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A construção estética da subjetividade: diante do abismo de si
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E-book349 páginas4 horas

A construção estética da subjetividade: diante do abismo de si

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Sobre este e-book

Na perspectiva da construção estética do sujeito, podemos afirmar que o mundo da consciência como narrativa autobiográfica é o das formas estáveis. Há, no entanto, uma tensão oscilatória entre a continuidade do logos/linguagem na narrativa do eu autobiográfico da consciência comum e a descontinuidade de uma experiência intensiva que remete a um eu pontual, que é irredutível em sua opacidade estética. A forma visual que mais adequadamente expressa essa oscilação do contínuo ao descontínuo, da metonímia à metáfora, do diacrônico ao sincrônico, é a estrutura dinâmica de uma onda eletromagnética na qual os vales e cristas se unem em constante oscilação e produzem as várias cores do espectro luminoso. No momento presente, ocorre a experiência vívida e descontínua do eu produtor de metáforas. Essa experiência pontual da consciência estética é como um salto do sujeito no abismo de sua mortalidade. É no presente do eu pontual que vivenciamos o colapso e ruptura da narrativa e da continuidade histórica do passado e do futuro.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento16 de dez. de 2022
ISBN9786525263885
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    A construção estética da subjetividade - Roberto Márcio Starling

    I. INTRODUÇÃO: A RADICALIZAÇÃO NIILISTA DA HERMENÊUTICA

    Inicio meu trabalho com uma breve reconstrução dos filósofos canônicos para Vattimo, a saber, Nietzsche e Heidegger a partir dos quais ele vai estabelecer as bases de sua ontologia da atualidade e desenvolver uma radicalização niilista da hermenêutica. A hermenêutica que se desenvolve no eixo e limites definidos por Heidegger/Gadamer é, para Vattimo, a filosofia do nosso tempo, assim como foram nos anos 50/60 o marxismo e nos anos 70 o estruturalismo. Sendo o idioma comum (koiné), em torno do qual, ao condensar os principais motivos do pensamento pós-metafísico, se unem nomes das mais diversas correntes filosóficas tais como Habermas¹, Apel², Rorty³, Foucault⁴, Derrida, Lévinas⁵, e Ricoeur⁶, a hermenêutica tem como seus aspectos constitutivos a ontologia e a linguísticidade e como o próprio termo indica é teoria da interpretação generalizada, ou em outras palavras aquela que afirma que toda experiência humana do mundo é uma experiência interpretativa.⁷ Dentre seus principais temas podemos destacar o caráter circular de todo ato de compreensão/interpretação que, portanto, implica uma subjetividade situada histórica e ideologicamente que por sua vez nos remete à inevitabilidade dos pré-conceitos e a impossibilidade da neutralidade valorativa ou ideológica do sujeito.⁸

    O que Vattimo declaradamente pretende é uma radicalização niilista da hermenêutica. O que exatamente vem a ser isso? Vattimo recorre constantemente à afirmação nietzscheana de que não há fatos só interpretações, inclusive esta afirmação, como não poderia deixar de ser, deve ser entendida como uma interpretação.⁹ Este reconhecimento do caráter interpretativo da verdade, e em ultima instância da própria realidade, afirma, simultânea e necessariamente, que toda a interpretação é historicamente situada e, portanto, não se pode pretender "como descrição de uma estrutura objetiva qualquer do existir.¹⁰ É neste sentido que o anúncio nietzscheano da morte de Deus deve ser entendido não como uma constatação objetiva de um fato, ou seja, como a enunciação da tese metafísica da sua não existência objetiva, mas, pelo contrário, como uma interpretação arriscada que marca na sociedade moderna o advento do niilismo como a desvalorização dos valores supremos. "

    Se toda interpretação é por sua vez uma manifestação da vontade de potência, não devemos nos esquecer que, para Nietzsche e também para Vattimo, vontade de potência é vontade de arte e interpretação resultantes de eventos histórico-culturais, eles próprios eventos interpretativos, nos quais nos inserimos e pelos quais somos interpelados. O espírito de vingança, enfermidade daqueles que ficaram encadeados por muito tempo a valores esclerosados, pode também ser gerado pela própria vontade de potência reificada e apoiar-se em uma visão fundacionista onde a autoridade se nos impõe como a evidência indiscutível do ser como presença plena. Produzem-se, então, as estruturas metafísicas, que no terreno das instituições se manifestam como o patriarcalismo e suas as hierarquias disciplinadoras carregadas de violência e intolerância que imperam na cultura e na sociedade. A proposta de Vattimo, inspirado em sua interpretação da filosofia nietzschiana e da época atual como a do final da metafísica e do despregar-se da técnica e da ciência na sociedade de informação generalizada, é que assumamos a liberação do simbólico¹¹ como princípio diretor de uma ontologia hermenêutica da atualidade. A liberação do simbólico dissolve o princípio de realidade, montado sobre as estruturas fortes da metafísica que afirmam a verdade como evidência/presença do ser e sua representação/enunciação. A derrocada do domínio das estruturas metafísicas do mundo da racionalidade platônico-cristã¹² nos liberta do espírito de vingança que nos prende à separação dualista do valor e do fato, da essência e da existência do ser e do significado. Esta prisão em seu momento atual de consumação como mundo da organização total, no entanto, apresenta-se de forma ambígua e paradoxal ao abrir-nos a oportunidade de evasão a partir de seus próprios meios de coerção e julgo.

    Se a modernidade, ao racionalizar e desencantar as visões de mundo míticas religiosas e metafísicas desvaloriza os valores supremos em uma história do ser interpretada niilisticamente (segundo Nietzsche, mas também segundo Heidegger) a verdade da hermenêutica não pode mais ser única e exclusivamente, pensada/experimentada em termos de correspondência enunciado estado de coisas. Devemos experimentar a verdade da hermenêutica como uma abertura mais originária que nos remete/envia, em termos Wittgensteinianos¹³, a diferentes formas de vida, a diferentes horizontes de compreensão e eventos histórico-culturais. A hermenêutica niilista assume-se, por isso mesmo, como processo de fabulação,¹⁴ narrativa persuasiva e coerente da modernidade como proveniência histórico destinal da história do esquecimento do ser e sua consumação no mundo da tecnociência e da organização total. Neste mundo secularizado onde o princípio da realidade, lido segundo as categorias lógico-linguísticas da metafísica, se enfraquecem a hermenêutica aparece como acontecer do niilismo.¹⁵


    1 HABERMAS, Jürgen. El discurso filosófico de la modernidad. (1989).Sobre Derrida ver capítulo 7: crítica de Derrida ao fonocentrismo.

    2 APEL, K.Otto. La transformación de la filosofía I e II. (1985).

    3 RORTY, Richard. A filosofia e o espelho da natureza. (1988)

    4 RABINOW, Paul. Michel Foucault: uma trajetória filosófica. (1995).

    5 LÉVINAS, Emmanuel. Totalidade e infinito. (2000).

    6 RICOEUR, Paul. A metáfora viva. (2000).

    7 VATTIMO, Gianni. Más Allá de la interpretación. (1995). p.40

    8 Se puede, en efecto, pensar – todavía con Heidegger – que toda experiencia de verdad es una articulación interpretativa de una precomprensión en la que nos encontramos por el hecho mismo de existir como seres-en-el-mundo; pero no creer que la precomprensión sea estructural, constitutiva de nuestra humanidad como tal, de la razón igual para todos, etc – como son constitutivas las formas a priori del trascendental kantiano. VATTIMO, GIANNI. Más allá de la interpretación (1995). p. 42.

    9 Ibídem, p.44.

    10 VATTIMO, Gianni. Más Allá de la interpretación (1995). p. 45.

    11 A liberação do simbólico, como veremos no 1º capítulo de nossa tese, é tema constante do discurso vattimiano podendo ser encontrado ao longo de toda sua obra desde o trabalho sobre Nietzsche O sujeito e a máscara até suas obras mais recentes sobre o cristianismo. Através deste conceito buscamos demonstrar a unidade e pertinência do modelo estético na formação da subjetividade e sua influência generalizada na cultura das sociedades de informação generalizada.

    12 Devemos atentar para a diferença entre um cristianismo dogmaticamente interpretado e um cristianismo interpretado no quadro de uma hermenêutica niilista como quer Vattimo. Discorrerei sobre esta interpretação niilista do cristianismo no tópico sobre a religião.

    13 WITTGENSTEIN, Ludwig. Investigações filosóficas. (1982)

    14 "(...) el ‘mundo verdadero’ se convierte en fábula (como dice el título de un famoso capítulo del Crepúsculo de los ídolos) no deja de hecho sitio a una verdad más profunda y digna de consideración; deja sitio al juego de las interpretaciones, que se presenta filosóficamente, a su vez, sólo como una interpretación." VATTIMO, Gianni. Más Allá de la interpretación (1995). p.44, 45.

    15 Ibídem, p.45.

    II. NIILISMO CONSUMADO E COLAPSO DO PRINCÍPIO DE REALIDADE

    Este caráter abrangente que o discurso hermenêutico assumiu na nossa época levou a que algumas de suas teses principais fossem tomadas como senso comum até mesmo por correntes rivais. As teses hermenêuticas, acima referidas, da historicidade radical de todas as teorias, a impossibilidade de um ponto de vista neutro e destituído de preconceitos nos campos do conhecimento, etc, foram trivializadas¹⁶ e por isso mesmo tornaram-se vagas, e imprecisas demais correndo o risco de perderem seu sentido propriamente filosófico. À perda de precisão do seu sentido filosófico e à ameaça de relativismo a que se expõem as teses hermenêuticas são mais um motivo para radicalizá-las no sentido niilista¹⁷. O itinerário filosófico calcado sobre as bases do pensamento hermenêutico desenvolvido, no sentido ontológico, por Heidegger e urbanizado, no sentido linguístico, por Gadamer,¹⁸ é submetido à radicalidade do pensamento niilista nietzschiano. A radicalização niilista da hermenêutica, como desvalorização dos valores supremos, se completa na abordagem heideggeriana, da época atual como a época do final da metafísica. A hermenêutica mostra assim ser a filosofia insuperável de nosso tempo. É este nexo vital entre a hermenêutica e nosso tempo que leva Vattimo a nomear de ontologia da atualidade o seu empreendimento filosófico. Este termo é hoje usado preferencialmente a pensamento fraco que se prestava a inevitáveis equívocos e carregava consigo uma carga pejorativa ao se atribuir maliciosamente mais ao pensamento (especialmente o do próprio autor) algo que é, na sua ontologia do declínio, característica do ser mesmo.

    Portanto trata-se de reconhecer a vocação niilista da hermenêutica e ver nela a ontologia da época final da metafísica. Ao mesmo tempo em que reconhecemos esta vocação somos convocados a assumir o papel do niilista consumado¹⁹ de Nietzsche. O niilismo é tomado em um duplo sentido nietzschiano e heideggeriano na medida em que o "rolar do homem do centro para o X" só é possível porque "do ser não resta mais nada".²⁰ No seu livro O fim da modernidade, ao traduzir o niilismo em termos de valor de uso e valor de troca Vattimo o define, heideggerianamente, como a "redução do ser a valor de troca. ²¹ Onde não há valor supremo (Deus), os valores aparecem em sua potencialidade vertiginosa" de se converterem em outros valores indefinidamente.

    Para Vattimo o século XIX só pôde responder ao advento do niilismo como destino da cultura com posições nostálgicas e restauradoras da normatividade do valor de uso, por exemplo, nas posições marxistas que são consideradas por ele como manifestações do que Nietzsche classificava de niilismo reativo. A importância central que a temática da interpretação possui na hermenêutica e que "parece revelar uma atitude defensiva de uma zona em que ainda vige o valor de uso, ou, em todo caso, que escapa da pura lógica quantitativa do valor de troca"²² não deveria, no entanto, ser entendida apenas como mais uma tentativa de reapropriação levada a efeito por um niilismo reativo. Considerada a polêmica metodológica, entre as ciências naturais e as ciências do espírito, que marca o século XX esta necessidade de recuperar o valor de uso se fez sentir também na fenomenologia e no primeiro existencialismo²³. Vattimo, contudo não se furta a criticar estas tendências de idealizar o valor de uso como uma "resistência à consumação do niilismo"²⁴ que representariam, no seu entender, muito mais a retaguarda do que a vanguarda deste movimento. Esta, pelo contrário, estaria representada pela posição heideggeriana de assumir o Gestell, a imposição da tecnociência atual, como acontecimento planetário que ao consumar o niilismo expressa-o também como nossa chance de remissão expropriativa (Verwindung) da metafísica.

    Para Vattimo a perspectiva meramente reapropriativa acaba por se tornar supérflua assim como o Deus moral do cristianismo, morto, afinal, pelos próprios crentes. O valor de uso não pode querer ser um valor último sob o preço de tornar-se refém de uma regressão mítico-nostálgica já que o niilismo consumado afirma a superfluidade dos valores últimos. O processo de desrealização leva simultaneamente ao colapso do ontos on metafísico quando atribui ao real o caráter de fabulação que não pode, portanto, conservar as características fortes do ser metafísico.²⁵

    O mundo em que a verdade tornou-se fábula é, de fato, o lugar de uma experiência que não é ‘mais autêntica’ do que a experiência aberta pela metafísica. Essa experiência não é mais autêntica porque a autenticidade mesma – o próprio, a reapropriação – desvaneceu com a morte de Deus. ²⁶


    16 A trivialização e ao caráter vago e impreciso das teses hermenêuticas, embora me pareçam fazer parte da própria característica da ontologia hermenêutica como Vattimo a entende a partir de sua interpretação niilista calcada em uma ontologia do declínio como marca de uma ontologia da atualidade, serão discutidas em outra parte deste trabalho.

    17 No meu entender a melhor defesa seria justamente mostrar que através de uma lógica niilista a perda do statuto filosófico destas teses não é algo a ser evitado, pelo contrário é mais um traço do debilitamento das estruturas do pensar metafísico.

    18 VATTIMO, Gianni. Más Allá de la interpretación (1995). p.39.

    19 O niilista consumado é aquele que compreendeu que o niilismo é sua única chance. O que acontece hoje em relação ao niilismo é o seguinte: começamos a ser, a poder ser, niilistas consumados. VATTIMO, Gianni. O fim da modernidade, p. 4.

    20 Ibídem, p.4.

    21 A redução do ser a valor, sem qualificar este valor como valor de troca, põe no sujeito o poder sobre o ser, o que levou Adorno a criticar a posição heideggeriana como uma simples inversão da relação sujeito-objeto, voltando a conferir ao objeto a primazia sobre o sujeito. VATTIMO, Gianni. O fim da modernidade, p. 5.

    22 Ibídem, p.7.

    23 HEIDEGGER, Martin. Ser e tempo. (1990).

    24 A tradição analítica anglo-saxã do "místico Wittgensteiniano é também considerada como parte desta corrente reativa. Contudo, se o místico for entendido como vivência pessoal que enfatiza mais o estado do sujeito do que o do objeto no sentido do juízo estético kantiano, creio que possa ser aproximado das posições defendidas por Vattimo. A experiência do niilismo consumado não é, porém, uma experiência de plenitude e glória, de ontos on, apenas desligada dos pretensos valores últimos e referida, em vez disso, de modo emancipado, aos valores que a tradição metafísica sempre considerou baixos e ignóbeis e que assim seriam resgatados para sua verdadeira dignidade. " O fim da modernidade, p. 8 e 9.

    25 Vattimo aponta, na obra citada acima, para os perigos do niilismo contemporâneo ao se referir ao Gilles Deleuze de Diferença e repetição e sua glorificação do simulacro.

    26 VATTIMO, Gianni. O.C., p. 11.

    III. É NECESSÁRIO CONTINUAR SONHANDO...

    A nostalgia do valor de uso, que ocorre na crítica marxista à reificação do homem e à fetichização da mercadoria, e seus corolários frankfurtianos da crítica da cultura de massas, ainda representam um processo reativo e nostálgico de reapropriação do antigo mundo do ser como presença plena da metafísica. Também não respondem adequadamente aos apelos de uma nova época, em que o ser se apresenta como debilitamento, os ideais de formação (Bildung) humanística da cultura. O apelo do ser – o evento histórico da sociedade de informação generalizada – a uma nova experiência do humano não seria de todo ouvido por este tipo de niilismo reativo, de um Adorno²⁷, por exemplo, mas também de um Lévinas²⁸, Derrida²⁹ e Deleuze³⁰, que se manteriam, pelo menos em parte, surdos ao kairós do niilismo consumado. Não perceberiam na vertiginosa circularidade do niilismo consumado que:

    "(...) a reificação geral, a redução de tudo a valor de troca, é precisamente o mundo transformado em fábula. Esforçar-se para restabelecer um ‘próprio’ contra essa dissolução é sempre ainda niilismo reativo, esforço para derrubar o domínio do objeto, estabelecendo um domínio do sujeito que, no entanto, se configura reativamente com as mesmas características de força coercitiva próprias da objetividade"³¹

    O capitalismo mundializado e sua lógica objetivante do valor de troca trans-propria-se,³² no interior mais abrangente da lógica niilista, em transmissão e interpretação de mensagens, para as quais Vattimo propõe uma transvaloração estética do valor de troca, em valor de uso (no sentido fraco) como retórica e fabulação, não em um jogo livre, e supostamente desinteressado, das trocas simbólicas (da publicidade e da propaganda, por exemplo), mas no conflito de interpretações e da liberação do simbólico da coerção da racionalidade metafísica produtora, afinal, do capitalismo mundializado e da sua lógica da objetivação. O valor de troca ao ser apropriado/expropriado pela linguagem midiática, onde o caráter de narração e fabulação é exagerado, liga-se ao logos objetivante e representativo de uma maneira distorcida ao evidenciar como nele também se entrelaçam mensagens de tradições passadas e de outras culturas inserindo no interior mesmo do logos objetivante o seu processo de desrealização.³³ O processo de desrealização é inserido em uma ontologia do declínio que paradoxalmente revitaliza/desvitaliza, através da secularização, alguns valores da tradição metafísica.³⁴

    O imaginário social não deve ser pensado apenas em termos de reificação e alienação, podemos, e talvez devamos procurar nele a mobilidade característica da liberação do simbólico. Nas novas técnicas, que também são mensagens transmitidas, abrem-se novas possibilidades do simbólico e com elas novos espaços de liberdade e autonomia.³⁵ No nosso longo adeus a metafísica a escuta do apelo da técnica e dos novos modos de vida das sociedades de comunicação generalizada não pode ser ignorado. O que não significa um abandono inconsequente aos imperativos da sociedade de controle total e sua indústria cultural. Cabe a nós, individual e socialmente, determinarmos o teor de nossa resposta não nos deixando levar, contudo pelo mito da técnica desumanizante. Na perspectiva de uma ética da interpretação - conscientes de sua proveniência de uma tradição cristã ainda que não religiosa, onde o interesse seja a liberação do instinto de sobrevivência e a adoção do ideal da piedade.

    O núcleo da hermenêutica niilista pode ser compreendido exemplarmente a partir de duas metáforas explicitadoras do pensamento dos dois grandes referenciais teóricos do pensamento de Vattimo que são Nietzsche e a metáfora da morte de Deus e Heidegger e a imagem não menos sugestiva do fim da metafísica ou da metafísica como história do esquecimento do ser. Estes são, no entender de Vattimo, os pensadores que nos fizeram representarmo-nos como pessoas da época do final da metafísica e por isso mesmo os mais indicados para nos apontar possíveis caminhos de evasão do pensamento e do modo de vida metafísico o que terá como consequência a formação de um modelo estético de subjetividade, tese central desse trabalho.


    27 ADORNO, Theodor. Dialética do esclarecimento, (1985).

    28 LEVINAS, Emmanuel. Totalidade e infinito, (2000).

    29 DERRIDA, Jaques. Marges de la philosophie, (1972).

    30 ALLIEZ, Eric. Gilles Deleuze: uma vida filosófica. (2000).

    31 VATTIMO, Gianni. O fim da modernidade, p. 12 e 13.

    32 Com relação a transpropriação, no original em italiano: traspropiazone, acredito poder conferir-lhe um sentido mais preciso no tópico sobre a lógica do niilismo.

    33 "A mídia, portanto, não é apenas perversão ideológica, mas antes uma declinação vertiginosa dessa mesma tradição. " VATTIMO, Gianni, O.C. p. 13.

    34 Como por exemplo, a caridade cristã como veremos mais detidamente no tópico sobre a religião.

    35 A este propósito Vattimo cita Marcuse em Eros e civilização onde ele propõe a liberação da repressão adicional em busca de uma vida onde a civilização e o erotismo não seriam contrapostos. "A ‘desrealização’ do mundo pode não caminhar apenas na direção da rigidez do imaginário, do estabelecimento de novos ‘valores supremos’, mas dirigir-se, ao contrário, para a mobilidade do simbólico. " VATTIMO, Gianni. O fim da modernidade (1996). p. 14.

    IV. A MORTE DE DEUS COMO AFIRMAÇÃO DO CARÁTER INTERPRETATIVO DA EXPERIÊNCIA

    O anúncio nietzschiano da Morte de Deus, marca a um só tempo a desvalorização dos valores supremos atribuídos às categorias fortes da metafísica e a explicitação do caráter interpretativo de toda experiência. As categorias fortes que estruturavam nossa compreensão do conjunto do existente entendido como presença plena, objetividade, evidência, subjectum, hypokeimenon, verdade e fundamento último se debilitam. Estas categorias funcionam como a base do mecanismo argumentativo que se impõem como princípio de razão suficiente no modelo ontoteológico da subjetividade metafísica. São para Nietzsche as estruturas asseguradoras capazes de dominar e neutralizar o medo da finitude e da mortalidade inerentes à existência, dando à impermanência e caducidade da vida um sentido de permanência e estabilidade transcendentes. O anúncio da Morte de Deus nos alerta e nos faz compreender a lógica constitutiva do pensar segundo o modo de vida metafísico da cultura ocidental desde Platão, e só se torna possível na época do fim da metafísica, no momento de sua consumação na tecnociência atual. No entanto, a morte de Deus não deve ser entendida como um fato, mas somente como uma interpretação de nossa proveniência cultural capaz de dar um sentido a nossa condição histórica atual expressa de forma convincente e plausível por uma ontologia hermenêutica que assume inteiramente sua vocação niilista.

    A desvalorização da verdade e dos valores supremos é anunciada como a condição irrecusável de nossa época, do fim/consumação da subjetividade modelada na metafísica e a instituição de uma subjetividade pautada no modelo estético expressivo. Mas, também com o fim da verdade fica vago o lugar da objetividade³⁶. Vattimo vai perseguir o nexo entre ausência de objetividade e caráter interpretativo de toda experiência humana. Não há fatos só interpretações. Esta perda dos referenciais e dos valores supremos é interpretada no plano ontológico e epistemológico como o colapso da ideia de fundamento e de realidade objetiva (expressa pelos termos: dados e fatos das ontologias regionais do empirismo). No plano ético este processo de desfundação leva ao declínio dos valores supremos que se impunham permanente e inelutavelmente a nós como absolutos. Assumir o niilismo equivale, para Vattimo, a não ceder à tentação de reeditar novas formas de fundacionismo mitigado como, por exemplo, o neo transcendentalismo ao modo de Apel³⁷ e Habermas³⁸.


    36 Temos aqui um dos problemas mais graves da filosofia de Vattimo, visto não podermos prescindir da objetividade, ou seja, de alguma maneira da verdade como correspondência.

    37 APEL, K.Otto. Estudos de moral Moderna. (1994).

    38 ARAUJO, Manfredo. Reviravolta linguístico-pragmática na filosofia contemporânea. (1996).

    V. FIM DA METAFÍSICA E ESQUECIMENTO DO SER

    A partir do niilismo nietzschiano, Vattimo se coloca contra a letra dos textos heideggeriano e afirma que a busca iniciada em ser e tempo não nos encaminha para a superação do niilismo, senão para experimentar o niilismo como a única via possível da ontologia (Mais além do sujeito) Vattimo faz uma interpretação niilista do pensamento heideggeriano desde a analítica existencial até o giro ( khenre) que vê a metafísica como história do ser. Na perspectiva Hiedeggeriana do fim da metafísica as críticas feitas ao pensamento metafísico não deixaram de se mover dentro do horizonte da lógica interna das suas próprias categorias fortes, sempre buscando um fundamento mais evidente uma adequação mais justa entre os atos de linguagem descritivos e os estados de coisa no mundo aos quais estes descrevem correlatos, no modelo da linguagem, da consciência que representa de forma clara e distinta, e, portanto evidente, seus objetos de conhecimento. Neste sentido o pensamento mais crítico à metafísica que foi o neopositivismo³⁹ não passou de metafísica ontoteológica disfarçada.

    Por outro lado, a reflexão que mais recentemente se afastou dos motivos do pensamento metafísico foi marcada por abordagens ligadas a uma filosofia prática que responde a demandas práticas e ético-vitais e estético expressivas mais que a motivos teóricos e especulativos suscetíveis de forma mais aguda ao domínio do lógos declarativo. O caminho aponta também para um pensamento desconstrucionista⁴⁰ e antifundacionista ou até mesmo desfundacionista antes que aos caminhos clássicos do pensar fundacionista. Tais posições representam para Vattimo, lembrando especialmente Lévinas, uma tentativa de libertação da força violenta do pensamento metafísico que reduz toda a diferença à identidade do uno-todo tomado como fundamento, seja ele o sujeito, a história ou a linguagem ou qualquer outra forma de reedição em termos modernos do ser como presença plena da metafísica.

    A finitude e historicidade do ser-aí, expressão da diferença que marca o que é efêmero e transitório, são ao contrário postos em destaque pelo pensamento Heideggeriano para quem o Dasein é temporal e historicamente pensado⁴¹. O Dasein é projeto lançado. Está suspenso no nada como ser-para-a-morte e é condicionado também pela inevitabilidade da pré-compreensão a qual todo homem necessariamente está sujeito como projeto lançado em uma existência histórica que o antecede e na qual, portanto ele se situa e da qual parte como seu horizonte inicial de interpretação. Vattimo explicita a finitude e historicidade do homem retomando o conceito de decisão antecipadora da morte como tendo a função ontológica de dar ao homem a capacidade de assumir seu passado e ao mesmo tempo seu próprio estar no mundo como projeto, como possibilidade iluminada pela contingência radical do seu próprio fim e, portanto, do caráter ilusório de tudo aquilo que parece definitivo, absoluto e permanente e marca as posições fundacionistas da metafísica. Nosso passado é eleito e fluidificado na medida em que repousa no abismo do não fundamento posto pela possibilidade da morte, do próprio não ser do homem. Deste sentido ontológico da morte, Vattimo infere um sentido mais propriamente ôntico e biológico do devir, da caducidade de todo existir presente na vivência da possibilidade da morte. Afirmando o sentido básico do pensamento de Heidegger substitui as categorias fortes, caracterizadoras do ser, tais como a estabilidade, eternidade e força pelas categorias débeis de finitude, mortalidade, temporalidade.


    39 A crença neopositivista nos fatos atômicos como instâncias empiricamente verificáveis.

    40 Se para Derrida o mais adequado é não falar em absoluto do ser, para Vattimo esta pretensão parece

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