou reprimido, e que se mostram importantes naquele momento da vida. Muitas vezes, também, um sonho traz explicitamente a solução de um problema que antes parecia insolúvel. O estado de vigília continua durante o sonho e é capaz de influenciá-lo. Isso pode ocorrer de forma clara, através dos restos diurnos — impressões e lembranças do dia anterior que voltam de forma mais ou menos distorcida, sendo elaboradas durante o sonho — ou mais obscura, o que requer um esforço maior de associações para se perceber alguma relação entre vigília e sonho.

    Nossa vida e nossa história se constroem nos dias em que estamos acordados e nas noites em que dormimos e sonhamos. Mesmo quando não são interpretados os sonhos têm efeito sobre a consciência de vigília. Hall (1983) acredita que, observando o impacto de sonhos não interpretados, é possível inferir que, mesmo quando não recordados, eles são parte vital da vida total da psique. Isto parece corroborado pelas pesquisas de privação de sono REM realizadas em laboratórios. Houzel (1972) cita estudos nos quais os sujeitos são sistematicamente acordados quando se encontram na fase REM. Tal privação acarreta distúrbios de comportamento e de atenção, maior irritabilidade e, às vezes, até alucinações em vigília. Nas noites subsequentes ao experimento, as pessoas passam a maior parte do sono em estágios REM — o que comprova a necessidade de se recuperar os REM que não foram vividos.

    Se para Freud a função do sonho era a manutenção do sono, ou seja, sonhamos para dormir, com base nessas pesquisas de privação podemos chegar a uma afirmação inversa: dormimos para sonhar. Elas apontam para a importância que têm para nós o sono e os períodos de sonho que se repetem, como parte do ciclo da vida. Também levantam a questão de que não se pode dissociar a vigília do sono, focalizando-se unilateralmente as atuações da vigília — uma vez que o sono teria a função de garantir o estado em que outra elaboração, a do sonho, teria a sua vez de ocorrer. Nesse sentido, podemos dizer que o sono é o guardião do sonho.

    Sabe-se, através dos estudos em laboratórios, que os sonhos são um fenômeno ativo que se desencadeia em intervalos regulares e cíclicos durante o sono, e que as fases do sonho são importantes não somente para o sono, como também para a vida de vigília. Essas pesquisas levaram Dement & Kleitman (1957) a uma definição do sonho através de sua correlação com os estágios REM do sono, constituídos de características físicas e fisiológicas específicas. Diferencia-se, então, o sonho propriamente dito — a atividade mental que ocorre nas fases REM do sono — do estado hipnagógico, o qual propicia a passagem da vigília ao sono, e do estado hipnopômpico, que ocorre quando acordamos e no qual se verifica uma passagem para imagens que têm maior relação com a vigília.

    Essas diferenciações, porém, nem sempre são possíveis se estudamos o sonho enquanto fenômeno vivenciado e relatado por pessoas. Tem-se a lembrança de vivências ou imagens que ocorreram, sejam de menor ou maior duração, menos ou mais lógicas, menos ou mais ligadas à vida da vigília, mas não se pode precisar em que momento do sono ocorreram.

    Já que a atividade cerebral que se segue à ocorrência dos sonhos pôde ser detectada e registrada em laboratórios, pode-se afirmar que, mesmo quando não lembrados,¹ sonhos ocorrem para a maioria das pessoas. No entanto, para efeito de uma investigação psicológica, podemos apenas contar com os que são lembrados, o que traz maior complexidade ao seu estudo.

    Nunca teremos acesso ao sonho em si — somente à sua lembrança enquanto imagens, ideias, sensações, emoções, impressões. É na comunicação com um outro que o sonho aparece sob a forma de história. Essa narrativa, porém, não é o próprio sonho. De certa forma, ela corresponde a uma tradução, compartilhada socialmente, na qual destilam-se certas características mais ligadas à estrutura verbal, em detrimento de outras relativas à vivência imediata e a aspectos irracionais, difíceis de ser verbalizados.

    A abordagem junguiana se utiliza muito dos sonhos nos processos de análise. É comum que pacientes, no início da terapia, não se lembrem de seus sonhos e, no decorrer do processo terapêutico, estes sejam lembrados com maior facilidade. Isso está relacionado, a meu ver, com uma maior abertura para os processos psíquicos internos e atenção a esses conteúdos, principalmente por terem se tornado mais significativos, dada a possibilidade de compartilhá-los com um outro, que é o analista.

    Partindo do pressuposto que o sonho é multifacetado, é importante não prendê-lo a uma definição única que reduza seus sentidos e funções. É preciso, num primeiro momento, percebê-lo em si mesmo, sem recorrer a elementos externos.

    Quando, como analistas e pesquisadores, trabalhamos com sonhos de outras pessoas, somente temos acesso ao relato do sonho. Isto é, à sua forma verbal de expressão. A situação analítica privilegia a escuta — treina-se ouvir o manifesto e o latente. Afia-se essa forma de percepção em detrimento de outras. No entanto, quando é o próprio sonhador que efetua a observação de pesquisa, como ocorre no trabalho aqui proposto, ele também tem acesso à imagem e à vivência do sonho. O foco de estudo amplia-se do relato para o sonho lembrado pelo sonhador em suas várias dimensões: a narrativa, a imagem e a vivência.

    Como o sonho se manifesta

    Narrativa

    Os sonhos nos mobilizam e trazem informações. São elementos de comunicação do inconsciente na dialética do processo psicológico do indivíduo. Na medida em que são lembrados e relatados, têm esta característica de serem ou aparecerem na forma de história, regidos por relações de temporalidade (antes e depois), lógica

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