XÔ: Relações abusivas sob um novo olhar
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XÔ - Stella Florence
1
Dois responsáveis, um culpado
Não, eu não preciso me perdoar. Eu não fiz nada de errado a não ser acreditar no amor e me abrir para ele. Desde quando isso é um defeito? Desde quando confiar no parceiro é crime? Nenhuma relação romântica existiria sem confiança, paciência, compreensão. Agora, se alguém abusa dessa compreensão o erro é de quem foi compreensivo? Em que planeta o povo que fala essas patacoadas vive?
Estar num relacionamento abusivo é como seguir viagem no banco do passageiro: você está naquele carro, no entanto não é você quem dirige, não é você quem acelera além do limite, que não para nos sinais vermelhos, que escolhe uma rota confusa e perigosa. Sua única responsabilidade foi ter entrado ali (tão inocentemente como quem entra num Uber). Durante a jornada, você se dá conta, aos poucos, de que o veículo se encaminha para um destino bem diferente do combinado. Seu único objetivo então é conseguir sair dele em segurança. Entende? Numa relação abusiva existem dois responsáveis, mas só um culpado – e isso faz toda diferença. Quem quiser passar vergonha que continue a colocar a culpa na vítima, mas eu aviso: na minha frente, não.
2
Três abacaxis
– Olha o abacaxi docinho!
Abacaxi me apetece? Não muito, mas tenho esse coração mole. Olha lá: dentro da Kombi do ambulante tem uma centena de abacaxis, imagina o tempo que ele vai demorar para vender tudo aquilo.
– Eu quero um, por favor.
– Prova, freguesa! – ele me oferece um pedaço preso na ponta da sua faca.
– Não, obrigada.
– Está um mel de doce, prova!
– Não, eu não quero mesmo. Quanto é?
– Pra freguesa eu faço três pelo preço de dois.
– Eu só quero um.
– Leva também pra sua mãe, pra sua amiga e o seu vai sair de graça.
– Não, obrigada.
– É uma pechincha: três pelo preço de dois!
– Eu não quero três abacaxis.
– Ô, que cabeça fraca, hem, freguesa. Eu tô te fazendo um favor!
Saio andando sem olhar para trás. O homem do abacaxi grita alguma coisa, nem me importa o quê. Ah, nada como interromper uma conversa desagradável e ir embora sem se preocupar em ser educada. Pessoas como Marco estão em todos os lugares, mas agora eu sei identificá-las.
3
Neve de verão
Olha ali eu com dez anos vendo meu irmão Pepe nadar como um peixe na piscina do colégio. Já Helena podia brincar por horas levantando água para todo lado, mas quando queria, nadava melhor e mais rápido que Pepe. Quanto a mim, bem... eu parecia uma galinha que caiu na água, é isso aí. Mas uma galinha feliz porque eu adorava estar na água! O que eu não gostava era de levar a coisa a sério, manter o ritmo, esticar as pernas, contar as braçadas um, dois, três, quatro, respira. Eu era uma criança e só queria brincar. Até hoje na água eu só quero brincar. E estaria tudo bem se meu pai, campeão de natação na juventude, não acreditasse que o legado mais importante que ele poderia deixar para os filhos era o de sermos capazes de nadar até numa tempestade em mar aberto. Nadar, para ele, era a crença de que a cada braçada mais aptos estaríamos a atravessar as tormentas da vida. Nossa, era pesado isso. E brega.
A viagem mais distante que fizemos em família foi para o Rio Grande do Norte. Eu nunca tinha andado de avião e adorei: queria que houvesse turbulência o caminho todo! Ah, como é bom ser criança. Passamos pouco mais de três semanas na cidade de Galinhos e eu me encantei não pelas dunas e manguezais, mas pela família Rosado.
Há cinco gerações eles faziam sal do mesmo modo: numa área imensa, vários tanques de pedra, tanques bem rasos, eram preenchidos com água do mar. Sob o vento e o sol, a água evaporava e o sal começava a se cristalizar. Depois de três dias ele brilhava como uma plantação de diamantes e no oitavo já era possível varrer os flocos úmidos, que eram chamados de neve de verão. Eu nunca vi neve de verdade, mas duvido que qualquer uma possa ser mais bonita do que a da família Rosado.
Ao final de duas semanas, concluí: havia chegado a hora de dizer para o meu pai onde a bicicleta alugada me levava todos os dias. Mamãe já sabia, preocupada que só ela foi lá fazer uma visita. O verdadeiro significado daquele sorriso com biscoitos era: Eu sei que minha filha tem vindo aqui e, já que eu não consigo amarrar essa menina no pé da mesa, é bom que ninguém encoste num fio de cabelo dela!
. Ninguém encostou, mãe – e eu nunca me esqueci de que você estava lá para me proteger.
Na noite em que decidi contar minhas descobertas para o meu pai fiz duas tranças ao redor das orelhas imitando o penteado da princesa Leia, coisa que eu só fazia em dia de festa. No jantar, papai ouviu minha exposição, ou pelo menos pareceu ouvir. Diante da minha insistência, Não é incrível, pai? Hoje eu varri neve de verão!
, ele apenas murmurou hum-hum
e se serviu de um segundo prato de macarronada. Aquilo poderia ter feito até hoje eu detestar macarronada – ou detestar meu pai.
4
Ele sabe desde o início que irá embora, mas não te diz
Por que eu fiquei mexendo no celular até vir o sono? Antes a gente pegava o Minutos de Sabedoria e orava antes de dormir, agora remexe no celular em busca de um namorado – e foi aí, num deslizar virtual para a direita, que encontrei Marco. É, eu realmente deveria ter rezado, e muito, naquela noite.
Você se dá bem com seu ex-marido?
Essa foi uma das primeiras perguntas que ele me fez, ainda no aplicativo de paquera em que nos conhecemos. O abusador sabe desde o início que irá embora, mas não te diz. Por isso Marco queria se certificar de que eu seria uma boa ex, sempre de braços abertos para socorrê-lo, alguém que acreditasse nas suas mentiras, que lhe emprestasse dinheiro, cuja casa ele pudesse usar para um pouso de emergência. Sim, respondi, me dou bem com meu ex-marido, o que é verdade. Não somos melhores amigos, mas temos uma boa relação.
Na mesma noite, Marco me convidou