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Uma introdução literária à Bíblia
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E-book914 páginas44 horas

Uma introdução literária à Bíblia

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Sobre este e-book

Nesta introdução abrangente às Escrituras, Leland Ryken organiza passagens bíblicas em gêneros literários que abarcam narrativas, poesia, provérbios, drama e mostra que conhecer as características de um gênero enriquece o entendimento de passagens individuais. Esta obra está repleta de excelentes considerações sobre livros e passagens do Antigo e Novo Testamentos, considerações que a maioria dos comentaristas não trata.

Este é um livro fundamental de crítica literária da Bíblia. Seu formato é simples: combina comentários teóricos sobre diversos aspectos literários da Bíblia com exposições de textos selecionados para ilustrar a teoria. A intenção do autor é que essa combinação de teoria e ilustração forneça uma metodologia para que seus leitores possam também aplicá-la a outros textos bíblicos.

Aqueles que estudam, pregam ou ensinam as Escrituras acrescentarão este livro a suas obras de referência mais consultadas e o manterão sempre à mão.
IdiomaPortuguês
EditoraVida Nova
Data de lançamento8 de nov. de 2023
ISBN9786559671823
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    Uma introdução literária à Bíblia - Leland Ryken

    Primeira parte

    NARRATIVA BÍBLICA

    Capítulo 1

    Introdução à narrativa bíblica

    O que você deve saber sobre os relatos da Bíblia

    Um dos impulsos humanos mais universais pode ser resumido em um pedido bastante conhecido de três palavras: Conte uma história. A Bíblia atende a esse pedido continuamente. A narrativa é a forma predominante do texto bíblico. Apesar da multiplicidade de gêneros literários que encontramos na Bíblia, ela é, acima de tudo, um livro de histórias.

    Se você duvida disso, imagine-se tentando descrever o conteúdo da Bíblia a alguém que nunca a leu. Você não demoraria para começar a descrever o que acontece na Bíblia, e contar o que acontece é narrar. Não é de admirar que Henry R. Luce, fundador da revista Time, tenha brincado: "A Time não deu origem a essa ênfase em relatos sobre pessoas; a Bíblia o fez".

    As narrativas bíblicas são, ao mesmo tempo, semelhantes e dessemelhantes às narrativas que conhecemos de modo geral. O propósito do presente capítulo é delinear algumas tendências em comum da narrativa bíblica.

    Realismo

    Uma das características predominantes das narrativas bíblicas é seu amplo realismo. Vários elementos se combinam para criar essa qualidade.

    Um deles é o fato de que narradores bíblicos se esforçam para situar seus relatos no tempo e no espaço. A maioria das narrativas da Bíblia começa com algo semelhante a estes versículos:

    Abrão levou consigo Sarai, sua esposa, e Ló, filho de seu irmão, e todos os bens que haviam adquirido […] em Harã; eles partiram para a terra de Canaã. Quando chegaram à terra de Canaã, Abrão atravessou a terra até o lugar em Siquém, até o carvalho de Moré. Nesse tempo os cananeus estavam naquela terra (Gn 12.5-6).

    Essa abordagem prosaica gera passagens que parecem mais anotações em um diário, uma biografia ou um livro de história do que uma narrativa comum.

    O desejo dos narradores da Bíblia é apresentar a base circunstancial e factual para suas narrativas. O resultado é o que estudiosos literários chamam realismo. O realismo literário tem em comum com a história e a biografia o seu empirismo (ele está arraigado na realidade observável).

    Também associamos o realismo à tendência de ser concreto, vívido e específico. Apesar da extrema brevidade da maioria das narrativas da Bíblia, nossa imaginação é constantemente invocada. O realismo do relato do assassinato de Eglom por Eúde é típico:

    Eúde estendeu a mão esquerda, tirou a espada de sobre a coxa direita e cravou-a na barriga do rei. O cabo também entrou com a lâmina e, como ele não tirou a espada, a gordura se fechou sobre ela, e a sujeira [o excremento] saiu. Então Eúde saiu para o vestíbulo, fechou as portas da sala no terraço e as trancou (Jz 3.21-23).

    É impossível um narrador ser mais realista do que isso. Visualizamos tudo, desde os movimentos de Eúde até a lâmina que some. Faz parte do realismo das narrativas bíblicas a recusa dos escritores a omitir ações sórdidas em nome da civilidade. As narrativas da Bíblia são da terra, são pé no chão.

    Associamos o realismo, ainda, à descrição não idealizada do comportamento humano. Também com base nesse critério, a Bíblia é um livro realista, pois retrata seus personagens como Cromwell desejava ser retratado: com verrugas e tudo mais.¹ Aquilo que um estudioso da Bíblia disse a respeito dos patriarcas de Gênesis também se aplica à maioria dos personagens bíblicos: eles são tão falhos que têm quase mais sombra do que luz.² Dentre os personagens desenvolvidos por completo na Bíblia, apenas um punhado é inteiramente idealizado: José (para alguns, até ele é controverso), Rute, Daniel, Jesus.

    Outro elemento que liga as narrativas da Bíblia ao realismo literário é seu enfoque em experiências comuns e personagens de condição social mediana. As histórias da Bíblia são repletas de personagens secundários e pessoas comuns cujos nomes são citados e que são tratados como parte relevante das narrativas. Essa realidade contrasta nitidamente com narrativas antigas, como os épicos de Homero, em que apenas os personagens aristocráticos recebiam destaque e as pessoas de condição social inferior não tinham nome nem rosto.

    A individualidade é importante na Bíblia. Encontramos listas de nomes de pessoas que carregavam o tabernáculo (Nm 10), que voltaram para a Terra Prometida (Ed 2), que reconstruíram os muros de Jerusalém (Ne 3) e que eram sacerdotes, porteiros e cantores em Jerusalém durante o reinado de Davi, bem como aqueles que misturavam as especiarias e preparavam os pães usados no culto (1Cr 9). Isso sem falar na grande favorita dos escritores bíblicos: a genealogia.

    Igual atenção é concedida a acontecimentos comuns e cotidianos. Em Gênesis, somos informados de detalhes aparentemente insignificantes, como estes: Abraão plantou uma tamargueira em Berseba (21.33), Isaque teve diversos conflitos com vizinhos por causa de um poço (26.17-22), a ama de Rebeca foi sepultada debaixo de um carvalho junto a Betel (35.8), e José se barbeou e trocou de roupa antes de ir ver o faraó (41.14). Entre os acontecimentos banais registrados nas narrativas da Bíblia, meu predileto é a informação surpreendente de que Benaia matou um leão em uma cova em um dia em que havia nevado (1Cr 11.22).

    A Bíblia transmite uma sensação espantosa de realidade. Uma acusação que nunca ouvi ser feita contra as narrativas da Bíblia é de que seus personagens não são reais. Onde quer que olhemos, enxergamos nós mesmos e nossos conhecidos.

    O realismo da narrativa bíblica também faz parte de seu significado religioso. Ao lermos esses relatos, logo percebemos que eles não têm nenhuma intenção de relegar o lado religioso da vida a outro mundo, um mundo espiritual. Aqui, as ações de Deus se estendem à nossa experiência terrena. Nas palavras de Erich Auerbach, a Bíblia produz um novo estilo exaltado que não despreza a vida cotidiana e que está pronto a absorver as coisas sensorialmente realistas, e até mesmo as feias, ignóbeis e fisicamente abjetas.³

    Romance literário

    Se as narrativas da Bíblia apresentam as características literárias de realismo, também têm qualidades de um tipo de relato que, em muitos aspectos, é exatamente o oposto: aquilo que estudiosos de literatura chamam romance. Esse é o tipo de narrativa que se deleita nas coisas extraordinárias e miraculosas. Como os romances, as narrativas da Bíblia são repletas de mistério, de elementos sobrenaturais e de heroísmo.

    Romances são cheios de aventuras, batalhas, capturas e resgates, surpresas, coisas exóticas e maravilhosas, justiça poética (os personagens bons são recompensados e os maus são castigados) e finais felizes. Essas narrativas costumam retratar a vida como desejamos que ela seja: os mais fracos vencem, o vilão recebe o justo castigo, a moça escravizada se casa com o rei, os mortos voltam à vida.

    A semelhança da Bíblia com esse tipo de narrativa é evidente. Seus relatos são cheios de aventuras, acontecimentos extraordinários, batalhas de vários tipos, perigos, personagens sobrenaturais, vilões que recebem o que merecem, feiticeiras, heróis e heroínas e, por vezes, animais que falam, dragões, calabouços, castelos, gigantes, buscas, naufrágios, capturas e resgates, reis e rainhas, amor romântico e alguns jovens heroicos. Além disso, as narrativas bíblicas costumam ter finais felizes em que os personagens bons vencem e os maus perdem.

    A narrativa do resgate de Eliseu quando ele se vê cercado pelo exército sírio na cidade de Dotã é um exemplo perfeito da natureza de romance dos relatos bíblicos:

    Quando o servo do homem de Deus se levantou de manhã cedo e saiu, percebeu que um exército havia sitiado a cidade com cavalos e carros. E o servo disse: Ai, meu senhor! O que faremos?. Ele respondeu: Não tenha medo, pois os que estão conosco são mais numerosos do que os que estão com eles […] Então o

    Senhor

    abriu os olhos do servo, e ele viu; e eis que o monte estava cheio de cavalos e carros de fogo em redor de Eliseu. Quando os sírios desceram contra Eliseu, ele orou ao

    Senhor

    , e disse: Peço-te que firas esta gente de cegueira. E o

    Senhor

    os feriu de cegueira (2Rs 6.15-18).

    Temos aqui um polo oposto do realismo cotidiano. Estamos em um mundo de maravilhas sobrenaturais que transcendem o mundo da realidade física e terrena.

    Conclui-se que a Bíblia possui um grande número de convenções literárias que nos são familiares a partir dos contos de fadas: uma dama em apuros salva de forma miraculosa (Ap 12.13-16), um herói que mata um dragão (Ap 19.11—20.3), uma feiticeira perversa finalmente derrotada (Ap 17—18), o casamento do herói triunfante com sua noiva e a celebração das bodas com um banquete (Ap 19.6-8) e a descrição de um palácio que resplandece com joias, onde o herói e sua noiva vivem felizes para sempre (Ap 21).

    Não é de admirar que as crianças gostem das narrativas da Bíblia. Também não causa surpresa que elas se misturem com os romances na imaginação infantil. Lembro-me de uma ocasião em que minha filha, na época com 5 anos, recomendou que eu escolhesse a história de Gideão, seus cavaleiros e suas espadas de fogo.

    Junto com essa atração literária, o aspecto de romance das narrativas da Bíblia corporifica uma importante mensagem religiosa. Na Bíblia, a realidade existe em dois níveis: o âmbito físico e terreno, e o mundo espiritual invisível. Os dois são igualmente reais. A tônica sobrenatural, e especialmente a intervenção de Deus em acontecimentos terrenos, abre constantemente as portas para o mundo espiritual. Se, como observei anteriormente, o realismo da narrativa bíblica mostra como Deus toca a realidade terrena, o elemento de romance da narrativa bíblica mostra a forma complementar como a vida terrena se abre para o mundo espiritual. A experiência religiosa nas narrativas bíblicas é mais que terrena, embora o realismo desses relatos mostre, ao mesmo tempo, que não é menos que isso.

    A qualidade dupla das narrativas bíblicas

    Os relatos da Bíblia combinam as duas tendências da narrativa que mais atraem as pessoas e que costumamos considerar opostas. Essas narrativas são factualmente realistas e romanticamente maravilhosas. Colocam lado a lado dois impulsos que a raça humana está sempre procurando unir: razão e imaginação, fato e mistério. As narrativas da Bíblia atendem à nossa necessidade de realidade prática e de algo que transcenda a realidade. Atraem nosso lado que tem os pés firmemente no chão e o lado que alça voo aos céus.

    As narrativas da Bíblia pedem uma reação literária simples e, ao mesmo tempo, sofisticada. São histórias para adultos e histórias para crianças. São narrativas folclóricas: breves, realistas, vívidas, com uma trama simples. Produzem reações intuitivas nas crianças. Ao considerar como eu interagia com elas em minha infância, vejo que minhas reações a coisas como ironia dramática, justiça poética ou caracterizações geralmente eram corretas, embora me faltasse a terminologia literária para descrevê-las.

    No entanto, as narrativas da Bíblia também pedem uma reação sofisticada que implica, em parte, a capacidade de lidar com o que chamamos hoje de temas adultos: violência, sexo, dissimulação, morte, as sutilezas da tensão em relacionamentos pessoais e a mistura ambígua de bem e do mal no caráter e nas ações das pessoas.

    As narrativas bíblicas têm, com frequência, um significado superficial que ninguém deixa escapar, ao lado de questões difíceis que exigem aptidão interpretativa complexa para observar e decodificar. Considere a história de José:

    Quando José tinha 17 anos, pastoreava os rebanhos com seus irmãos […] e levava ao pai más notícias a respeito deles. Ora, Israel amava mais José do que qualquer outro filho, pois ele era o filho de sua velhice; e mandou fazer para ele uma túnica longa com mangas. Mas, quando seus irmãos viram que o pai gostava mais dele do que de qualquer outro filho, odiaram-no (Gn 37.2-4).

    O nível superficial é aquele que as crianças provavelmente captam melhor: essa é uma narrativa construída em torno de experiências domésticas universais como rivalidade entre irmãos, favoritismo dos pais e um irmão que entrega os outros. A história exerce um impacto imediato no nível da experiência humana apresentada.

    Contudo, surgem algumas perguntas quando observamos a passagem com mais atenção, ou quando adquirimos mais experiência ao longo da vida. O leitor mais simples só precisa saber que Jacó favorecia seu filho José. No entanto, o narrador nos convida a refletir sobre um nível adicional de dinâmica e psicologia humanas ao incluir a explicação de que Jacó preferia José pois ele era o filho de sua velhice.

    Para o leitor ocupado em reagir emocionalmente à rivalidade entre os irmãos retratada aqui, o importante é que o irmão mais jovem entregava os irmãos mais velhos. O leitor mais circunspecto, porém, deseja saber se esse comportamento de José é bom ou mau. Essas duas abordagens ao texto levarão a conclusões opostas. Para os jovens com uma reação contrária automática a um irmão que entrega outros, José é um santarrão que merece boa parte daquilo que lhe acontece. Chegamos a outra conclusão, porém, se adotamos uma perspectiva mais ampla do princípio moral em questão. A obrigação de dar testemunho a respeito do mal é necessária para a saúde de qualquer sociedade, e se tornou lei civil no Antigo Testamento (Lv 5.1). Ademais, José se dissocia (de modo bastante literal) de uma irmandade do mal e se mostra leal à hierarquia da autoridade superior de seu pai, e não de seus irmãos.

    Quão problemático é quando duas interpretações se contradizem dessa forma? Por certo, isso influencia como os leitores interpretam os detalhes específicos e locais de uma narrativa, mas raramente define como interpretam o significado geral do relato bíblico. Quer consideremos que José era um rapaz mimado e antipático ou um jovem de consciência moral e coragem incomuns, nosso entendimento do tema providencial da narrativa como um todo será o mesmo. Os relatos da Bíblia muitas vezes comunicam verdades para nós na proporção em que nossa amplitude e profundidade de experiência humana permitem que enxerguemos. Como alguém observou, é quase impossível interpretar essas narrativas de modo totalmente equivocado:

    Ao falar de redação perfeitamente segura, quero dizer que a Bíblia é difícil de interpretar, fácil de interpretar de menos ou demais, ou mesmo equivocadamente, mas praticamente impossível de […] interpretar de forma oposta à intenção do texto […] Os elementos essenciais são apresentados com transparência para todos que deparam com eles: o enredo, a ordem geral, o sistema de valores. As antigas e novas controvérsias entre exegetas, que se espalham para todos os tópicos possíveis, não devem nos cegar (como costumam cegar os exegetas) para a medida de concordância a esse respeito.

    As narrativas da Bíblia produzem uma reação dupla em outro aspecto. Elas são tão cheias de ação vívida (com frequência, espetacular) que voltam nossa atenção para aquilo que aconteceu. Nesse nível, convidam-nos a mergulhar no relato e a não nos preocuparmos com a forma como ele é apresentado. Podemos considerar que se trata de uma leitura não literária das narrativas, com o sentido de que falta consciência dos aspectos artísticos. Essa leitura é uma imersão intuitiva e irrefletida na ação.

    No entanto, as narrativas bíblicas também são elaboradas com tanta habilidade e sutileza que nos convidam a uma análise mais consciente de sua composição literária. Elas apresentam uma perfeição de técnica literária que não pode ser acidental e que, por certo, permite análises literárias complexas. Não deve haver dúvida de que os narradores da Bíblia se interessavam por técnicas narrativas. Seus relatos não são redigidos de forma aleatória. São pequenas obras-primas, como sua análise pode mostrar. Entre outras coisas, esse fato abre uma via adicional para desfrutar das narrativas, uma via que a maior parte das pessoas considera interessante.

    Um elemento final de dualidade que devemos observar se refere ao duplo papel do leitor. Somos espectadores e, ao mesmo tempo, participantes ao acompanharmos a ação. Como participantes, identificamo-nos com os personagens à medida que a ação se desdobra. Tornamo-nos espectadores sempre que percebemos alguma distância entre nós e os personagens da narrativa. Não negamos com isso que estamos imaginativamente presentes no mundo da narrativa. Contudo, temos consciência de que a ação não está ocorrendo conosco. Nesse sentido, não devemos minimizar o fato de que a Bíblia é literatura antiga e de que boa parte das ações e dos costumes em suas narrativas parece estranha para nós.

    Em geral, somos participantes e espectadores quando lemos as narrativas bíblicas. A proporção em que somos um ou outro depende, em parte, de nossas experiências. Em ambos os casos, precisamos usar a imaginação para sair de nosso tempo e lugar e entrar em um mundo distante do nosso. O ato de nos identificarmos com os personagens nas narrativas foi enfatizado com certo excesso na teoria literária; portanto, desejo ressaltar que não há nada de deficiente em nossa leitura quando somos espectadores em vez de sermos participantes da ação. As narrativas da Bíblia são baseadas na premissa de que há algo de errado conosco quando não nos distanciamos de muito daquilo que é retratado.

    Brevidade e estilo simples

    Os níveis simples e sofisticado de narrativas bíblicas podem ser relacionados com outra característica pela qual essas narrativas são conhecidas: sua concisão. Narradores bíblicos demonstram notável preferência por unidades sucintas. Um relato ou episódio individual parece, portanto, acessível até mesmo para quem tem pouca experiência literária. Claro que essa mesma brevidade coloca um peso ainda maior de interpretação sobre o leitor, como veremos.

    Além da brevidade das unidades, encontramos um estilo predominantemente simples, sem adornos. A fonte clássica sobre esse assunto é o excelente ensaio de Auerbach em que ele compara a técnica narrativa usada na Odisseia de Homero e o relato, em Gênesis, da disposição de Abraão a sacrificar Isaque (Gn 22).⁵ Enquanto Homero apresenta seu relato em detalhes, os narradores da Bíblia fornecem apenas os elementos essenciais e deixam muito por falar. De acordo com Auerbach, no estilo bíblico

    [encontramos] a exteriorização apenas da porção do fenômeno necessária para o propósito da narrativa, enquanto todo o restante permanece obscuro; somente os pontos decisivos da narrativa são enfatizados, e o que se encontra entre eles é inexistente; pensamentos e sentimentos permanecem sem expressão e são apenas insinuados pelo silêncio e pelos discursos fragmentados; o todo, permeado com o mais absoluto suspense e dirigido para um único objetivo (contribuindo muito mais para a unidade), permanece misterioso, carregado de conteúdo subjacente (p. 11-2).

    Essa técnica narrativa sem adornos tem como efeito relatos que exigem investigação sutil e interpretação (p. 15). Os detalhes são tão poucos que precisamos aproveitar ao máximo tudo o que o narrador colocou no texto.

    A narrativa do chamado de Abraão (Gn 12.1-4) ilustra o que Auerbach diz:

    Então o

    Senhor

    disse a Abrão: Saia de sua terra, do meio de seus parentes e da casa de seu pai, e vá para a terra que eu mostrarei […] Abrão partiu, como o

    Senhor

    lhe havia ordenado, e Ló foi com ele.

    Onde Abraão estava quando Deus o chamou? O que passou por sua mente nessa ocasião? Qual foi a reação do restante da família a essa notícia? Por que Abraão atendeu com obediência tão imediata e partiu com um itinerário tão indefinido? Só nos resta adivinhar, pois o narrador não diz. Há uma sensação avassaladora de destino espiritual e mistério, mas (ao contrário das obras de ficção modernas) não há nenhuma preocupação com a psicologia humana. Como um estudioso de literatura observou, um dos grandes méritos dessas narrativas da Bíblia é que são desprovidas de psicologia e de discussões sobre motivação.

    Clareza e mistério se mesclam ao acompanharmos essas narrativas. De acordo com um estudioso, os narradores da Bíblia dizem a verdade, mas não toda a verdade.⁷ Aquilo que dizem é confiável, mas deixam muito por dizer. Em geral, descrevem o que aconteceu, mas não o explicam. Consequentemente, como observamos, é fácil entender a ação básica de uma narrativa bíblica, mas difícil interpretar o seu significado e todas as suas dinâmicas humanas.

    No que concerne à caracterização, a brevidade significa que não encontramos descrições extensas de personalidade, embora talvez consigamos produzir um retrato complexo ao combinar os fragmentos. Na experiência prática de leitura,

    as figuras importantes se movem de forma um tanto distante, seus personagens são iluminados como que por lampejos de magnanimidade, compaixão, ira, heroísmo, dissimulação, cobiça, sofrimento e pelo clamor frequente de desespero […] [A Bíblia é uma] série de arranjos variegados, luzes e cores, que muda com o tempo como um móbile moderno, agregando-se e fragmentando-se em novas formas […] Há vinhetas em miniatura, dramas de indivíduos.

    Os quatro modos de narração

    O que eu disse a respeito do estilo narrativo sem adornos é reforçado quando consideramos os modos de narração desses relatos. A narrativa em si consiste na interação de três elementos básicos: cenário, personagens e trama, ou ação. Há quatro maneiras (chamadas modos de narração) por meio das quais os narradores podem apresentar esses elementos.

    Na narrativa direta, os narradores simplesmente relatam os acontecimentos e nos dizem, com a voz deles, o que ocorreu. Na narrativa dramática, os narradores dramatizam uma cena como se fosse uma peça teatral; citam discursos ou diálogos dos personagens e observam o contexto ao redor. Na descrição, os escritores apresentam os detalhes do cenário ou do personagem. O comentário consiste em explicações fornecidas pelos narradores a respeito dos detalhes da narrativa, informações sobre antecedentes e o significado geral da narrativa.

    Cada um desses modos cumpre uma função específica. Narrativas diretas oferecem fluência e mantêm o relato em movimento. Narrativas dramatizadas e descrições desaceleram o movimento e concentram nossa atenção em uma cena dramática (como se a estivéssemos vendo ser encenada em uma peça teatral). Comentários permitem que os narradores esclareçam aquilo que, a seu ver, o público precisa saber.

    Eis como os quatro modos aparecem no relato da permuta do direito de primogenitura (Gn 25.29-34):

    [descrição do cenário para o acontecimento que vem em seguida] Certa vez, quando Jacó havia preparado um ensopado, Esaú chegou do campo, e estava faminto. [narrativa dramática] E Esaú disse a Jacó: Dê-me um pouco desse ensopado vermelho, pois estou faminto! [comentário] (Por isso foi chamado Edom.) [narrativa dramática] Jacó respondeu: Primeiro venda-me seu direito de primogenitura. Esaú declarou: Estou quase morrendo. De que me vale esse direito?. Jacó disse: Jure primeiro. [narrativa direta] Ele fez um juramento e vendeu seu direito de primogenitura para Jacó. Então Jacó lhe deu pão e o ensopado de lentilhas, e ele comeu e bebeu, levantou-se e se foi. [comentário] Assim Esaú desprezou seu direito de primogenitura.

    Como a presente análise mostra, a atenção aos modos de narração é uma abordagem útil para apresentar a estrutura da narrativa em detalhes.

    Outro aspecto proveitoso dessa abordagem é que ela nos permite apreciar de uma nova maneira como as narrativas da Bíblia foram redigidas com grande habilidade. Elas têm quantidade suficiente de narrativas diretas para mantê-las em movimento, enfoque suficiente em cenas dramáticas para dar vida à ação no palco de nossa imaginação e comentários ocasionais para fornecer esclarecimentos. Além desse princípio de variedade, encontramos um equilíbrio entre perspectivas panorâmicas e exames detalhados.

    A questão dos modos narrativos também tem implicações para a interpretação dos relatos da Bíblia. Esses relatos apresentam considerável preponderância de narrativas dramáticas.¹⁰ Elas sempre trazem uma narração direta de acontecimentos, a qual geralmente serve e, no entanto, para mostrar o que antecede ou sucede as cenas dramatizadas.

    Quanto a descrições e comentários, eles são tão raros que é relativamente difícil encontrar narrativas que incluam os dois. Em ambos os casos, sua brevidade serve para chamar a atenção do leitor. Descrições nos fornecem informações sucintas (p. ex., José tinha boa aparência e vestia uma túnica especial), mas têm o efeito de nos estimular a imaginar certas coisas, e não de descrever exatamente como eram. Os comentários, mesmo quando ocorrem, costumam interpretar apenas um detalhe específico no relato, ou apenas um aspecto do significado do relato. Não se pode dizer que completam a tarefa de interpretação.

    Isso significa que o foco da interpretação narrativa se volta quase sempre para as cenas dramáticas. A imaginação bíblica é fortemente dramática. A incidência de citações diretas de diálogos e discurso só tem paralelos nos romances modernos. A sensação de encontro é forte nessas narrativas (aliás, em toda a Bíblia). O drama também é o gênero literário mais objetivo, pois o narrador simplesmente deixa que os personagens apresentem a ação, e cabe ao público chegar às conclusões acertadas. Vemos, novamente, que as narrativas da Bíblia exigem interpretação.

    O fato de narradores bíblicos dependerem, em maior medida, de narrativas dramáticas para comunicar sua mensagem também é uma das provas mais claras de que a Bíblia é um livro literário. Caso importasse apenas sabermos o que aconteceu, um simples esboço dos acontecimentos seria suficiente. Mas, quando os narradores bíblicos começam a citar discursos e redigir cenas dramáticas, deixam evidente que desejam que imaginemos como algo aconteceu. O propósito literário é mostrar em vez de dizer, recriar uma experiência para que possamos passar por ela junto com os personagens que participaram dela.

    Aliás, esse é um critério com base no qual podemos identificar se determinada narrativa na Bíblia é literária. As narrativas da Bíblia existem dentro de uma escala. Em um extremo se encontra o breve fragmento em que somos informados apenas dos fatos de um acontecimento. Nesse caso, predomina o impulso histórico ou documentário. No outro extremo se encontram as narrativas em que o escritor apresenta imagens dos acontecimentos em detalhes suficientes para que possamos recriá-los e experimentá-los em nossa imaginação. Quanto mais a narrativa bíblica se move para o segundo extremo, mais precisamente pode ser chamada narrativa literária.

    A interpretação do significado das narrativas bíblicas

    O fato de as narrativas literárias da Bíblia consistirem principalmente em cenas dramatizadas e terem pouquíssimos comentários explicativos por parte do narrador significa que precisamos saber como interpretar o significado a partir da narrativa em si. Uma das características de maior destaque nessas narrativas é sua consciência vívida de valores — daquilo que é certo ou errado, precioso ou imprestável. Esses valores confirmam perfeitamente um comentário do romancista moderno Joyce Cary: Todos os escritores têm, e precisam ter, a fim de redigir qualquer tipo de narrativa, alguma espécie de imagem do mundo, daquilo que é certo ou errado no mundo.¹¹ Os narradores bíblicos nos apresentam esse mundo ordenado.

    De que maneira, então, os narradores bíblicos guiam nossa interpretação de seus relatos? Eles empregam recursos de revelação, muitos deles relativamente sutis, para influenciar a forma como reagimos a personagens e acontecimentos. No capítulo seguinte, tratarei de recursos como o destaque, o contraste, a seletividade de conteúdo para inclusão e exclusão e o arranjo. Narradores bíblicos também pressupõem que interpretaremos suas narrativas no contexto daquilo que a Bíblia diz a respeito de questões morais e espirituais em seus trechos expositivos didáticos.

    Por ora, permita-me enfatizar outro aspecto: a estratégia emotiva da narrativa bíblica. Um crítico literário observou, a respeito das narrativas em geral, que o escritor expressa aquilo que ele sabe ao afetar o leitor; o leitor sabe o que é expressado ao ser receptivo aos efeitos.¹² Um estudioso investigou os meios pelos quais romancistas incorporavam sua perspectiva moral em suas narrativas e concluiu que o significado moral de uma narrativa depende, em grande medida, de quão bem-sucedido foi seu criador em controlar nossa empatia ou antipatia, aprovação ou desaprovação de personagens, pensamentos e ações a cada etapa.¹³ As narrativas da Bíblia pressupõem esses mesmos princípios.

    No relato sobre a vinha de Nabote (1Rs 21), por exemplo, nossa interpretação da narrativa é ligada diretamente à nossa empatia pelos personagens principais ou aversão a eles. Aliás, o narrador trabalha o relato de uma forma que gera fortes sentimentos enquanto o lemos. Ele incluiu, propositadamente, detalhes que mostram como Acabe é cobiçoso, dominado por sua esposa e pueril em sua estratégia de ficar amuado até que Jezabel, feito mãe, observe que há algo de errado. De modo semelhante, o escritor retrata Jezabel de uma forma que desperta nossa repulsa. Ela aparece como figura implacável, dominadora, cruel e desonesta.

    De forma igualmente inevitável, somos levados a ter empatia por Nabote. Ele é uma pessoa íntegra, que se recorda das estipulações religiosas segundo as quais a terra herdada dos primeiros antepassados que entraram na Terra Prometida não deve ser transferida para outra família (v. 3). Ademais, um dos princípios perenes da narrativa é inspirar empatia pelas vítimas impotentes do mal.

    Narrativas são emotivas por natureza. Atraem-nos para um encontro com os personagens e com os acontecimentos e tornam inevitável nossa reação. Nesse sentido, a interpretação das narrativas da Bíblia é mais simples do que as discussões entre estudiosos por vezes nos levam a crer. Essas narrativas com frequência exigem análise intelectual, mas, entrementes, é melhor não deixar passar o óbvio: narrativas comunicam seu significado, em parte, ao nos levar a reagir de forma favorável ou contrária ao que acontece no relato. Devemos, portanto, prestar atenção a nossas reações intuitivas quando formulamos o que uma narrativa bíblica quer dizer.

    Arranjos e repetições

    As narrativas sucintas da Bíblia são organizadas de forma criteriosa, como os capítulos adiante mostrarão. O capítulo inicial do relato sobre Rute, por exemplo, é cuidadosamente planejado para apresentar uma visão cada vez mais ampla de vazio. Um crítico literário o descreve da seguinte forma:

    Essa série é não apenas cuidadosamente desenvolvida, mas também extremamente organizada. Começa no nível mais amplo de todos (o ser humano e a terra), estreita o foco até o nível social (o ser humano na família), e o estreita novamente até o nível mais pessoal (Noemi, a mulher individual, em sua angústia).¹⁴

    Parte considerável dos arranjos nas narrativas bíblicas consiste em repetição.¹⁵ Uma estratégia comum, por exemplo, é a repetição tripla, em que acontecimentos semelhantes ocorrem três vezes em seguida. Com frequência, uma mudança de grande importância é apresentada na terceira vez. Jesus contou parábolas, por exemplo, sobre três administradores, três pessoas que recusaram o convite para um casamento e três pessoas que passaram por um homem ferido em um caminho. Jesus passou por três tentações, Pedro negou Jesus três vezes e Jesus restaurou Pedro em três estágios. No Evangelho de João, Jesus participa de três Páscoas e de outras três festas, sua messianidade é atestada por João Batista três vezes, ele é condenado três vezes antes de sua crucificação, fala três vezes quando está na cruz e faz três aparições depois de sua ressurreição. Por que a ênfase em três? É simplesmente uma convenção narrativa.

    Nas narrativas do Antigo Testamento, o arranjo de três mais um também tem destaque. O jovem Samuel ouve três chamados, aos quais não responde, e depois recebe um oráculo de Deus (1Sm 3.2-14). O relato em que Elias é levado ao céu se desdobra em três interações idênticas entre Elias e Eliseu, seguidas de um quarto incidente em que Elias é, efetivamente, transladado (2Rs 2.1-12). No relato sobre Sansão e Dalila, Sansão resiste três vezes às tentações de Dalila, e depois conta seu segredo (Jz 16.4-21). Nesses exemplos, e em outros semelhantes, o vocabulário é praticamente idêntico em cada um dos estágios.

    Creio que apresentei dados suficientes para deixar claro o que desejo mostrar: a narrativa bíblica é repleta de arranjos de repetição, desde unidades pequenas, como palavras e imagens repetidas em um relato, até unidades grandes, como episódios repetidos. Como leitores, podemos aprender a identificar esses arranjos.

    Arquétipos

    O tema dos arranjos repetidos leva, naturalmente, a um tópico final: a presença de arquétipos nas narrativas bíblicas. Na introdução, observei que a Bíblia como um todo é unificada por imagens dominantes e símbolos recorrentes em suas páginas. Essas imagens dominantes aparecem, obviamente, nas narrativas da Bíblia. Além das imagens arquetípicas, devemos observar a presença de tramas temáticas arquetípicas e de arquétipos de personagens. Sobre estes últimos podemos fazer um comentário sucinto. Ao lermos as narrativas da Bíblia, deparamos repetidamente com tipos de personagens que encontramos em outras ocasiões em nossa experiência literária, dentro da Bíblia e além dela. Em conformidade com a tendência dos arquétipos de se organizarem em arranjos de opostos, esses tipos de personagens costumam ser divididos em duas categorias.

    Na coluna positiva, encontramos figuras como o herói ou a heroína (em uma variedade de formas específicas), a esposa/a mãe/o marido/o pai virtuoso, a noiva e o noivo, a criança inocente, o rei ou governante benevolente, o sacerdote escrupuloso, o verdadeiro profeta e o sábio. Na coluna negativa, encontramos tipos como o vilão, o(a) tentador(a), a prostituta, o(a) feiticeiro(a), o capataz, o tirano ou opressor (geralmente um opressor estrangeiro), o excluído ou exilado, o traidor, o falso líder religioso, o falso sacerdote ou o falso profeta.

    Essas listas não são exaustivas, e não existem para ser memorizadas. Seu propósito é nos alertar para o princípio dos arquétipos: narrativas são construídas em torno de personagens cujas características ou papéis nos lembram personagens semelhantes em outros textos e na vida. A identificação dos tipos de personagens simplesmente faz parte da organização de nossa experiência de determinada narrativa.

    Tramas temáticas arquetípicas

    Além de personagens arquetípicos, encontramos tramas temáticas arquetípicas. A estrutura mais ampla é aquilo que críticos literários chamam monomito (a narrativa única da literatura como um todo). Essa narrativa complexa é constituída de todas as narrativas individuais existentes e tem a forma de círculo, com quatro fases distintas. Como tal, corresponde a alguns ciclos conhecidos da experiência humana. O ciclo do ano, por exemplo, consiste na sequência de verão, outono, inverno e primavera.

    Podemos imaginar a narrativa única da literatura como aparece na figura 2. O romance retrata a experiência ideal, a vida como gostaríamos que fosse. Seu oposto, o antirromance, retrata um mundo de servidão e miséria. A tragédia narra a queda da felicidade para a infelicidade, ao passo que a comédia narra a ascensão da servidão para a liberdade. Juntas, essas fases constituem a narrativa complexa da literatura. É fácil perceber que as duas colunas de imagens e tipos de personagens arquetípicos pertencem à parte superior e inferior do diagrama.

    Podemos encaixar qualquer narrativa bíblica em algum lugar dessa estrutura. Narrativas e episódios individuais reencenam uma ou mais fases desse arranjo, ou talvez todo o círculo de ação. Esse esquema é útil porque nos permite organizar o arranjo geral de cada narrativa que lemos.

    Figura 2 A narrativa única da literatura

    O monomito é o modelo narrativo mais geral ou universal da Bíblia e assume formas mais específicas, entre elas:

    A busca, em que o herói luta para alcançar um objetivo e enfrenta obstáculos e uma derrota temporária antes de obter sucesso.

    O tema de morte-renascimento, em que o herói passa por morte ou perigo e volta à vida ou à segurança.

    A iniciação, em que o personagem é tirado de uma situação existente, geralmente ideal, e passa por uma série de provações ao deparar com diversas formas de mal ou dificuldade pela primeira vez.

    A jornada, em que os personagens deparam com perigos e passam por crescimento ao se deslocar de um lugar para outro.

    Tragédia, ou, de modo mais específico, queda de um estado de inocência, decadência de um estado de felicidade para um estado de desgraça.

    Comédia, uma narrativa em forma de U, que começa com prosperidade, cai em tragédia, mas se eleva até um final feliz quando os obstáculos para o sucesso são vencidos.

    Crime e punição.

    A tentação, em que alguém se torna vítima de um(a) tentador(a) perverso(a).

    O resgate.

    O tema do servo sofredor, em que o personagem passa por sofrimento imerecido para o bem de outros.

    O tema de Cinderela, ou da pobreza à riqueza, em que o personagem supera os obstáculos de exclusão e pobreza.

    O movimento da ignorância à epifania (entendimento ou esclarecimento).

    Essa lista também não é exaustiva. Representa apenas as tramas com temas arquetípicos mais comuns. Seu propósito é nos ajudar a organizar aquilo que encontramos em narrativas ao colocar determinado relato em um cenário conhecido.

    Cenas-modelo

    Estudiosos bíblicos de hoje também falam de cenas-modelo, situações ou acontecimentos que se repetem ao longo da Bíblia.¹⁶ A maioria das formas de comunicação, o que abrange as narrativas, é construída em torno de convenções implícitas a respeito do que deve ser incluído e em que sequência os itens devem aparecer. Alguns estudiosos dão a entender que a presença de cenas-modelo indica que uma obra é fictícia, e não factual, mas essa é uma pressuposição injustificada.

    Considere a breve e típica entrevista de um noticiário de televisão. Suas convenções abrangem os seguintes elementos: uma imagem inicial do entrevistador e, ao fundo, aquilo que corresponde ao assunto da entrevista (a arquibancada de um estádio ou os destroços de um desastre, por exemplo); uma interação entre o entrevistador e o entrevistado que segue o formato de perguntas e respostas; volta, ao final, para o entrevistador, que olha para a câmera e encerra a entrevista com algum tipo de aforismo que sintetiza ou interpreta o assunto tratado. Por que quase todas as entrevistas em noticiários de televisão seguem esse formato? É a convenção definida para esse gênero.

    Ao tratarmos das narrativas da Bíblia, descobrimos que elas também têm cenas-modelo discerníveis. Algumas estão presentes em diversos livros da Bíblia. Robert Alter elenca, como exemplos, a anunciação […] do nascimento do herói a uma mãe estéril; o encontro de futuros noivos junto a um poço; a epifania em um campo; a provação iniciatória; o perigo no deserto e a descoberta de um poço ou de uma outra fonte de sustento; o testamento do herói à beira da morte (p. 51). A tentativa vã de frustrar ou contornar um oráculo (uma predição) que Deus pronunciou aparece mais de uma dúzia de vezes.

    Outras cenas-modelo se limitam a narrativas ou livros individuais da Bíblia e parecem ter forte ligação com o que o narrador queria destacar. No relato sobre Abraão, por exemplo, observamos repetidamente uma sequência: ansiedade contínua a respeito do não cumprimento da promessa de um filho; discussão do problema com Deus ou com um personagem humano; uma solução proposta ou experimentada para a dificuldade de gerar um filho que cumpra a promessa; frustração da tentativa de encontrar uma solução. A cena-modelo que predomina no épico do Êxodo é a sequência: crise, queixa do povo, clamor a Deus articulado por Moisés, resgate divino/provisão divina, revelação ou repreensão por Deus.

    Cenas-modelo são igualmente preponderantes nas narrativas do Novo Testamento. Nos Evangelhos, encontramos elementos convencionais, com frequência em uma ordem esperada, em relatos de cura, de pronunciamentos, de pregação, de encontros e da Paixão. No Evangelho de João, a cena-modelo da incompreensão de afirmativas ocorre nove vezes e é constituída de três elementos: Jesus faz um pronunciamento, um ouvinte expressa compreensão equivocada desse pronunciamento, e Jesus explica seu significado. Em Atos, o seguinte ciclo de acontecimentos é repetido: Deus levanta líderes para pregar o evangelho; eles realizam feitos poderosos; multidões são atraídas, e muitos ouvintes são convertidos; oposição e perseguição surgem contra os líderes; Deus intervém e os livra.

    As cenas-modelo são uma conclusão apropriada para este capítulo sobre técnicas narrativas na Bíblia. Os relatos da Bíblia se baseiam em todo um conjunto de convenções narrativas. Algumas delas são mais características das narrativas da Bíblia, enquanto outras são universais. Teremos mais compreensão e prazer na leitura dos relatos da Bíblia se fizermos um esforço para entender como esses relatos funcionam. Não precisamos memorizar listas de regras narrativas, mas temos de desenvolver antenas adequadas para receber aquilo que os relatos desejam comunicar. Esse desenvolvimento depende, em parte, de termos consciência das técnicas das quais tratei neste capítulo.

    ¹ Trata-se de um adágio célebre em língua inglesa, cuja expressão original é warts and all. (N. do R.)

    ² Franz Delitzsch, A new commentary on Genesis, tradução para o inglês de Sophia Taylor (Edinburgh: T. and T. Clark, 1894), 2 vols., 2:275.

    ³ Erich Auerbach, Mimesis: the representation of reality in western literature, tradução para o inglês de Willard R. Trask (Princeton: Princeton University Press, 1953), p. 72 [publicado em português por Perspectiva sob o título Mimesis: a representação da realidade na literatura ocidental].

    ⁴ Meir Sternberg, The poetics of biblical narrative: ideological literature and the drama of reading (Bloomington: Indiana University Press, 1985), p. 50-1.

    ⁵ O ensaio de Auerbach (reimpresso várias vezes) é o capítulo de abertura de Mimesis. Robert Alter, The art of biblical narrative (New York: Basic Books, 1981) [publicado em português por Companhia das Letras sob o título A arte da narrativa bíblica], também fala do modo de narração extremamente lacônico da Bíblia.

    ⁶ Mark Van Doren e Maurice Samuel, In the beginning, love: dialogues on the Bible, organização de Edith Samuel, nova ed. (New York: Day, 1973), p. 66.

    ⁷ Sternberg, Poetics of biblical narrative, p. 230-63 e passim.

    ⁸ T. R. Henn, The Bible as literature (New York: Oxford University Press, 1970), p. 31.

    ⁹ A estrutura que ofereço aqui é uma modificação daquela proposta por Jacob Licht, Storytelling in the Bible (Jerusalém: Magnes, 1978), p. 24-50.

    ¹⁰ Para mais detalhes a esse respeito, veja ibid., p. 30-50.

    ¹¹ Joyce Cary, Art and reality: ways of the creative process (Garden City: Doubleday, 1961), p. 174.

    ¹² David Lodge, Language of fiction (London: Routledge and Kegan Paul, 1966), p. 65.

    ¹³ Sheldon Sacks, Fiction and the shape of belief: a study of Henry Fielding, with glances at Swift, Johnson and Richardson (Berkeley: University of California Press, 1964), p. 249.

    ¹⁴ D. F. Rauber, The book of Ruth, in: Kenneth R. R. Gros Louis, org., Literary interpretations of biblical narratives (Nashville: Abingdon, 1974), p. 166. Rauber prefacia essa análise com o tipo de generalização que se tornou comum em comentários literários sobre a Bíblia: Cada vez mais estou convencido de que a chave principal para ler a literatura hebraica é a sensibilidade ao arranjo (p. 165).

    ¹⁵ Esse tópico se tornou proeminente na crítica recente. Para exemplos de estudos, veja Alter, Art of biblical narrative, p. 88-113, e Licht, Storytelling in the Bible, p. 51-95.

    ¹⁶ Veja especialmente Alter, Art of biblical narrative, p. 47-62.

    Capítulo 2

    Os elementos da narrativa

    Como funcionam os relatos da Bíblia

    As narrativas da Bíblia, como as narrativas em geral, são constituídas de três elementos básicos: cenário, trama ou ação e personagens. Juntos, esses três elementos formam o mundo narrativo em que ingressamos quando nos sentamos para ler um relato bíblico. O objetivo do autor é contar uma história que nos leve a participar de uma experiência com seus personagens. Isso significa que um pré-requisito importante para a leitura das narrativas da Bíblia é a capacidade de nos identificarmos com seus personagens. As narrativas da Bíblia só serão bem-sucedidas na proporção em que exercitarmos nossa imaginação e nos permitirmos ser transportados de nossa época e lugar para outra época e lugar. Uma vez transportados, somos espectadores e participantes à medida que a narrativa se desdobra.

    A trama, os personagens e o cenário da narrativa são os meios pelos quais o narrador comunica algo a respeito da realidade. A romancista americana Flannery O’Connor disse algo memorável quando observou que um narrador fala "através de personagem e ação, e não sobre personagem e ação".¹ As narrativas da Bíblia têm certo nível de discurso. Os autores contam suas histórias porque querem dizer algo relevante sobre o significado da vida. A análise dos meios pelos quais os narradores levam os leitores a se mover do cenário, da ação e dos personagens de uma narrativa para o seu significado é chamada crítica retórica (análise das estratégias de persuasão do narrador) ou ponto de vista (análise da perspectiva a partir da qual o narrador vê os personagens e a ação). Qualquer que seja a expressão que usemos, o estudo dos meios pelos quais os narradores indicam como desejam que os leitores interpretem o significado de suas narrativas é uma parte necessária da interpretação narrativa.

    No presente capítulo, dedicarei seções separadas aos três elementos da narrativa e ao processo pelo qual nos movemos do relato para o tema, ou significado. Neste capítulo e no seguinte, todas as minhas ilustrações ou aplicações são de Gênesis e, portanto, representam uma introdução literária ao primeiro livro da Bíblia. Limitações de espaço me levaram, com frequência, a fazer generalizações que não procurei documentar em detalhes; nesses casos, deixo ao encargo do leitor completar aquilo que eu começo.

    Cenário

    Começo com o elemento que fica esquecido na análise narrativa de muitas pessoas. O cenário de uma narrativa é muito mais complexo, interessante e importante para o significado do relato do que geralmente imaginamos. Cenários cumprem uma série de funções e podem ser divididos em três tipos: físico, temporal e cultural. O cenário físico é o ambiente em que os personagens se movem e a ação ocorre. O cenário temporal é o momento em que a ação ocorre, seja a hora do dia, o ano ou o período histórico. O cenário cultural se refere às crenças, atitudes e costumes que predominavam no contexto da narrativa.

    A função mais habitual do cenário é ser um veículo apropriado para a ação e para os personagens nele inseridos. O crítico literário Kenneth Burke fala da proporção cenário-agente e da proporção cenário-ato, indicando que há uma coerência ou correspondência entre o cenário e os outros dois elementos. Burke escreve:

    De acordo com um princípio do drama, a natureza dos atos e dos agentes deve ser coerente com a natureza do cenário […] O cenário é um veículo apropriado para o ato e expressa em propriedades fixas a mesma qualidade que a ação expressa quanto ao desenvolvimento […] Fica implícita, na qualidade de um cenário, a qualidade da ação que ocorrerá dentro dele. Essa é outra forma de dizer que o ato será coerente com o cenário […] A proporção cenário-ato exige atos em conformidade com os cenários, ou cenários em conformidade com os atos, e o mesmo acontece com a proporção cenário-agente […] Tanto o ato quanto o agente exigem cenários que os contenham.²

    Conforme a regra de interpretação derivada desse conceito, devemos procurar uma correspondência entre o cenário e os personagens e ações que operam dentro dele, cientes de que há exceções ocasionais à regra em que o mais importante é o conflito entre o cenário e o agente ou entre o cenário e a ação. Devemos perguntar: Qual é a relação entre o cenário, os personagens e os acontecimentos da narrativa?

    O cenário físico de narrativas também cumpre funções secundárias. Em conformidade com o propósito da literatura de mostrar, em vez de apenas dizer, os cenários falam à imaginação do leitor e conferem vividez à narrativa. Por vezes, eles criam uma ambientação. Com frequência, têm nuanças simbólicas sem, obviamente, deixar de ser cenários físicos literais. No mínimo, muitas vezes os cenários têm um significado moral ou emocional positivo ou negativo. Nas narrativas em Gênesis, por exemplo, Sodoma é uma monstruosidade moral, enquanto Canaã é a terra da promessa.

    Em relatos mais longos, os cenários também podem se tornar um elemento importante de estrutura e unidade. A condição de Abraão de viajante é mantida em foco durante toda a narrativa a seu respeito por meio de referências a tendas e às árvores nos locais em que Abraão acampou. O relato sobre Jacó é pontuado por referências a pedras. A vida de José é construída em torno de uma sequência de lugares em que ele ficou preso.

    Muitas vezes, é necessário ter algum conhecimento do cenário cultural de uma narrativa, a fim de evitar interpretações equivocadas e trazer a lume aspectos da ação que, de outro modo, o leitor moderno não perceberia. Para o leitor moderno, a ordem de Deus para que Abraão sacrificasse seu filho (Gn 22) parece implausível — nem sequer se encaixa em nossas categorias. Contudo, a narrativa de Gênesis deixa claro que alguém cuja situação cultural incluía o contato com pessoas que sacrificavam os filhos como parte de seu dever religioso entendia o significado da ordem e se pôs a obedecê-la prontamente.

    As funções dos cenários nas narrativas são, portanto, variadas, mas uma regra simples de interpretação as unifica: preste bastante atenção em cada detalhe do cenário que o narrador inclui no relato e observe como contribui para ele. Trato agora da aplicação desse princípio a algumas passagens de Gênesis.

    Natureza elementar

    O mundo das narrativas de Gênesis (e da maioria das narrativas bíblicas) é elementar e pastoral (rural ou natural). Considere estas passagens de amostra:

    Caim disse a seu irmão Abel: Vamos para o campo. E, quando estavam no campo, Caim se levantou contra seu irmão, Abel, e o matou (Gn 4.8).

    Isaque semeou naquela terra, e colheu no mesmo ano cem vezes mais […] Isaque tornou a abrir os poços de água que tinham sido cavados nos dias de Abraão, seu pai (Gn 26.12,18).

    Pegue agora suas armas, a aljava e o arco, e vá ao campo caçar alguma coisa para mim (Gn 27.3).

    Em cada caso, o cenário é elementar e não tem um local especificado; é tão geral e universal que qualquer leitor pode associá-lo a sua experiência. Todos nós temos experiência com campo, terra e água. A estratégia descritiva dessas passagens consiste em fornecer os contornos gerais e deixar que o leitor preencha os detalhes com base em sua memória e imaginação.

    Essas descrições têm efeito duplo. Um deles é a concretude: temos uma impressão forte da realidade física em que a ação ocorre. Ao lermos a narrativa bíblica, permanecemos arraigados no mundo de campos, plantações e água. Essa concretude, porém, é acompanhada de certa hesitação, uma recusa em preencher os detalhes e um convite correspondente para que os leitores imaginem os elementos específicos da cena.

    Devemos observar, ainda, que cenários desse tipo reforçam a qualidade elementar ou universal da Bíblia. A Bíblia é um livro perene, sempre atual. Howard Mumford Jones faz o seguinte comentário proveitoso:

    Os temas da Bíblia são simples e fundamentais. A vida é reduzida a algumas atividades básicas: lutas, cultivo da terra, forte desejo sexual e adoração intermitente […] Essa qualidade elementar dos temas da Bíblia é, ao mesmo tempo, motivo e ocasião de uma vida e uma perspectiva tão básicas quanto e, com frequência, mais primitivas do que as de Homero ou dos poetas trágicos gregos. Confrontamos as virtudes básicas e os vícios primitivos […] O mundo que essas pessoas habitam é despojado e elementar: mar, deserto, estrelas, vento, tempestade, sol, nuvens e lua, tempo de semear e de colher, prosperidade e adversidade, fome e fartura […] A ocupação também tem essa qualidade elementar.³

    Cenários indefinidos

    A tendência de apresentar apenas um esboço mínimo de um cenário se encontra em uma posição intermediária na escala usada pelos narradores bíblicos. Em direção a um dos extremos, o cenário se torna mais indefinido, em conformidade com a natureza sobrenatural de muitas das ações que ocorrem dentro dele. Eis três exemplos:

    Então o

    Senhor

    disse a Abrão: Saia de sua terra, do meio de seus parentes e da casa de seu pai, e vá para a terra que eu mostrarei (Gn 12.1).

    Depois dessas coisas, a palavra do

    Senhor

    veio a Abrão em uma visão (Gn 15.1).

    Depois dessas coisas, Deus pôs Abraão à prova e disse-lhe: Abraão!. Ele respondeu: Estou aqui (Gn 22.1).

    Aqui não nos é fornecido nem o mínimo de informação a respeito de onde os personagens estão quando o diálogo ocorre. Temos de imaginar tudo. É claro que imaginamos ou inferimos algo, por mais nebuloso que seja. O comentário de Auerbach sobre a terceira passagem citada expressa bem essa ideia:

    Onde estão os dois interlocutores? Não recebemos essa informação. No entanto, o leitor sabe que não é habitual que estejam juntos em um lugar da terra, que um deles, Deus, a fim de falar com Abraão, tem de vir de algum lugar, tem de vir das alturas ou profundezas desconhecidas e entrar no âmbito terreno […] Ademais, os dois interlocutores não estão no mesmo nível; se imaginarmos Abraão em primeiro plano, em que talvez possamos vê-lo prostrado ou ajoelhado, ou curvado com braços abertos, ou olhando para o alto, Deus não está lá com ele; as palavras e os gestos de Abraão são dirigidos à profundidade da imagem ou para o alto. De qualquer modo, o lugar escuro e indefinido do qual a voz se origina não aparece em primeiro plano.

    Esses cenários indefinidos deixam implícita uma sensação de mistério. Nessas cenas, Deus se move com um misto de clareza e obscuridade. Uma sensação sobrepujante de mistério permeia o todo.

    Já falei, anteriormente, sobre a correspondência que normalmente existe entre o cenário, os personagens e as ações que operam dentro dele. Nas passagens citadas, a ação é um encontro divino-humano. Essa ação reúne o terreno e o celestial, o físico e o espiritual. A técnica do cenário indefinido se encaixa perfeitamente com essa ação ao combinar a voz e a presença palpável de Deus com uma sensação avassaladora de mistério e transcendência.

    Cenários geográficos

    Como observamos, os cenários generalizados de campo e tenda podem se mover no sentido de uma maior indefinição. Contudo, existe a possibilidade de um movimento na direção oposta. As narrativas de Gênesis (e, aliás, da Bíblia em geral) são repletas de topônimos específicos. Eis dois exemplos que representam uma tendência importante nas narrativas da Bíblia:

    Quando chegaram à terra de Canaã, Abrão atravessou a terra até o lugar em Siquém, até o carvalho de Moré […] Dali, prosseguiu em direção ao monte a leste de Betel, onde armou sua tenda, com Betel a oeste e Ai a leste (Gn 12.5,8).

    Então Isaque partiu de lá, acampou no vale de Gerar e habitou ali […] Dali, foi para Berseba (Gn 26.17,23).

    Passagens como essas parecem mais um diário ou um registro de viagem do que algo que esperaríamos em uma narrativa literária. Sem dúvida, esse relato prosaico vai além do matiz local que os narradores por vezes conferem a suas narrativas. Da perspectiva literária, essas passagens são irrelevantes e digressivas. Como entender a situação?

    Essas passagens são lembrança contínua de que, nas narrativas da Bíblia, o impulso literário de recriar uma experiência é combinado, invariavelmente, com o impulso documentário ou histórico de registrar os fatos. Ao longo da Bíblia, encontramos uma mescla dos três tipos de escrita (expositiva ou teológica, histórica e literária), e aqui encontramos outro sinal dessa mistura singular.

    Mas, mesmo que o impulso maior por trás dessas passagens seja histórico ou documentário, podemos falar legitimamente de efeitos literários. Entre outras coisas, o contexto em que algo é colocado sempre influencia nossa forma de ver esse objeto. No presente caso, a estrutura histórica e geográfica dentro da qual as narrativas da Bíblia são colocadas aponta para a seriedade factual com que os autores esperam que consideremos suas narrativas. Não se atribui a mesma condição ontológica a acontecimentos factuais e fictícios. Algo que realmente ocorreu ocupa uma categoria diferente de algo que foi simplesmente imaginado. As narrativas da Bíblia não nos dão a opção de considerar a ação algo simplesmente inventado pelo autor.

    Esse fato foi destacado pela experiência de um tradutor da Bíblia quando ele leu, pela primeira vez, sua tradução do Evangelho de Mateus para um grupo que falava uma das línguas kainantu, de Papua Nova Guiné. Como Mateus, ele começou com as genealogias, embora temesse que seus ouvintes as considerassem maçantes. A reação de um dos homens corpulentos do grupo foi levantar a mão e exclamar: "Ouçam, todos vocês! É isso que nós queríamos saber. É isso! A Bíblia é feita de mitos ou lendas dos homens brancos, ou verdadeiramente aconteceu? Agora sabemos que aconteceu. Afinal, que mito ou lenda registra meticulosamente nomes de família ao longo da história?".

    Também há outros efeitos literários. Essas referências geográficas que aparecem aqui e ali conferem abrangência épica à ação. Também destacam a identidade dos personagens: como viajantes, por exemplo, e como indivíduos com experiência e importância internacionais.

    Cenário como ambientação

    Em algumas narrativas, o cenário físico contribui para a ambientação do relato. Como indica a proporção cenário-ato, o ambiente físico corresponde à ação que ocorre dentro dele. Proporciona um ambiente em que a ação parece inevitável.

    O relato sobre José (Gn 37) nos oferece uma ilustração. É uma narrativa cativante de rivalidade entre irmãos e de hostilidade contra uma vítima desamparada. Nesse relato de violência, o cenário instiga o crime dos irmãos. É um lugar distante, em que crimes acontecem sem que ninguém os veja. A própria paisagem se torna inimiga de José, com suas covas abertas em que pessoas podem ser jogadas e com animais selvagens em cujo sangue a túnica pode ser molhada para enganar um pai. E a ação ocorre perto de uma rota de caravanas comerciais com destino ao Egito. O cenário em si cria um clima de hostilidade. Cabe observar, de passagem, que uma das tramas conflituais elementares consiste em pessoas contra seu ambiente, e encontramos vários desses exemplos nas narrativas da Bíblia.

    A mesma proporção cenário-ato pode ter o efeito oposto de reforçar uma ação positiva. O relato sobre a hospitalidade ideal de Abraão e Sara (Gn 18.1-8) é uma boa ilustração. O cenário dessa bela narrativa é chamado pastoral nos meios literários. Um cenário bucólico desse tipo é um retrato de uma vida boa, imaginada como simplicidade rural, com qualidades implícitas como contentamento, fartura e satisfação. Nesse interlúdio pastoral no relato sobre Abraão, entramos em um mundo idealizado de tendas e árvores, água e rebanhos. O cenário em si é uma extensão das virtudes que Abraão e Sara demonstram nesse episódio e pelas quais Deus (um dos três visitantes angelicais) os recompensa.

    Essa imagem pastoral de uma boa vida é, obviamente, um realce por meio de um contraste que intensifica a degeneração sórdida da cidade de Sodoma, que aparece no capítulo seguinte de Gênesis. O relato sobre Sodoma é de terror, permeado pela maior tensão narrativa possível. De modo contrastante, o tom da narrativa bucólica de hospitalidade ideal é predominantemente bem-humorado, baseado em uma incongruência complexa no comportamento de Abraão. Na presença de seus hóspedes, Abraão adota um ar indiferente ao oferecer um pouco de água e um pedaço de pão e, depois, ficar perto deles em pé, debaixo da árvore, enquanto comiam. Nos bastidores, porém, Abraão é visto em um frenesi de atividade: [vai] apressadamente à tenda falar com Sara para dar instruções, [corre] ao rebanho e se [apressa] em preparar o novilho (observe como o pedaço de pão foi amplificado). É impossível imaginar esse humor presente no cenário sórdido da narrativa de Sodoma.

    A correspondência entre cenário e ação é tão próxima que, com frequência, o cenário ocupa posição de destaque no resultado da ação. No episódio da noiva substituta (Gn 29.21-27), a escuridão noturna permite que Labão engane Jacó em sua noite de núpcias. O cenário também coloca o protagonista em situação de vantagem quando Jacó obtém o direito de primogenitura de Esaú por meio de uma negociação (Gn 25.27-34). A ação principal ocorre na tenda, onde Jacó se encontra em seu ambiente natural. Esaú, o caçador que sai pelos campos, está deslocado na cozinha. Como seria de prever, uma panela de ensopado se torna uma arma nas mãos do cozinheiro da família, e uma pessoa governada por seus apetites físicos como Esaú não tem condições de vencer nesse cenário.

    Cenário como símbolo

    Muitos dos cenários das narrativas da Bíblia têm nuanças de significado além de suas qualidades físicas. Nesses casos, é apropriado falar de cenários simbólicos, desde que não minimizemos, com isso, sua relevância literal e física.

    No relato sobre a separação de Abraão e Ló (Gn 13), lemos que a terra não podia sustentar os dois habitando juntos (v. 6). Essa luta com o ambiente, embora certamente seja o impulso para a ação, é mais que isso. Essa é Canaã, a terra da promessa, mas ela não pode sustentar nem mesmo os rebanhos de dois membros da mesma família. O cenário se torna, portanto, um teste implícito da fé de Abraão.

    O cenário do relato sobre o sacrifício de Isaque por Abraão (Gn 22) tem muitos elementos sobre os quais podemos comentar. Ao longo da narrativa, o cenário é mais espiritual do que físico. Somos informados, por exemplo, de que Abraão levantou-se de manhã cedo (v. 3), mas esse cenário

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