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Investigação sobre a mente humana segundo os princípios do senso comum
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E-book384 páginas5 horas

Investigação sobre a mente humana segundo os princípios do senso comum

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Sobre este e-book

A mais importante obra de Thomas Reid traduzida pela primeira vez para a língua portuguesa!

Escrita em 1764, a Investigação sobre a mente humana segundo os princípios do senso comum é a concretização de vinte anos que Reid dedicou à pesquisa profunda e criteriosa do Tratado da natureza humana, de David Hume. Um dos objetivos principais de Reid era compreender as razões que fizeram com que Hume chegasse a conclusões tão céticas e pessimistas com relação aos limites do conhecimento humano.

Longe de ser uma obra destinada apenas a filósofos e estudantes de filosofia, a Investigação é também uma das principais fontes das escolas de teologia reformada do século XIX, como a Old Princeton Theology, representada pelos gigantes Charles Hodge, A. A. Hodge e B. B. Warfield. Além disso, Reid tem influenciado diversos filósofos contemporâneos, cristãos e não cristãos, como Peirce, James, Dewey, Sidgwick, Moore, Russel, Wittgenstein, Wolterstorff, Alston, Plantinga, Greco, entre outros.
IdiomaPortuguês
EditoraVida Nova
Data de lançamento10 de mai. de 2023
ISBN9786559671953
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    Investigação sobre a mente humana segundo os princípios do senso comum - Thomas Reid

    Capítulo 1

    Introdução

    Seção I

    A importância do tema e o método para investigá-lo.

    O tecido da mente humana é curioso e maravilhoso, assim como o do corpo humano. As faculdades da primeira estão muito sabiamente adaptadas a seus diversos fins, como o estão os órgãos do segundo. Ademais, é razoável pensar que, por ser a mente um trabalho mais nobre e de ordem mais elevada do que o corpo, o Arquiteto divino empregou em sua estrutura ainda mais sabedoria e habilidade. É, portanto, um tema de investigação que por si só é extremamente valioso, todavia torna-se ainda mais valioso devido à grande influência que o conhecimento de tal assunto exerce sobre todos os outros ramos da ciência.

    Nas artes e nas ciências que têm menos ligação com a mente, suas faculdades são os motores que devemos empregar; e quanto mais entendermos sua natureza e seu uso, seus defeitos e seus distúrbios, mais habilmente poderemos aplicá-los, e com maior sucesso. Contudo, nas artes mais nobres, a mente é também o tema sobre o qual operamos. O pintor, o poeta, o ator, o orador, o moralista e o estadista tentam operar sobre a mente de diferentes maneiras, e para diferentes fins; e eles são bem-sucedidos se manusearem bem os fios da estrutura humana. Tampouco podem suas diversas artes ter uma base sólida, ou se elevar à dignidade da ciência, até que sejam construídas sobre os princípios da constituição humana.

    Os sábios agora concordam, ou deveriam concordar, que não há apenas um caminho para o conhecimento das obras da natureza; o caminho da observação e da experimentação. Por causa de nossa constituição, temos uma forte propensão a buscar regras gerais a partir de fatos e observações particulares, e aplicar tais regras gerais para explicar outros efeitos ou para nos direcionar à produção destes. Esse procedimento de entendimento é familiar a toda criatura humana nos assuntos corriqueiros da vida, e é o único procedimento através do qual qualquer descoberta real pode ser feita na filosofia.

    O homem que em primeiro lugar descobriu que o frio congela a água e que o calor a transforma em vapor procedeu a partir dos mesmos princípios gerais — e com o mesmo método — que Newton descobriu a lei da gravitação e as propriedades da luz. Suas regulae philosophandi são máximas do senso comum, e são exercidas todos os dias na vida cotidiana; e aquele que filosofa por outras regras, seja em relação ao sistema material, seja em relação à mente, erra em seu objetivo.

    Conjecturas e teorias são criações do homem e sempre serão bastante diferentes das criações de Deus. Se quisermos conhecer as obras de Deus, devemos consultá-las com atenção e humildade, sem nos atrevermos a acrescentar qualquer coisa nossa ao que elas declaram. Uma interpretação justa da natureza é a única filosofia sólida e ortodoxa: o que quer que adicionemos de nossa parte é apócrifo e não tem autoridade alguma.

    Todas as nossas curiosas teorias sobre a formação da terra, a geração dos animais, e a origem do mal natural e moral, enquanto caminham para além de uma mera indução a partir de fatos, são vaidade ou loucura, não menos que os vórtices de Descartes ou o archaeus de Paracelso. Talvez a filosofia da mente não tenha sido menos adulterada por teorias que a filosofia do sistema material. A teoria das ideias é, de fato, muito antiga e foi bem recebida universalmente; mas, como nenhum desses títulos pode dar-lhe autenticidade, elas não devem impedir um exame livre e cândido dela, particularmente nessa época em que ela produziu um sistema de ceticismo que parece triunfar sobre toda a ciência, e até sobre os ditames do senso comum.

    Tudo o que sabemos sobre o corpo é devido à dissecação e à observação, e deve ser por meio de uma anatomia da mente que poderemos descobrir seus poderes e princípios.

    Seção II

    Os impedimentos para o nosso conhecimento da mente.

    Todavia, é preciso reconhecer que esse tipo de anatomia é muito mais difícil que o outro e, portanto, não se deve estranhar que o homem tenha feito menos progresso nessa área. Lidar, de forma adequada, com as operações de nossas mentes, e fazer delas um objeto do pensamento, não é algo fácil nem mesmo para pessoas contemplativas, e para a maioria dos homens é algo bem próximo ao impossível.

    Um anatomista de sorte pode ter a oportunidade de examinar com seus próprios olhos, e com igual precisão, corpos de diferentes idades, sexos e em diferentes condições, de maneira que o que é defeituoso, obscuro e sobrenatural em um poderá ser discernido com clareza, e em seu mais perfeito estado, em outro. Contudo, o anatomista da mente não tem a mesma vantagem. É apenas sua própria mente que ele pode analisar com algum grau de precisão e distinção. Esse é o único sujeito que lhe é possível observar. A partir de signos externos, ele poderá compilar as operações de outras mentes, mas esses signos são, em sua maioria, ambíguos, e devem ser interpretados por aquilo que ele percebe em seu próprio interior.

    Desse modo, se um filósofo nos pudesse delinear, de forma distinta e metódica, todas as operações do princípio pensante em seu interior, o que homem nenhum foi capaz de fazer, isso seria apenas a anatomia de um sujeito particular, o que seria deficiente e equivocado se aplicado à natureza humana em geral. Um pouco de reflexão nos convencerá de que a diferença entre as mentes é maior que aquela que existe entre quaisquer outros seres de uma mesma espécie que considerarmos.

    Dos vários poderes e faculdades que possuímos, há alguns que a natureza parece ter plantado e cultivado para que nada fosse deixado à indústria humana. Tais são os poderes que temos em comum com os animais não humanos, e que são necessários à preservação do indivíduo ou à continuação da espécie. Há outros poderes, cujas sementes a natureza tão somente plantou em nossas mentes, mas deixou o cultivo delas à cultura humana. É por meio da cultura apropriada dessas sementes que somos capazes de todas aquelas melhorias intelectuais, de gosto e morais, que exaltam e dignificam a natureza humana, enquanto, por outro lado, seu abandono ou perversão as transformam em degeneração e corrupção.

    O animal bípede que come das iguarias da natureza o que seu paladar e apetite anseiam, que mata sua sede em uma fonte cristalina, que propaga sua espécie conforme a ocasião e a luxúria, que repele danos e alterna entre trabalho e repouso é, como uma árvore na floresta, um cultivo puramente da natureza. Mas esse mesmo selvagem tem, dentro de si, as sementes do lógico, do homem de bom gosto e educação, do orador, do estadista, do homem virtuoso e do santo, semente as quais, embora plantadas em sua mente por natureza, contudo, por falta de cultura e exercício, devem permanecer para sempre enterradas, e ser quase imperceptíveis a ele próprio ou aos outros.

    O menor grau de vida social trará à tona alguns desses princípios que jaziam escondidos no estado selvagem, e, conforme seu treinamento, sua companhia e sua maneira de viver, alguns deles, ou por vigor natural ou pela força da cultura, florescerão e chegarão a um alto grau de perfeição; outros se perverterão estranhamente de sua forma natural, e outros serão restringidos, ou talvez erradicados.

    Isso faz a natureza humana tão variada e multiforme nos indivíduos que participam dela que, na questão da moral e dos dons intelectuais, isso preenche toda a lacuna que concebemos existir entre as bestas e os demônios abaixo e as ordens celestiais acima, e tal diversidade prodigiosa das mentes deve dificultar de maneira extrema a descoberta dos princípios comuns da espécie.

    A linguagem dos filósofos, em relação às faculdades originais da mente, está tão adaptada ao sistema prevalecente que ela não consegue se encaixar em nenhum outro, como um casaco que serve ao homem para quem ele foi feito, e o favorece, mas que, contudo, cai mal muito mal em um homem de diferente constituição física, embora esse possa ser igualmente bonito e proporcional. Não é bem possível inovar nossa filosofia concernente à mente e às suas operações sem usarmos novas palavras e expressões, ou sem dar um sentido diferente àquelas já aceitas, uma liberdade que, mesmo quando necessária, cria preconceitos e mal-entendidos, e que deve esperar que a sanção do tempo a autorize. Afinal, inovações na linguagem, tais como na religião e no governo, sempre produzem suspeita e aversão em muitos, até que seu uso as torne familiar e sua prescrição lhes dê direito.

    Se as percepções e noções originais da mente aparecessem de maneira simples e pura, como as recebemos primeiramente das mãos da natureza, alguém acostumado com a reflexão teria menos dificuldade em segui-las; mas, antes que sejamos capazes de reflexão, elas estão tão misturadas, compostas e decompostas por hábitos, associações e abstrações que é difícil saber o que elas eram originariamente. Nesse sentido, a mente pode ser comparada a um boticário ou a um químico cujos materiais são, de fato, fornecidos pela natureza, todavia, para os propósitos de sua arte, ele mistura, compõe, dissolve, evapora e sublima tais materiais, até que eles ganhem uma aparência bastante diferente, de tal maneira que é muito difícil saber o que cada um deles era antes, e ainda mais difícil trazer cada um deles de volta à sua forma original e natural. E esse trabalho da mente não é feito por atos deliberados de uma razão madura de que podemos nos lembrar, mas por meio de instintos, hábitos, associações e outros princípios que operam já antes que cheguemos a utilizar a razão, de maneira que é extremamente difícil que a mente retroceda em seus próprios passos e acompanhe as operações que utilizou desde a primeira vez que começou a pensar e agir.

    Poderíamos obter uma história clara e completa de tudo o que se passou na mente de uma criança, do início da vida e da sensação até que ela cresça e chegue ao uso da razão; como começaram a funcionar suas faculdades da infância, e como elas geraram e amadureceram todas as diversas noções, opiniões e sentimentos que encontramos em nós mesmos quando nos tornamos capazes de reflexão; esse seria um tesouro da história natural, que provavelmente lançaria mais luz sobre as faculdades humanas que todos os sistemas filosóficos lançaram sobre elas desde o início do mundo. Entretanto, desejar algo que a natureza não colocou ao alcance de nossos poderes é algo vão. A reflexão, o único instrumento pelo qual podemos discernir os poderes da mente, chega tarde demais para podermos observar o progresso da natureza em cultivá-los de sua infância à perfeição.

    São necessários, portanto, muito cuidado e uma grande aplicação da mente para que um homem que tenha crescido com todos os preconceitos da educação, da moda e da filosofia desembarace suas noções e opiniões, até que encontre os princípios simples e originais de sua constituição, da qual não se pode dar nenhuma explicação além da vontade de nosso Criador. Isso pode verdadeiramente ser chamado de análise das faculdades humanas, e, até que isso seja feito, é vão esperar algum sistema justo da mente, isto é, uma enumeração dos poderes e leis originais de nossa constituição, e uma explicação, a partir deles, dos vários fenômenos da natureza humana.

    O sucesso de uma investigação desse tipo não depende do poder humano, mas talvez seja possível, através de calma e humildade, evitar erros e enganos. O labirinto pode ser complexo demais, e a trama fina demais para ser seguida por todas as suas sinuosidades, mas, se nós pararmos onde já não pudermos seguir adiante, e protegermos o terreno conquistado, não há mal algum nisso: um olho ligeiro poderá, futuramente, nos levar mais adiante.

    É a genialidade, e não a sua falta, que adultera a filosofia, e a enche de erro e teorias falsas. Uma imaginação criativa desdenha do ofício medíocre de escavar em busca de uma fundação, de remover escombros e carregar materiais: deixando essas tarefas servis aos escravos nas ciências, a imaginação cria um projeto e constrói um edifício. A inventividade fornece os materiais onde eles faltam, e a fantasia acrescenta cor e todos os ornamentos adequados. O trabalho agrada aos olhos, e não lhe falta nada além de solidez e uma boa fundação. Ele parece mesmo competir com as obras da natureza, até que algum arquiteto subsequente o reduza a escombros e construa um edifício igualmente considerável em seu lugar. Felizmente, para a presente época, os construtores de castelos se dedicam mais ao romance do que à filosofia. Essa é, sem dúvida, sua área, e, nessas regiões, as criações de fantasia são legítimas, mas na filosofia tudo isso é espúrio.

    Seção III

    O estado atual desta parte da filosofia. De Descartes, Malebranche e Locke.

    Que nossa filosofia está em estado de pobreza no que diz respeito à mente e suas faculdades é algo que pode ser razoavelmente conjeturado mesmo por aqueles que nunca a examinaram de perto. Há quaisquer princípios concernentes à mente, estabelecido com essa perspicuidade e evidência, que caracterizem os princípios da mecânica, da astronomia e da ótica? Estas são realmente ciências construídas com base em leis da natureza que se aplicam universalmente. O que é descoberto nelas não é mais um objeto de debate: tempos futuros poderão acrescentar algo a elas, mas, até que o curso da natureza seja alterado, o que já está estabelecido não pode ser revogado. Quando, porém, voltamos nossa atenção para dentro e consideramos os fenômenos dos pensamentos, das opiniões e das percepções humanas, e nos empenhamos a buscar suas origens em leis universais e nos princípios primeiros de nossa constituição, vemo-nos imediatamente envol­vidos em escuridão e perplexidade. E, se o senso comum ou os princípios da educação porventura não forem tenazes, é bastante provável que terminemos em um ceticismo absoluto.

    Descartes, não tendo encontrado nada estabelecido nessa parte da filosofia, para estabelecer a profunda fundação dela, resolveu não crer em sua própria existência até que ele pudesse dar uma boa razão para isso. Ele foi, talvez, o primeiro a adotar tal solução: mas, se pudesse, de fato, ter levado a cabo sua proposta e ter realmente se tornado difidente de sua existência, sua demonstração teria sido deplorável e não poderia ter sido salvo nem pela razão, nem pela filosofia. Com um homem que descrê de sua própria existência não se pode arrazoar, assim como não se pode arrazoar com um homem que crê ser feito de vidro. Pode haver distúrbios na composição humana que produzam tais extravagâncias, mas eles jamais serão curados pela razão. Descartes de fato nos faria crer que ele saiu de seu delírio por seu argumento lógico, Cogito ergo sum. Mas é evidente que ele estava em posse de razão o tempo todo, e nunca duvidou seriamente de sua existência. Afinal, ele presume sua existência no argumento, e não prova nada. Estou pensando, ele diz, logo existo — e não é igualmente um bom uso da razão dizer: estou dormindo, logo existo? Ou não estou fazendo nada, logo existo? Se um corpo se move, deve existir, sem dúvida; mas se está em repouso, deve igualmente existir.

    Talvez Descartes não quisesse assumir sua própria existência nesse entimema, mas a existência do pensamento, e inferir daí a existência de uma mente, ou de um sujeito de pensamento. Mas por que ele não provou a existência de seu pensamento? A consciência, pode-se dizer, garante isso. Mas quem garante a consciência? Algum homem pode provar que sua consciência nunca o engana? Ninguém pode, e tampouco podemos dar uma melhor razão para crermos nela que, cada homem, enquanto possui uma mente sã, é determinado, pela constituição de sua natureza, a crer implicitamente em sua consciência, e a rir ou ter pena daquele que duvida de seu testemunho. E não é todo homem, em sua sagacidade, tão determinado a confiar em sua existência quanto em sua consciência?

    A outra proposição presumida nesse argumento, de que o pensamento não pode existir sem uma mente ou sujeito, é passível da mesma objeção: não que necessite de evidência, mas que sua evidência não é mais clara, nem mais imediata, que aquela da proposição a ser provada por ela. E, tomando todas essas proposições juntas — eu penso, eu sou consciente, tudo o que pensa existe, eu existo —, todo homem sóbrio não formaria a mesma opinião do homem que seriamente duvidou de qualquer uma delas? E, se ele fosse seu amigo, ele não esperaria que sua cura viesse de bom regime físico, em vez de metafísica e lógica?

    No entanto, supondo que se provou que o meu pensamento e minha consciência devem ter um sujeito e, consequentemente, que eu existo, como sei que toda essa linha e sucessão de pensamentos de que me lembro pertencem a um sujeito, e que o eu desse momento é exatamente o eu individual de ontem, e aquele de tempos passados?

    Descartes não pensou que fosse apropriado iniciar essa dúvida, mas Locke o fez e, para resolvê-la, determina gravemente que a identidade pessoal consiste na consciência. Isto é, se você está consciente de que fez tal coisa há doze meses, essa consciência faz você ser exatamente a pessoa que fez isso. Ora, a consciência daquilo que passou não pode significar nada além da lembrança de que eu o fiz. Desse modo, o princípio de Locke deve ser este: a identidade consiste na lembrança; e, consequentemente, um homem deve perder sua identidade pessoal com respeito a cada uma das coisas de que se esquece.

    Tampouco são essas as únicas instâncias nas quais a nossa filosofia concernente à mente parece ser muito fértil ao criar dúvidas, mas muito infeliz em resolvê-las.

    Descartes, Malebranche e Locke empregaram toda sua genialidade e habilidade para provar a existência de um mundo material, e os três o fizeram com pouquíssimo êxito. Os pobres mortais iletrados acreditam, sem dúvida alguma, que há Sol, Lua, e estrelas; uma terra em que habitamos; campo, amigos e parentes, de que desfrutamos; terrenos, casas e móveis, que possuímos. Entretanto, os filósofos, tendo pena da credulidade do vulgo, resolvem não ter fé alguma senão aquela fundada na razão. Eles se aplicam à filosofia a fim de mobiliá-la de razões para a crença em coisas em que toda a humanidade acreditou, mas sem poder dar razão alguma para isso. E certamente é de se esperar que, em assuntos de tamanha importância, a prova não seria difícil, mas é a coisa mais difícil no mundo. Afinal, esses três homens, com a maior boa vontade, não conseguiram extrair, de todos os tesouros da filosofia, um argumento sequer que pudesse convencer um homem, capaz de raciocinar, da existência de qualquer coisa sem ele. Admirada filosofia! Filha da luz! Mãe da sabedoria e do conhecimento! Se sois ela! Certamente ainda não tendes ascendido à mente humana, tampouco tendes nos abençoado com mais de vossos raios que são suficientes para tornar a iluminar a escuridão sobre as faculdades humanas, e para incomodar o repouso e a segurança de que os mortais mais felizes gozam, aqueles que nunca se aproximaram de vosso altar, tampouco sofreram vossa influência! Mas, se, com efeito, vós não tendes o poder de dissipar essas nuvens e fantasmas que tendes descoberto ou criado, retirai esse raio maligno e de penúria. Desprezo a filosofia e renuncio sua orientação: que minha alma tenha sua morada no senso comum.

    Seção IV

    Apologia desses filósofos.

    Entretanto, em vez de desprezar o aparecimento da luz, devemos, sim, esperar seu aumento. Em vez de culpar os filósofos que mencionei por defeitos e falhas em seus sistemas, devemos honrar suas memórias como os primeiros descobridores de uma região da filosofia previamente desconhecida. E, por mais insatisfatório e imperfeito que o sistema seja, eles abriram caminho para descobertas futuras, e é justo que demos a eles uma grande parcela de mérito. Eles removeram uma quantidade infinita de poeira e lixo acumulados nas eras de sofística escolástica que obstruíram o caminho. Colocaram-nos na estrada certa, na estrada da experiência e da reflexão precisa. Ensinaram-nos a evitar as armadilhas das palavras ambíguas e mal definidas, e falaram e refletiram sobre esse assunto com distinção e perspicácia desconhecidas até então. Criaram muitas aberturas que podem levar à descoberta de verdades que não alcançaram, ou à descoberta de erros nos quais eles estavam involuntariamente enredados.

    Pode-se observar que os defeitos e as falhas na filosofia relativa à mente que mais a expuseram ao desprezo e ao ridículo de homens sensatos se devem principalmente a isto: os defensores dessa filosofia, de um prejuízo natural a seu favor, trataram de estender sua jurisdição para além de suas fronteiras justas, e de questionar os ditames do senso comum. Estes, porém, negam essa jurisdição; eles desdenham o julgamento da razão e renegam sua autoridade. Não pedem sua ajuda, e tampouco temem seus ataques.

    Nessa competição desigual entre o senso comum e a filosofia, a última sempre sairá com desonra e perda. Tampouco ela pode florescer até que essa rivalidade seja abandonada, até que se desistam dessas intrusões e que uma amizade cordial seja restaurada. Afinal, na realidade, o senso comum não depende da filosofia, nem necessita de sua ajuda. Mas, por outro lado, a filosofia (se me for permitido trocar de metáfora) não tem outra raiz a não ser nos princípios do senso comum; ela cresce a partir deles e se nutre deles. Separada de sua raiz, sua honra murcha, sua seiva resseca, ela morre e apodrece.

    Os filósofos dos últimos tempos, que mencionei, não preservaram essa união e subordinação de forma tão cuidadosa como a honra e o interesse da filosofia demandavam, mas os filósofos da atualidade declararam uma guerra aberta ao senso comum, e esperam conquistá-lo completamente com as sutilezas da filosofia — uma tentativa não menos audaciosa e vã que a dos gigantes quando tentaram destronar o todo-poderoso Júpiter.

    Seção V

    Do bispo Berkeley; do Tratado da natureza humana; e do ceticismo.

    A presente época, tal como a entendo, não produziu duas figuras mais aguçadas e experientes nessa parte da filosofia do que o bispo de Cloyne e o autor do Tratado da natureza humana. O primeiro não era amigo do ceticismo, mas nutria uma sincera preocupação por princípios religiosos e morais dignos de sua ordem. Entretanto, o resultado de sua investigação foi uma séria convicção de que não existe o mundo material; não existe nada na natureza além de espíritos e ideias, e a crença em substâncias materiais e em ideias abstratas é a principal causa de todos os erros na filosofia, e de toda infidelidade e heresia na religião. Seus argumentos são fundados nos princípios que foram previamente estabelecidos por Descartes, Malebranche e Locke, e que tiveram boa aceitação na filosofia.

    E a opinião dos juízes mais capazes parece ser que eles não foram nem podem ser refutados, e que ele provou por argumentos incontestáveis algo em que nenhum homem razoável pode crer.

    O segundo procede com base nos mesmos princípios, mas os leva a cabo. E, assim como o bispo desfez todo o mundo material, esse autor, sobre as mesmas bases, desfaz o mundo dos espíritos, e não deixa nada na natureza além de ideias e impressões, sem nenhum sujeito no qual elas possam ser impressas.

    Parece ser signo de um tipo de humor peculiar que esse autor comece sua introdução com a promessa bastante séria de oferecer nada menos que um sistema completo das ciências sobre uma fundação completamente nova — a saber, aquela da natureza humana — quando a intenção de todo o trabalho é demonstrar que não há natureza humana e tampouco ciência no mundo. Talvez não seja razoável reclamar dessa conduta em um autor que não acreditava em sua própria existência, nem na existência de seu leitor; e portanto não poderia ter a intenção de desapontá-lo ou de rir de sua incredulidade. Contudo, não posso imaginar que o autor do Tratado da natureza humana seja cético a ponto de alegar tal apologia. Ele acreditava, contra seus princípios, que deveriam lê-lo, e que ele deveria manter sua identidade pessoal até que colhesse a honra e a reputação que lhe foram justamente devidas por sua sagacidade metafísica. De fato, ele ingenuamente reconhece que apenas, em solidão e retiro, poderia aprovar sua própria filosofia. A sociedade, como a luz do dia, dispersou a escuridão e a névoa do ceticismo, e o fez sucumbir ao domínio do senso comum. Tampouco o vi ser acusado de fazer qualquer coisa, mesmo em solidão, que concordasse com tamanho grau de ceticismo como aqueles que seus princípios mantinham. Certamente, se seus amigos apreenderam isso, eles teriam a caridade de jamais deixá-lo a sós.

    Pirro de Eleia, pai dessa filosofia, parece tê-la levado a maior perfeição que qualquer um de seus seguidores, pois, se pudermos acreditar em Antígono de Caristo, citado por Diógenes Laércio, sua vida correspondeu à sua doutrina. E, portanto, se uma carroça vinha em sua direção, ou um cão o atacava, ou se estava diante de um precipício, ele sequer movia o pé para evitar o perigo, não dando crédito algum a seus sentidos. Contudo, seus ajudantes que, para a felicidade de Pirro, não eram tão céticos cuidavam para que ele ficasse longe de perigos, de tal modo que ele viveu até os noventa anos de idade. Tampouco se deve duvidar de que os amigos desse autor teriam sido igualmente cuidadosos ao mantê-lo longe do perigo, mesmo que seus princípios tivessem começado a dominá-lo completamente.

    É provável que o Tratado da natureza humana não tenha sido escrito em companhia. Contudo, ele contém indicações expressas de que o autor, vez ou outra, recaía na fé do vulgar e mal podia manter o caráter cético por meia dúzia de páginas.

    De maneira similar, o grande Pirro se esqueceu de seus princípios em algumas ocasiões, e conta-se que, certa vez, nutriu tamanha raiva de seu cozinheiro — que provavelmente não assou o jantar a seu gosto — que com o espeto em sua mão — e a carne ainda nele — perseguiu o cozinheiro até o mercado.

    É uma filosofia corajosa que rejeita, sem cerimônias, os princípios que governam irresistivelmente a crença e a conduta de toda a humanidade nas preocupações comuns da vida, e à qual o próprio filósofo deve ceder, após imaginar tê-los refutado. Tais princípios são mais antigos e tem mais autoridade que a filosofia. Ela se apoia sobre eles, tendo-os como base, e não o contrário. Se ela pudesse derrubá-los, seria enterrada em suas ruínas, mas todos os motores da sutileza filosófica são fracos demais para esse propósito, e a tentativa não é menos ridícula do que a de um mecânico tentando conceber um axis in peritrochio¹ para mudar a terra de lugar, ou do que a de um matemático pretendendo demonstrar que coisas iguais a uma mesma coisa não são iguais entre si.

    Zenão empenhou-se em demonstrar a impossibilidade do movimento; Hobbes, em demonstrar que não havia diferença entre o certo e o errado; e esse autor, em demonstrar que não se deve dar crédito aos nossos sentidos, à nossa memória, nem mesmo à demonstração. Tal filosofia é simplesmente ridícula, mesmo para aqueles que não conseguem detectar a falácia que existe nela. Não pode ter outra tendência senão a de mostrar a esperteza do sofista, às custas da desgraça da razão e da natureza humana, e às custas de transformar a humanidade em Yahoos².

    Seção VI

    Do Tratado da natureza humana.

    Há outros preconceitos contrários a esse sistema de natureza humana que, mesmo em um simples passar de olhos, podem nos fazer desconfiar dela.

    Descartes, Hobbes, e esse autor nos deram, cada um, um sistema de natureza humana, uma empreitada demasiadamente vasta para qualquer homem, por maiores que sejam sua genialidade e suas habilidades. Certamente, deve haver razões para se pensar que muitas partes da natureza humana nunca foram por eles observadas, e que outras foram forçadas e distorcidas para preencher lacunas e completar o sistema. Cristóvão Colombo ou Sebastião Cabot poderiam ter, de maneira igualmente razoável, nos dado um mapa completo da América.

    Há um certo caráter e estilo nas obras da natureza, que nunca é alcançado sequer em sua mais perfeita imitação. Isso parece estar faltando nos sistemas de natureza humana que mencionei, e particularmente no último. Pode-se ver um fantoche fazer uma variedade de movimentos e gestos, que podem nos impressionar à primeira vista, mas, quando ele é observado com precisão e dividido em partes, nossa admiração cessa. Compreendemos toda a arte do criador. Quão diferente é daquilo que representa! Que obra pobre comparada ao corpo de um homem, cuja estrutura, quanto mais conhecemos, mais maravilhas descobrimos nela, e mais conscientes nos tornamos de nossa ignorância! O mecanismo da mente é tão facilmente compreendido, enquanto o do corpo é de tão difícil compreensão? Contudo, por esse sistema, três leis de associação, unidas a alguns sentimentos originais, explicam todo o mecanismo do sentido, da imaginação, da memória, da crença, e de todas as ações e paixões da mente. É esse o homem que

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