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Os Cinco Lendários: Nascem as Lendas
Os Cinco Lendários: Nascem as Lendas
Os Cinco Lendários: Nascem as Lendas
E-book596 páginas8 horas

Os Cinco Lendários: Nascem as Lendas

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Sobre este e-book

Localizada nos limites do reinado, a pequena Vila de Lester sofre com as pilhagens e ataques de um grupo de orcs. E, justamente, nessa pequena vila, cinco jovens aventureiros decidem se encontrar, depois de meses viajando sozinhos.
Ao enfrentar o bando de orcs arruaceiros, os cinco amigos — Baroque, Lisul, Antuerpe, Mistral e Elesius — terminarão por se envolver em uma aventura ainda maior, diferente de tudo que enfrentaram até então, que colocará à prova sua tenacidade.
Que surpresas os aguardam no fim desta jornada? O que lhes reserva a roda do destino? Entre desafios, lutas, diplomacia, promessas, lágrimas, desespero, júbilo e encontros, os cinco jovens companheiros terão muito a descobrir, tanto de si mesmos quanto de seus inimigos.
Siga esses amigos em sua jornada rumo ao desconhecido e acompanhe todas as descobertas que surgirão dentre eles.
IdiomaPortuguês
EditoraViseu
Data de lançamento8 de set. de 2023
ISBN9786525458052
Os Cinco Lendários: Nascem as Lendas

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    Os Cinco Lendários - Thiago Greca

    Baroque e Lisul

    A figura enorme andava com passos firmes, mas lentos, pela estrada empoeirada que cruzava a planície. Estava com sede, apesar de ter seu cantil ainda meio cheio de água, a qual estava economizando por não saber ao certo quando, e se, encontraria alguma outra fonte de água potável para encher o cantil. A última tinha sido dias atrás.

    Baroque era seu nome. Filho de humanos e orcs, pertencia à tribo dos Trasgard, formada por humanos de tribos bárbaras, orcs do deserto e, consequentemente, meio-orcs, conhecidos por gerarem algumas figuras de renome, como Rucron, o Braço de Ferro, que sozinho enfrentou dezenas de inimigos em mais de uma ocasião, saindo coberto de cicatrizes, mas vivo, e que encontrou seu fim diante da baforada de um dragão vermelho ancião, não sem antes arrancar uma das patas da fera; ou Travok, o Íntegro, membro da tribo original Trasgard, que unificou quase todos os pequenos assentamentos bárbaros e orcs sob seu comando, estendendo a todos a nomenclatura Trasgard, e conseguiu com que seu povo ganhasse reconhecimento.

    Apesar disso, a tribo orc não era tão respeitada quanto eram anões, elfos e humanos. Travok, ainda vivo, já com pelo menos uma centena de anos, continuava regendo aquele povo sem dar mostras de que sua saúde ou seu tino declinavam.

    E houve o próprio Trasgard, um orc lendário, que se dizia filho de um casal orc poderoso e que tinha as bênçãos do próprio Hon, sendo que essa parte da história foi perdida, e os que a conheciam faleceram deixando mais lendas do que fatos, o que contribuiu muito para que Trasgard fosse elevado quase à categoria de semideus.

    Trasgard enfrentou feras terríveis em suas primeiras histórias. E, ao longo de dezenas de anos, dizimou legiões de seres infernais, celestiais e extraplanares, ao ponto de conseguir a atenção do mítico Balrog, o qual enfrentou em uma única ocasião, sendo que, ao fim da luta, o ser demoníaco jazia estirado, quase sem forças, em um canto do campo de batalha. E o próprio Trasgard no outro, semimorto, mas ainda empunhando seu machado com firmeza, pronto para se defender ou mesmo atacar.

    A luta foi interrompida por duas outras figuras míticas, Olhos de Prata e Dentes de Fogo, dois dragões ancestrais, cujos nomes reais eram SkärRZaths e SstaSrrzaC, virtualmente impronunciáveis em qualquer língua que não em Dragon, e que traduziram seus próprios nomes para o comum, e por traduzir eles fizeram uma adaptação do real significado de seus nomes, pois rezava a crença que saber o nome correto de um dragão e seu significado lhe daria controle sobre a fera. Suas atitudes fizeram com que todos os dragões acabassem por adotar a mesma tática.

    Dentes de Fogo arrastou o Balrog de volta a seu reino infernal, e reza a lenda que hoje Balrog é seu maior e melhor soldado, enquanto Olhos de Prata levou Trasgard para seu covil.

    As lendas variam nesse ponto, umas dizendo que Trasgard bebeu do sangue do dragão e tornou-se uma mistura das três raças e foi levado a viver em um reino secreto, em outro plano, só conhecido e acessado por quem tem sangue dracônico; outras que ele foi devorado e regurgitado por Olhos de Prata, ressurgindo como um ser imortal, e levado a habitar um outro plano no qual, hoje, é como um deus. A verdade nunca será desvelada. O que se sabe é que, após essa intervenção, Trasgard nunca mais foi visto.

    E era dessa tribo que se originava Baroque, que, bastante educado, era um meio-orc bruto em força, mas não exatamente genial. Um tanto ignorante, não a ponto da estupidez que toda a crendice lhes atribuía, tendo o necessário para não ser muito enganado, conhecer técnicas básicas de sobrevivência, comunicar-se com razoável inteligência e saber diferenciar um agressor de um viajante incauto.

    Era uma figura grande, até para os padrões de sua própria tribo, com mais de dois metros e meio de altura e dono de uma musculatura pesada e sólida. Tinha a pele em um tom bronze-esverdeado, fruto da longa exposição ao sol e de seu lado orc, cabelos ruivos escuros, fartos e compridos, uma barba do mesmo tom que lhe chegava até o peito e que ele mantinha trançada, dono de um rosto largo, nariz adunco, olhos negros e quase sempre semicerrados, com queixo quadrado e caninos inferiores levemente proeminentes, nada tão evidente quanto um orc puro, mas muito maiores do que os de um humano normal. Trajava um gibão e calças de couro, já com vários remendos e marcas de algumas de suas lutas, botas simples e desgastadas, mochila também velha e remendada, um cantil que já tinha visto melhores dias e uma faixa de couro de cobra amarrada na cabeça para controlar a cabeleira farta. A única peça de seus equipamentos que estava em excelentes condições era a espada, um alfanje de lâmina levemente recurvada e desenhada, presente de seu pai, o orc responsável pelo meio-orc, que ele apelidara de amiga.

    O presente havia sido dado quando ele havia se juntado às forças organizadas por Travok para ajudar a expulsar das terras da tribo Trasgard os grupos errantes de bandidos e criatura maléficas, de forma a trazer um pouco de paz aos habitantes daquele pedaço do reino. Pouco depois disso, seu pai e sua mãe faleceram vítimas de um surto de peste. Ele concordou em vender a única casa que tinha e permanecer na guarda de Travok.

    Baroque, com o tempo, tornara-se bastante competente no uso da arma, grande parte dessa proficiência vinda de sua força bruta e aparentemente uma enorme resistência a dor, mas não permaneceu por muito tempo como soldado, parte por sua inteligência bastante lenta, parte por ter explosões de fúria que causaram bons problemas.

    Não fora expulso, mas lhe deram baixa e o liberaram de suas atribuições. Ele, em seu melhor julgamento, decidiu sair de sua vila para tentar a vida de segurança de caravanas, sendo que ali, da mesma forma, sua inteligência um tanto curta e as explosões de fúria acabaram por espalhar uma certa má-fama de seu nome e ele parou de ser contratado, ficando sem emprego e sem lar, e com minguadas economias para sobreviver.

    Foi um dos líderes de caravana que se afeiçoara a Baroque, que lhe deu a dica de se tornar um caçador de recompensas. E foi o que ele fez, passando a viver de cidade em cidade em busca de serviço. Ali sua inteligência só o atrapalhava na hora do pagamento, sendo que ele invariavelmente recebia muito menos do que alguém com qualquer quantia de malícia a mais do que ele, que tinha zero.

    De volta ao presente, o sol a pino deixava a paisagem tremeluzente de calor, e Baroque decidiu que era hora de outro gole de água. Morna. Com gosto estranho. Mas era a única que tinha. Retomou seu passo analisando os arredores em busca de algum marco conhecido. Pelos seus cálculos, que poderiam estar errados, ele já deveria estar nos arredores da pequena cidade que era seu destino, a modesta Vila de Lester, que levava esse nome por ter sido uma vila e fundada por um homem chamado Lester, que a batizou dessa forma. Bem óbvio.

    Por fim, os olhos dele se fixaram a distância em uma árvore de tronco frondoso, mas morta, seca e sem galhos, que não era nem árvore, nem estava morta, mas, sim, uma formação rochosa com algumas centenas de metros de altura, que inclusive era conhecida como Rocha da Agulha, nome dado, igualmente, pelo Lester que fundou a vila que leva seu nome.

    Seus passos convergiram para a Agulha. Seu destino estava próximo. Chegaria, no máximo, ao amanhecer do outro dia. Poderia chegar antes, mas isso faria com que não pudesse parar para comer e teria que apertar o passo. E a longa caminhada até ali já cobrava seu preço.

    No meio da manhã seguinte, o brutamonte adentrava o perímetro da cidade. Vinha absorto em seus pensamentos enquanto mascava um último pedaço de carne-seca da ração de viagem que havia comido como café da manhã. Pensamentos simples de um ser simples.

    Estava com fome. Estava com sede. Queria uma cerveja. Aquela árvore não era uma árvore.

    Caminhou com seu andar vagaroso até o que seria o centro da vila. No seu caminho, ouvia portas se fechando, via mães puxando seus filhos da rua e frases como outro daqueles. Achou estranho. Sabia que orcs, ou meio-orcs, não eram bem-vistos, mas raramente era recebido com reações tão intensas. No máximo, ouvia um Oh criatura feia. Continuou caminhando. A estalagem, que era seu destino, já estava à vista.

    Chegou à porta da estalagem Covil do Barba Negra e adentrou o local. O burburinho lá dentro silenciou com sua entrada. Baroque ficou alguns momentos parado na porta encarando os poucos frequentadores. Novamente achava aquilo tudo muito estranho. Não ouviu ninguém dizer nada ou cuspir no chão ao vê-lo. Aquilo estava começando a ficar desagradável, mas uma ideia lhe passou pela cabeça. Verificou suas vestimentas à procura de alguma mancha, sujeira ou rasgo que pudesse estar atraindo aqueles olhares. Suas roupas não eram novas e apresentavam claros sinais de que ele havia passado por situações difíceis, mas não havia nenhum rasgo em lugar impróprio, e estavam empoeiradas, mas, considerando sua viagem, aquilo era esperado. Continuou sem saber o que acontecia, e sua irritação subiu um pouco mais.

    Entrou na estalagem e se dirigiu à mesa mais próxima. Não reparou na figura de capuz e manto que o observava sentada ao fundo. Puxou uma das cadeiras e a encarou. Enfrentava o mesmo dilema de sempre: ou aquela cadeira era muito pequena, ou ele era grande demais.

    E surgia a dúvida de sempre: comer em pé ou se sentar no chão. Dada a sua altura, a segunda opção nem sempre representava um problema. Decidiu-se pela segunda e, assim que afastou a cadeira para longe, a figura esquálida e trêmula de um estalajadeiro surgiu ao seu lado.

    — Bom dia, senhor. Tem alguma coisa de errado?

    Bom dia, senhor. Baroque olhou em volta para ver se havia mais alguém ali perto. Não era tratado de senhor de forma nenhuma. E ainda havia recebido um bom-dia. Não sabia nem mesmo o que responder. Fez o que sempre fazia. Foi direto ao ponto.

    — A cadeira é muito pequena. Vou sentar-me no chão.

    O homem deu um salto.

    — Pelo amor de Gandorf! Não faça isso, senhor! Olhe, veja, essa cadeira vai lhe servir.

    Enquanto falava, enxotou um dos frequentadores que ocupava uma cadeira bastante maior, que realmente acomodaria o corpanzil de Baroque com certo conforto. Ele deu de ombros e se sentou.

    A figura no fim da sala estreitou os olhos enquanto encarava a nuca de Baroque e tomava um gole de seu copo.

    — O que posso lhe servir, senhor?

    Baroque ainda não conseguia entender o porquê de tanta gentileza. Puxou seu saquinho de moedas e olhou o conteúdo. Duas de prata, três de cobre.

    — Eu não sei o que dá para pagar com essas moedas. Estou esperando meus companheiros. Nós vamos nos encontrar aqui. O chefe deve estar vindo com eles. Quanto custa um café da manhã?

    O homem ficou branco, verde, azul e roxo quando ouviu a palavra chefe. A figura no fim da sala quase se engasgou com a bebida e claramente controlou uma risada, mas conseguiu permanecer em silêncio.

    — Senhor, eu vou lhe trazer o que quiser. Não diga a seu chefe que tentou pagar.

    Antes que Baroque pudesse sequer esboçar alguma reação, o que seria lento de qualquer jeito, o homem partiu para a cozinha. Baroque ficou encarando o vazio.

    — Não estou entendendo nada. Acho que não gosto disso.

    Uma faísca de emoção surgiu na voz dele. Foi o suficiente para a figura no fundo da sala se mover, erguendo-se da sua cadeira e indo na direção do brutamonte. Olhares com um misto de incredulidade e medo o acompanharam.

    Estacou nas costas de Baroque e pronunciou uma única palavra.

    — Grandão…

    Ao som dessa palavra, Baroque se virou. A expressão do meio-orc estava carregada, mas se normalizou ao ver a figura.

    — Ah! Oi, Lisul. Eu não te vi entrando.

    — Eu já estava aqui muito antes de você chegar, amigo.

    — Faz sentido! — Havia aprendido essa expressão e a usava de vez em quando, muitas vezes em ocasiões em que ela não fazia sentido nenhum. — O estalajadeiro vai me trazer café e disse que não é para eu pagar. Eu não sei o que ele vai trazer, não sei por que ele não vai me cobrar, não sei por que ele me deu essa cadeira e ainda por cima me tratou de senhor o tempo todo.

    Lisul ergueu uma sobrancelha. Essa era uma das frases mais longas que havia visto seu amigo dizer em muito tempo. Mas a fagulha de irritação havia virado uma pequena chama.

    — Calma, Baroque. Deixe o homem trazer o café e conversamos. Se ele não quer que você pague, deixa comigo.

    — Certo. Não tenho muito dinheiro. Você sempre tem mais.

    Foi trazido um bom desjejum para Baroque, suficiente para alimentar, e bem, quatro pessoas, o que significava que sobraria algo para Lisul também comer.

    Lisul era um humano magro, não muito alto, e aparentando ser muito mais velho do que na verdade era, graças aos cabelos brancos e olhos acinzentados. Tinha a pele clara, lábios finos e rosto levemente alongado. Era órfão de pai e mãe, nunca tendo conhecido seus pais. Ele foi criado por um curandeiro de sua cidade.

    Em vez de seguir os passos de seu pai, Lisul, desde muito cedo, demonstrava um claro interesse pelas artes arcanas e, assim, quando teve idade o suficiente, juntou todas suas poucas economias e entrou para uma das academias arcanas que existiam perto de sua cidade. Recebeu o treinamento básico, seus primeiros tomos e pergaminhos, e logo partiu para o mundo.

    Ninguém sabia quase nada da vida do homem, nem seus amigos. Por exemplo, não se sabia qual era sua cidade natal, o nome de seus pais de sangue, de seu pai de criação ou sequer qual academia arcana ele havia frequentado. Só era sabido que ele vinha do Sul, parte por conta de um levíssimo sotaque, parte por como ele havia sido encontrado. Tudo nele era um mistério, inclusive o que o motivava a fazer as coisas que fazia.

    Trajava sempre um manto roxo e com detalhes em vermelho, um cajado com uma gema azul engastada, roupas leves, sapatos macios e alguns anéis e colares. Seus cabelos brancos eram levemente bagunçados e olhos acinzentados sempre com uma expressão compenetrada. Falava sempre num tom calmo, mas com um toque de firmeza e tinha o costume de encarar a pessoas nos olhos e piscar vagarosamente enquanto falava o que, especialmente para Baroque, era bastante hipnótico. Seus amigos suspeitavam de que ele pudesse estar realmente hipnotizando as pessoas, ainda que o mago sempre afirmasse que não usava de tais artifícios. No entanto aquele costume era útil para arrefecer ânimos.

    Os dois comiam em silêncio. Lisul sabia que Baroque não conseguia conversar e comer ao mesmo tempo quando estava com muita fome. O meio-orc se perdia em meio às próprias frases e às vezes nem sequer ouvia o que lhe estava sendo dito. Assim, ele beliscava algumas coisas enquanto esperava a figura aplacar a fome.

    Já estava na cidade fazia alguns dias e tinha visto algumas coisas perturbadoras, muitas que explicavam o comportamento das pessoas ao redor de Baroque. Ele, Lisul, é que havia combinado o encontro ali, mas foi apenas por ser um local próximo ao último destino de cada um dos cinco membros de seu grupo, e dali poderiam partir para a capital com relativa rapidez. Agora parecia que haveria algum trabalho ali, mesmo que não remunerado. Lisul também aguardava a chegada dos outros membros de seu pequeno grupo. Não deveriam demorar muito.

    Antuerpe

    A porta da estalagem foi escancarada com um chute vindo de fora. Todos os presentes saltam em suas cadeiras com o susto, inclusive Lisul. Todos, ou quase, pois Baroque continuou comendo imperturbável.

    — Bom dia, bando de pinguços e fanfarrões! Beber a essa hora da manhã é para os fortes! Cadê a cerveja?! — A voz soava como um trovão naquele ambiente quase silencioso.

    A figura, trajada em uma meia armadura de batalha, entra com um enorme sorriso no rosto olhando os presentes. Lisul, ao ver quem era, revira os olhos murmurando enquanto balançava a cabeça levemente. Era Antuerpe.

    — Típico…

    O homem vê a dupla e gargalha, aproximando-se da mesa. Lisul se encolhe, sabe o que está por vir. E não se engana.

    O homem o agarra pelos ombros e sacode de um lado para o outro vigorosamente enquanto continua com seu vozeirão ecoando pelo local.

    — Bom dia, Gato Varapau! Bom dia, bom dia, bom dia! Cheguei e dessa vez não atrasei! Comé que cê tá homem? Cadê o resto da turma?

    Lisul responde o melhor que pode sobre aquela balburdia enquanto ainda é sacudido.

    — Para com isso, Antuerpe. Guarda essa sua animação para mais tarde. Estou bem e feliz de você não ter se atrasado dessa vez. Só chegamos nós três, pelo que vi.

    Em seguida, Antuerpe olha para o abrutalhado tomando seu café e lhe dá um sonoro tapa na nuca, forte o suficiente para fazer qualquer um ali ser jogado para frente, mas Baroque nem sequer se move.

    Ao ver aquele sonoro pescotapa, todos os presentes, exceto Lisul, simplesmente congelam. O mago dá um sorriso leve.

    — Bom dia, Grandão! Bão te ver, homem! Orc! Ah, sei lá, os dois! Que cê conta? Posso pegar um pouco desse café?

    Baroque engole, olha para o homem e… sorri.

    — Oi, amigo. Pega aí o que quiser. Você é muito animado. Eu ainda estou com sono.

    Antuerpe gargalha novamente, senta-se e olha para o estalajadeiro. O homem parece ter morrido em pé de tão branco.

    — Traga-me um copo, homem, ou eu vou ter que tomar na mão?

    O homenzinho ressuscita, desaparece e surge como um raio com uma caneca em um piscar de olhos.

    — Desculpe, senhor, não sabia que o senhor Baroque iria receber amigos assim tão rápido.

    Ele deixa a caneca e some de vista. É a vez de Antuerpe ficar boquiaberto e, numa rara ocasião, sem palavras. Mas não por muito tempo. Ele olhou para Baroque e, com um riso abafado, começou a dizer:

    — Peraí…, Senhor Baroque? De onde surgiu…

    — Agora não é uma boa hora para essa brincadeira, Antuerpe.

    Ainda sorrindo, ele olhou para Lisul, e seu sorriso congelou ante a expressão séria do outro. Mas o que o fez engolir as palavras foi a expressão nos olhos do meio-orc, o qual encarava fixamente o nada. Aquilo realmente preocupava. Passaram-se alguns segundos de silêncio. Antuerpe o quebrou com uma voz, agora, tranquila e calma.

    — Ei, Grandão, se não vai comer esse último pãozinho, fique sabendo que ainda tem espaço no meu estômago.

    Baroque saiu de seu devaneio e olhou para a mesa.

    — Não vou comer. Pode ficar com ele, amigo. Já comi.

    Antuerpe pegou o pãozinho e arrancou um pedaço com os dentes, começando a mascar enquanto recomeçava sua falação, agora em um tom ainda animado, mas não tão vigoroso, contando algumas das peripécias da viagem a um atento Baroque e um ligeiramente distraído Lisul.

    Antuerpe, assim como Baroque, era um homem grande para os padrões da raça, medindo quase dois metros e dono de uma compleição física robusta. Tinha cabelos e barba negros, os cabelos, não muito curtos, sempre em completo desalinho, mas a barba aparada e sempre alinhada. Seu rosto quadrado, de queixo largo e sempre altivo, dava-lhe um certo ar de respeito, apesar da constante torrente de piadas que saíam daqueles lábios que passavam a maior parte do tempo sorrindo. A voz era um trovão, sempre alta, com a impressão de que ele quisesse que o mundo todo o ouvisse.

    Seus trajes mais comuns eram a meia-armadura de metal acobreado que usava naquele momento, um gibão, camisa e calças simples por baixo e um par de manoplas da mesma cor. Empunhava uma belíssima espada bastarda, que havia sido presente de um prefeito de uma das vilas que ajudara no passado. Ele dera nome à espada: Genuína. E insistiu que Baroque fizesse o mesmo com a que tinha.

    O guerreiro era um espírito jovial, sempre com uma piada ou um comentário jocoso na ponta da língua. Fora ele quem, inclusive, colocara os apelidos nos integrantes do grupo. Era sempre o primeiro a gritar por bebida, puxar uma canção na beira da fogueira — às vezes mesmo quando deveriam estar em silêncio — e partir para uma briga. E sempre mantinha o grupo unido quando começava a pegar no pé de um deles com algum acontecimento do passado. Não havia dia ruim ou noite aterradora sérios o suficiente para arrancar aquele sorriso do rosto do homem. Mas toda essa jovialidade escondia um passado ruim. Antuerpe nem sempre fora esse cara bonachão e alegre.

    Muito novo, ele testemunhou sua família e vários outros habitantes de sua aldeia serem mortos por ordem de um mago necromante que tentava estabelecer-se nos arredores da pequena Raftínia, no caso, sua aldeia.

    Por muito tempo após aquilo, ele alimentou um ódio muito particular contra necromantes, ódio este que acabou por se estender a todos aqueles que conheciam as artes arcanas. Tornou-se um caçador implacável de magos, atuando sobre as ordens do duque que regia as terras onde ficava sua antiga aldeia, tendo sido responsável pela morte de quase uma dúzia de magos. Era fácil. Bastava deixar que o ódio e a imagem de seus pais mortos viessem a sua mente e qualquer arcano se tornava um alvo.

    Foi apenas quando, finalmente, foi enviado para dar cabo do necromante que habitava próximo a sua aldeia que essa história mudou. Fora obrigado a trabalhar com um mago, um sujeito calado, de cabelos e olhos castanhos e dono de uma voz melíflua que lhe despertava ainda mais raiva, especialmente pela aparência jovem do mago, que deveria ser bem mais velho do que ele. Foi ódio à primeira vista.

    O mago. Lisul.

    A relação dos dois começou repleta de ódio de um lado, e uma completa indiferença do outro, ambos apenas querendo cumprir a missão dada, receber seus espólios e cada um seguir seu rumo. Prosseguiram derrubando oponentes até alcançarem o refúgio do mago negro e, nesse caminho, relutantemente começou a surgir respeito entre ambos. Nada como ter sua vida salva por outra pessoa para que sua opinião sobre ela comece a mudar.

    No entanto foi apenas quando finalmente entraram no covil do mago que a relação de ambos passou de respeito para amizade. Antuerpe acabou vítima dos artifícios do arcano corrompido e se viu sendo arrastado para o submundo preso a uma ilusão na qual seus pais o atacavam e ele não conseguia se defender. Foi Lisul, ao custo de sua própria essência vital, quem quebrou aquele feitiço. Ao sair da ilusão, Antuerpe viu o mago estendido no chão, presumidamente morto, cabelos completamente brancos e o corpo reduzido a pele e ossos. Mas aquele corpo aparentemente sem vida moveu-se e ele viu olhos acinzentados, afundados em um crânio quase cadavérico a lhe observar, e a mão direita, num último esforço, fez um sinal de positivo enquanto a sombra de um sorriso pairou naqueles lábios secos.

    O homem havia se sacrificado por ele, que havia feito questão de deixar bem claro que arrancaria a cabeça do arcanista na primeira oportunidade que tivesse, e, agora, estava ali estirado e possivelmente estaria morto em questão de minutos.

    Foi quando ele atacou o mago negro, o qual ainda lhe atingiu com outros feitiços, mas o ódio que movia Antuerpe o fez suportar todos aqueles ferimentos, degolar o homem e arrastar a carcaça dele e o corpo ressequido de Lisul de volta à vila.

    O mago levou dias para se recuperar, sua saúde e vitalidade retornaram, mas seus cabelos e seus olhos permaneceram alterados. Antuerpe se sentia mal com aquilo no começo, mas Lisul não se importava e, por vezes, tirava vantagem de parecer um velho.

    Assim, nasceu a amizade de ambos, que passaram a trabalhar juntos e foram, aos poucos, encontrando os outros membros.

    Novamente no presente. Quando Antuerpe terminou de comer o pãozinho, Lisul fez sinal ao estalajadeiro. O homem se aproximou relutante. O mago disse suavemente ao assustado homenzinho:

    — Quanto estamos lhe devendo pela refeição?

    O homem gaguejou, engoliu em seco e desesperadamente olhou para Baroque, que o encarava com uma expressão neutra, ou seja, naturalmente. Finalmente encontrou as palavras.

    — Não posso cobrar do senhor. Se souberem, vão me matar.

    Baroque bufou. Antuerpe mais do que depressa agiu.

    — Baroque, você passou por Nilingard? Sempre quis comer a torta de javali da estalagem Carneiro Dourado, dizem que é a melhor do universo!

    Baroque piscou. Arregalou os olhos.

    — Eu quase esqueci. Trouxe uma coisa para vocês.

    Colocou-se a revirar a mochila. Lisul tomou a palavra dirigindo-se ao estalajadeiro.

    — Homem, eu sei do problema que estão passando aqui. Baroque, ou qualquer de nós, não pertence àqueles que se intitulam A Legião. Ele pode ser um meio-orc, mas não é um daqueles bandidos, é apenas, digamos, meio lento. Repito, quanto lhe devemos pela refeição?

    — Achei. — Era Baroque.

    Os três olharam para Baroque. Ele segurava dois pequenos embrulhos de pano. Entregou um para Antuerpe e outro para Lisul.

    — Erp! — Era como ele dizia o nome do guerreiro, já que A-N-T-U-E-R-P-E era um tanto longo para o cérebro meio marcha lenta do brutamonte. — Isso é para o seu cachimbo e Lisul, isso é para sua coleção.

    Antuerpe desembrulhou seu presente, era um anel. Lisul o seu, era um pacote de fumo. Antuerpe não perdeu tempo.

    — Olha só, Baroque, é muito bonito e tal, mas não dá para fumar um anel e acho que o Lisul não coleciona tabacos raros.

    Baroque piscou. Olhou os presentes desembrulhados. Piscou de novo. Segundos se passaram.

    — Ih, acho que troquei.

    Lisul fechou os olhos e respirou vagarosamente. Não queria rir da situação. Antuerpe não conteve o riso. Ambos trocaram os presentes e Antuerpe mais do que depressa começou a preparar seu cachimbo.

    Então os três lembraram do estalajadeiro. O homem estava ali, plantado e, agora, aos prantos.

    — Vocês juram que não são da Legião? Juram que vão pagar a comida? Se estiverem mentindo, sou um homem morto.

    Lisul tirou seu saco de moedas e olhou para o homem, esperando. Ele conteve as lágrimas, fungou, pigarreou.

    — Bom, um café para quatro, são duas moedas de ouro.

    Lisul tirou seis moedas do saco.

    — Não reclame. Na verdade, não diga nada. Só pegue isso e use. Antuerpe, Baroque, vamos, encontramos os outros lá fora.

    O mago e o guerreiro se dirigiram para fora. Baroque ainda encarava o homenzinho. Este começou a temer novamente por sua vida. O bruto vagarosamente estendeu a mão, à medida que o outro se encolhia, e a ofereceu para um aperto. Hesitantemente, o estalajadeiro segurou naquela mãozona. Delicadamente, Baroque a apertou e sacudiu para cima e para baixo duas vezes.

    — Não sou bandido. E eu não tinha dinheiro suficiente. Ia ficar devendo. Se precisasse, lavaria pratos. Obrigado. A comida tava muito boa.

    Soltou a mão do homem e foi se juntar aos seus amigos.

    — É, senhor Baroque?

    Ele parou. Uma veia saltou em sua testa. Virou-se. Era o estalajadeiro segurando sua mochila. O homenzinho poderia caber dentro dela.

    — O senhor estava esquecendo isso.

    Ele pegou a mochila e colocou no ombro, mas ainda encarava o homem.

    — Por que está me tratando de Senhor Baroque? Eu disse que não sou bandido.

    O homem ficou confuso, mas lembrou-se das palavras do mago.

    — Não, senhor, digo, Baroque, digo, bom, deixa eu explicar. Senhor é o que eu uso para mostrar que respeito alguém, não para dizer que esse alguém é bandido. Eu respeito o senh… digo, você, e assim eu te trato de Senhor Baroque… entendeu? — A voz do homem quase sumiu na última palavra.

    Baroque o encarava de cara fechada, mas, num relance, a expressão se amenizou.

    — Ah. Entendi. Obrigado, senhor estalajadeiro.

    — Meu nome é Aristíades. Eu que agradeço.

    — De nada, senhor estalajadeiro, senhor arisdes.

    O homem pensou em corrigi-lo, mas o bom senso o demoveu. O bárbaro virou-se e saiu da estalagem.

    Nesse ínterim, Lisul e Antuerpe conversavam do lado de fora.

    — Certo, Lisul, que história é essa de A Legião? Soa como uma encrenca em que estamos a ponto de entrar. — O tom de voz ligeiramente jocoso dele não escondia a seriedade com que tratava do assunto.

    — Não sei muito ao certo, Erp! — Todos tratavam dele assim, afinal era um nome imenso. — Só sei algumas coisas que soube quando cheguei. Aparentemente é um grupo grande de orcs, e só orcs, liderados por um certo Crockton, que anda aterrorizando algumas vilas por esse lado.

    — O quanto eu devo me preocupar?

    — Por enquanto, não muito. É só o de sempre: pilhagens, aterrorizar os habitantes, cobrar por proteção e ocasionalmente um assassinato.

    — E esse tal Crockton? Alguma característica especial?

    — A maioria das pessoas que encontrei nunca sequer o viram. Mas os grupos sempre ameaçam que ele vai aparecer e as coisas vão ficar sérias. Chego a acreditar que ele não é lá essas coisas, mas posso estar errado.

    — Bom, se vamos encarar esse problema, precisamos de mais informações e falar com o prefeito, ou seja lá quem for que manda aqui, para ver se há alguma recompensa, e você sabe muito bem por conta de quem.

    — Estou contando que ela vai ter mais informações quando chegar. Quanto ao pagamento, deixa comigo que eu falo com nossa donzela, que, por sinal, está atrasada.

    — Eu sou capaz de apostar que ela está vendo a gente nesse momento e inclusive escutando nossa conversa.

    — É bem possível, meu caro, é bem possí…

    — Desculpa incomodar a dupla aí, mas acho que dá para eu fazer um favor para vocês.

    A frase, seguida de algumas risadas, interrompeu a conversa. Ambos se viraram para o autor. Um homem magro, segurando uma adaga, acompanhado de mais três, sendo que desses um estava afastado e tinha um arco.

    Lisul suspirou e ergueu as sobrancelhas. Um assalto, evidentemente, e nem era hora do almoço. Antuerpe sumiu com o sorriso do rosto.

    — Diga lá, bom homem, que favor seria esse? — A voz de Lisul se revestia de uma falsidade quase palpável.

    — Posso aliviar vocês do peso das suas bolsas de moedas, pois parecem estar bem cheias, e em troca deixo vocês irem procurar Crockton. Nós somos da Legião, por sinal. — As palavras foram acompanhadas do gesto de apontar um símbolo pendurado em uma corrente no pescoço.

    Lisul olhou o símbolo. Bem-feito, mas não perfeito, aqueles homens se passavam por membros da Legião para facilitar os roubos.

    — Meu amigo, essa coisa aí no seu pescoço é tanto um símbolo da Legião quanto eu sou um unicórnio. Vamos fazer assim, vocês vão embora e ninguém se machuca. — Lisul estava ligeiramente sem paciência.

    Os quatro assaltantes riram. O chefe continuou.

    — Parece que vocês aí não sabem contar. Tem dois de vocês e quatro de nós, e o Ilian ali atrás acerta o olho do seu amigo de armadura antes de ele sacar a espada.

    Assim que isso foi dito, Antuerpe sacou a espada e se colocou em prontidão. Em sequência, fez o que sempre fazia. Sorriu e soltou uma piada.

    — Ué? Cadê a flecha?

    Os quatro recuaram um passo e agora todos empunhavam armas. Antuerpe deu um passo à frente, pronto para investir, mas Lisul o impediu.

    — Calma, Erp, não vale nem a pena o esforço…

    — Isso aí, grandalhão, não vale mesmo. Para mim derrubar você são dois pulos.

    Lisul ergueu as sobrancelhas novamente. Detestava ser interrompido dessa forma. Olhou para o bandido.

    — Em primeiro lugar, mim não faz nada. Em segundo, é um pulo, e não dois. Terceiro, quanto à desvantagem numérica, vocês deveriam contar melhor, pois, além de nós dois, temos nosso amigo Baroque, que está nesse momento bem atrás do seu arqueiro. E só ele vale por vocês quatro.

    — Ah! Essa é velha. Você é muito besta se acha que eu vou olhar para trás e…

    — Oh Morris…

    A voz num tom meio alterado interrompeu o homem, que não se virou, mas se zangou.

    — Que que foi, Ilian. To tentando mostrar pros caras aqui que quem manda é…

    — Morris, tem um baita orc atrás de mim me encarando.

    Um misto de emoções passou pelo rosto do tal Morris. De raiva a dúvida, e ele finalmente se rendeu e olhou para trás, apenas para ver a figura abrutalhada de Baroque parado a centímetros do tal Ilan.

    — Puta merda. Quem é esse monstro? — Outro dos bandidos também tinha se virado, e o terceiro olhou, não disse nada, mas recuou três passos para longe.

    — Acerte-o com seu arco, sua anta! A flecha tá pronta! — A voz de Morris começava a demonstrar tensão.

    Antes de que Ilan pudesse sequer erguer a arma, Baroque o agarrou pelo pulso da mão do arco e o ergueu do solo. O outro começou a espernear, tentando chutar o brutamonte. Em vão, não alcançava, e mesmo que alcançasse não surtiria muito efeito.

    — Eu não gosto de bandidos. — A voz de Baroque estava calma.

    Lisul e Antuerpe se entreolharam e o guerreiro embainhou a espada.

    — Pega sua adaga, sua besta! Enfia no braço dele!

    Ilan fez exatamente isso e a ponta da adaga mal perfurou a pele grossa de Baroque. Ele nem sequer se moveu. Mas ficou mais sério.

    — Quer que eu faça o que com ele? — Um nadinha de nada de irritação surgiu. Antuerpe foi quem respondeu.

    — Um soco, Baroque, um bom soco. Onde você quiser, mas um soco só.

    Baroque fechou o punho e afundou no rosto do homem que nem sequer conseguiu reagir. Depois o soltou. Ilian caiu como um saco de batatas, com o nariz torto e alguns dentes a menos.

    Morris se desesperou.

    — Greg seu imbecil, não fica aí parado! Abre o bucho daquela coisa!

    O tal Greg — o mesmo da frase de alguns momentos atrás — correu até o bárbaro e tentou enfiar a adaga no abdômen de Baroque, mas sua adaga parou no gibão do meio-orc. Levou, em sequência, um golpe com as costas da mão dado pelo brutamonte. Caiu no chão desacordado.

    Morris agora olhava Baroque, Lisul e Antuerpe já se sentindo acuado.

    — Marco! Apunhala o grandalhão que eu vou te dar cobertura.

    O tal Marco, que a essa altura já tinha recuado mais cinco passos, olhou para Morris, para Baroque, para Lisul e para Antuerpe. Ato contínuo, largou sua adaga e fugiu, falando enquanto corria.

    — Eu, hein, sai fora e se vira aí, Morris.

    Morris se viu cercado pelos três, ou mais precisamente, sentiu-se cercado, pois nenhum dos três havia sequer movido um passo. O desespero surgiu em seus olhos e Antuerpe percebeu, mas antes que pudesse se mover, o bandido saltou, agarrando Lisul e colocando-o à sua frente com a lâmina da adaga no pescoço do mago. Lisul era, agora, um escudo humano.

    — Muito bem, o bando de covardes pode ter me deixado na mão, mas agora estou com seu amigo no fio da minha faca, um movimentinho errado e eu corto a garganta dele. Então, vocês aí, melhor jogarem as bolsas de moeda e sair de perto.

    Ninguém se moveu. Os olhos do bandido saltavam do bárbaro para o guerreiro e de volta para o bárbaro. Baroque foi quem quebrou o silêncio, uma vez que Antuerpe claramente lutava para conter o riso.

    — Olha, moço, melhor soltá-lo ou você vai se machucar.

    O bandido apertou mais a adaga no pescoço de Lisul, e dava para perceber que não era lá grandes coisas, visto que ainda sequer havia ferido a pele do mago. O bandido vociferou:

    — Não me ameace, monstrengo. Para me acertar, você vai ter que atropelar seu amigo. Fica paradinho aí e joga sua bolsa no chão.

    A voz de Lisul surgiu baixa, num tom calmo em que, ainda assim, era perceptível a irritação do mago.

    — Duas coisas. Meu amigo não é um monstrengo. E ele não sabe fazer ameaças.

    Ao final de suas palavras, seus olhos emitirão um fraco e brevíssimo brilho azul e Morris sentiu uma dor lancinante enquanto todos seus músculos se retesavam com a descarga elétrica que percorreu seu corpo. Desabou no chão desacordado. Lisul se afastou limpando a poeira de seu manto.

    — Erp, vamos procurar o chefe dessa vila. Baroque, leve esses infelizes para a taberna. Eles não são da Legião e devem ser banidos em troca de recompensa por eles. O estalajadeiro talvez consiga repor mais um pouco dos seus prejuízos com ela, depois venha nos encontrar.

    — Pode deixar, Lisul, vou levar o senhor estalajadeiro, o senhor Arisdes.

    — Quem? — Era Antuerpe.

    — Deixa estar Erp. — Era Lisul.

    Mistral

    Separaram-se, com o bárbaro arrastando os homens desacordados para dentro da estalagem.

    Os dois seguiram pela rua em silêncio. Lisul ainda irritado. Antuerpe olhando em volta. Andaram metade de um quarteirão antes que o silêncio fosse quebrado.

    — Você não conseguiu se mover, Erp.

    — Eu? Nem em -sonho. O cara foi rápido, Lisul.

    — E meu pescoço ficou à mercê de uma adaga.

    — Cega, torta, de péssima qualidade e empunhada por um cara que mal sabia qual era o lado de furar e o de segurar.

    — Ainda assim foi o meu pescoço. Não o seu.

    — Certo. Entendi.

    O guerreiro parou, abriu os braços e em seu vozeirão disse o mais alto que pode.

    — Mil perdões, meu caro e muito estimado amigo Lisul. Eu sou uma tartaruga manca e com reumatismo de tão lento e não consegui impedir que aquele bandid…

    Lisul o havia agarrado e lhe tapado a boca com as mãos. Antuerpe sabia que isso ia acontecer, seu amigo detestava cenas assim, especialmente se ele era o foco.

    — Para com isso Erp. Eu estava só extravasando a raiva. Olha o escândalo. — Soltou o guerreiro, que já estava rindo.

    — Oh, Lisul, aproveita o ridículo. As vezes faz bem para a alma.

    Lisul revirou os olhos, sacudiu a cabeça, suspirando fundo e nada disse, continuou a andar.

    Uma voz feminina, surgiu a esquerda deles.

    — Como se um homem trajando um manto roxo e vermelho já não fosse ridículo o suficiente.

    Os dois se viraram. Lisul abriu um magro e leve sorriso, Antuerpe foi mais efusivo. Bem mais. Muito mais.

    Uma elfa da floresta, divinamente linda como todos de sua raça, vestindo um traje leve de couro que lhe realçava as formas, e tendo em uma das mãos, com uma das pontas no chão, um belíssimo arco de pau-ferro, adornado com entalhes finos e preenchidos com prata. Na cintura, no lado esquerdo uma aljava de flechas, todas com penas púrpuras, e em ambas laterais do abdômen três bainhas com adagas de arremesso prateadas.

    Cabelos negros como a noite, olhos que pareciam duas turquesas, lábios sensuais, rosto perfeito, pele perfeita e dona de uma voz com a dose certa de seriedade e sensualidade. Era Mistral, a especialista em armas de longo alcance e, eventualmente, adquirir bens de maneira não convencional.

    — Bela da Noite! Rainha das Flechas! Donzela Letal das Adagas dançantes! A moça mais linda de todo o reino! Que saudade.

    A figura feminina riu e se permitiu ser envolta num abraço de urso que a retirou do chão.

    — É bom ver você Mistral — Lisul havia recobrado o tom de voz firme de sempre — chegou na cidade faz muito tempo.

    Ainda sendo abraçada por Antuerpe, Mistral respondeu o melhor que pode.

    — Cheguei fazem uns cinco dias Lisul. Ouvi rumores e vim investig… solte-me, Erp!

    O guerreiro a soltou e fez uma mesura exagerada.

    — Tudo que minha Milady desejar.

    — Me traz um carroção cheio de Sedas de Espéria então. — O tom era divertidamente sério.

    — Aí você forçou a amizade. Onde vou arrumar uma carroça?

    — Ué, você mesmo disse.

    — Prometo-lhe que antes do próximo inverno lhe darei esse carroção.

    — Eu tenho uma memória excelente. Não se esqueça.

    Lisul teria deixado aquela conversa sem pé nem cabeça seguir indefinidamente, mas tinham assuntos a tratar.

    — Depois vocês discutem sobre sedas e carroças. Você disse que ouviu rumores?

    — Sim, sobre uma horda orc que aterroriza essas terras denominada Legião.

    — E o que descobriu.

    — O líder se intitula o novo Crockton, aparentemente é um título muito antigo usado entre tribos orcs e é o equivalente a um imperador ou rei. O nome dele, mesmo, é Rutark.

    — Isso é novo para mim — era Lisul — achei que Crockton fosse o nome dele.

    — É a dificuldade de se traduzir a língua orc. As palavras para título e nome são as mesmas. E por falar em orc, onde está Baroque, ele já chegou?

    — Chegou sim ele estava levan…

    Um grito agudo da moça cortou a frase de Lisul pelo meio.

    — Coquinho!

    Ela saiu correndo para um Baroque sorridente e de braços abertos, saltando e agarrando o meio-orc pelo pescoço em um abraço, e o orc a abraça de volta, o mais delicadamente que pode.

    Lisul abre um ligeiro sorriso, Antuerpe também, mas o seu sorriso tem um quê de tristeza.

    A história de Mistral, como a sua, era marcada por uma infância ruim, mas se a dele havia sido sofrida, a dela foi o inferno em si.

    A família de Mistral, que então era da aristocracia do reino élfico do Norte, havia sido degolada as vistas da garota, quando esta era apenas uma adolescente, por um verdadeiro exército de orcs renegados e expulsos da, ainda em formação, tribo de Trasgard. Ela foi mantida viva e levada para servir de escrava. De filha de aristocratas a escrava em menos de um dia, ela passou a ser maltratada e aterrorizada todos os dias, era deixada sem comida por, às vezes, uma semana, ou recebia comida quase apodrecida. Suportou esse inferno por quase três anos, sempre ouvindo que o Rei élfico estava negociando a libertação dos escravos. Seu único alento era uma criada, humana, que lhe trazia esses pedaços de informação e, quando estava sendo mantida sem comida, esgueirava alguns pedações de pão, ou frutas ainda descentes para a garota.

    Dos horrores que ela passou lá, muito pouco se sabia, ela mesma evitava falar, mas ficava evidente pelo ódio que ela sentia por orcs, ódio este o qual Baroque quase foi vítima.

    Tudo acontecera muitos anos depois dela ser libertada do cativeiro pelo Rei elfo Lindram

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