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Temas e dilemas do pós-digital: a voz da política
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E-book392 páginas4 horas

Temas e dilemas do pós-digital: a voz da política

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Sobre este e-book

Finalista do 59º Jabuti na categoria Comunicação

A teoria crítica pode ser uma práxis em si mesma, a teoria como uma maneira de potencializar a sensibilidade e a reflexão. Uma práxis que se manifesta na exposição pública do pensamento. Palavras ditas e escritas são partes materiais da realidade, dotadas do poder brando de agir sobre o mundo psíquico e social nos efeitos que produz. Sobretudo, há que levar o pensamento ao teste do tribunal da experiência, como prescreve o pragmaticismo na sua atração instintiva pelas coisas vivas. Pensar a tecnologia, nesta era do pós-digital, significa implicá-la nas táticas e estratégias do poder. O mundo digital cobra de quem se põe a pensá-lo que esse pensamento esteja mergulhado na prática, na vivência e participação naquilo que esse mundo tem a oferecer e para que possam ser perscrutadas suas ambivalências, paradoxos e contradições. São essas facetas que este livro visou explorar dando voz à política. Deixá-la falar como meio de atravessamento das densas sombras da contemporaneidade. Não se termina um livro. Ele demanda sua continuidade em outros livros do próprio autor, passados e futuros, assim como demanda seu confronto com vozes concordantes e discordantes. O entendimento não vem apenas da simpatia, mas também da discussão. Enquanto a simpatia fala aos afetos, a discussão fala ao intelecto. Que, para o leitor, ambos se unam em uma melodia comum é a expectativa e ambição deste livro. Afinal, o que em nós sente está pensando, já dizia Fernando Pessoa.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento9 de mai. de 2016
ISBN9788534943840
Temas e dilemas do pós-digital: a voz da política

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    Temas e dilemas do pós-digital - Lucia Santaella

    Introdução

    O conhecimento leva dentro de si uma máquina que se mantém em funcionamento por meio do desejo.

    (Deleuze e Guattari)

    Pens ar a tecnologia, nesta era do pós-digital, significa implicá-la nas táticas e estratégias do poder. Mas, para evitar a trajetória fácil das doxas, é preciso adentrar territórios ontológicos, epistemológicos, metodológicos e interpretativos plurais, abertos e inspiradores. É preciso questionar o que nos é dado como verdade e refletir sobre as condições atuais de modo a conceber o horizonte vital que hoje se apresenta. Buscar caminhos que passem longe do saber esterilizado que não pensa sobre si mesmo e não se autocritica. Há boas companhias para isso nas rotas que nos foram e estão sendo apresentadas por pensadores que passaram e têm passado a vida na detecção e denúncia dos filamentos arbitrários do poder não facilmente entrevistos devido à perversa dissimulação que os envolve (capítulos 1, 2 e 3).

    Não se pode escapar de tal tarefa, especialmente em sociedades em pleno transe de conflitos irresolvíveis, muitas vezes mergulhados na crueza e crueldade de embates sangrentos. Isso nos impele a um comprometimento inescapável com o ethos de um pensamento crítico tanto quanto possível autônomo e liberto das modas que se deixam levar pelas marolas do boca a boca. Militar em prol do ethos de uma crítica que não fuja pela tangente preguiçosa de crenças acabadas e enfrente o esforço exploratório da densidade complexa das condições atuais. Isso implica desenvolver um projeto intelectual agudamente sensível ao intolerável das injustiças que nos rodeiam. Ademais, não deixar de expor publicamente, com clareza, mesmo que diáfana, os resultados alcançados pelo esforço de compreender. Nas palavras de Ortega y Gasset, a clareza é a cortesia do filósofo. É uma gentileza com o leitor, mas, certamente, sem escorregar em simplificações que desrespeitam a sua inteligência.

    Como nos lembram Aguilera Portales e González Cruz (2011, p. 10), a teoria crítica pode ser uma práxis em si mesma, a teoria como uma maneira de potencializar a sensibilidade e a reflexão. Há que deixar de menosprezar a importância desse modo de pensar as coisas, pois ele nos encaminha e torna claras situações, acontecimentos, circunstâncias e realidades que a prática por si mesma, como um pragmatismo superficial, não pode explicar. O objetivo maior daqueles cujos projetos intelectuais estão indissoluvelmente ligados à formação educacional e científica dos mais jovens é torná-los pensadores livres, capazes de detectar as ortodoxias e os catecismos disfarçados de conhecimento que não cessam de rondar e tomar assento nos ambientes que frequentamos. Educar um cidadão é cultivá-lo, ensinar-lhe a pensar e raciocinar por si mesmo, libertá-lo da tirania dos costumes, convenções e preconceitos, mostrar-lhe que vive em um mundo hipercomplexo e ajudá-lo a imaginar as visões da realidade do outro, sobretudo dos mais desfavorecidos, os que não têm voz (Aguilera Portales, 2008, p. 36).

    Que a vida teorética seja impassível é a ilusão de todo pregador de um pragmatismo superficial. Para evitar essa superficialidade, torna-se necessário resgatar a ontologia do pensamento. O ato de pensar, no legítimo sentido que deveria ter, não é diálogo silencioso consigo mesmo, mas é, sim, pensamento que, por estar exposto aos ventos cáusticos do real, realiza a práxis do pensar. Uma práxis que se manifesta na exposição pública do pensamento. Palavras ditas e escritas são partes materiais da realidade, dotadas do poder brando de agir sobre o mundo psíquico e social nos efeitos que produz. Sobretudo, há que levar o pensamento ao teste do tribunal da experiência, como prescreve o pragma­ticismo de Charles Sanders Peirce na sua atração instintiva pelas coisas vivas.

    Nos livros anteriores que publiquei pela editora Paulus [1], tratei de seguir pari passu e penetrar fundo na busca de compreensão das aceleradas transformações técnicas, sociais, educacionais e psíquicas introduzidas pela revolução digital. O mundo digital cobra de quem se põe a pensá-lo que esse pensamento esteja mergulhado na prática, na vivência e participação naquilo que esse mundo, que há pouco tempo era chamado de virtual (capítulo 5), tem a oferecer, ou seja, habitá-lo, estar dentro dele com a intimidade de um morador. O ser humano está ganhando muito com a horizontalidade participativa que vem minando as velhas hierarquias comunicacionais. O desenvolvimento da telefonia celular e dos computadores portáteis, que desamarra de forma ainda mais radical os pontos de comunicação da rede, intensificou os processos de desterritorialização. Por não ter centro e cada pedaço poder funcionar de modo relativamente autônomo, a rede continua a operar mesmo com parte dela destruída. Como nenhum ponto da rede é necessário para que os outros pontos se comuniquem, é difícil para a Internet regulamentar ou proibir a comunicação entre eles. Rizoma é o nome que, segundo Deleuze e Guattari, pode-se dar a esse modelo democrático (Hardt e Negri, 2001, p. 320). Nenhuma crítica pode ficar cega a essa dimensão da realidade digital e da penetração de que ela goza na vida dos cidadãos, especialmente dos jovens.

    Entretanto, quanto mais avançamos nas tramas das redes, mais nos damos conta de que nelas ficam expostos, como nunca antes, todos os variados graus intermediários e, sobretudo, os extremos daquilo que a humanidade tem de melhor e o que ela tem de pior. Infelizmente, a bondade tem limites, ao passo que a bestialidade bruta ou tola é ilimitada. Entre esses dois extremos apresentam-se variadas facetas, algumas das quais este livro visou enfrentar. Entre elas, a principal foi a de dar voz à política. Deixá-la falar como meio de atravessamento das densas sombras da contemporaneidade. Uma cruzada tanto quanto possível isenta das paixões ideológicas unidimensionais. Há facetas mergulhadas na escuridão da noite digital (capítulo 2). Outras, mais solares, trazem à cena a voz do artista (capítulo 9), aquele cuja batalha está sempre voltada para o lado de Eros (uma ideia que me acompanha e que já deixei expressa em muitos dos meus escritos). Mesmo quando atravessam as trevas da indignação, os artistas, aqueles que transmutam esteticamente as vozes da política, carregam tochas para iluminar os rumos que podem dignificar o humano (capítulo 8). Outras facetas ainda são aquelas em que a reflexão busca enfrentar os dilemas de que, sob o título de pós-digital, o contemporâneo está recheado. Seguindo Agamben, é nas zonas sombrias que o digital melhor se mostra. Mas, quando se mostra, abre nesgas de luz. É nesse lusco-fusco que os capítulos deste livro buscaram se movimentar. São muitas as questões em aberto para fustigar a reflexão. A contingência impõe-se, afastando o conforto e o fastio de crenças seguras.

    Em Heidegger, a linguagem é a morada do ser. Na continuidade dessa mesma sabedoria, para Agamben a casa da verdade é a linguagem; portanto, dela o filósofo precisa cuidar. Mas, enquanto o filósofo dela cuida, os artistas e poetas com ela fazem experimentos ousados, pois não há como mudar pensamentos cansados sem mudanças na própria materialidade da linguagem. Vem daí a entrada da arte neste livro (capítulos 13 e 14). A agudeza do pensamento político não pode prescindir da escuta e da atenção aos modos como a arte se mostra. É desses entrelaçamentos que os finos fios moleculares da realidade se entretecem.

    Hardt e Negri (ibidem, p. 323) lembram-nos que, em O que é a filosofia, Deleuze e Guattari (1992) argumentam que, na era contemporânea, e no contexto da produção comunicativa e interativa, a construção de conceitos não é apenas uma operação epistemológica, mas igualmente um projeto ontológico. Muito bem lembrado, pois construir conceitos é o que os autores chamam de nomes comuns, que, na interpretação de Hardt e Negri, é uma atividade que combina a inteligência e a ação da multidão, forçando-as a trabalhar juntas. Construir conceitos significa fazer existir, na realidade, um projeto que é uma comunidade. Não existe outra forma de construir conceitos que não seja trabalhando de forma comum. Essa comunalidade é, dos pontos de vista da fenomenologia da produção, da epistemologia do conceito e da prática, um projeto no qual a multidão está completamente emparelhada. Os bens comuns são a encarnação, a produção e a liberação da multidão. Disse Rousseau que a primeira pessoa que desejou um pedaço da natureza como sua possessão exclusiva, e a transformou na forma transcendente da propriedade privada, foi quem inventou o mal. O bem, ao contrário, é aquilo que é de todos.

    O que é um livro, afinal, quando sai da mão do autor e cai no mundo senão um bem comum? Aí está, na brevidade desta introdução, o télos deste livro. Não se termina um livro. Ele demanda sua continuidade em outros livros do próprio autor, passados e futuros, assim como demanda seu confronto com vozes concordantes e discordantes. O entendimento não vem apenas da simpatia, mas também da discussão. Enquanto a simpatia fala aos afetos, a discussão fala ao intelecto. Que, para o leitor, ambos se unam em uma melodia comum é a expectativa e ambição deste livro. Afinal, o que em nós sente está pensando, já dizia Fernando Pessoa.

    1

    Michel Foucault

    o nascimento da biopolítica

    O direito à vida, ao corpo, à saúde, à felicidade, à satisfação das necessidades, o direito de resgatar, além de todas as opressões ou alienações, aquilo que se é e tudo o que se pode ser...

    (Michel Foucault)

    As monumentais obras de Michel Foucault, de Georgio Agamben e de Antonio Negri ocupam longas prateleiras. Especializar-se em cada uma delas é tarefa para muitos anos, dada até mesmo a herança que os dois últimos receberam, entre outros, de Gilles Deleuze e, consequentemente, também de Baruch Spinoza. Portanto, na sua confessada modéstia, este e os dois próximos capítulos visam extrair apenas o que me parece essencial das vozes políticas desses autores, especialmente porque elas voltarão a soar aqui e ali neste livro. Sabe-se que há um sem -número de tradições teóricas e interpretativas da política que se constituem em um cadinho de controvérsias. Nesse emaranhado, Foucault, Agamben e Negri são as vozes de minha escolha, não apenas porque estão gozando de grande prestígio (o que não acontece por acaso, pois a inteligência humana tem seus filtros para extrair a lucidez), mas em razão de afinidades que neles encon tra o meu modo de pensar, o que não significa que, entre eles, não haja discordâncias, como é o caso de Agamben e Negri. Mas a discordância tempera a nossa reflexão aumentando-lhe o sabor.

    A contemporaneidade de Foucault

    A obra de Foucault é sobejamente conhecida e o acesso à sua obra expandiu-se com a publicação, em várias línguas e também em português, de aulas ministradas no Collège de France (Foucault, 1999, 2001a, 2004, 2008, 2010, 2011a, 2014), escritos estes que nos ajudam a relê-lo com enormes ganhos de compreensão. A contemporaneidade de Foucault é constatação indiscutível. Sua atualidade é devida não apenas ao fato de que a publicação de suas aulas vem enriquecendo o acesso ao seu pensamento, mas, sobretudo, porque uma obra permanece viva nos herdeiros que a retomam. O valor de um pensador pode ser medido pela qualidade e excelência daqueles que o repensam. Foucault tem, na atualidade, nada menos do que Agamben, Negri, e também Georges Didi-Huberman, entre outros, como seus sucessores. Isso, sem mencionarmos as marcas que deixou no pensamento de Gilles Deleuze e nas sementes que ambos – Foucault e Deleuze – plantaram na teoria ator-rede de Bruno Latour.

    É bom lembrar que obras fundamentais de Foucault foram traduzidas no Brasil já nos anos 1970, de modo que a penetração do seu pensamento em solo brasileiro já se deu bastante cedo, antes que a onda pós-estruturalista tivesse tomado conta das academias norte-americanas. O que aqui se segue é uma apresentação seletiva dos conceitos de Foucault que possam nos levar a compreender o pensamento de Agamben e de Negri, autores que serão tratados nos dois próximos capítulos, ou seja, em que ponto de desenvolvimento ambos encontraram a obra de Foucault e em que aspectos a levaram adiante.

    A crescente valorização da obra de Foucault não é casual. Seu pensamento funciona, antes de tudo, como um divisor de águas em relação às concepções de poder que o precederam. Ademais, foi o criador dos conceitos de biopoder e biopolítica, cuja relevância hoje se espraia por todas as áreas das humanidades e ciências sociais. Foucault foi um estudioso e seguidor dos pensadores que foram chamados por Ricouer de pensadores da suspeita: Marx, Freud e Nietzsche. O primeiro instaurou a ação e o trabalho como fundadores da ontologia do humano. O segundo minou a pretensão e o orgulho de sermos senhores de nossa consciência. O terceiro fez desabar a secular metafísica transcendental, colocando o humano no palco de sua humanidade (ver Foucault, 1975). Foi nessas fontes que Foucault buscou arsenal para questionar desde as práticas mais triviais do existir social até os mais complexos sistemas de pensamento. Criou assim uma obra incategorizável que transita pela filosofia, psicologia, medicina, psiquiatria, sociologia, antropologia, linguística, semiologia, política e direito, tudo isso engendrado por um método arqueológico do saber e genealógico do poder, este de inspiração nietzschiana.

    As heterotopias do poder

    Em oposição a todas as concepções sobre o poder vigentes no seu tempo, que postulavam uma classe social dominante como detentora exclusiva do poder, para Foucault o poder não vem de um território localizável, alojado em um núcleo central que tudo controla. Assim como o inconsciente que, ao contrário do que se crê, não habita um local determinado, no fundo do poço da alma também o poder é dinâmico, instável, investido de todas as partes do social, por isso heterotópico. Portanto, as noções comumente aceitas de classe dirigente e todos os verbos que a acompanham, tais como dominar, governar, controlar, manipular etc., requerem um exame cuidadoso para se saber

    até onde se exerce o poder, quais etapas e até quais instâncias frequentemente ínfimas, de hierarquia, de controle, de vigilância, de proibições, de constrangimentos. Por toda a parte onde existe o poder, o poder exerce-se. Ninguém propriamente dito é titular do poder; e, no entanto, ele sempre se exerce em certa direção, com uns de um lado e outros do outro; não se sabe quem o tem exatamente, mas se sabe quem não o tem. (Foucault, 2001b, p. 1.181)

    O poder em si não existe, existem relações de poder, muitas vezes difusas, flutuantes, imprecisas, que, nas relações humanas, quaisquer que sejam, amorosas, institucionais ou econômicas, atuam em diversos níveis, sob diferentes formas, de maneira móvel, sutil e múltipla (ibidem, p. 1.538). Levando adiante seus mestres da suspeita, Foucault colocou em dúvida e fez balançar as práticas sociais, institucionais e jurídicas, entre outras, do que decorre a sua ênfase no fato de que quaisquer projetos de ordem política, jurídica, social e, até mesmo, científica estão imersos em um contexto, em um espaço e tempo determinados. Isso os submete a práticas e exercícios específicos do poder de que nem mesmo a produção do conhecimento está isenta devido aos interesses e vontades de poder que também a circunscrevem.

    A ciência produz discursos de saber por meio de dispositivos de poder, de disciplina, de vigilância e controle enquadrados no corpus institucional que, por sua vez, justifica e reproduz suas práticas constantemente; a verdade surge de uma posição privilegiada de poder-saber (Aguilera Portales e González Cruz, 2011, p. 4). Nas palavras de Foucault (1981, p. 137), o que faz com que o poder se sustente, que seja aceito, é simplesmente porque não pesa como potência que diz não, mas que cala de fato, produz coisas, induz o prazer, forma saber, produz discursos, há que considerá-lo como uma rede produtiva que passa através de todo o corpo social em vez de uma instância negativa que tem por função reprimir.

    Portanto, o poder não se restringe a reprimir e castigar, mas dele também depende a produção de saber e de verdade. Por trás do conhecimento, também estão em jogo lutas pelo poder, ou seja, relações de força das quais decorrem efeitos de verdade, ou melhor, racionalizações dos discursos da verdade.

    Se o poder só tivesse a função de reprimir, se agisse apenas por meio da censura, da exclusão, do impedimento, do recalcamento, à maneira de um grande superego, se apenas se exercesse de um modo negativo, ele seria muito frágil. Se ele é forte, é porque produz efeitos positivos a nível do desejo – como se começa a conhecer – e também a nível do saber. O poder, longe de impedir o saber, o produz. (Foucault, 1979, p. 148)

    Foi a atração que o estudo das tramas do poder, incluindo a episteme, atração aliada à prática do método genealógico, que conduziu Foucault, no final de seu trabalho sobre a vontade de saber, no tópico direito de morte e poder sobre a vida ([1976] 1977c, pp. 127-149), a se dar conta daquilo que passou a considerar como biopoder, retomado com mais ênfase no curso ministrado no Collège de France, em 1975-1976, sobre "Il faut défandre la société, traduzido para o português por Em defesa da sociedade" (1999).

    Na segunda aula desse curso, datada de 14 de janeiro de 1976 (1999, pp. 21-35), depois da explicitação das cinco precauções do seu método, Foucault apresentou com clareza cristalina a passagem do poder soberano do feudalismo para o nascimento, nos séculos XVII e XVIII, da biopolítica e do biopoder. Surge aí uma nova mecânica do poder, incompatível com as relações de soberania. Trata-se de uma mecânica que incide sobre os corpos e o que eles fazem, o que permite extrair dos corpos tempo e trabalho em uma forma de poder que se exerce continuamente por vigilância e que pressupõe uma trama cerrada de coerções materiais, garantindo a coesão do corpo social e definindo uma nova economia de poder cujo princípio é o de que se deve ao mesmo tempo fazer que cresçam as forças sujeitadas e a força e eficácia daquilo que as sujeita. O tema continua na aula de 17 de março (ibidem, pp. 201-222). As técnicas que se incumbiam dos corpos buscavam aumentar-lhes a força útil através do exercício, do treinamento etc.. Um poder que, para ser exercido, dependia de vigilância, hierarquias, inspeções, escriturações, relatórios a que Foucault deu o nome de tecnologia disciplinar do trabalho da qual resulta a docilização e disciplinarização dos corpos.

    Do homem-corpo ao homem-vivo

    Contudo, a segunda metade do século XVIII viu surgir outra tecnologia não disciplinar do poder. Sem excluir a anterior, em­­bute-a, integra-a, utiliza-a para nela se implantar, incrustando-se graças à técnica disciplinar prévia. O que se tem é uma nova técnica que opera em outra escala, com outra superfície de suporte e auxiliada por instrumentos totalmente diferentes. Ela se dirige agora não ao homem-corpo, mas ao homem-vivo; no limite, ao homem-espécie. A disciplina tenta reger a multiplicidade dos homens na medida em que essa multiplicidade pode e deve redundar em corpos individuais que devem ser vigiados, treinados, utilizados, eventualmente punidos. A nova técnica, por sua vez, dirige-se à multiplicidade dos homens, não na medida em que eles se resumem em corpos, mas na medida em que ela forma, ao contrário, uma massa global, afetada por processos de conjunto que são próprios da vida, que são processos como o nascimento, a morte, a produção, a doença etc. (ibidem, p. 204). Isso levou à introdução da medicina com função de higiene pública e de controle das populações. Também no início do século XIX a velhice entrou no campo de intervenção do biopoder, trazendo consigo instituições de assistência e mecanismos como seguros, poupanças etc. A isso se acresce o domínio das relações entre a espécie humana e seu meio de existência, o geográfico, aqueles criados pelo homem, as raças etc.

    Assim, resumindo, a partir do século XVII o poder passou a assumir a tarefa de gerir a vida com base em duas formas principais não antitéticas como dois polos de desenvolvimento interligados por feixes intermediários de relações:

    O primeiro a ser formado, ao que parece, centrou-se no corpo como máquina: no seu adestramento, na ampliação de suas aptidões, na extorsão de suas forças, no crescimento paralelo de sua utilidade e docilidade, na sua integração em sistemas de controle eficazes e econômicos – tudo isso assegurado por procedimentos de poder que caracterizam as disciplinas: anátomo-política do corpo humano. O segundo, que se formou um pouco mais tarde, por volta da metade do século XVIII, centrou-se no corpo-espécie, no corpo transpassado pela mecânica do ser vivo e como suporte dos processos biológicos: a proliferação, os nascimentos e a mortalidade, o nível de saúde, a duração da vida, a longevidade, com todas as condições que podem fazê-los variar; tais processos são assumidos mediante toda uma série de intervenções e controles reguladores: uma biopolítica das populações. (Foucault, 1977c, p. 131)

    Abriu-se com isso a era do biopoder, cujas duas direções estavam ainda separadas no século XVIII, mas logo integradas. Do lado da disciplina, as instituições como o exército ou a escola; as reflexões sobre a tática, a aprendizagem, a educação e sobre a ordem da sociedade. Do outro lado, o das regulações de população, a demografia, a estimativa da relação entre recursos e habitantes, a tabulação das riquezas e de sua circulação, das vidas com sua duração provável (ibidem, p. 132).

    Ora, o início do século XVIII, justamente nos primórdios da Revolução Industrial, que levaria ao êxodo rural e ao formidável crescimento demográfico, foi marcado por uma nova configuração da sociedade voltada não só para a sua reorganização, mas também para o bem-estar de sua população, por meio do controle de sua saúde, operacionalizado mediante regulamentos e normas. Se antes do século XVII a soberania dizia respeito à defesa e à conquista territorial, depois disso houve um deslocamento para a vida, o bios das populações com a imposição de um novo refrão: ordem, riqueza e saúde. O controle populacional não provinha, evidentemente, de algum gesto humanitário. Os ex-camponeses iam crescentemente se tornando os novos habitantes das cidades e sua força de trabalho foi se incorporando às engrenagens das fábricas. Nasce, assim, a cidade mercado. O fluxo de pessoas, moedas, mercadorias, ideias, crenças será ainda mais praticado com a propagação dos ideais liberais, acarretando uma metamorfose paulatina, carregando consigo um novo modo de governo, que garantia o comércio interior/exterior, a medicina social, os comportamentos populacionais no território (Malini, 2011).

    O biopoder e o capitalismo

    Assim, o biopoder tornou-se coadjuvante no desenvolvimento do capitalismo, cuja garantia dependia da inserção controlada dos corpos nos aparelhos de produção por meio de ajustamento dos fenômenos de população aos processos econômicos. Mais que isso, no entanto, o capitalismo também precisou do investimento no corpo vivo, na sua valorização e na gestão produtiva de suas forças. A fórmula parece perfeita: quanto melhor a saúde, mais rendimento no trabalho. Centrada na vida de populações, que não cessam de crescer, a governabilidade do social tem que incrementar sua função normalizadora. Portanto, de três séculos para cá, biopoder e capital irmanaram-se para nunca mais se desligarem, mesmo que pesem as transformações que as revoluções tecnológicas do final do século XIX até os dias de hoje foram instaurando nessa aliança. Há que se considerar ainda a existência de diferenças geopolíticas profundas no incremento da biopolítica, pois, nos países periféricos, desde sempre e até hoje, os planos e programas governamentais repousam sobre a letra morta da lei.

    De todo modo, segundo Genaro (2009), a biopolítica, na escrita foucaultiana, situa-se nos poderes disciplinares instituídos pelas tecnologias e disciplinas de jurisdição científica para o governo da vida. Esses discursos de saber-poder, chamados de dispositivos de controle, foram visualizados na criação de: dispositivos de raça, de sexualidade e de segurança etc. Os resultados dessas construções, continua Genaro, são vistos nas normalizações e adestramentos que são encontrados em qualquer uma das grandes instituições da modernidade: escola, caserna, fábrica, hospital, prisão etc., que produzem não apenas indivíduos dóceis e úteis, mas também uma gestão produtiva da vida das populações, esta garantida pelo neoliberalismo, condição de inteligibilidade da biopolítica, na medida em que regula o exercício do poder político com base nos princípios de uma economia de mercado (Foucault, 2008, p. 181).

    O mais crucial nisso tudo é o paradoxo em que fica enlaçada a possibilidade de resistência política ao biopoder. Resistir a ele significa tomar como base de apoio justamente aquilo em que o poder investe: a vida vivida dos seres humanos. As forças que resistem apoiam-se exatamente naquilo em que o poder investe: na vida, no humano enquanto ser vivo. "O que é reivindicado e serve de objetivo é a vida, entendida como as necessidades fundamentais, a essência concreta do homem, a realização de suas virtualidades, a plenitude do

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