Manteiga
De Ricardo Cury
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Manteiga - Ricardo Cury
PRÓLOGO
Havia duas lembranças de separação de casais que permeavam a minha mente naquele início de pandemia. A primeira era a de um casal de namorados da escola. 1996. Fernando e Fernanda. Nós (o fundão) os chamávamos de os Fê
.
– Os Fê vão pra festa com a gente?
– Vamos – respondiam.
Era uma coisa só. Além de estudarem na mesma sala, eles ainda moravam no mesmo prédio que ficava em frente à escola. Um andar acima do outro. Ele acordava, descia pra casa dela e ficava a manhã inteira lá, estudando e namorando. Meio-dia, ele subia, almoçava, se arrumava pra escola e voltava. Eles desciam o elevador juntos, passavam pela portaria, atravessavam a rua e ficavam a tarde inteira um ao lado do outro, inclusive durante todo o intervalo. Nem jogar bola ele ia. Fim da tarde, atravessavam a rua de volta, entravam no elevador que parava no andar dela, se despediam com um beijo, ele subia, tomava banho e descia pra jantar com ela, até que, às 22h, ia pra casa dormir. No dia seguinte, tudo de novo.
Três anos depois, a encontrei em Ondina, no meio do carnaval.
– Cadê Fernan... – nem me deixou terminar a pergunta.
A outra era de um cara vindo em minha direção, de óculos escuros, cabelão, camisa roxa, olhando pra frente com uma natural imponência, enquanto eu pensava conheço esse cara de algum lugar
. Claro que eu conhecia, trabalhamos um tempo juntos, eu apenas não o reconhecia naquela versão altiva e só desvendei o mistério quando ele chegou perto:
– E aí, man – sorriu pra mim e estendeu a mão.
– Poooooorra, quanto tempo! Como estão as coisas?
– Tudo ótimo e você?
– Os filhos, a...
– A gente se separou – me interrompeu.
O TEU FUTURO É DUVIDOSO
16
de março de 2020. Acordei cedo. O tão falado home office enfim seria posto em prática na agência de propaganda em que eu trabalhava como redator. Não seria, porém, um home office planejado, como já havia sido sugerido anos antes, mas, sim, emergencial, imposto pelo lockdown da Covid-19. Maria acordou cedo também. A mãe já tinha saído, pois seu trabalho ainda estava no modo presencial.
– Quero vestir uma fantasia – ela exigiu.
– Vá escolher uma – respondi.
Enquanto eu arrumava a cama, ela bagunçou o quarto todo, experimentando várias, desistindo delas e deixando tudo pelo chão:
– Não tô achando a porra da fantasia que eu quero.
Eu não consegui conter a risada, mas tentei educar:
– Maria, se você insistir em ficar falando assim, a mãe de Sarinha e a mãe de Bia não vão mais deixar vocês brincarem juntas.
Nove em ponto, sentei pra inaugurar o home office na sala, com ela assistindo à TV ao meu lado. Mateus, na pré-adolescência, ainda dormia.
– Tô com fome... Quero pintar... Quero ir pro play... Tô com sede.
– Tô com um VT e um jingle aqui pra você fazer – disse o outro chefe pelo WhatsApp, quando o interfone tocou. Era a vizinha do 301, uma senhora de 72 anos.
– Ricardo, me diga uma coisa, Mateus está de quarentena?
– Como assim?
– Ele tá indo pra escola?
– Hoje não foi e não deve ir mais, acho que por pelo menos duas semanas, né?
– Pois é, João também não.
Dez anos antes, ela e o marido, já com uma filha adulta, resolveram adotar uma criança, João. Não é bom no Fortnite por causa dos limites de horários impostos, mas é o craque do prédio no futebol, inclusive no baba dos maiores.
– O que vou fazer com João, Ricardo?
Salientei que ela e o marido eram do grupo de risco e que João precisava ficar isolado, pois poderia transmitir o vírus pra eles.
– Nem playground? – perguntou aflita.
– Nem playground. João vive pelas escadas e elevadores, apertando a campainha e saindo correndo...
– E agora?
– Agora deixa dormir até 11, desinfeta o controle e libera o PS4.
– E ele e Mateus vão poder brincar juntos?
– Vão...
– Pelo menos isso, né?
– Sim, mas é on-line.
ADORO UM AMOR INVENTADO
A
introdução é Sol, Ré e Dó. Faz isso quatro vezes e quando entra a voz é a mesma coisa e nessa parte aqui vai pra Mi Menor, Ré de novo, depois Dó... – mostrava o professor Carlos, no violão, os acordes da música que pedi pra ele me ensinar naquela tarde.
Muitas vezes eu e alguns amigos ficávamos com ele na sala dos professores tocando violão até o sino tocar, indicando o fim do recreio. Nesse dia, tivemos prova nos dois últimos horários e depois, liberdade.
Os que acabavam a prova iam se aglomerando no pátio da escola, formando rodinhas de conversa. Colégio Anchieta. O ano é 1992, todo mundo com 13, 14 anos. Eu estava em uma rodinha com amigos quando ela, que nem era da minha sala e nunca tinha falado comigo, exigiu, ao perceber que eu estava com um violão:
– Toca uma música aí.
Tirei minha mochila pesada das costas, me posicionei e nem pensei em outra: Sol, Ré, Dó quatro vezes, depois Mi Menor, Ré de novo, depois Dó...
A mãe dela entrou no som com um solo de buzina e ela disse para as amigas minha mãe chegou, tchau
, colocando sua mochila nas costas, me dando as costas e me deixando sozinho, cantando os versos seguintes.
PAIXÃO CRUEL, DESENFREADA
D
oze anos depois, quando nos reencontramos por acaso e começamos a nos ver com frequência, ela duvidou dessa história até eu dizer:
– Você tinha uma mochila da Company.
– Todo mundo naquela escola tinha uma mochila da Company.
– A sua era verde limão. Lembro bem dela pesada em suas costas, indo embora enquanto eu cantava...
– Preciso falar uma coisa.
– Diga.
– Tenho uma viagem marcada.
– Pra onde?
– Espanha.
– Sozinha?
– Sozinha.
No dia seguinte comprei um guia turístico completo sobre a Espanha e dei de presente.
– Quer ir comigo? – ela convidou.
Oficializamos o namoro em um restaurante no dia do meu aniversário de 26 anos. Ganhei de presente uma biografia do grupo teatral Asdrúbal Trouxe o Trombone. Durante muitos anos ela se vangloriou de ter acertado de primeira.
– Ali você pensou: essa é a mulher da minha vida
, né?
Eu sempre respondia que já tinha pensado nisso muitos anos antes. Doze, pra ser mais específico.
A viagem pra Espanha sozinha se transformou em uma viagem por diversas cidades da Europa comigo. Com cinco meses de namoro, passamos 40 dias grudados, 24 horas por dia, com as mesmas calças jeans.
– Se voltarem juntos é pra casar – previram os amigos.
Os únicos momentos em que a gente se separava aconteciam quando chegávamos a uma cidade e um de nós tinha de procurar algum lugar pra dormir enquanto o outro cuidava das duas mochilas de 16 quilos cada. Em Lisboa, encontramos um albergue com um recepcionista que tentou roubar nossos passaportes, mas, em compensação, na Universidade de Coimbra, por acaso, encontramos amigos da escola (inclusive daquela rodinha) e José Saramago, que ia em direção à biblioteca Joanina.
– Saramago – chamei.
Apertei o passo e o alcancei.
– Que prazer, já li alguns livros seus, Memorial do Conven...
– Tu estás a me confundir, eu não sou o José Saramago – interrompeu.
Eu fiquei olhando atentamente: mesmos óculos, mesmo cabelo, mesma careca, mesma sobrancelha, mesmo furinho no queixo.
– Oxente, é você, sim.
– Não sou, não. Só pareço com ele – negou mais uma vez, sorrindo.
– É, sim.
– Já o avisastes que não sou – insistiu, agora virando as costas e indo embora ao perceber que meus amigos se aproximavam.
– É você, sim.
– Não sou...
– É, sim! – gritei por último, antes de ele entrar na biblioteca.
Em Madri, onde perdemos o trem, ficamos um dia a mais e pudemos ver um show de Moreno Veloso, na La Casa Encendida, e outro de Zidane, no Santiago Bernabéu; Paris, compramos um vinho que custou um Euro e gastamos dois pra abrir, alugando o abridor de um transeunte miçangueiro; Roma, fomos a um barzinho em que tocava bossa nova e eu toquei uma bateria desafinada em Chega de Saudade
; Amsterdam, gargalhamos ao perceber que o baseado estava apagado há tempos e a grossa fumaça que saía era do frio de três graus; Londres, atravessamos a famosa rua, batemos na porta do estúdio Abbey Road e perguntamos Ringo Starr?
. No avião de volta, e agora?
. Quatro anos depois, no Fórum Ruy Barbosa, respondemos sim
.
EXAGERADO
V
ou me separar – anunciei num grupo de WhatsApp que tenho com mais quatro amigos, todos casados.
Se, com cinco meses de