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Zahara e os livros da luz
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Zahara e os livros da luz
E-book394 páginas5 horas

Zahara e os livros da luz

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Sobre este e-book

A jornalista de Seattle Alienor Crespo viaja para a Espanha para recuperar a promessa de cidadania oferecida aos descendentes de judeus expulsos da Espanha em e492. A protagonista é dotada de uma capacidade extra sensorial que a faz regredir no tempo e acompanhar as vivencias dos seus antepassados. Ao reviver a história através de sus vijitas  (visitas) com seus ancestrais, Alienor confronta o "fantasma" de Franco e o extremismo moderno enquanto protege uma biblioteca ameaçada que guarda os livros que se salvaram da Inquisição. Esta biblioteca é um repositório de textos hebraicos e árabes –cabalistas, sufis, e outros livros medievais que transportam a sabedoria dos povos. Um thriller repleto de mistério e crime que irá absorber os leitores em cada uma das páginas.

IdiomaPortuguês
Data de lançamento16 de set. de 2022
ISBN9798215700167
Zahara e os livros da luz

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    Pré-visualização do livro

    Zahara e os livros da luz - Joyce Yarrow

    Personagens

    Abraham Abulafia (1240-1291): fundador da escola de Cabala Profética

    Alienor Crespo: jornalista de Seattle

    Carlos Martín Pérez: primo em segundo grau de Alienor

    Celia Martín Pérez Crespo: prima em segundo grau de Alienor Eduardo Martín Sanchez: pai de Celia e Carlos, político Hasdai, o Profeta: místico do século XVI, que projectou Zahara Ibn al-Arabī: filósofo sufista e visionário do século XII

    Idris al-Wasim: tintureiro de sedas do século XVI

    Ja’far ibn Siddiqui (aka Mateo Pérez): guia de Luzia Crespo no Caminho da Liberdade na II Guerra Mundial

    Jariya al-Qasam: criminosa do século XVI

    Juíza Patricia Rubio de Martínez

    Luis Alcábez: advogado de Alienor

    Luzia Crespo Laredo: tia-avó de Alienor, que se casa com Ja’far Siddiqui e permanece em Espanha após o final da Segunda Guerra Mundial

    Mico Rosales: notário de Alienor

    «Nona» Benveniste Crespo: avó paterna de Alienor e professora de todos os assuntos sobre Ladino

    Pilar Pérez Crespo: filha de Luzia e Ja’far e prima de Alienor em segundo grau

    Razin Siddiqui: companheiro de armas e eventual marido de Jariya

    Rodrigo Amado: colega de Eduardo

    Stephan Roman: representante da UNESCO

    Todd Lassiter: editor de Alienor no Seattle Courier

    Os Bibliotecários de Zahara:

    Abram Capeluto: Biblioteca de Netsah, Livros Sagrados Judaicos Celia Martín Crespo: Biblioteca de Poesia Tif ’eret e Jamal Malik al-Bakr: Biblioteca de Ciências Islâmicas

    Reinaldo Luz: Biblioteca Eterna de Babel

    Rushd al-Wasim: Biblioteca de Artesanato e Pecuária

    Saleema al-Garnati: Biblioteca de Khalud (Profecia) Livros Sagrados Muçulmanos

    Sufi Rabbi Reb Hakim: Biblioteca de Hokhmah – Misticismo e Sabedoria de Todas as Crenças

    Suneetha bint Hasan: Biblioteca de Filosofia e das Artes

    Prólogo

    Shape Description automatically generated with medium confidence

    Granada, Espanha Outubro de 1499

    As janelas com vista para a Plaza de Bib-Arrambla foram firmemente fechadas contra a luz da lua. As calçadas de pedra sufocam sob um dilúvio de livros, códices com capas de madeira, bem como páginas soltas arrancadas impiedosamente das suas encadernações. Escritas à mão em árabe, aramaico e hebraico, muitas destas obras são iluminadas com folha de ouro ou escritas com uma caligrafia requintada, apenas para serem atiradas em conjunto, como cadáveres numa pilha. Milhares de volumes encontram-se espalha- dos pela praça, empilhados a uma altura semelhante à das prateleiras que outrora ocupavam as bibliotecas de Al-Andaluz. A poesia de Mohammed Ibn Hani, as obras de filosofia de Moisés Maimónides e os artigos sobre Aristóteles por Ibn Rushd, tratados científicos de Abu Nasr al-Farabi, livros sagrados muçulmanos e judeus, todos julgados como heréticos e em igual perigo. O cheiro do início da violência impregna o ar.

    As obras proibidas irão ser queimadas à vista do público com o objectivo de instigar o medo. Se insistir em praticar a sua religião e não se converter, partilhará o mesmo destino.

    Duas formas etéreas flutuam sob o Arco das Orelhas dirigindo-se para a praça. Acima delas, uma dúzia de lóbulos cortados surgem repletos de sangue, pendurados na pedra angular, troféus das execuções do dia. Ibn al-Arabī, o filósofo sufi visionário, está vestido com uma túnica de fabrico caseiro de cor castanho-avermelhada. Os seus olhos penetrantes são os de um céptico devoto. Ao seu lado, flutua o caba- lista judeu, o rabino Abraham Abulafia, coberto de um vestido branco esvoaçante com mangas largas, que se assemelham a asas. Barbudos e com turbantes bem enrolados, as figuras pairam acima do chão numa névoa diáfana, incorpórea e invisível ao olho destreinado. Conversam em árabe, embora as palavras não sejam estritamente necessárias para místicos que se teletransportam e se demoram num mundo mais de trezentos anos além do seu próprio tempo.

    — Amanhã, quando o sol se puser, um milhão de volumes irá arder — lamenta Ibn al-Arabī. — Inúmeros exemplares do Alcorão, canções de amor imortais e poesias, bem como obras escritas por estudiosos judeus e muçulmanos sobre filosofia, medicina, religião, história, botânica, astronomia, matemática e geografia capitularão em breve a sua sabedoria ao fogo. Temo que A Luz do Esclarecimento esteja entre eles.

    Abulafia analisa o caos na praça, como se estivesse à procura da sua obra-prima. — É muito amável da sua parte preocupar-se com a minha obra, quando a sua pode estar também destinada a arder.

    Ibn al-Arabī gesticula na direcção dos trabalhadores que erguem as rampas de madeira, sobre as quais perecerão em breve as palavras dos seus irmãos. — Diga-me, Abraham, não há maneira de salvarmos estes tesouros da Inquisição? Teremos mesmo de ficar parados a ver o fogo do Tribunal do Diabo incinerar os últimos vestígios de uma época gloriosa?

    Abulafia baixa a cabeça. — Transportá-los em direcção à segurança está para além de nós. No entanto, não tenho dúvidas de que fomos convocados para este lugar com um propósito. — Olha para a luz do crepúsculo, para além da espiral da catedral ali perto, à procura de um sinal. Quando nada se revela, o rabino baixa novamente a cabeça. Talvez tenhamos falhado na nossa missão.

    —  Espera! — Grita al-Arabī, apercebendo-se de um trabalhador que se aproxima. Vestido com uma camisa puída e calças rasgadas, o jovem não deixa de se deslocar com nobreza. Pela forma como olha, as suas formas são apenas vagamente visíveis para ele.

    Ajoelha-se antes de falar. — O meu nome é Tahir e rezei para que os Jinn viessem ajudar-nos.

    —  Não somos espíritos nem humanos presos à terra, jovem, e precisamos da tua ajuda — Ibn al-Arabī resgata uma folha rígida de pergaminho de pele de carneiro dos restos dispersos de um códice e, utilizando uma caneta metálica finamente pontiaguda, desenha um mapa detalhado no verso.

    — Tahir, doce rapaz, tu serás as nossas mãos. Reúne todos os livros que conseguires, no pouco tempo que te resta até ao amanhecer. Irei camuflá-los sob um manto de invisibilidade e amanhã, quando regres- sares, poderás transportar a tua carga para um local seguro.

    —  Assim farei. — Tahir pega no mapa e esconde-o cuidadosamente debaixo da sua camisa.

    —  Hei! Tu! Volta ao trabalho! — Um guarda, que vê apenas um escravo muçulmano a falar sozinho, caminha em direcção ao trio. Abulafia sussurra rapidamente um feitiço e Tahir e a pilha de livros desaparecem da vista do soldado.

    —  Santa Mãe de Deus, o que foi isto? — O sentinela esfrega os olhos antes de encolher os ombros e retomar a sua vigília.

    Com o caminho livre, Tahir volta ao seu trabalho. Febrilmente, recolhe os livros e manuscritos condenados, protegendo-os num canto distante da praça. Ele repara em al-Arabī a embalar um grosso volume encadernado em cabedal e madeira. — Também devo levar esse?

    —  Só depois da nossa partida. — O sábio sufista passou a sua mão amorosamente sobre a palavra Zahara, gravada de forma orna- mentada na pesada capa. Ele abre o livro para revelar grossas páginas escritas em aramaico e noutra língua mais antiga, que mesmo ele não reconhece.

    Ouve-se o som de água a correr e à medida que Tahir observa, incrédulo, o texto iluminado começa a enevoar-se em ondas de ouro. A página inteira desapareceu, tendo sida substituída por um rectângulo escuro, misterioso e atraente.

    —  Temos de partir — sussurra Abulafia com urgência. — O Sol está a nascer.

    Entoa algumas palavras ininteligíveis e os Visitantes transformam-se em dois fluxos constantes de luz, fluindo através do portal com um ténue whoosh. A capa fecha-se e Tahir deposita reverentemente o livro em cima de uma pilha ao seu cuidado.

    Os sábios continuam a conversar no éter, viajando para trás no tempo a um ritmo deliberado. — Há ainda muito a fazer se quisermos que os livros sobrevivam. Vamos precisar de mais ajuda — observa al-Arabī.

    —  Não te preocupes, meu amigo — responde o rabino Abulafia.

    —  Encontrei o instrumento perfeito. Se tudo correr como planeado, ela irá chegar até nós na devida altura e desempenhar o seu papel.

    Capítulo Um

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    Fevereiro de 2019

    Era apenas mais um dia de trabalho, ou assim pensei. Encontrava-me a trabalhar na Universidade de Washington, a actualizar uma história que tinha escrito sobre Judith Talavera, a primeira mulher sefardita de Seattle a candidatar-se à cidadania espanhola. Pensei que seria simples, apenas os factos sobre a nova lei espanhola, apresentados por um advogado de Granada. Isto foi antes de um senhor idoso sentado ao meu lado em Kane Hall, que tocava no kipa azul-escuro preso à sua cabeça, murmurar: «Como é que eles nos querem de volta agora?»

    Uma mulher da fila atrás de mim respondeu. — Para que é que isso importa? Nada do que o governo deles possa oferecer nos irá compensar por sermos torturados e expulsos.

    Virei-me no meu lugar para encontrar os seus olhos obsidianos e perguntei-me por quantos outros falou ela ali na sala de conferências. Certamente que nem todos, já que mais de uma centena de pessoas ocupavam os lugares marcados. Embora alguns tivessem trazido os seus filhos adolescentes, havia uma escassez de brincadeiras e risos – o costume nas reuniões de Sefarditas. Algo de valioso andava no ar. Haveria vencedores e para eles o relógio não parava. Em oito meses, a Espanha iria deixar de aceitar novos candidatos.

    Estavam presentes alguns amigos da minha família, boas almas das quais eu tinha escolhido manter a minha distância. Fi-lo, não para ferir os seus sentimentos, mas para evitar que a nossa história partilhada se arrastasse para dentro de mim. Como poderia explicar que, a qualquer momento, eu podia ser arrastada para o passado enquanto ainda vivia no presente, obrigada a partilhar o pensamento daqueles que vieram antes de nós? Este estado alterado, considerado um «presente» pela minha avó Nona, mais parecia um flagelo que me perseguia conti- nuamente. Convencida de que nunca seria aceite, escondi a minha aflição e bani-me inteiramente do círculo íntimo e acolhedor desta comunidade. Se algum deles se tinha ofendido com a minha ausência, não havia maneira de saber.

    Deixei de lado os meus arrependimentos e, juntamente com três gerações de Sefarditas, escutei com veemência Luis Alcábez. O entu- siasmo do advogado era hipnotizante, à medida que ele clicava nos slides da sua apresentação, vestido de forma impecável num fato cinzento de três peças. Explicou como estava a ser oferecido um «direito de regresso sem precedentes» aos judeus que, depois de viverem durante séculos num país a que chamaram carinhosamente Sefarade, tinham sido brutalmente banidos pelo rei Fernando e pela rainha Isabel em 1492.

    —Terão de fazer um teste de espanhol e fornecer algumas provas da vossa herança sefardita. Depois disso, o único requisito é uma via- gem a Espanha, onde um notário público determinará se preenchem os requisitos e irá ajudá-los a apresentar a vossa candidatura formal.

    Quando chegou ao último slide, o Señor Alcábez aceitou responder a perguntas e uma mulher com grandes pérolas azul-turquesa à volta do pescoço como se fosse uma gola de pato, perguntou: «Podemos passar a cidadania espanhola aos nossos filhos?»

    —  Sim. Com os seus passaportes, poderão viajar e trabalhar em qualquer lugar dentro da União Europeia.

    —  E se alguém for apenas meio judeu?

    —  E se eu falar ladino e não espanhol puro?

    —  Posso contratar o meu próprio advogado?

    As perguntas multiplicaram-se, descendo em cascata até ao palco, e Alcábez respondeu a cada uma delas com a paciência de alguém que as tinha ouvido todas.

    Depois da inundação ter passado, levantei a minha mão. — Foi uma luta muito dura para que a lei fosse aprovada pelo governo espanhol?

    —  Durante a última década, tem havido um sentimento geral de que o erro cometido ao expulsar os judeus deve ser corrigido. A Federação das Comunidades Judaicas, que eu represento, começou a defender a lei em 2012. Foi aprovada três anos mais tarde.

    Estava curiosa para saber mais, e ainda havia outra coisa: a história enevoada da minha família, encimada pela agradável antecipação de uma grande história. No final da noite, esperei na fila para marcar uma reunião.

    Depois de me ter apresentado, Alcábez repetiu duas vezes o meu nome em voz alta. — Alienor Crespo. Soa familiar, mas não o consigo localizar. Pediu-me para lhe chamar Luis e eu gostei do seu calor genuíno.

    Encontrámo-nos no dia seguinte na casa de Judith Talavera, perto de Seward Park. Judith trabalhava como agente imobiliária, mas os seus caracóis cinzentos indisciplinados e o seu sorriso peculiar pareciam estar em desacordo com a saia e a camisola de malha e o fio de pérolas. A árvore genealógica bordada na sua sala de estar testemunhava o seu forte sentido de identidade Sefardita.

    Quando a entrevistei o ano passado, ela não estava tão certa sobre a minha identidade. «Crespo é um nome invulgar».

    «A família do meu pai viveu na Bélgica até meados da Segunda Guerra Mundial», respondi-lhe.

    « Ah, isso explica tudo. A maioria dos Sefarditas veio da Turquia ou da Ilha de Rodes para o Noroeste do Pacífico».

    «Eu sei. A família da minha mãe emigrou de Rodes na década de 1930».

    Ela respondeu a esta informação com um caloroso abraço. «Então, tu és descendente de Rhodeslis».

    Nessa manhã, Judith cumprimentou-nos como velhos amigos e ofereceu-nos sumo de laranja fresco e muffins de mirtilo. Contou-nos que tinha viajado recentemente para Espanha para concluir o processo e que esperava a aprovação da sua candidatura em breve.

    Quando Luis a felicitou, Judith não parecia tão feliz como eu espe- rava. — Demorou mais tempo do que eu alguma vez tinha imaginado e eles fizeram-me andar às voltas. Mas valeu a pena. Em breve, serei uma cidadã de pleno direito.

    —  Vai mudar-se para Espanha? — perguntei.

    Ela abanou a cabeça. — O importante é reclamar o que é devido a mim e à minha família.

    Alcábez bebeu outro gole de sumo de laranja. — Alienor, já pensou que podem haver parentes seus a viver em Espanha? Posso dar uma vista de olhos. Quem sabe, algo de especial pode estar à sua espera.

    Não me tinha ocorrido tomar medidas para me tornar uma cidadã espanhola. Senti-me como uma argumentista que tinha sido convidada a desempenhar um papel no seu último guião. Antes que eu pudesse expressar as minhas dúvidas, Alcábez continuou o seu discurso de vendas.

    —  Assim que obtiver o seu passaporte, torna-se elegível para emprego em qualquer parte da UE. Uma perspectiva emocionante, imagino.

    Ele estava certo. Esta era uma verdadeira oportunidade, mesmo estando a milhares de quilómetros fora da minha zona de conforto. Quando o Post-Inteligencer se rendeu à blogosfera e encerrou a sua versão em papel, os jornalistas de Seattle tornaram-se uma espécie ameaçada de extinção. Claro, tive a bênção de trabalhar como corres- pondente para o Seattle Courier, o único jornal diário sobrevivente. Mas não foi o suficiente para conseguir pagar as contas. Especialmente numa cidade onde as rendas tinham subido mais depressa do que o número de técnicos que chegavam da Califórnia com cartões-chave pendurados ao pescoço. Perguntava-me como seria trabalhar para múltiplos jornais de notícias na Europa. O meu espanhol estava um pouco enferrujado, mas eu era fluente na língua quando trabalhei para o Projecto Honey Bee no Peru. Talvez fosse altura de mudar.

    Antes de nos despedirmos, Alcábez ofereceu-se para me pôr em contacto com um notário em Espanha. — Mico Rosales ajudá-la—á a apresentar formalmente os seus papéis quando chegar a altura. Avisem-me quando estiverem prontos. — Fez com que soasse a um negócio fechado.

    Fora da casa de Judith Talavera, o vento de Inverno na Baía de Andrews ocupava-se a pontapear as ondas, que voltariam garantida- mente um caiaque caso alguém fosse suficientemente imprudente para remar com este tempo. Em que é que eu me tinha metido?

    Conduzi até ao edifício do Courier, apanhei Todd Lassiter no seu escritório e o seu telefone iluminou-se enquanto geria com perícia de malabarista os repórteres que trabalhavam em dezenas de histórias. A janela atrás dele abriu-se para se esconder na linha do horizonte em constante mudança, e que ele raramente tinha tempo para contemplar. Todd rabiscou algumas notas num Post-it azul e acenou-me para que me sentasse.

    —  O que posso fazer por ti, Allie? — Todd dilatou os seus olhos cinzentos-azuis, levantando as sobrancelhas hirsutas. A sua tez aver- melhada não provinha da bebida, como alguns suspeitavam. Foi o resultado de semanas no mar num veleiro de madeira, que ele próprio tinha construído. Num campo cada vez mais dominado por super-

    -bloguers que reduziam tudo a duzentas e cinquenta palavras ou menos, o interesse genuíno do editor numa cobertura relevante e profunda acabou por ganhar o meu respeito.

    As visitas a Todd tinham uma forma de reforçar o meu compromisso com o que nós jornalistas fazemos melhor, o retrato da complexidade sem julgamento. Damos igual tempo ao salmão e à barragem hidroe- léctrica, ao lobo e ao agricultor, ao polícia e ao criminoso. O jornalista poderá simpatizar com um ou outro, desde que não altere os factos para agradar a si próprio. E se a sua editora o pressionar a ver as coisas de forma diferente, poderá sempre cingir-se a tornar-se trabalhador independente, tal como eu fiz.

    Há três anos, no dia em que Todd me contratou, tinha-me juntado a ele para almoçar no 13 Coins, agora previsto para demolição para dar lugar a mais condomínios. Sentámo-nos no balcão de carvalhomaciço, lado a lado nas nossas cadeiras almofadadas giratórias e ele perguntou-me o que eu mais gostava em ser jornalista.

    «Segurança do emprego», respondi, provocando um ronco ao meu futuro empregador. Rumores acerca do dilúvio de layoffs que se avi- zinhavam começavam a surgir. Todd levantou o seu copo de água.

    —  Um brinde ao Quarto Poder, que se agarra ao que resta do bote salva-vidas.

    Ele apreciou a minha honestidade na altura, e eu esperava que ele aprovasse os meus planos agora. — Lembras-te de Judith Talavera, a mulher de Seward Park sobre a qual escrevemos há algum tempo?

    —  Claro. Não estavas a planear escrever um seguimento?

    —  Dou-te algo melhor. Decidi seguir os passos de Judith e passar pelo processo de me tornar eu própria uma cidadã espanhola.

    —  Allie, foste sempre uma repórter que se aproxima demasiado do seu objecto de investigação, mas não será isto um pouco extremo?

    —  Porquê? Como posso ser diferente da Sra. Talavera? Disseste no ano passado que desejavas que tivéssemos os recursos necessários para enviar alguém para cobrir a sua viagem a Espanha. Ofereço-me para ir e desenvolver a minha própria história por uma fracção do preço que pagarias a um membro da equipa para voar até lá.

    —  Está bem, está bem! — resmungou Todd. — Já deste a tua opi- nião e lamento que não paguemos as despesas aos correspondentes. Dito isto, é o tipo de odisseia de que os leitores gostam, a procura de identidade e tudo o que esta implica. E tendo em conta a qualidade do teu trabalho no passado... — Fez uma pausa. Nunca foi pessoa para distribuir elogios e arriscar-se a encorajar um freelancer a pedir um aumento.

    —  Lamento não estar disponível para quaisquer tarefas antes de partir, Todd. Enviar-te-ei a história de Mario Flores esta noite. Talvez haja protesto público suficiente para convencer o Exército a proteger a sua família da deportação enquanto ele está além-mar. Preciso também de aperfeiçoar o meu espanhol e de entrar em contacto com um rabino que possa atestar a minha ascendência.

    —  Só tu para te lembrares de algo como isto.

    Olhei para ele com inquietação. Teria o Todd finalmente adivi- nhado o meu segredo bem guardado? Nunca lhe tinha confidenciado como escrever a notícia era tudo o que havia entre mim e o tumulto interior que ameaçava puxar-me para as profundezas. Mas Lassiter já estava ao telefone com outro repórter a falar sobre prazos, enquanto me acenava em despedida.

    Desde criança que lutei contra um lado sombrio da minha psique, que brincava mais desenfreadamente com o espaço/tempo do que os buracos de verme de Stephen Hawking. Não fazia ideia de onde tinha vindo este dom, ou porquê. Por vezes atribuía-o ao facto de nunca ter visto a minha mãe dançar. Pelo menos, enquanto foi viva.

    Capítulo Dois

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    Ao sair do edifício do Courier e ao caminhar pela descida íngreme de Denny Way até à paragem do eléctrico em West-lake, pude ouvir a mãe cantarolar em Ladino, a língua dos ex-judeus de Espanha, tão claramente como se ela tivesse voltado à vida e estivesse a deslizar para o vestido de veludo preto que usava sempre na sua aula de dança andaluza. Cabia-me ficar na ponta dos pés e puxar o fecho até ao topo, tendo o cuidado de não o deixar emaranhado no seu cabelo luxuriante. Ela prendia as correias nos seus sapatos de dança vermelhos com os tacões grossos, juntava as longas tranças pretas num rolo em cima da cabeça e atirava-me um beijo ao sair pela porta. Acordada depois da hora de deitar às nove da noite, ouvia o som da chave na fechadura da porta de entrada no andar de baixo antes de me deixar adormecer. Mesmo agora, isso incomoda-me. Na única noite em que não consegui manter os olhos abertos e não consegui manter-me vigilante, a minha mãe também me falhou. De manhã, o meu pai tomou coragem e contou-me que tinha havido um acidente de trânsito fatal na ponte Ballard. A minha bela mãe tinha desaparecido.

    A minha mãe sempre me tinha encharcado de afecto, encorajando cada pequena curiosidade. Se andássemos pelo centro da cidade e eu perguntasse: «Porque é que põem aqui os edifícios mais altos?», ela diria: «Um dia serás uma grande arquitecta.» Quando me levou a patinar a Greenlake e eu vi uma águia empoleirada num cedro alto, ela chamou-me «naturalista nata». Certa vez, deixou-me ficar acordada até tarde a ajudá-la a coser um novo fato de dança. Por vezes, parecia triste, e quando lhe perguntei porquê, confidenciou-me o seu desejo, mantido em segredo do meu pai trabalhador, de viajar pelo mundo e tocar as suas castanholas num café espanhol. A sua ausência sugou a música da minha alma e a esperança do meu coração.

    Durante os sete dias após o funeral, familiares e amigos próximos passaram por aqui para chorar connosco. Nas suas vestes rasgadas pareciam-se mais com refugiados do que vizinhos. Sentados em almo- fadas no chão, falaram sobre a natureza amorosa da minha mãe e leram em voz alta um livro místico chamado O Zohar. Estes sefarditas orientais, vindos do lado da minha mãe, eram mais numerosos do que os europeus do lado do meu pai, e tinham imigrado da Ilha de Rodes para Seattle na década de 1920. Alguns dos amigos mais velhos da minha mãe trouxeram sheshos, seixos tirados das praias da ilha, para colocarmos com uma oração cada vez que visitamos a sua lápide.

    O meu pai, desprovido de recursos, geralmente tão engenhoso, estava perdido face ao pesar avassalador da sua filha. Elias era um professor inglês que procurava consolo nos livros e que dizia muitas vezes que pensava em mim como uma «alma velha», não percebendo que eu tomaria este elogio intencional como uma reprimenda, realçando o meu fracasso em ser uma criança. Se a minha mãe era uma trovoada cujas chuvas torrenciais tanto me inquietaram como me alimentaram, o meu pai era a neve, silenciosa e profunda. Após a morte dela, ele sugeriu que eu tentasse imaginar a minha mãe a dançar no céu. Por muito que tentasse, tudo o que conseguia conjurar eram os restos do vestido de veludo que ela tinha usado na noite em que morreu – cor- roído, ensanguentado e espalhado pelo tabuleiro da ponte.

    Quando o meu pai regressou ao trabalho na Universidade de Seat- tle, a avó Bella, conhecida carinhosamente como Nona, veio morar connosco. Apesar da minha depressão, ela insistiu que eu voltasse à escola. «A madrugada surge quando está mais escuro», era o seu ditado favorito. Eu sabia que resistir era inútil.

    Naquele primeiro dia, no caminho de casa para a Escola Básica John Hay, o divertimento de enganar o substituto da segunda classe para nos deixar sair para intervalo uma hora mais cedo dissolveu-se numa perda dolorosa. Parei para limpar os olhos e ajustar a minha mochila. No momento seguinte, a mãe estava lá, descendo ligeiramente os degraus até à praia, no fundo de um penhasco no Parque Discovery. E a sua versão jovem não estava sozinha.

    Uma versão juvenil do meu pai agarrou a mão da minha mãe, abandonando descuidadamente os seus sapatos num tronco, largando numa corrida. As ondas bateram sobre os seus pés descalços, batendo em uníssono na areia compacta. O rosto da mãe brilhava à luz do sol, tal como o seu batom cor-de-rosa e brilhante. Senti todo o meu ser a alcançá-la. As minhas mãos formigavam de saudade. E da mesma forma que ela me tinha persuadido a nadar no corpo de um peixe encantado através das suas histórias de embalar, os meus próprios pensamentos e sentimentos fundiram-se impossivelmente com os dela e eu tornei-me a minha mãe.

    Olhando para sul através da Baía de Magnólia, admiro o reflexo de uma torre de escritórios cintilante, no centro da cidade, a ondular sob a água, intocada pela brisa salgada a acariciar-me o rosto. «Eleanora, vamos dar um mergulho!» grita Elias. Sem esperar por uma resposta, ele puxa-me para fora até à profundidade dos joelhos. Os meus dedos dos pés ficam imediatamente azuis. «Estás louco! Vamos ambos apanhar hipotermia e morrer no dia antes do nosso casamento. Pensa em todos os convidados desiludidos e prendas desperdiçadas».

    «Desmancha-prazeres!» Ele finge estar zangado e carrega-me às costas, levando-me de volta para terra.

    Alguém deixou alguns pedaços meio queimados de lenha à deriva e construímos uma pequena fogueira, o suficiente para aquecer as nossas pernas geladas, sem chamar a atenção. — Não sou tão aborrecido como pensas que sou — provoca-me Elias. Tremendo com frio, agarro-lhe o braço e puxo-o à volta da minha cintura. — Tu és o meu homem do mar, com uma profundidade insondável.

    Este é o nosso momento. De mais ninguém.

    Tento alguns passos de dança na areia, estranhos de início, até que a música pulsante ao estilo cigano na minha cabeça cresce mais alto e controla os meus membros. Depois, não havia quem me parasse.

    Fiquei extasiada por finalmente ter visto a mãe a dançar. Só mais tarde é que o meu eu adulto se encolheu com a ideia de ter tomado o lugar da minha mãe durante um interlúdio romântico. Talvez ela quisesse que eu visse o lado mais expansivo do meu pai.

    Como eu era inocente, com o meu cabelo longo e liso enrolado por água do mar imaginária, saltando ao longo da Avenida Taylor numa euforia, apanhando vislumbres rápidos do topo arredondado da torre Space Needle a espreitar por cima dos telhados, como um OVNI. Estava quase a chegar a casa quando o meu pesar regressou em dobro, uma dor afiada como o vidro de um pára-brisas a quebrar-se através dos pesadelos que se seguiram à morte da mãe. Fiquei como um zombie do lado de fora do nosso bangalô familiar de dois andares, um cativo forçado a participar num jogo cruel no qual perdia a minha mãe uma e outra vez, e cada vez mais dolorosa do que a anterior. Não conseguiria suportar outra rodada.

    Resolvi de imediato desligar a parte do meu cérebro que me pre- gava partidas. Fazia isso proferindo as palavras mágicas que a minha mãe partilhou comigo quando estremeci de medo perante um enorme guaxinim à espreita na nossa entrada, convencida de que ele me ia levar.

    «Eu pertenço a mim, eu pertenço a mim», repeti, enquanto ela me observava a atravessar o local no asfalto onde eu tinha visto o monstro.

    Nessa tarde, parei

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