"Temor e Tremor": a religião além dos limites da mera razão
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Sobre este e-book
O leitor vai se deparar com uma interpretação que persiste em destacar o caráter paradoxal da experiência humana: ao mesmo tempo atravessada pela fé, pelas dúvidas acerca da própria crença, em busca da liberdade, da eternidade e assente da própria finitude a partir da sua relação com Deus. [...] A leitura de Campelo sobre Temor e Tremor nos remete a uma constante indagação acerca do que assistimos, na contemporaneidade, em discursos sobre a fé e a experiência religiosa. Considerando-se que o trabalho se localiza entre os que perseguem uma trilha de análise rigorosa, vasculha exaustivamente a relação entre conceitos e ordena uma interpretação coerente dos mesmos, bem estruturada na explicação das passagens mais obscuras de um texto pleno de enigmas, esse estudo de Carlos Campelo já constitui uma notável contribuição para as Ciências da Religião e as humanidades no Brasil.
(do prefácio de Douglas Ferreira Barros)
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"Temor e Tremor" - Carlos Campelo da Silva
CAPÍTULO 1
DA RELAÇÃO ENTRE A RELIGIÃO E A RAZÃO
Iniciamos este capítulo com algumas considerações que visam esclarecer de que trata Temor e Tremor (1843) e quais serão os objetivos que pretendemos alcançar neste capítulo. O livro Temor e Tremor (1843) do filósofo e teólogo Søren Aabye Kierkegaard permanece como um ponto de inflexão nas interpretações da história bíblica de Abraão ¹. Não por acaso que em mais de cento e cinquenta anos de seu lançamento o livro ainda cause horrores e calafrios
² em seus leitores. A chave que abre a porta de entrada para as reflexões e questionamentos que Kierkegaard tecerá por meio do heterônimo Johannes de Silentio é o texto bíblico de Gênesis 22, no qual Deus dá uma ordem explícita a Abraão para sacrificar o seu filho Isaac: E aconteceu que tentou Deus a Abraão e lhe disse: toma, agora, o teu único filho, Isaac, a quem amas, e vai-te à terra de Moriá, e oferece-o ali em holocausto, sobre uma das montanhas, que eu te indicar
(Gn 22.2) ³.
Este texto, considerado fundante das religiões monoteístas, as quais encontram em Abraão o pai da fé, levanta alguns problemas éticos e religiosos. Diante de Deus, Abraão é considerado um servo fiel que está disposto a sacrificar o seu filho em obediência à ordem divina, enquanto que perante os homens Abraão é considerado um assassino que fere as instâncias morais (KIERKEGAARD, 1843/2009a, p. 83). Johannes/Kierkegaard não parece disposto a fazer negócios e baratear
⁴ o debate por meio de mediações ou explicações lógicas. Em sua análise serão incluídas novas categorias que são estranhas ao pensamento sistemático: o paradoxo, o cavaleiro da fé, o cavaleiro da resignação, o absurdo, o singular e a suspensão teleológica do ético (SOUSA, 2009, p. 27). Assim, segundo Elisabete de Sousa (2009, p. 33), pouco a pouco Johannes de Silentio demonstra paulatinamente o desmedido e o irrazoável da tarefa de Abraão:
por meio de uma argumentação sutil que desenrola um catálogo de recursos retóricos a serviço do incremento do pathos, culminando em hipérboles que juntam a cegueira e a paralisia ao silêncio de que é feito o grande [...]. A tarefa que está reservada a Johannes consiste em por fim a sua própria indignação – não haver quem condignamente narre o que aconteceu
. (SOUSA, 2009, p. 33).
Parte da crítica, tanto filosófica quanto teológica, não se furtou em ver na análise que Kierkegaard ofereceu-nos acerca da figura de Abraão uma espécie de irracionalismo. Ricardo Gouvêa em seu livro A Palavra e o Silêncio (2009) fornece-nos uma lista das muitas interpretações de Temor e Tremor e os diversos autores que viram no livro uma defesa da irracionalidade⁵. A título de exemplo destacamos dois importantes pensadores do século XX: o filósofo Martin Buber (1875-1965) e o teólogo Francis Schaefer (1912-1984). Buber considerava Kierkegaard um irracionalista e um isolacionista e Francis Schaefer acusava-o de ser um dos maiores responsáveis do desastre intelectual que ele via na filosofia do século XX⁶ (GOUVÊA, 2006, p. 106-109).
É importante que o leitor tenha em mente, ao ler este livro, as acusações que pesam sobre Kierkegaard e particularmente sobre Temor e Tremor (1843), tendo em vista que o objetivo principal que norteou esta pesquisa foi exatamente o de contrapor tais teses. Para tanto, em nossa investigação acerca da obra Temor e Tremor (1843) amparamo-nos em alguns comentadores que vislumbraram por trás da crítica kierkegaardiana aos sistemas racionais mais do que mero irracionalismo⁷. Desse modo, o que essa pesquisa pretendeu mostrar é que Temor e Tremor (1843) não é um livro sobre irracionalidade, mas um livro que aponta para os limites da razão (GOUVÊA, 2009, p. 11).
Para Gouvêa (2009, p. 24), Temor e Tremor foi objeto de muitas interpretações equivocadas e parciais
. O autor acredita que este quadro está mudando, porém, ressalta que os estudiosos de Kierkegaard estão apenas começando a vislumbrar o significado do livro
. Sendo assim, esta pesquisa visa de algum modo dar a sua contribuição. Assim, seguimos passo a passo o percurso de Kierkegaard em Temor e Tremor (1843) e, neste capítulo particularmente, ao analisarmos o Heterônimo, Epígrafe, Prefácio e Disposição, enfatizamos os aspectos caracteristicamente religiosos que pairam por trás dos argumentos retóricos de Johannes de Silentio e à relação com a razão, tanto aquela dos sistemas, sejam eles religiosos ou filosóficos, quanto o próprio sentido que Johannes dará para a razão em suas reflexões.
1.1 COMUNICAÇÃO INDIRETA E HETERÔNIMO
A obra Temor e Tremor (1843) não é propriamente um escrito de autoria de Kierkegaard, mas sim do heterônimo Johannes de Silentio (VALLS, 2000, p. 181). Esta afirmação pode parecer estranha àqueles que não estão familiarizados com o método de comunicação indireta empregado pelo pensador dinamarquês. Porém, ela é congruente com a vontade do autor. Tendo em vista que ao assumir no final do Post-Scriptum (1846) a autoria dos livros heteronímicos, Kierkegaard, faz a seguinte solicitação:
caso ocorra a alguém citar alguma passagem particular dos livros, que me preste o favor de citar o nome do respectivo autor pseudônimo, não o meu, isto é, de repartir as coisas entre nós de tal modo que a expressão pertença femininamente ao pseudônimo, e a responsabilidade civilmente a mim. (KIERKEGAARD, 1846/2016, p. 342).
Temos também o seu pequeno artigo Confissão Pública – que apareceu no jornal Foedrelandet (A Pátria). Nele, Kierkegaard pediu uma única coisa: que nunca no futuro, fosse considerado como o autor de livros que não levassem o meu [de Kierkegaard] nome
(KIERKEGAARD, 1859/2002a, p. 61).
Ao nos depararmos com tais afirmações, que soam, no mínimo, excêntricas, podemos pensar que se trata de uma espécie de loucura⁸ e relegá-la para as análises psicobiográficas⁹, que já foram objeto de muitos autores. Entretanto, se olharmos atentamente encontraremos lógica na estratégia empregada pelo autor. O próprio Kierkegaard, preocupado com a confusão que as obras heteronímicas poderiam causar no futuro, procurou dar um sentido ao conjunto de sua obra, por meio do texto publicado postumamente Ponto de vista explicativo da minha obra de escritor (1859)¹⁰ e também em algumas passagens dos Diários¹¹.
Ao redigir o Ponto de vista, Kierkegaard pretendia assegurar o destino de sua obra. Este pequeno livro tem como subtítulos: Uma comunicação direta
e relatório a história
. Como pode-se depreender do título e subtítulos, trata-se de um esclarecimento. De acordo com Kierkegaard (1859/2002a, p. 23-24), o seu propósito é certificar e orientar, não pretende ser uma defesa ou apologia, mas declarar publicamente o propósito de toda a obra, ainda que isso lhe possa ser desfavorável.
A estratégia heteronímica tinha como propósito atrair o leitor para aquilo que o autor entendia ser a verdade. Mas, para tanto, era preciso encontrar exatamente o ponto em que se encontrava o interlocutor: És disso capaz, podes encontrar exatamente o ponto onde se encontra o teu interlocutor e começar aí, terás talvez a sorte de conduzi-lo ao ponto onde tu estás
(KIERKEGAARD, 1859/2002a, p. 46).
Para Kierkegaard, embora as pessoas em sua época se achassem religiosas, na verdade estavam muito longe de um compromisso sério com o cristianismo. Tanto é assim que, em sua metodologia, Kierkegaard publicava obras estéticas assinadas por um heterônimo e simultaneamente publicava obras de conteúdo estritamente religioso assinadas com seu nome – tal é o caso de Temor e Tremor (1843) que foi publicada juntamente com A Repetição e Três Discursos Edificantes –, entretanto as obras com conteúdo religioso passavam praticamente despercebidas pelos habitantes de Copenhague¹².
Assim, o método adotado por Kierkegaard divide sua obra em comunicação indireta (obras estéticas) e comunicação direta (conteúdo estritamente religioso). Em Ponto de Vista, Kierkegaard (1859/2002a, p. 29) fornece-nos a seguinte classificação de suas obras:
Primeiro grupo (produção estética): A Alternativa; Temor e Tremor; A Repetição; O Conceito de Angústia; Prefácios; Migalhas Filosóficas; Os Estádios no Caminho da Vida; e dezoito discursos edificantes aparecidos sucessivamente. Segundo grupo: Post-Scriptum definitivo e não científico. Terceiro grupo (produção estritamente religiosa): Discursos edificantes sob diversos pontos de vista; As Obras do Amor; Discursos Cristãos, um pequeno artigo estético: A crise e uma crise na vida de uma atriz.
Kierkegaard faz questão de deixar claro que tudo fazia parte de um método que foi minuciosamente preparado. Ele não queria que, no futuro, as pessoas pensassem que se tratava de um autor estético que aos poucos foi se tornando religioso. Mas, que observassem a presença do elemento religioso desde o princípio¹³ (KIERKEGAARD, 1856/2002a, p. 29-32). Para ele, comunicação indireta
não era somente um método possível, mas sim, um método necessário para atingir os seus objetivos, isto porque, segundo o autor, tentar desfazer a ilusão de maneira direta geralmente tem o efeito reverso, acaba-se por reforçar aquilo que se pretende solapar¹⁴.
Não, uma ilusão nunca é dissipada diretamente, só se destrói radicalmente de uma maneira indireta. Se todos estão na ilusão, dizendo-se cristãos, e se é necessário trabalhar contra isso, esta noção deve ser dirigida indiretamente, e não por um homem que proclama bem alto que é um cristão extraordinário, mas por um homem que, mais bem informado, declara que não é cristão¹⁵. Por outras palavras, é preciso apanhar pelas costas o que está na ilusão. Em vez de alguém se gabar de ele próprio ser um cristão com uma envergadura pouco comum, há que deixar a vítima da ilusão na vantagem do seu pretenso cristianismo, e aceitar que se está muito distante dele; de outro modo, não se tira da sua ilusão, o que já não é tão fácil. (KIERKEGAARD, 1856/2002a, p. 43).
Desse modo, o alto padrão de fé – tal como nos é descrito na história de Abraão e na análise que dela será feita em Temor e Tremor (1843) – não poderia ser apresentado em uma comunicação direta, pois Kierkegaard (apud GOUVÊA, 2009, p. 8) já previa: "os homens irão se encolher perante o pathos da obra. E é por isso que será necessário criar Johannes de Silentio, o poeta da fé, para ser o
autor".
Kierkegaard reconhece que se Temor e Tremor (1843) viesse à luz por meio de uma comunicação direta, na forma do grito [ele não passaria de] uma bagatela, pois a comunicação direta significa que a direção para o exterior para o grito, não vai para o interior, para o abismo da interioridade, aí somente onde o ‘temor e o tremor’ são assustadores [...]
(KIERKEGAARD, 1972, p.