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Andurá: Onde Tudo é e não é
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Andurá: Onde Tudo é e não é
E-book211 páginas3 horas

Andurá: Onde Tudo é e não é

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Sobre este e-book

Andurá: onde tudo é e não é, segundo romance de João de Jesus Paes Loureiro. Por meio da literatura, Paes Loureiro constrói uma cidade do presente, habitada por qualquer um de nós e que se pode situar em qualquer lugar do planeta. Nela, tudo é e não é.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento1 de out. de 2023
ISBN9786555851540
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    Andurá - Loureiro Paes

    Vozes veladas

    Acho que era e não era.

    As sombras, talvez em consequência da maldição lançada sobre a cidade, vinham separando-se dos corpos e vagavam pelas ruas. Seguiam caminhos diversos dos corpos que lhes deram origem feito folhas de uma árvore levadas pelo vento. Como se estivessem em busca de um caminho próprio, ou recusassem seguir os corpos que se projetavam na luz e no mais escuro do inconsciente. Aos poucos, elas saíam da horizontalidade visível e ficavam de pé, sombras andantes que mantinham a forma dos seus corpos geradores. Enquanto isso, as pessoas das sombras perdidas sentiam-se como divididas ao meio. Não conseguiam fazer outro caminho que não fosse também o de procurar a sua sombra. Sombras que não queriam continuar sendo sombras de ninguém. Porém, enquanto as sombras desejavam ser livres para seguirem a luz da existência, que não era sua luz própria, as pessoas não tinham paz na falta de seu outro lado inconsciente de sombra. Ao mesmo tempo em que os corpos procuravam o seu lado escuro pelas ruas iluminadas, as sombras se escondiam nos becos, atrás das árvores, no fundo dos quintais, no vão das horas, nos porões, no subterrâneo da igreja, no fundo do rio daquilo que não tem sentido aparente. No lugar das coisas reprimidas ou renegadas. As sombras antes eram escravas das pessoas, agora cada pessoa é que delas se tornara escrava. Escravos de suas sombras perdidas. Precisavam encontrá-las para libertarem-se. Sentiam-se escuras, como se a sombra agora descobrisse a sua pele, seu corpo, vazado para fora de cada poro. Uma espécie de danação foi tomando conta dessas pessoas das sombras perdidas. No entanto, bem antes disso acontecer, a partir do dia em que a cidade foi amaldiçoada, tudo parecia normal em Andurá. As sombras seguiam as pessoas de quem eram a sua outra parte. Ou, pura. Ou, pecaminosa. As sombras sendo sombras de alguém. Andurá. Uma cidade igual às outras. Com as idas e vindas que demarcam as imperfeições humanas.

    Capítulo 1

    O homem que viera no barco que transportará o Circo Garcia desde a cidade de Maralém até Andurá, à margem do rio Tocantins, na Amazônia, permanecia sentado no banco da praça onde seria instalado o circo. Olhava dentro da mala de couro típica das feiras de artesanato da Paraíba, a orelha cortada do trabalhador rural que matara sob encomenda e trazia embrulhada em plástico transparente. Um tipo de estatura mediana, pele clara tostada pelo sol, voz forte, temperamento irritadiço, cabeça volumosa redonda um pouco rasa no alto, testa ampla, nariz regular e um tanto pontiagudo, lábios finos, orelhas grandes e pescoço curto. Lembrou com indiferença o rosto do homem que matara, o terror tinha a forma de um grito mudo e imóvel. Apenas arqueou a sobrancelha direita, que era o gesto instintivo de pontaria quando atirava, ou de preocupação. Jamais alguém o vira manifestar qualquer sinal de raiva ou fraqueza. Medo, naquela cara frequentemente imóvel como se fosse a sua própria fotografia na moldura dos cabelos cortados rente, de barba curta e malfeita, impossível. Nem mesmo o relâmpago daquele instante em que olhava a fétida orelha de quem matara por encomenda provocava-lhe o sestro de um sentimento insignificante sequer. Aquele-um que assassinara com um só tiro, quem nunca tinha visto antes e de quem não sabia sequer o nome. Junto com as roupas, carteiras de cigarro, revólver e uma caixa de balas, estava também a prova da missão cumprida para entregar aos que lhe haviam encomendado aquela morte. Tinha recebido apenas o correspondente à metade do serviço. Foi quando se ouviu a voz estridente do proprietário do Circo rasgando asperamente o silêncio: – Vamos levantar o céu!. Era o sinal para que a garotada e os componentes da trupe em alvoroço corressem a fim de segurar as pontas de compridas cordas atadas em uma das extremidades do que seria o mastro de madeira central de sustentação da lona de cobertura e levantá-lo, elevando-a, armando a estrutura do circo.

    O grande mastro que estava deitado no chão, como se fosse a lança inútil de um guerreiro ausente, ao ser erguido foi fincado na vertical, fixando-se no buraco anteriormente cavado no chão recoberto de capim. As quatro cordas nele atadas, e que balançavam pendentes do alto, foram esticadas e presas nos tarugos de madeira cravados no chão, à semelhança de quatro pontos cardeais. A grande lona circular, tendo o seu centro de sustentação fortemente atado na extremidade superior do mastro, restou pendida, gigantesco morcego balançando no ar. De imediato, como numa coreografia espontânea, todos correram para segurar a irregular borda circular da cobertura. E quando a lona foi aberta, feito imenso guarda-chuva abrindo-se ao ser levantado, parecia que um pequenino céu havia sido armado sobre o picadeiro. Na superfície côncava interna estava pintado, por entre outras figuras simbólicas, o mapa celeste.

    O matador de aluguel, que não tinha como ocupar o tempo fora do ofício de matar, prestativo e solidário participava daquela atividade. No entanto, deixara sobre o banco da praça, no qual estivera sentado, a curtida mala de couro enodoada de viagens e desleixo.

    Depois de armado o circo, a criançada correu alvoroçada para o centro do picadeiro. Os artistas e trabalhadores passaram a se desdobrar em outros afazeres de fixação dos artefatos para espetáculos: suspendiam trapézios, desencaixotavam utensílios de cena, parafusavam os suportes dos degraus da arquibancada, montavam os módulos da cerca circular que demarcava simbolicamente os limites entre picadeiro e plateia. Grupos de curiosos se amontoavam diante desse encantamento.

    Enquanto isso, o homem apressara-se em buscar a sua mala deixada no banco de madeira da praça, pois pretendia encontrar-se com o madeireiro que lhe havia encomendado o serviço e continuar imediatamente a viagem. Tinha pressa de entregar a prova da missão cumprida, receber o restante do pagamento e seguir no rumo de seu destino errante que a cartomante do circo havia pressentido na carta do arcano sem nome, ao ler-lhe a sorte no tarô de Marseille, durante a viagem no barco.

    A garotada atropelava-se alvoroçada. Eu fiquei sentado no chão do picadeiro, perdido na contemplação daquela abóboda de lona curtida cheia de figuras, página solta de algum caderno de desenhos imaginários pairando no ar. Deitei de costas no chão de terra e capim do picadeiro para melhor apreciar aquela pintura que mais tarde compreenderia ser uma fresta entreaberta no real, para as rotas imprevisíveis das viagens no devaneio. Estava dibubiando, como se diz, di bubuia, flutuando nas águas da imaginação. Di bubuia é uma expressão que o povo ribeirinho criou para dizer da atitude do canoeiro quando, a fim de descansar da jornada, deixa que a canoa se desloque di bubuia, isto é, boiando ao sabor da correnteza, ou puxada por um marapatá flutuante em que fora amarrada. De tanto que vi tal cena, observei que, se o corpo descansa, a imaginação trabalha criando lendas, mitos, oralidades, desenhando amores no caderno das coisas impossíveis a não ser no sonho desperto. É dibubuismo, mas não preguiça! Não sei o tempo que permaneci perdido naquela contemplação, o corpo imóvel levado pela correnteza de acasos nesse dibubuismo casual.

    Aquele toldo de lona aberto em cúpula cobrindo o Circo, pairando no alto, diante dos meus olhos, deixou-me perplexo e isolado do que acontecia em redor. A lona de cobertura, na superfície côncava interna, tinha sido pintada em Maralém por um excelente artista, pouco conhecido, vítima dessa forma de isolamento que confina o talento a uma quase obscuridade: Augusto Morbach. Ele comprimira, nessa admirável tela abobadada, o seu conhecimento livresco e o mundo imaginário, cercado nas bordas por um arco-íris de imenso brilho cromático. Pintou na cobertura flocos de nuvens em vasto azul, o firmamento, o sol luminoso e incansável. A lua redonda sempre olhando para o sol que a ilumina, determinando a passagem do tempo em dias e noites, além de ensandecer os animais na lua nova e as mulheres menstruadas, na lua cheia. Entre as numerosas estrelas pintou ainda Vênus bela, a estrela mais brilhante e mulher da lua. Como quem fosse recriando o céu na terra. Não esqueceu a Via Láctea, estrada luminosa que serve de caminho da anta. Pintou também o Cruzeiro do Sul onde a imaginação crucifica a realidade. Esboçou em prata brilhante, as Sete Estrelas brincando de roda; e a constelação do Beija-Flor. Reverenciado por todos está Mainamy, beija-flor chefe, vindo de um lugar onde, mesmo quando ainda não existia água, a deusa Mayara fez um poço cristalino com flores para matar a sede às estrelas e aos beija-flores. Bonito! Muito lindo. Olhei para o lado e só então percebi que Clarinha, a mais bonita aluna de minha turma, no Grupo Escolar de Andurá, tinha deitado na grama, quase ao meu lado, encantada em olhar a pintura da abóbada de lona pairando no ar feito uma revelação. Pura coincidência? Acaso? A coincidência é a metáfora do acaso. Meu coração deu um salto e me levou ao prêmio de outro céu inesperadamente estendido ao meu lado... Agora olhávamos como um só olhar para esse outro céu que nos abrigava. Víamos, sob o sol de verão, uma criança empinando seu papagaio de papel. Na estação das chuvas alagando tudo, Morbach pintou a Constelação da Canoa. Pintou, além do já visto, o índio e a índia saídos de suas redes, jamais separados, seguidos por vagalumes que bailavam no verde da várzea, iluminados pela prateada luz da lua. No final do caminho florescia um Tambatajá. Pousado sobre ele, um Uirapuru.

    Olha um Uirapuru! Pra mim o Uirapuru é a flauta mágica da natureza.

    Clarinha festeja, entusiasmada.

    (Lá fora, o assassino de encomenda amargava a ideia de perder o dinheiro a ser pago pela morte consumada por ele, visto que ainda não encontrara a mala na qual a prova do mandado, a orelha do morto, estava guardada num saco plástico transparente. Temia, pela possibilidade de alguém abrir a mala e o denunciar à polícia, a prisão, o julgamento no tribunal e sem poder usufruir do trabalho perpetrado. Antevia a figura temida do juiz exigindo, aos jurados, rigor na punição, o povo gritando e aplaudindo para que fosse condenado ou morto.

    Tanto sacrifício para acabar condenado a apodrecer na merda de prisão de uma cidade qualquer.)

    Eu continuava olhando aquele tempo de quimeras e tormentos comprimido na lona que cobria o circo. Mas, não enxergava mais a pintura. Somente via, mesmo sem virar a cabeça, o rosto encantador de Clarinha deitada ao meu lado. Respirava com delicadeza para aspirar o ar que ela havia expirado, lambia com os olhos naquela pintura a carícia que seu olhar deixava nas figuras, ia guardando em meus ouvidos o murmúrio de sua voz à minha ilharga. Em torno dessa paisagem encantada que nos aproximava, o pintor pintara caravelas chegando com a cruz de malta nas velas enquanto índios rendidos eram trucidados impiedosamente pelos conquistadores. Padres, catequizando gentios, com a mão esquerda retiravam maracás sagrados e com a direita entregavam a cruz e cobriam de panos as vergonhas cerradinhas das índias. Ajuricaba ferido por Belchior Mendes de Moraes se tinha atirado às águas puras do rio Negro inundando-as de sangue. Agonizava, ferido de morte, o cabano Angelim, sendo seu corpo arrastado pelo barranco, enquanto eram atirados no rio corpos mortos de tupinambás, destroçados pelos bacamartes ou espadas do destino. No círculo mais amplo viam-se as Amazonas recebendo os guerreiros brancos no lago Espelho da Lua, enquanto botos alvoroçavam-se nas águas. Todos dançavam e todos admiravam essa dança frenética e sensual. Augusto Morbach pintara seringueiros extraindo látex numa estrada do seringal. Habitantes da gleba sendo expulsos de suas terras. Incêndios devorando partes da floresta e a devastação destruindo castanhais, o verde e a vida imensa da natureza. Índios e ribeirinhos em legiões fugindo do paraíso de suas terras.

    Fui arrancado da correnteza do devaneio pelo desespero em alta voz que vinha do lado de fora, completando a agitação daquele homem furioso a procurar sua mala que havia desaparecido. Finalmente, a encontrara. Uma pessoa do circo a havia guardado na hora em que ele fora ajudar na elevação do toldo de lona. Ninguém dos que olhavam a cena poderia entender a razão de tanto furor por essa corrompida mala de couro amarrada com uma corda e que parecia não conter objetos de grande valor. Mas, como quem perde o pouco que tem, perde tudo... Alegando que não tinha como seguir viagem, aquele homem pediu ao dono do circo que o deixasse ficar ajudando no que precisassem, pela comida e dormida, enquanto, em segredo, ele tentava encontrar o mandante de quem receberia pagamento pelo cumprimento do contrato. Não pretendia incomodar a polícia local, pelo possível roubo da preciosa mala:

    Não gosto de gente da polícia. Meus problemas, eu mesmo resolvo.

    Uma vez que ele já se enturmara com o pessoal circense durante os dias no barco, o dono do circo, solidário, concordou. Ele chegara mesmo, na viagem, a treinar com o atirador de facas, pois dizia ser a única coisa que o atraía nos trabalhos do circenses. Porém, na maior parte da viagem, ficava de cara amarrada, ruminando silêncios.

    Sem dar conta do tempo, Clarinha e eu ficáramos deitados na grama contemplando a pintura na abóbada de lona que cobria o circo. Quando dei por mim, ela já tinha partido. Olhei para um e outro lado. Tudo ficara vazio ainda que os trabalhos, vozes e ruídos tivessem aumentado. Tive a sensação de que passara por mim o anjo de uma felicidade súbita e experimentei, pela primeira vez, aquele sentimento de queda no abismo de uma dúvida. O que, na sala de aula, ou na rua, era mais difícil. Na sala, por força da disciplina. Nas ruas, devido à inimizade entre nossas famílias, que durava já uma eternidade. Clarinha tivera, há pouco, a iniciativa de se aproximar. Lembrei de que quando estávamos deitados na relva, ela cravara em mim o seu olhar e desabrochou um riso travesso. Foi essa a lembrança que ficou.

    *

    O circo, em área cedida pela prefeitura, ocupa três partes do espaço: uma, onde foi instalado o picadeiro e as arquibancadas, sob a lona maior; outra, estrutura semelhante, embora um pouco menor, tenda que abriga dois ou três camarins que servem de moradia, sendo um deles para o dono do circo, sua mulher e uma filha adolescente, além de guardar os equipamentos de cena e a cozinha. Finalmente, uma terceira tenda, mais coletiva, com banheiro, sanitário, materiais utilitários e onde são atadas livremente as redes dos outros membros da equipe. Como o tombadilho de um barco, desses que viajam pelos rios da região. De animais, só havia três cães amestrados, dois preás que entravam aleatoriamente nas casinhas organizadas em círculo na arena, na hora em que havia um jogo de apostas em dinheiro com os presentes no espetáculo, para adivinhar em qual das casinhas entraria o preá. E um papagaio que dizia obscenidades, para delícia do público.

    Vozes veladas

    Dizem e não dizem que Andurá é uma cidade onde as pessoas podem perder a sua sombra, imagem visível da sua alma contraditória, quando há um desacordo entre o que as pessoas são e aquilo que, nos porões do inconsciente, desejariam ser. A única explicação a ressoar na concha do tempo no ouvido de seus habitantes é a de que esse acontecimento das sombras perdidas com

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