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Comunicação e erotismo: O masculino na era digital
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E-book325 páginas4 horas

Comunicação e erotismo: O masculino na era digital

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Sobre este e-book

O objetivo deste livro é contribuir para a seguinte discussão: como o universo masculino se harmoniza, em termos da construção de sua autoidentidade, com o território digital contemporâneo? Esta vereda propicia ao autor traçar um interessante paralelo entre a bissexualidade e a fragmentação/transitoriedade; e a imprecisão da pós-modernidade.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento10 de nov. de 2014
ISBN9788575490341
Comunicação e erotismo: O masculino na era digital

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    Livro denso e instigante.
    Obra relevante para as Ciências Humanas.

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Comunicação e erotismo - Ronaldo da Costa Formiga

Ronaldo da Costa Formiga

COMUNICAÇÃO E EROTISMO

O MASCULINO NA ERA DIGITAL

COMUNICAÇÃO E EROTISMO O MASCULINO NA ERA DIGITAL

Copyright: Ronaldo da Costa Formiga

Copyright da presente edição:

Editora Max Limonad

ISBN: 978-85-7549-034-1

www.maxlimonad.com.br

2014

Para Carmita e Roberto

À professora Priscila Kuperman,

minha orientadora e amiga

Aos seguintes professores

pelas sugestões e críticas:

Carlos Alberto Messeder Pereira

Sócrates Nolasco

Maria Helena Rego Junqueira

Liv Sovik

Mareio Tavares d’Amaral

À amiga Gladis T. Balassiano pelo apoio

PREFÁCIO

O livro Comunicação e Erotismo: o masculino na era digital, de Ronaldo da Costa Formiga, aborda uma temática contemporânea que escapa a qualquer tentativa de produção de contornos finalizadores da investigação sobre tal tema. Explica-se: na verdade, trata-se de um objeto que é um complexo de forças com tantas pontas quantas se puder criar.

Não é menos complexa a caixa de ferramentas teóricas utilizada pelo autor: Leibniz, Nietzsche, Berkeley, Fichte, Hume, Hegel, Husserl, Guattari, Lipovetsky, Lévinas. É com estes e outros autores que Ronaldo Formiga aproxima-se do universo masculino no campo virtual.

O autor não se intimida diante de tal tarefa hercúlea, ao contrário, problematiza a questão da subjetividade/individualidade. Ademais, sobre um fundo teórico-filosófico, faz emergir as figuras: ordem e caos; o ser-em-si e o ser-no-mundo; o mesmo e a diferença; a totalidade e a individualidade.

Então, se poderia indagar: quais seriam os eixos de sustentação do arcabouço teórico de seu trabalho? O olhar do leitor facilmente os identificará: a discussão do sujeito/indivíduo; autonomia/independência; privado/público; masculino/feminino; presente/virtual.

O objetivo deste livro é contribuir para a seguinte discussão: como o universo masculino se harmoniza, em termos da construção de sua autoidentidade, com o território digital contemporâneo? Esta vereda propicia ao autor traçar um interessante paralelo entre a bissexualidade e a fragmentação/transitoriedade; e a imprecisão da pós-modernidade.

Salta aos olhos do leitor uma instigante reflexão de Ronaldo Formiga: o universo feminino é, atualmente, o guardião dos tradicionais papéis sociais/sexuais e, por isto mesmo, o autor propõe a noção de devir-homem. Estabelece ainda relações entre, de um lado, o moderno, o sujeito, a totalidade, a linearidade, o presente; de outro, o contemporâneo, o singular, os fragmentos, a não linearidade e o virtual.

Finalmente, a partir destas e de outras noções já mencionadas o autor do presente livro deixa-nos a pergunta/abertura: na vida on-line, não seríamos membros de uma totalidade (a rede) e, ao mesmo tempo, indivíduos atravessados pelo ideal de singularidade? Com o leitor a palavra após seus olhos testemunharem esta bela obra que não encerra, mas abre novos lineamentos.

Marcus Vinicius de A. Câmara

Psicoterapeuta, Doutor em Psicologia (UFRJ)

Professor Adjunto do Curso de Graduação em Psicologia (UFRRJ)

APRESENTAÇÃO

Este trabalho tem como objetivo pensar a identidade masculina, a partir de um contexto bem específico: a era digital. É nosso interesse estabelecer uma reflexão acerca das possíveis relações entre a multiplicidade e a fluidez inerentes ao eu contemporâneo e, com estas, a fragmentação identitária própria à modernidade e, por outro lado, o caráter de simulacro trazido pela realidade virtual. Partimos da hipótese de que se as trocas eróticas e/ou amorosas na rede cibernética espelham, em certo sentido, um movimento de dessubjetivação, em outro momento, se apresentam como instâncias produtoras de singularização.

Encontramos nas múltiplas manifestações da sexualidade masculina, no assim denominado cybersex um exemplo do que corresponde esse duplo percurso, isto é, a integração sistêmica propiciadora de uma homogeneização resultante da imaginarização do simbólico no intercâmbio virtual e, simultaneamente, a possibilidade da construção de uma individualidade com singularidade reveladora da potencialidade do indivíduo contemporâneo, quanto as suas infinitas máscaras identitárias Esta discussão não seria possível sem a localização, em termos de sua origem, do que estamos compreendendo como a noção de indivíduo. Para tal, pesquisamos as raízes filosóficas e antropológicas do nascimento do individualismo moderno e contemporâneo a partir dos ideais de autonomia e independência.

Em síntese, a identidade masculina é, aqui, compreendida como mantendo uma relação de estreita proximidade com a liminaridade característica do self virtual, na medida em que o atual destino erótico do universo masculino vem se apresentando como foco propiciador de fragmentação e singularidade através, por exemplo, do fenômeno da bissexualidade que, como sabemos, problematiza o que, normalmente se define como identidade sexual.

INTRODUÇÃO

A presente pesquisa visa discutir as trocas eróticas e amorosas online a partir de uma reflexão sobre o universo masculino contemporâneo. Estaremos interessados em compreender o que caracteriza o erotismo virtual e qual sua relação com as múltiplas e atuais manifestações da sexualidade masculina. Trataremos do tema relativo à identidade virtual, a construção de um self próprio à rede cibernética em que é relativizada a concepção de uma unidade original do sujeito. Como veremos ao longo deste trabalho, acreditamos que o ethos masculino na contemporaneidade comunga com o caráter fragmentado e instável inerente à identidade dos sujeitos em intercâmbio pela Internet. Estaremos envolvidos com um duplo movimento: em primeiro lugar, como se processa a ruptura moderna com a ideia de uma unidade individual e, em seguida, aproximar a hipótese de uma pluralidade intraindividual com a construção das identidades na era digital.

Sabemos que a constituição das identidades pessoais vem apresentando na contemporaneidade profundas modificações, resultantes do que os teóricos da modernidade (e da modernidade tardia) apontam como a perda de referentes estáveis e a consequente instauração de uma cultura individualista. O eu moderno é herdeiro direto da tradição cristã (a concepção judaico-cristã de alma), que está associada ao que Sodré[1] define como a visão essencialista de uma interioridade psicológica no sujeito humano (presente em Platão e Aristóteles). Com o advento da supremacia da razão, e aqui se inscrevem as contribuições de Descartes e Kant, assistimos à construção de uma ordem interior constante (o eu), que se manifesta como um equivalente da noção de consciência. A subjetividade do Iluminismo (juntamente às influências do romantismo) foi autonomizada em face de qualquer sentido (ou origem) transcendente dos valores. O sujeito definido a partir de uma suposta interioridade ou de um self compreende, assim, o que aprendemos a definir como identidade pessoal.

O naturalismo iluminista está baseado na autoimagem racionalista do homem e levou à vigência do ideal da razão autônoma, isto é, a liberdade em relação à autoridade. Desvinculado das amarras da religião, o homem é livre para buscar o bem universal que, em última instância, encontra em si mesmo. O romantismo, por seu lado, enfatiza a ideia de um impulso interior que nos leva à verdade. Esta se encontra localizada, igualmente, nos sentimentos, na interioridade do homem. A natureza é, agora, interna ao homem, deixando de se constituir em uma forma impessoal. Tal seria, então, o perfil do homem moderno: fundamento de suas representações e de seus atos. A modernidade rejeita a alteridade promovida pela tradição e é autoinstituída. Neste contexto social, uma nova perspectiva cultural se apresenta: o individualismo.

Para caracterizar o individualismo e o seu nascimento, faremos uso, na primeira parte de nosso trabalho, de uma extensa consideração filosófica acerca de suas origens. Três pensadores serão essenciais: Leibniz, Heidegger e Nietzsche. A estes uniremos as decisivas contribuições provenientes da Antropologia, centradas na discussão de L. Dumont sobre o holismo e o individualismo para a configuração do que o autor concebe como a sociedade democrática moderna em contraposição à sociedade do Ancien Régime. Leibniz e Heidegger, como veremos, retratam concepções distintas sobre a modernidade, sendo, verdadeiramente, o primeiro aquele que é considerado o fundador do individualismo filosófico. De qualquer modo, a noção de indivíduo, que irrompe no final do século XVIII, resume-se basicamente à ideia de originalidade e/ou singularidade. É, no entanto, Nietzsche quem irá constituir o que se compreende hoje como individualismo contemporâneo. Qual a importância de Nietzsche para a modernidade? Assim como Leibniz trouxe, através do individualismo monadológico, uma real contribuição para a dissolução da metafisica do sujeito, Nietzsche estabeleceu o que certos autores (entre eles, A. Renaut) concebem como um individualismo sem sujeito.

A proposta nietzschiana foi romper com o pressuposto de uma essência lógica do eu. Recusando-se a manter-se preso, tal qual Leibniz, a certas avaliações metafisicas, Nietzsche rejeitou a existência de mônadas por acreditar que estas supunham uma valorização do ser que teria conduzido uma humanidade fragilizada a con-gelar o futuro e substituí-lo por um mundo de coisas estáveis, idênticas a elas mesmas Erradicando a teodicéia leibniziana e criticando a ideia de uma unidade transcendental do sujeito (assim como a relação um/múltiplo no interior da subjetividade), Nietzsche subverteu a doutrina tradicional do sujeito. O eu é múltiplo, em Nietzsche e a unidade do eu é apenas imaginária. Existe em Nietzsche uma severa crítica às doutrinas racionalistas do eu e à concepção do eu como não contraditório (ou idêntico a si mesmo), como ocorre, por exemplo, em Kant. O caminho aberto por Leibniz para o individualismo filosófico adquire contornos mais nítidos em Nietzsche (contrariamente à Heidegger que compreende a modernidade como o reino do sujeito).

O que observamos na leitura de Nietzsche sobre o conceito do eu é sua tentativa em destituí-lo de uma unidade e, consequentemente, romper com a lógica (associada ao conceito de identidade), o que o levou à descrença não apenas na unidade lógica e moral do sujeito, mas na própria noção de sujeito. O eu não é fundamento, substrato, causa exclusiva de seus atos, até porque o eu, sendo múltiplo, é transitório. O ser, portanto, inexiste. O uno, o idêntico a si é substituído pela contradição e, como afirmamos, pelo múltiplo. Desaparecem, assim, noções como consciência, alma, vontade ou pensamento, e destaca-se a impossibilidade da verdade, uma vez que esta significaria a supremacia da unidade sobre a multiplicidade.

Chegamos, então, a um ponto fundamental para a nossa pesquisa: o caráter fictício da unidade individual. Se o indivíduo não é um, mas múltiplo e contraditório (aqui residiria o verdadeiro por oposição à ilusão da unidade e da identidade), o indivíduo é fragmento, gradação, devir. Acreditamos ser este o perfil da individualidade tardo-moderna e é nesta perspectiva que, na segunda etapa de nosso trabalho, trataremos do que supomos constituir a identidade masculina contemporânea. A pluralidade inerente ao indivíduo na modernidade e, mais particularmente, na pós-modernidade está diretamente associada ao que entendemos como a derivação individualista do sujeito. Sem unidade lógica e/ou moral, o eu é potência de multiplicidade, isto é, o eu é fragmentação permanente, diferenciação. Acreditamos encontrar no universo masculino da contemporaneidade reflexos de uma pulverização identitária característica da progressiva perda dos referentes estáveis modernos que, em um contexto prévio à modernidade tardia, este mesmo universo ainda preservava. Outrora eixo centralizador da construção da subjetividade do eu ocidental, o masculino vem sofrendo evidente descaracterização neste sentido. Não mais essência definidora de uma centralidade simbólica, até porque a própria configuração individualista contemporânea rompe com a noção de um núcleo ou uma interioridade do eu, o universo masculino (e a sua sexualidade em especial) reflete, ao contrário do feminino que, em outros momentos, exerceu tal função, a angústia inerente ao movimento de deixar fluir a potencialidade do múltiplo em si mesmo. Algo da ordem da liberdade nietzschiana, o ser masculino contemporâneo é uma busca incessante de viver diferentes papéis. Pensar a identidade masculina na contemporaneidade exige, portanto, pensá-la a partir de um caos, do fim das certezas relativas ao que se supõe ser não apenas a própria noção de identidade, como, mais especificamente, a identidade sociossexual. Nesse sentido, estamos compreendendo a discussão acerca do masculino contemporâneo como uma vertente do individualismo. Esta é a razão pela qual optaremos, no início deste trabalho, por tecer considerações relativas à filosofia do sujeito e ao que, normalmente é concebido como o devir-indivíduo do sujeito. A importância da referência à Leibniz centra-se, portanto, no fato de que, em oposição à leitura heideggeriana acerca da monadologia leibniziana, o sistema leibniziano é um marco na história moderna do sujeito. No entanto, não se trata da emergência de uma figura particular do sujeito, mas uma mutação radical, que não aponta para a consolidação do cartesianismo, mas, inversamente, para a construção de uma história da individualidade (em antagonismo a uma história da subjetividade). Passamos por diferentes pensadores, além dos já citados, até chegarmos a Nietzsche e com ele o nascimento da modalidade contemporânea do individualismo. Referências serão feitas a Berkeley, Fichte e Hume no sentido de compreendermos o movimento de dissolução do sujeito e apresentaremos, brevemente, a leitura de Deleuze sobre Hume, onde abriremos um debate sobre o atomismo do espírito e o caráter de efeito da subjetividade pela afetação do espírito por princípios que o ultrapassam. Em Berkeley encontraremos a noção de representação que transforma o real numa sequência natural de ideias cuja fonte é uma substância ativa incorporal, isto é, o espírito, o que não o impede de pensar um mundo, uma objetividade distinta do sujeito. O primeiro movimento, a partir de Leibniz, no sentido de redução do espírito (ou do sujeito) a um simples termo pelo qual um conjunto de representações é designado. A dissolução da subjetividade caminha através de Berkeley e chega à Fichte com sua teoria da intersubjetividade como condição da subjetividade. Finalmente, atingiremos Hume e descobriremos que para ele a natureza humana não é uma essência. A problemática de Hume é entender como o homem se torna um sujeito empírico, constituindo uma natureza humana, um Eu ou o que é equivalente para Hume, um sistema referido por leis organizando suas representações. O devir-sujeito do espírito: esta é a meta de Hume, de acordo com a leitura de Deleuze. O Eu em Hume não é princípio ou fundamento (sujeito), como a proposta cartesiana supõe (a evidência a si do sujeito), mas um fenômeno a ser explicado por verdadeiros princípios que são as impressões simples de onde provêm as ideias. A impressão é um átomo psíquico (ou uma mônada) em relação à qual a própria ideia do Eu corresponde, como ocorre com os fenômenos, na monadologia leibniziana, em relação aos princípios monádicos.

O percurso filosófico que empreenderemos (e não podemos esquecer a referência à Lévinas e sua reflexão pós-monadológica acerca da alteridade, além de belas considerações sobre o erótico, o sentido da carícia e a transcendência em Eros) tem em verdade uma única finalidade: delimitar o terreno conceitual a partir do qual é possível pensar o que é a identidade em um contexto moderno. A abordagem sociológica trazida por Giddens irá abrir o caminho necessário para discutirmos tal relação e contextualizar, conforme já mencionado, a especificidade da identidade masculina neste panorama (individualista).

Como colocamos no início desta introdução, nosso objetivo com este trabalho vai mais além. É de nosso interesse refletir o masculino em comunhão com uma dimensão crucial da contemporaneidade: o mundo digital. Particularmente, delimitar como a fragmentação identitária e a sexualidade masculina se aliam na esfera virtual. Pensar de que modo a era digital e suas múltiplas nuances de trocas sexuais e/ou amorosas (o "cybersex) comungam com o paradigma individualista (cujo percurso filosófico traçaremos na primeira parte do presente trabalho) e com as novas identidades, de que Sodré nos informa, elaboradas no mundo da Internet. Identidades fantasmáticas, espectrais, duplos virtuais de sujeitos. Qual a relação entre a consciência enquanto uma dimensão funcional presente na realidade virtual e a dessubjetivação apontada por Sodré? Será que até mesmo o erotismo na realidade tecnológica do virtual nos leva à certeza de uma individualidade sem singularidade? Qual a especificidade da sexualidade masculina neste contexto (virtual)? Estas e outras questões (apresentadas na última etapa do nosso trabalho) apontam, acreditamos, ao menos para uma constatação: a prótese digitalizada que qualifica a pele com que os indivíduos fantasmáticos se tocam, nos termos de Sodré, revelam uma modalidade erótica condizente com a fluidez e a multiplicidade inerentes ao que compreendemos neste trabalho como o paradigma individualista definidor da contemporaneidade Assim como Nietzsche define o eu como uma pseudounidade apenas localizada quando tal afirmativa é obliterada, o eu virtual" é não apenas efeito da conexão sistêmica, mas diferenciação permanente, múltiplas perspectivas. O erotismo, através da rede cibernética, acreditamos, espelha tal impossibilidade de coagulação das certezas identitárias.

1. O INDIVÍDUO NA ERA DIGITAL: ORIGEM E PRESSUPOSTOS

1.1 A moderna configuração de valores: o individualismo

A partir de seu uso tocquevilliano [2], o registro semântico de origem do termo individualismo designa certo número de fenômenos sociopolíticos assimilados como característicos da época moderna.

Das amplas descrições socioetnológicas, que uma obra como Homo hierarchicus apresenta sobre a estrutura social e mental da Índia, às considerações profundas desenvolvidas em trabalhos como Homo aequalis e Ensaios sobre o individualismo acerca da história das ideias modernas, Dumont segue um roteiro analítico que parte da sociedade indiana e chega a nossa sociedade ocidental confrontando os valores do pensamento tradicional com os nossos próprios valores e tentando, assim, nos esclarecer quanto ao caráter original e problemático de nossos valores. Na verdade, a meta de Dumont não é apenas refletir sobre os valores ocidentais, mas de uma forma mais geral sobre aquilo que ele conceitua como sendo os valores da modernidade. Trata-se, para ser bem claro, com Dumont, de uma interpretação individualista do sistema mental da modernidade. Estamos afirmando que, no centro da história moderna do sujeito supõe-se uma virada individualista. O que faz a coerência da ideologia individualista em Dumont? O autor compara a sociedade hierárquica da Índia à reflexão sobre uma sociedade moderna percebida, por oposição, como igualitária. Temos, assim, duas grandes ideologias[3] situadas em nítido confronto, cada qual correspondendo a um tipo diferente de sociedade. A coerência se estabelece, portanto, pela oposição.

De um lado, a ideologia holista que valoriza a totalidade social e negligencia ou subordina o indivíduo humano. A esta ideologia corresponde a sociedade hierárquica[4] onde a ordem resulta da afirmação de um valor — o valor do todo — e onde as partes ou os elementos (particularmente os indivíduos) aparecem com essencialmente subordinados ao todo ou ao que expressa, encarna ou representa o todo.

De outro lado, a ideologia individualista — que valoriza o indivíduo em detrimento do todo. São várias as definições apresentadas por Dumont para caracterizar o indivíduo: ser independente e autônomo; ser essencialmente não social; um ser que negligencia ou subordina a totalidade social. A correspondência lógica dessa ideologia não é mais a sociedade hierárquica, mas a sociedade igualitária onde o indivíduo não é mais submisso a nenhuma outra ordem do que a ele próprio. O indivíduo é, assim, o valor supremo, eixo classificatório de uma nova etapa histórica, uma nova modalidade de sociedade. Observa-se o abandono de todo princípio de hierarquia em favor do princípio de igualdade[5]. Trata-se dessa modalidade de individualismo que constitui o valor cardinal das sociedades modernas, especialmente no registro econômico-político onde a aplicação do princípio de igualdade toma a forma do liberalismo.

Duas ideologias — holista e individualista — absolutamente contraditórias em seus princípios e mutuamente exclusivas. Em um interessante artigo[6], Dumont assinala o perigo que representa a insistência em retomar o holismo no quadro das sociedades modernas. Uma vez rompida a bela totalidade que formava a sociedade hierárquica, o desejo de unidade em bases individualistas só poderia se reintroduzir sob a forma de uma vontade visceral de anular a atomização do social. O sentimento e/ou vontade de unidade nas sociedades igualitárias modernas padecendo de consenso só se restituiria em moldes, afirma o autor, totalitários ou terroristas[7].

Dumont está preocupado em estabelecer aquilo que ele denomina de gênese do individualismo moderno, ou seja, como já foi afirmado, unir a formação da ideologia individualista à própria gênese da modernidade. No livro Essais sur l’individualisme, une perspective anthropologique sur l’idéologie moderne, o autor reflete sobre as dificuldades de se pensar o nascimento da modernidade a partir do tipo geral das sociedades holistas. Como um novo tipo de sociedade pode ter se desenvolvido do interior de uma sociedade em que a concepção comum era fundamentalmente contraditória a esse novo horizonte cultural, cujo eixo paradigmático é o indivíduo? Como supor, pergunta-se Dumont, uma transição entre esses dois universos antitéticos, essas duas ideologias inconciliáveis? O autor descarta a possibilidade de uma transição direta, uma vez que não é apenas diante de um simples deslocamento cultural que estamos, mas de uma inversão de valores. Assim colocada a questão podemos prever, afirma Dumont, qual a possibilidade de sua solução. Esta se encontraria no interior da própria sociedade tradicional através da figura do renunciante. Este renuncia ao mundo, um mundo marcado pela primazia da totalidade, um mundo regido pela hierarquia. Ele funciona como uma possibilidade de reinterpretação individualista da lógica hierárquica. O renunciante aponta para um elemento onde o universo cultural começa a se movimentar no sentido sociedades hierárquicas => sociedade igualitária moderna. Na impossibilidade de uma transição direta entre os dois tipos de sociedade, o renunciante se apresenta como um elemento de mediação que antecipa o surgimento da nova lógica individualista a partir do interior da tradicional lógica hierárquica.

É muito interessante observar a caracterização estabelecida por Dumont da sociedade indiana em seu livro Homo hierarchicus. Nesta obra o autor traça um perfil dessa sociedade com base nos seguintes itens, todos eles entrelaçados e definindo uma única realidade cultural: holismo - relação - totalidade - ausência do indivíduo. A sociedade indiana eminentemente holista, cria uma sólida interdependência entre seus membros que é materializada através do sistema de castas. Este sistema promove a cada qual uma rede de obrigações coletivas[8] que o une, de forma hereditária, aos outros membros da casta. Percebe-se então a presença de relações impositivas de grupo que não abrem espaço para o surgimento do indivíduo enquanto realidade autônoma. É exatamente o contrário o que verificamos nas sociedades igualitárias. Nestas, ao invés da ênfase na perspectiva relacional, emerge o indivíduo e as livres iniciativas individuais. Podemos supor que, através da figura do renunciante[9] ou da instituição da renúncia ao mundo surgia não só a possibilidade de acesso a uma plena independência apesar do sistema relacional de castas, como também já emergia virtualmente uma modalidade de pensamento através do qual o indivíduo é uma realidade em si. Dumont afirma que a figura do renunciante não é o lugar de uma tensão ou de uma contradição no seio da sociedade holista, mas ela seria capaz de potencialmente ser reinvestida de outro significado e abrir uma perspectiva pela qual o individualismo poderia se infiltrar.

Dessa maneira, o hinduísmo enquanto uma religião que estabelece a vivência pelo crente da fé no interior do mundo, através de sua submissão a toda uma rede de relações restritivas que expressam a ordem hierárquica da natureza, revela ao mesmo tempo o pressuposto de um fora-do-mundo e uma concepção da fé sob o modelo do desprendimento ascético ao mundo e aos seus preceitos. A figura do sannyasi (renunciante) no hinduísmo, afirma Dumont, revela o quanto o hinduísmo não é uma religião da renúncia a si — enquanto indivíduo — e da dissolução na ordem do mundo; ao contrário, é ao mundo que o renunciante renuncia, para consagrar-se a sua própria liberação[10].

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