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Análise das Institutas da Religião Cristã de João Calvino
Análise das Institutas da Religião Cristã de João Calvino
Análise das Institutas da Religião Cristã de João Calvino
E-book618 páginas4 horas

Análise das Institutas da Religião Cristã de João Calvino

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Sobre este e-book

As Institutas de Calvino é uma das mais importantes obras dos últimos mil anos, mas até mesmo seminaristas e pastores têm dificuldades de terminá-la. Ford Lewis Battles teve a experiência em orientar alunos por meio deste volume, à medida que o ensinou por 45 anos. Seu esboço detalhado e resumo estão agora disponíveis a todos os interessados na grande obra de Calvino.



Aqueles que estudam e lecionam sobre Calvino devem [agora] ainda mais a Ford Lewis Battles, o notável acadêmico e tradutor de Calvino. Com o acesso à Análise, talvez um número maior de pessoas abrace o desafio de ler (e de ensinar, também!) as Institutas.
David Foxgrover, Sixteenth Century Journal



A Análise há de se mostrar um guia útil para estudantes sérios das Institutas, fornecendo um panorama abrangente dessa extensa obra.
Maria Bulgarella, Calvin Theological Journal



Um excelente esboço das Institutas de Calvino.
Christianity Today



O autor demonstra ter um dom especial para interpretar Calvino aos iniciantes, que julgarão esse volume valioso.
Richard Klann, Concordia Journal



Um guia notavelmente útil. A Análise facilitará muito, para nós, o mergulho na riqueza do pensamento de Calvino.
John Van Dyk, Pro Rege



Deverá ser de considerável ajuda para os estudantes, à medida que trilham seu caminho pelo extenso clássico teológico sob a orientação de um eminente estudioso de Calvino.
R. Swanton, Reformed Theological Review
IdiomaPortuguês
EditoraVida Nova
Data de lançamento18 de jan. de 2023
ISBN9786559671434
Análise das Institutas da Religião Cristã de João Calvino

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    Análise das Institutas da Religião Cristã de João Calvino - Ford Lewis Battles

    Análise das Institutas da Religião Cristã de João Calvino. Ford Lewis Battles. Vida Nova.Análise das institutas da religião cristã de João Calvino

    Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

    Angélica Ilacqua CRB-8/7057

    Battles, Ford Lewis

    Análise das Institutas da Religião Cristã de João Calvino / Ford Lewis Battles; tradução de Pedro Henrique R. de O. Issa. — São Paulo: Vida Nova, 2022.

    ePub3.

    ISBN 978-65-5967-143-4

    Título original: Analysis of the Institutes of the Christian religion of John Calvin

    1. Calvino, João — 1509-1564. Institutas cristãs 2. Reforma da Igreja — Doutrinas 3. Teologia doutrinal I. Título II. Issa, Pedro Henrique R. de O.

    Índices para catálogo sistemático

    1. Calvino, João — 1509-1564. Institutas cristãs

    Análise das Institutas da Religião Cristã de João Calvino. Ford Lewis Battles. Tradução de Pedro Issa. Vida Nova.

    ©1980, de Ford Lewis Battles

    Título do original: Analysis of the Institutes of the Christian religion of John Calvin, edição publicada pela P&R Publishing Company (Phillipsburg, NJ, EUA).

    Todos os direitos em língua portuguesa reservados por

    Sociedade Religiosa Edições Vida Nova

    Rua Antônio Carlos Tacconi, 63, São Paulo, SP, 04810-020

    vidanova.com.br | vidanova@vidanova.com.br

    1.ª edição: 2022

    Proibida a reprodução por quaisquer meios, salvo em citações breves, com indicação da fonte.

    Impresso no Brasil / Printed in Brazil

    Todas as citações bíblicas sem indicação da versão foram traduzidas diretamente da versão do autor.


    Direção executiva

    Kenneth Lee Davis

    Coordenação editorial

    Jonas Madureira

    Edição de texto

    Ubevaldo G. Sampaio

    Preparação de texto

    Bruna Gomes Ribeiro

    Revisão de provas

    Abner Arrais

    Coordenação de produção

    Sérgio Siqueira Moura

    Diagramação

    Aldair Dutra de Assis

    Capa

    OM Designers gráficos

    Livro digital

    Lucas Camargo


    Sumário

    Prefácio à edição brasileira

    Prefácio

    Introdução

    O prefácio de Calvino endereçado a Francisco I

    LIVRO UM:

    O conhecimento do Deus Criador

    LIVRO DOIS:

    O conhecimento de Deus, o Redentor em Cristo, primeiramente revelado aos patriarcas, sob a Lei, e então a nós, no evangelho

    LIVRO TRÊS:

    A forma pela qual recebemos a graça de Cristo: que benefícios ela nos traz e quais os efeitos que decorrem dela

    LIVRO QUATRO:

    Os meios ou auxílios externos pelos quais Deus nos convida à comunidade de Cristo e ali nos mantém

    Prefácio à edição brasileira

    Um recurso inestimável para estudar as Institutas da religião cristã

    João Calvino é considerado um dos mais importantes teólogos da história da igreja. Somente outros três homens tiveram impacto parecido: ­Agostinho de Hipona, Tomás de Aquino e Martinho Lutero. Mas, em termos de genialidade, profundidade e extensão, os dois personagens mais influentes são Agostinho e Calvino. As formulações teológicas de ambos foram de longo alcance, com implicações para todas as esferas do pensamento, indo até mesmo além da influência sobre uma determinada denominação cristã.

    Da mesma forma que católicos e protestantes são devedores a ­Agostinho, a influência de Calvino se estende a anglicanos, presbiterianos, congregacionais e batistas. Na Prússia, os luteranos foram impactados pela influência de seus escritos. Mais recentemente, pentecostais e carismáticos também descobriram suas valiosas obras. Aliás, Calvino amava os escritos de Agostinho e se percebia em continuidade com a herança do bispo de Hipona. Ele citou Agostinho mais do que qualquer outro escritor antigo nas Institutas. Sempre que ele queria estabelecer a antiguidade ou a importância de uma doutrina, citava Agostinho, especialmente porque ele era uma autoridade com a qual Calvino e seus interlocutores católicos concordavam. Mas uma área de diferença importante é que Calvino tinha fluência em grego e hebraico, enquanto Agostinho era fraco em grego e desconhecia o hebraico.

    Além disso, quando Calvino surgiu no cenário europeu, o movimento de Reforma estava dividido e sob intensa pressão do catolicismo. Mas, antes de sua morte, a fé reformada se solidificou e se tornou um movimento internacional, alcançando, a partir da Suíça, a França, norte da Itália, centro da Alemanha, Holanda, Inglaterra, Escócia, Espanha, Hungria, Polônia e até o Brasil — para onde Calvino enviou os primeiros missionários a chegarem às Américas, em 1555, para tentar implantar a France Antarctique no Rio de Janeiro. Em resumo, a importância de Calvino foi tamanha para a fé cristã e para o Ocidente que é reconhecida mesmo em círculos seculares.¹

    O cidadão de Genebra

    Calvino era cidadão francês, morando na cidade de Genebra. É importante enfatizar isso, pois ajuda a colocar o reformador em contexto. Supõe-se em certos círculos antipáticos à sua teologia que ele foi uma espécie de ditador de Genebra — uma tosca caricatura recorrente. Como ele não era cidadão genebrino, não tinha influência sobre as decisões acerca do ordenamento civil da cidade e nem tinha direito de voto em decisões políticas ou eclesiásticas no conselho municipal. Toda a sua influência foi eminentemente espiritual, especialmente por meio de sua pregação e escritos.²

    E esta influência se estendeu a todas as esferas da cidade. Por exemplo, Genebra se tornou o primeiro lugar na Europa a ter leis que proibiam: jogar fezes, urina e lixo nas ruas; fazer fogo ou usar fogão num cômodo sem chaminé; ter uma casa com sacadas ou escadas sem que as mesmas tivessem grades de proteção; a permissão de que as parteiras se deitassem nas camas com os bebês recém-nascidos (a lei visava proteger o nenê da contaminação); alugar uma casa sem o conhecimento da polícia; sendo comerciantes, cobrar além do preço permitido ou roubar no peso e, sendo produtores, estocar mercadorias para fazê-la faltar no mercado e assim encarecê-las.

    A influência sobre as estruturas sociais

    Poucas formulações do pensamento ocidental tiveram tanto impacto sobre a nossa cultura quanto os escritos de Calvino, preparados em virtual luta para submeter toda existência ao comando do Deus que se revela nas Escrituras.

    Por exemplo, a ideia de um governo republicano e representativo, onde se tem a alternância do poder, e onde o povo está ligado por um pacto, foi ­introduzida na cultura ocidental por meio de Calvino. As obras de ­Teodoro de Beza, De Jure Magisterium (Do direito dos magistrados), George ­Buchanan, De Jure Regni Apud Scotos (Os poderes da Coroa da Escócia) e Johannes Althusius, Política, estavam conectadas com os escritos do refor­mador francês. E deve-se notar que esses escritores cristãos estavam na vanguarda dos debates políticos nos séculos 16 e 17. Por exemplo, a primeira defesa da liberdade de imprensa e a primeira deposição de um rei tirano, e mesmo sua execução por alta-traição, ocorreram na Inglaterra no século 17, em círculos influenciados diretamente pelo pensador francês. E a ideia do cruzamento fiscalizador entre os poderes (checks and balances) já estava sendo debatida nas treze colônias britânicas da América do Norte em ­meados do século 18 pelo clérigo presbiteriano John Witherspoon, um dos pais fundadores dos Estados Unidos, exercendo profunda influência sobre James ­Madison, autor da grande constituição daquele país.

    A rebelião americana, no século 18, que deu origem à mais antiga e duradoura democracia do Ocidente, também foi fruto da influência do pensamento de Calvino. Todos os capelães do Exército Continental eram presbiterianos, sendo que 2/3 dos soldados eram presbiterianos. Conta-se que o rei George III, no auge da guerra nas treze colônias, chamou-a de aquela pequena rebelião presbiteriana — em outras palavras, havia uma guerra aberta dos presbiterianos contra a Coroa britânica. Depois, amargurado, afirmou que aqueles malditos presbiterianos estão por trás disso, eles sempre desafiam a monarquia, não importa de onde eles venham. Embora as forças britânicas raramente queimassem prédios durante a guerra, destruíram a Primeira Igreja Presbiteriana em Elizabeth, New Jersey, e a casa paroquial. Entre seus membros, William Livingston, mais tarde o primeiro governador eleito de New Jersey, Elias Boudinot, que viria a se tornar presidente do Congresso, e o reverendo James Caldwell, o Pároco Combatente, eram rebeldes fervorosos.³ Assim, em países influenciados pelo pensamento reformado — Suíça, Holanda, Inglaterra, Escócia e Estados Unidos — não surgiram déspotas, nem nas esferas políticas muito menos nas eclesiásticas.

    Também podemos mencionar que a ética protestante do trabalho, com as ênfases na vocação, frugalidade, disciplina, santidade do trabalho e a impor­tância dos estudos seculares, também são legado do grande reformador.

    Um estilo peculiar

    Talvez a maior dificuldade em se aproximar de Calvino reside na falta de empatia entre o leitor e o escritor. Diferente da maioria dos escritores ­anteriores, como Agostinho e Lutero, para ficar em dois exemplos, o reformador francês falou muito pouco de si mesmo. Até mesmo reconstruir a conversão de Calvino é desafiadora. Ele dedicou poucas linhas ao tema, em seu ­comentário ao livro dos Salmos. O foco de Calvino, como pregador e escritor é o texto bíblico. O que deveria ser uma virtude — a total ênfase na Escritura — torna-se um entrave, para muitos leitores.

    Então, a imagem que fica de Calvino é que ele foi uma pessoa fria, que escreveu sobre predestinação, e comandou Genebra com mão de ferro. Só que esta caricatura está longe da realidade. Suas cartas são forte exemplo do caráter modesto, simples e desprendido de Calvino. E, também, da lealdade que ele devotava a seu grande círculo de amizades. Ele escreveu cartas para colegas reformadores, tais como Guillaume Farel, Pierre ­Viret, John Knox, Martinho Lutero, Philip Melanchthon, Thomas Cranmer e ­Heinrich ­Bullinger, reis, príncipes e nobres, como o Duque de Somerset, o rei Eduardo VI e Lady Jane Grey, da Inglaterra, o rei Sigismundo II Augusto, da Polônia, o Duque René de Ferrara e o Almirante Gaspard de Coligny, da França, a igrejas perseguidas e cristãos presos, a pastores, a vendedores de livros cristãos e a mártires à espera da sentença. Por exemplo, as duas cartas que ele escreveu a um grupo de presos em Lyon, em 1552 e 1553, são um forte e comovente testemunho dos interesses pastorais do reformador de Genebra.

    O lugar da doutrina da predestinação

    Ainda assim, se disseminou uma caricatura do reformador de Genebra, como se sua única contribuição ao pensamento cristão tivesse sido sistematizar a doutrina da predestinação. Isso está bem longe da verdade. ­Agostinho, Isidoro de Sevilha, Gottschalk de Orbais, Anselmo da ­Cantuária, Bernardo de Clairvaux, Thomas Bradwardine, Tomás de Aquino, John Wycliffe, Jan Hus e Thomas à Kempis, antes de Calvino, escreveram sobre esse tema. Agostinho legou à cristandade uma série de tratados refutando a heresia pelagiana, onde a doutrina da predestinação é desenvolvida e detalhada magistralmente.⁴ Lutero escreveu uma obra imensa e irrefutável sobre essa doutrina, Da vontade cativa, antes de Calvino.⁵

    É quase anticlimático ler sobre a predestinação nos escritos de Calvino, pois não há originalidade no que ele registrou sobre a predestinação. Por exemplo, nas Institutas, o debate sobre a predestinação ocupa pouco espaço. Ela não está na seção onde comumente é abordada nos livros de teologia sistemática, a providência de Deus, mas se encontra no fim do debate sobre a obra do Espírito Santo na salvação. Na verdade, são os últimos quatro capítulos dessa seção (21-24). E o único capítulo sobre oração (20), nessa mesma seção, é maior que estes quatro capítulos juntos. E o surpreendente é que o enfoque dessa doutrina é devocional e pastoral; não há um único traço de especulação sobre a predestinação. Em seus comentários bíblicos, por exemplo, Calvino tratou do tema quando o texto bíblico exige, como nos comentários às epístolas de Romanos, Gálatas e Efésios. Como têm sido sugerido, o tema central da teologia de Calvino pode ser a soberania de Deus por meio da benevolência de Cristo ou a união mística do fiel com Cristo.

    Um tratado para os tempos

    Calvino foi um gigante por várias razões: por enfatizar a autoridade e prioridade das Escrituras (sola Scriptura), por solidificar o método histórico-gramatical de interpretação bíblica, por se preocupar com a estrutura da igreja visível, caracterizada pela pregação da Palavra de Deus e correta administração dos sacramentos do batismo e da ceia, pela transformação ocorrida em Genebra, que se tornou o modelo de uma república cristã para toda ­Europa, e, principalmente, por sua imensa contribuição literária. Esta ­engloba ­comentários bíblicos sobre quase todo o Novo Testamento e grande parte do Antigo Testamento, milhares de sermões, tratados polêmicos, cartas e escritos litúrgicos e catequéticos.

    Mas sua grande obra foi as Institutas da religião cristã, que seria uma chave e entrada que a todos os filhos de Deus outorgue acesso a correta e ­cabal compreensão da Santa Escritura.⁶ A primeira edição surgiu em ­Basiléia, no ano de 1536, e tinha 6 capítulos. Era publicada em formato ­pequeno, de modo que cabia facilmente nos amplos bolsos que se usavam anti­gamente, e podia circular dissimuladamente pela França católica. Em nove ­meses se esgotou esta edição, que, por estar em latim, era acessível a leitores de diver­sas nacionalidades. Então, Calvino continuou preparando edições suces­sivas das Institutas, que foi crescendo segundo iam passando os anos.⁷ A edição latina passou por algumas ampliações, revisões e reorganizações, em 1536, 1539, 1543, 1545 (sem alteração), 1550, 1553 e 1554 (ambas sem alterações), até atingir sua forma definitiva, publicada em Genebra, em 1559. Essa edição foi reimpressa duas vezes em 1561. À tradução francesa de 1541 — que não foi simplesmente uma tradução da edição latina de 1539, tendo muito material da edição de 1536 —, seguiu-se outras: 1545, 1551, 1553 e 1554 (ambas sem alterações), 1557, e a definitiva, de 1560.⁸

    Assim sendo, é uma alegria apresentar ao público de fala portuguesa a importantíssima obra Análise das Institutas da religião cristã de João Calvino, de Ford Lewis Battles. Usei este valioso livro pela primeira vez em 1996, para acompanhar meus primeiros estudos das Institutas. Foi um auxílio ­imprescindível ao qual continuei recorrendo continuamente em meus estudos da importante obra de Calvino. Espero, agora, que mais estudantes da obra maior do reformador francês se beneficiem desse excelente guia, "um esboço analítico detalhado do texto das Institutas conforme Calvino o redigiu, que pode tanto ser um mapa da estrada para a jornada quanto um útil instrumento para revisão", como escreveu Battles. E, como ele escreveu, o que ficará evidente na medida em que o estudante disciplinado e motivado for avançando em seus estudos das Institutas, empregando esse guia, é que a teologia de Calvino habita o mundo real e o encara frontalmente. E, ao estimular o leitor a estudar as Institutas, ele afirma: "Em primeiro lugar, você deve querer ler o livro; em segundo lugar, você deve partir do início; em terceiro lugar, você deve persistir, por mais demorado que lhe seja, até chegar à última página. […] Em quarto lugar, não lamente que uma questão ­pareça ficar sem resposta, ou que uma ponta solta pareça não estar amarrada: ela será respondida; ela será amarrada. Seja paciente. […] Em quinto lugar, conforme você lê, não pense apenas na época de Calvino […], mas pense também na sua própria época". Portanto, leitor, ad fontes!

    Em 6 de fevereiro de 1564, Calvino, em estado de saúde bem frágil, foi levado em uma cadeira até a Catedral de São Pedro, onde pregou seu último sermão, acerca dos evangelhos. Algumas semanas depois, ele reuniu os ­ministros em particular e disse: Quanto à minha doutrina, tenho ensinado fielmente e Deus te me concedido graça para escrever o que escrevi com toda a fidelidade de que fui capaz. Não falsifiquei uma única passagem das Escrituras, nem dei a ela nenhuma interpretação errada, até onde sei; e embora pudesse ter introduzido sentidos perspicazes, se eu tivesse estudado perspicácia, lancei tal tentação sob meus pés e visei sempre a simplicidade. Nada escrevi motivado pelo ódio a alguém, mas sempre propus fielmente aquilo que considerava que fosse a glória de Deus. […] Eu tinha esquecido este ponto: rogo-lhes que não façam nenhuma mudança, nenhuma inovação. As pessoas frequentemente pedem novidade. Não é que eu deseje, por minha própria causa ou por causa de ambição, que aquilo que estabeleci deva permanecer e que as pessoas devam preservá-lo sem desejar nada melhor, mas porque as mudanças são perigosas e, algumas vezes, danosas.⁹ E, assim, em 27 de maio de 1564, Calvino morreu e foi sepultado no Cimetière des Rois em um túmulo não identificado, por seu próprio pedido. O único anseio do reformador era para que Deus recebesse exclusivamente toda a glória.

    Que o estudo diligente das Institutas conduza leitores a estudar com cada vez mais paixão e afinco as Escrituras Sagradas, inspiradas pelo ­Espírito, a fonte e meio da revelação do Deus uno e trino ao seu povo eleito em Cristo Jesus. E que possamos ser tão fiéis quanto o reformador no ­estudo diligente e na proclamação vigorosa da sã doutrina, o mistério da fé (Tt 1.9; 2.1; 1Tm 3.9), ao mesmo tempo em que ansiamos para que o ­Senhor Criador e Redentor seja glorificado em tudo.

    Ut in omnibus glorificetur Deus!

    Franklin Ferreira

    Diretor-executivo e professor de Teologia Sistemática e História da Igreja do Seminário Martin Bucer;

    consultor acadêmico de Edições Vida Nova;

    pastor da Igreja da Trindade, São José dos Campos, SP


    ¹ Para textos introdutórios à vida, obra e impacto de Calvino, cf. especialmente Karl Barth, The theology of John Calvin (Grand Rapids: Eerdmans, 1995); Wulfert De Greef, The writings of John Calvin: an introductory guide (Louisville: Westminster/John Knox Press, 2008); F. Bruce Gordon, Calvin (New Haven: Yale University Press, 2011); Alister

    McGrath, A vida de João Calvino (São Paulo: Cultura Cristã, 2005); W. Stanford Reid, org., Calvino e sua influência no mundo ocidental (São Paulo: Cultura Cristã, 2013); Marc Vial, John Calvin: an introduction to his theological thought (Geneva: International Museum of the Reformation/Labor et Fides, 2009); Ronald S. Wallace, Calvino, Genebra e a Reforma (São Paulo: Cultura Cristã, 2003); François Wendel, Calvin: origins and development of his religious thought (Grand Rapids: Baker Books, 1987).

    ² Cf. por exemplo William G. Naphy, Calvin and the consolidation of the Genevan Reformation (Louisville: Westminster/John Knox Press, 2003).

    ³ Joseph S. Tiedemann, Presbyterianism and the American Revolution in the Middle ­Colonies, em Church History, vol. 74, no. 2 (June 2005): 306-344; Brandon S., ­Durbin, The Presbyterian Enlightenment: the confluence of evangelical and enlightenment thought in British America (James Madison University, 2018). Masters Theses.

    ⁴ Cf. Santo Agostinho, A graça (I): O espírito e a letra; A natureza e a graça; A graça de Cristo e o pecado original (São Paulo, Paulus, 1998); A graça (II): A graça e a liberdade; A correção e a graça; A predestinação dos santos; O dom da perseverança (São Paulo, Paulus, 2002).

    ⁵ Martinho Lutero, Da vontade cativa, em: Obras selecionadas (São Leopoldo/Porto ­Alegre: Sinodal/Concórdia, 1993), vol. 4: Debates e controvérsias II, p. 11-216.

    Prefácio à edição francesa de 1541 e subsequentes, nessa língua, em As Institutas ou Tratado da religião cristã, edição latina de 1559 (São Paulo: Cultura Cristã, 2006), vol. 1, p. 45.

    ⁷ Para uma biografia da obra mais importante e influente da Reforma, cf. F. Bruce ­Gordon, John Calvin’s ‘Institutes of the Christian religion’: a biography (Princeton: Princeton University Press, 2016). Esse livro explora as origens, o estilo e as características principais das Institutas, examinando suas raízes teológicas e históricas e mostrando como essa obra se desenvolveu em suas várias edições para se tornar uma ampla síntese da teologia reformada, extremamente influente até os dias atuais.

    ⁸ As principais edições disponíveis em português são: As institutas da religião cristã, primeira edição de 1539 (São José dos Campos: Fiel, 2018); As institutas ou Tratado da religião cristã, edição francesa de 1541 (São Paulo: Cultura Cristã, 2006), 4 vol.; As institutas ou Tratado da religião cristã, edição latina de 1559, 4 vol.

    O adeus de Calvino aos ministros de Genebra (anotado pelo ministro [Jean] Pinant), em: Cartas de João Calvino (São Paulo: Cultura Cristã, 2009), p. 191.

    Prefácio

    Um dos cursos mais populares do Pittsburgh Theological Seminary, ofertado no final da década de 1960 e durante a década de 1970, foi um seminário sobre as Institutas da religião cristã, de Calvino, ministrado pelo dr. Ford Lewis Battles. O seminário não apenas concedeu aos estudantes a oportunidade de estarem frente a frente com um dos mais destacados estudiosos de Calvino como também os equipou para pensarem histórica, sistemática e pastoralmente, no melhor sentido da palavra.

    Quando os alunos foram informados, no início do curso, de que uma das exigências seria ler na íntegra a edição de 1559 das Institutas, vários ­deles questionaram se era sábio fazer a matrícula nessa eletiva. Como ­alguém ­poderia tratar todo o loci teológico contido na obra definitiva de Calvino? Não obstante, aqueles que combateram o bom combate e persistiram até o fim saíram do curso com um panorama instrutivo do pensamento do teólogo, tão essencial para o entendimento de qualquer doutrina particular.

    Conforme os capítulos desta Análise vinham à tona, muitos estudantes do seminário sobre Calvino e de cursos afins requisitavam cópias e achavam-nas úteis enquanto percorriam as Institutas. Clérigos e leigos também julgaram a Análise extremamente útil. Por essa razão, é um prazer ver esta obra impressa para que todos aqueles que desejam mergulhar nas raízes da Reforma possam ter um guia e, por assim dizer, um mapa da estrada.

    Se Ford Lewis Battles pudesse ter visto a publicação final desta obra, ela certamente teria agradado seu coração. Com a morte do dr. Battles no Dia de Ação de Graças de 1979, o universo acadêmico e a Igreja Mundial perderam um homem central para ambos. Ao expressar gratidão a Deus pelo dom de sua vida, sei que falo por uma geração de estudantes que foram privilegiados por estarem sob sua tutela, por ensinarem sob sua orientação e por empreenderem pesquisas sob sua rigorosa honestidade.

    Uma das expressões favoritas de Ford Lewis Battles — e, na ­verdade, uma admoestação para todos nós — era "Ad Fontes". De volta às ­Fontes! Se esta Análise da obra monumental de Calvino for instrumental em redi­recionar, ainda que poucas pessoas, para uma das fontes primárias do pensamento reformado, então o trabalho aqui apresentado estará bem recompensado.

    John R. Walchenbach

    Páscoa, 1980

    Introdução

    Mais uma síntese das Institutas?

    Louvado seja todo homem que nos livra de ter que depender de compêndios dos grandes clássicos!¹⁰

    Em sua introdução às Institutas da religião cristã, de Calvino, edição da ­Library of Christian Classics (Philadelphia: The Westminster Press, 1960), John T. McNeill traçou o histórico literário complexo, não apenas das edições completas daquela obra em vários idiomas, mas também dos numerosos epítomes e condensados que começaram a aparecer logo após a morte de Calvino (LCC 20. xlviii — l).¹¹ A maioria desses textos são compactos ou condensações, em uma série de aforismos, das ideias da obra do teólogo. Às vezes, esses compêndios são acompanhados por tabelas que buscam dispor graficamente a estrutura lógica que o antologista vislumbra na obra de Calvino.

    O presente livro, entretanto, não se encaixa estritamente em nenhuma dessas categorias. Ele é simplesmente um esboço analítico detalhado do texto das Institutas conforme Calvino o redigiu. A Análise tem sua origem no meu seminário sobre as Institutas, iniciado na Hartford Seminary Foundation e prosseguido no Pittsburgh Theological Seminary, em 1967, e no Calvin Theological Seminary, entre 1978 e 1979. Naquele seminário, as Institutas da religião cristã foram lidas integralmente e discutidas no decurso de um único termo ou semestre.

    Essa é, de fato, uma tarefa extensa, mas nada menos do que a leitura do texto completo oferecerá uma visão precisa do pensamento de Calvino. Para obtê-la, entretanto, alguma orientação é necessária, e é essa a função almejada pela Análise ao oferecer, como faz, uma visão sinóptica do que o dr. McNeill chamou, de forma pitoresca, de o miolo truncado das Institutas. Certamente, a Análise não é um substituto à leitura do todo, mas pode tanto ser um mapa da estrada para a jornada quanto um útil instrumento para revisão.

    A Análise não poderia ter sido concebida sem o auxílio de ­muitos ­estudantes que, por meio de suas questões e reflexões, moveram-me à ­tarefa de escrevê-la; ela nunca poderia ter sido completada sem a colaboração paciente de John Walchenbach, meu antigo assistente de ensino em Pittsburgh, hoje secretário executivo de planejamento na Reformed Church in America. Ele é responsável pelo trabalho dos capítulos 6, 9, 10 e 11 do Livro Dois; dos capítulos 11, 12, 13, 14, 16, 17, 18 e 25 do Livro Três, bem como dos capítulos 7 a 17 do Livro Quatro. A. C. Burfeind trabalhou nos capítulos 3 e 4 do Livro Quatro. O uso da Análise pelos ­colegas de outras instituições também tem sido uma fonte de encorajamento para mim.

    A biografia de um livro (1536-1559): de seis a oitenta capítulos

    A história da igreja cristã registra dois tipos de teólogos: aqueles cujo pensamento atravessa constante mudança e desenvolvimento durante o transcurso de sua vida, e aqueles que parecem ter abraçado, logo no início de sua carreira teológica, uma moldura que permanece, desde então, firme e constante. A franqueza das Retratações de Agostinho aponta para o primeiro ­gênero de teólogo. Calvino é geralmente apontado como exemplo do segundo.

    Em certo sentido, a teologia de Calvino é, do início ao fim, uma e a mesma. Diferentemente de Agostinho, ele não precisou de um livro de Retratações para explicar as contradições entre os seus primeiros escritos e os últimos. Todavia, mesmo com todo seu ar de firmeza e constância, as Institutas da religião cristã passaram, sim, por mudanças durante o curso de sua história literária, e essas mudanças se deram como resposta dinâmica ao incessante debate teológico do período. Se a fonte e inspiração das Institutas foi a Escritura, vista tanto em sua origem quanto em sua longa história exegética, a matriz, por sua vez, foram os tempos em que Calvino viveu.

    Em companhia de Agostinho, Lutero e muitos outros, Calvino enxer­gou a vida cristã após a conversão não como um salto para a perfeição, mas como um amadurecimento gradual, frequentemente doloroso, rumo à consumação abençoada que só pode advir com a morte.¹² Assim, quando ­Calvino afirma, em sua Epístola ao Leitor que introduz a edição final das Institutas em latim, que Embora eu não me arrependesse do labor empe­nhado, eu nunca estive satisfeito até que a obra tivesse sido disposta na ­ordem agora estabelecida (LCC 20.3), o que ele está dizendo, efetivamente, é: "Aqui, nestas edições sucessivas de minha magnum opus, está a história de meu próprio amadurecimento gradual na vida cristã". Conforme lemos as Institutas, nunca devemos nos desviar para longe desse testemunho pessoal de seu autor.

    A história literária das Institutas já foi contada diversas vezes, e este não é o lugar para repetir uma crônica tão recorrente. O que se faz necessário, aqui, é um delineamento de alguns dos fatores decisivos que moldaram este quarto de século que conduziu, de um pequeno e conciso esboço da fé, a um ensaio completo e perene sobre a religião cristã.

    Em primeiro lugar, Calvino amadureceu muitíssimo à medida que avançou com suas leituras nos pais da igreja, na Escritura e na história de sua exegese. Uma assimilação sólida, porém limitada, de Agostinho marca a edição de 1536. Uma vasta incorporação de material agostiniano ingressa, pela primeira vez, na edição de 1539. Outros ainda são agregados na terceira edição em latim, de 1543. É visível como o trabalho subsequente de Calvino na antropologia e na eclesiologia cristã, após a primeira edição, deve muito a Agostinho. João Crisóstomo, o segundo mais importante pai da igreja, está praticamente ausente na primeira edição; sua influência começa a aparecer em 1539 e, claro, amplamente nos Comentários ao Novo ­Testamento, cuja preparação é concomitante às Institutas. O manuseio equilibrado de ­Calvino dos textos bíblicos repousa, pelo menos em parte, em seu amálgama altamente pessoal de sistemática de Agostinho e exegese de Crisóstomo. Poder-se-ia também apontar o impacto menor, mas significativo, de outros pais da igreja no amadurecimento teológico de Calvino.

    Em segundo lugar, desde que tomou conhecimento de Martin ­Bucer, tanto por meio de seus escritos quanto no período em que colaboraram em Estrasburgo, Calvino foi profundamente influenciado por ele. Já dependente de Bucer em muito de seu entendimento sobre a oração,¹³ por meio das Enarrationes sobre os Evangelhos (1530), Calvino chegou, sob a tutela de Bucer, a um entendimento mais profundo da predestinação. A leitura de Metaphrases sobre Romanos (1536), de Bucer, é perceptível pela primeira vez no Catecismo de 1537-38 (servindo como um trampolim entre a primeira e a segunda edição das Institutas¹⁴); depois, é vista plenamente nas Institutas de 1539 e no comentário de Calvino a Romanos, publicado no ano seguinte.

    Em terceiro lugar, o interlúdio pastoral de 1538-41, quando Calvino pastoreou a pequena congregação francesa emigrada em Estrasburgo, rendeu frutos nas ricas adições eclesiásticas à edição de 1543. O calvinismo seria de fato um sistema teológico pobre para a igreja, ou no mínimo inadequado, se fosse privado dos lampejos significativos sobre a vida e disciplina da congregação adoradora estabelecidos nesse ano. A exposição de Calvino sobre a natureza da igreja e sua disciplina deve ser conjugada com sua contribuição — que não deve ser esquecida — à adoração e ao louvor cristão.¹⁵ A Epístola ao leitor que encabeça The form of church prayers and songs [A forma dos cânticos e orações da igreja] (1542) testemunha, uma vez mais, da maturação de Calvino na fé.

    Os adversários de Calvino, tanto quanto seus aliados, podem ser ressaltados como um quarto fator no amadurecimento do livro. O estímulo dos debates frequentemente vitriólicos — desde Pierre Caroli, que objetou, sem sucesso, a ortodoxia trinitária de Calvino; até Miguel Serveto, que se ­empenhou em destruir a doutrina da Trindade e romper o vínculo ­vívido entre Antigo e Novo Testamentos — aprofundou a teologia de Calvino em um sentido positivo. Conforme costurava seu caminho pelo labirinto de posições eucarísticas conflitantes, as respostas argutas aos seus adversários conferiram uma raiz crescentemente profunda a uma posição já ­intuída, corretamente, em 1536. Não há uma só página das Institutas em que o ­debate contínuo com um ou outro notável não seja evidente.

    Por fim, podemos apresentar, de forma geral, um fator de importância incalculável na elaboração das Institutas: a própria Genebra. A delongada luta de Calvino para fornecer estruturas administrativas e legais operacionais à cidade que o abraçou, e colocá-las em funcionamento; sua ronda pastoral diária na igreja, no consistoire [consistório], na escola; sua vasta correspondência para além dos limites daquela cidade — todas essas atividades garantiram que as Institutas se tornariam, progressivamente, do início ao fim, a obra de uma verdadeira teologia pastoral.

    À guisa de síntese, dois diagramas são oferecidos nas (p. 15-16). O primeiro traça as mudanças e acréscimos de material nas primeiras cinco principais edições em latim das Institutas; o segundo esquematiza a relação literária das Institutas de 1536, o Catecismo de 1538 e as Institutas de 1539.¹⁶

    Biografia espiritual em forma sistemática

    A atitude com que nos colocamos a ler, pela primeira vez, obras clássicas da fé, é frequentemente crucial para determinar quais benefícios obteremos ­delas. Se nos achegarmos às Institutas de Calvino como um livro de referência em teologia sistemática, como muitos já o fizeram, ele nos renderá, de fato, lampejos valiosos. Contudo, em uma leitura assim, não conhecemos nem metade de seu autor. Imagine que, antes mesmo de abrirmos na primeira página, tenhamos a informação: Vocês estão prestes a partilhar de uma das experiências clássicas da história cristã; nas páginas enganosamente ordenadas e aparentemente frias que se seguem, estão impressas as apaixonadas respostas de um homem ao chamado de Cristo. Se mantivermos, sempre diante de nós, o caráter autobiográfico desse livro, o homem completo nos falará em verdade plena.

    Calvino nos diz que, em suas Institutas, ele pavimentou a estrada para que os estudantes no início de seus estudos compreendessem a Escritura (Ao leitor, LCC 20.4f.). Não obstante, ele ensina que a compreensão da Escritura depende da iluminação do leitor pelo Espírito Santo (1.7; 3.2). É de se esperar, portanto, que sua exegese adentre firmemente na experiência pessoal de personagens bíblicos, nos quais ele encontra um reflexo de si mesmo. Nos Salmos de Davi, por exemplo, Calvino encontra uma anatomia de todos os estados da alma.

    Eis aqui uma abordagem experiencial da exegese bíblica por meio da identificação biográfica com personagens do Antigo Testamento, surpreendentemente similar àquela de Martinho Lutero¹⁷ e nada estranha a todos os autênticos pregadores. Em outra ocasião,¹⁸ discuti a "imitatio Davidis" [imitação de Davi] com que nos deparamos tão frequentemente nos escritos de Calvino — especialmente nas Institutas e no Comentário aos Salmos. Ele prefere, frequentemente, deixar que o salmista fale em seu lugar acerca de sua própria condição espiritual. Dois ensaios examinam esse emprego autobiográfico que Calvino faz de Davi, um deles de R. A. Hasler¹⁹ e outro, mais extenso, de J. R. Walchenbach.²⁰ Dos personagens do Novo Testamento, Paulo é o que mais se aproxima de espelhar o status animae [condição da alma] de Calvino. Em sua Answer to Balduin’s Insults [Resposta aos insultos de Balduin] (1561), ele afirma:

    A verdade é que eu não sou edificado pela grandeza das revelações que me são concedidas, como se eu fosse um Paulo; ainda assim, reconheço que eu tenho isto em comum com o Apóstolo: que um mensageiro de Satanás foi enviado a mim por Deus para me bofetear na face e que, assim, eu mesmo sou ensinado a ser humilde. Mas assim como devemos, a todo tempo, orar para que Deus afugente o diabo e seus anjos, é também nosso dever nos opormos aos seus vitu­périos, a fim de que a verdade não seja vilipendiada pelas falsidades que eles assim nos outorgam.

    O leitor, municiado dos relatos lacônicos de Calvino sobre sua conversão e amadurecimento ulterior, tais quais apresentados no prefácio do Comentário aos Salmos (1555-7), marchará com passos mais firmes pelos caminhos desvelados das Institutas.²¹ Talvez ele perceba o papel crucial que Romanos 1.18-25 (especialmente os versículos 18 e 25) teve, provavelmente, na conversão de Calvino e em sua busca da vida cristã nos anos que se seguiram.²² Certamente, a contraposição de Calvino entre a verdade e a falsidade, bem como seu postulado dos dois conhecimentos — o de Deus e o de si — derivam particularmente dessa passagem.

    Qual é o cerne das Institutas, quando lida nessa ótica pessoal e experiencial? Para o homem, é um manual de piedade. Mas, em relação a Deus, do que se trata? As Institutas da religião cristã são um esforço ousado para verdadeiramente coroar Deus como rei de seu povo (3.20.43). Que Deus possa governar sobre as nações — não é esse o tema central da teologia de Calvino?²³ Deus é rei. Calvino nunca fala literalmente da soberania de Deus, uma abstração pálida que aleija o essencial — e bíblico — imaginário real. Isso explica a moldura política das Institutas: ela começa com a carta ao rei francês, Francisco I, e termina com o famoso capítulo sobre o governo político (4.20). A teologia de Calvino habita o mundo real e o encara frontalmente. Sua carreira enquanto escritor e como líder não foi aquela do sonhador ou teórico utópico, pois nele o estudo da lei e da teologia tocavam-se em seu plano mais profundo.

    Um livro de antíteses

    A epístola dedicatória de Calvino a Francisco I introduziu não apenas a primeira edição das Institutas, mas também todas as edições subsequentes. Esse documento de alta importância, entretanto, é omitido, por alguns tradutores alemães das Institutas, por, do ponto de vista teológico, não ser tão interessante assim!

    Em certo sentido, essa epístola conserva uma pista adicional para a gênese e o amadurecimento de todo o livro. Endereçando sua primeira edição, a partir de seu refúgio na Basileia, tanto para o soberano cujo regime opressivo o levou a fugir e exilar-se quanto para seus correligionários sitiados, o jovem Calvino elucida, naquelas páginas iniciais, as duas frentes em que sua campanha teológica deveria ser travada. De um lado, ele rejeita o cristianismo deficiente da Sorbonne romanista, o establishment teológico da época. Do outro, dissocia-se do partido fanático revolucionário denominado, por ele, de catabatistas, posteriormente concebidos, de forma mais clara, como uma variedade de tendências radicais. Sua mensagem é a seguinte: assegurar seu soberano do caráter católico²⁴ do partido da Reforma, mais fiel do que seus inimigos sorbonnistas ao passado escriturístico e patrístico reivindicado por ambos; e assegurá-lo do caráter não subversivo e do apoio leal à monarquia pelo partido da Reforma, um partido a ser claramente diferenciado dos sonhos selvagens do Reino de Münster, liquidado poucos meses antes.

    Essa polarização inicial das Institutas, talhada pela natureza da crise política e eclesiástica contemporânea, perdurou por todas as edições subsequentes. Isso já foi examinado por mim, em outra ocasião,²⁵ de forma ­técnica e detalhada. Aqui, portanto, falaremos somente em termos descritivos que possam auxiliar o leitor à medida que ele traceja seu caminho pelo livro.

    As Institutas são, em certo sentido, um livro de antíteses. Essa é uma característica frustrante para o leitor novo, que espera que cada tópico seja plenamente esgotado antes que o próximo seja introduzido. É frustrante também para o crítico teológico ordeiro, minucioso, de mentalidade filosófica, que busca reduzir o todo à sua essência. Calvino, ao que tudo indica, ludibria ambos. Ele é, primeiramente, um teólogo escriturístico, e só depois um utilizador da filosofia, da lógica e da retórica — ferramentas humanas de ordenamento e das quais ele faz bom uso, mas nunca à custa do que julga ser a palavra manifesta da Escritura, compreendida contextualmente. Diante dos olhos de Calvino, sempre estão os episódios do que nós hoje chamamos de história da salvação, uma história que todo cristão deve experienciar por si mesmo, ainda que modestamente.

    Estou ciente de que, ao oferecer a análise tabular que apresento a seguir, "A estrutura antitética das Institutas", corro o risco de representar inadequadamente o fluxo do pensamento de Calvino ao longo das Institutas. Entretanto,

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