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A Hermafrodita: Brigitte Lambert: o diário de uma mulher trans intersexo
A Hermafrodita: Brigitte Lambert: o diário de uma mulher trans intersexo
A Hermafrodita: Brigitte Lambert: o diário de uma mulher trans intersexo
E-book350 páginas4 horas

A Hermafrodita: Brigitte Lambert: o diário de uma mulher trans intersexo

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Sobre este e-book

Este belo trabalho que chega até nós é um estudo dentro de um tempo que, especialmente, no Brasil, é muito oportuno. Sou filho de um movimento intersexo, que, desde 2015, chama a atenção da sociedade brasileira a respeito da vida contida nas narrativas intersexos pela busca de um verdadeiro sexo. Nossas histórias de paixões parecem ter sido emolduradas pela pena de Armand Dubarry, vivificadas na tradução e nos ensaios de Nilton Milanez. Os estudos que encontramos aqui nos levam a uma reflexão sobre nosso tempo, assim como ao aporte teórico em torno do corpo, convocando a realidade atual da luta e do movimento intersexo.
IdiomaPortuguês
EditoraEDUEL
Data de lançamento20 de dez. de 2023
ISBN9786589814580
A Hermafrodita: Brigitte Lambert: o diário de uma mulher trans intersexo

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    Pré-visualização do livro

    A Hermafrodita - Nilton Milanez

    PREFÁCIO

    A tarefa de escrever um prefácio é de grande responsabilidade, porque dela se origina um texto de apresentação de uma obra, o qual deve ser capaz de oferecer ao leitor uma ideia geral, ampla e coerente do livro que irá ler. Muitas vezes trata-se de uma tarefa muito difícil em função de o prefaciador receber o livro a prefaciar sem quaisquer informações de base, desconhecendo motivações, planejamentos, readequações, redirecionamentos pelos quais passou o projeto de escrita do referido livro. Entretanto este não é o caso desta prefaciadora, na medida em que o livro que aqui se apresenta é um dos resultados do pós-doutoramento do Prof. Dr. Nilton Milanez por mim supervisionado, fato que lhe atribuiu a aprovação com louvor no estágio pós-doutoral e uma consolidada experiência na área dos estudos literários do século XIX na França e no Brasil, experiência essa que, por exemplo, recupera a imagem apagada de um autor no quadro da historiografia literária. Tendo acompanhado as experiências envolvidas em todo o processo de feitura da tradução e dos ensaios que a acompanham, a escrita deste prefácio não se reflete apenas como um ato informativo, mas especialmente prazeroso, na medida em que vejo chegar à fase de publicação um trabalho que considero fundamental às áreas de tradução, de Análise do discurso e dos estudos literários.

    Portando uma consolidada bagagem profissional enquanto pesquisador, especialmente no campo dos estudos foucaultianos, o Prof. Dr. Nilton Milanez, para o desenvolvimento das ações do seu projeto pós-doutoral, conduziu seu olhar investigativo para um conjunto de noções foucaultianas que articulavam uma base para o referido projeto, tais como: corpo, sexualidade, subjetividade, espaço e verdade.

    O seu projeto pós-doutoral constituiu-se, na verdade, a partir da composição de vários projetos, tendo um projeto central, cujo resultado é o livro que aqui se apresenta.

    O primeiro projeto é tradução do romance francês L’hermaphrodite, de Armand Dubarry. Trata-se da primeira tradução brasileira desse romance, que se baseia no diário de Herculine Barbin. Esse diário de Barbin, pessoa intersexo, veio a público pela primeira vez em um livro de Ambroise Tardieu da área da medicina. Michel Foucault, tomando-o por base incitadora, publica o estudo Herculine Barbin: o diário de um hermafrodita. A tradução realizada por Nilton Milanez foi concretizada considerando as condições de produção da escrita Dubarry, bem como as condições de circulação e de recepção desse discurso na segunda década do século XXI.

    O segundo projeto, integrado ao primeiro, é o presente livro Brigitte Lambert: o diário de uma mulher trans intersexo. O livro integra, numa primeira parte, a tradução do romance de Dubarry e, numa segunda parte, estudos que refletem sobre questões materializadas no referido romance, por meio de uma condução teórica de cariz foucaultiano. Os estudos se distribuem em quatro ensaios. Para a tradução e a escrita do livro, Milanez especializou-se em estudos sobre o realismo e o naturalismo do século XIX, investigando discursos no âmbito dos estudos literários e das ciências sociais.

    No primeiro, intitulado A lei do genital na biologia de Dubarry, Milanez aborda questões inerentes ao intersexo por intermédio de reflexões que consideram os posicionamentos médico-legais, como também os jurídico-biológicos. Esse primeiro ensaio, que tem sua base na reflexão foucaultiana "precisamos verdadeiramente de um verdadeiro sexo?"¹, discute os discursos que buscam implementar clínica, jurídica e biologicamente a existência de um sexo verdadeiro. O ensaio conta ainda com uma discussão sobre algumas escolhas da tradução realizada por Milanez, a exemplo da opção por a hermafrodita e não o hermafrodita, bem como desenvolve reflexões que chegam à questão da intersexualidade em nosso presente. Estariam os sujeitos ainda hoje à procura do verdadeiro sexo?

    O segundo ensaio, intitulado Dubarry no acontecimento literário de sua atualidade, abriga um estudo minucioso sobre o autor Armand Dubarry. Milanez, entretanto, não realiza um simples esboço biográfico do autor de A hermafrodita, pelo contrário, efetua um estudo complexo por meio de conjuntos discursivos, nos quais é possível perceber como, em fins do século XIX, o autor se posicionava sobre políticas de vida no campo das sexualidades, quais foram seus posicionamentos científicos, e por que motivo o seu nome é apagado da cena literária do Naturalismo. Por último, Milanez mostra como esse autor, devido à forma como trata a questão intersexual, pode ser considerado "um homem de preceitos feministas avant la lettre".

    A questão do presente e do pertencimento: como se governar a si?, terceiro ensaio do livro, desenha uma analogia bem concatenada entre Brigitte e Dubarry. Milanez mostra como tanto personagem como autor põem em evidência a questão intersexual, ou mais especificamente: como o autor, por meio de um trabalho com uma personagem intersexo, vai falar sobre aquilo que era interditado duramente por uma sociedade hipócrita e moralista. O autor de A hermafrodita, conforme defende Milanez, instaura sua personagem e sua obra como uma prática libertária que anuncia a transformação dos modos de vida dos corpos na literatura e na sociedade, imagens de um governo de si.

    Os estudos que acompanham a tradução de A hermafrodita encerram-se com o ensaio Pequenas histórias do corpo sexual intersexo: natureza, soberania e capitalização, que traz para a discussão noções inerentes ao discurso da natureza e ao discurso contranatura. Segundo analisa Milanez, ao contrário de Auguste Comte, Dubarry, através da trajetória de sua personagem hermafrodita, não atribui ao corpo do sujeito um caráter moral que o condenaria. Com sua Brigitte, Dubarry, então, nega Comte, um dos grandes influenciadores dos discursos do século XIX, ao colocar em suspeição o discurso da natureza enquanto discurso taxionômico para o sujeito. Era a história natural, a história de ordenação da natureza, que regia a compreensão dos sujeitos sobre si e sobre sua posição e classificação no mundo. Outro ponto muito importante do ensaio são as reflexões sobre território e sexualidade. Dominar o outro, governar o outro são matizes de uma mesma questão: a contranatureza do corpo, sua vida sexual e as disciplinas de controle do corpo laboral e sua produção de riquezas, vinculadas aos soberanos do corpo social. Nessa linha de entendimento, Milanez dirige seu olhar para a capitalização do sexo. Que corpo é produtivo para o mercado de trabalho? Que sexo ele deve ter? A divisão entre natura e contranatura auxiliam, portanto, na organização dos mecanismos produtivos.

    Todo o processo de tradução e de feitura teórica e analítica dos ensaios foram registrados no Facebook e no Instagram, com uma série de postagens, as quais tinham por fito não somente divulgar o trabalho, mas servir como um feedback às investigações realizadas.

    Enlaçado às atividades do projeto pós-doutoral, foi realizado o Curso de extensão Nossas Confissões da Carne, organizado pelo Prof. Dr. Nilton Milanez e por mim, e com a participação de pesquisadores dos nossos grupos de pesquisa LABEDISCO e GPEA, bem como de outros grupos - LINSP, VIVA VOX, LEDUNI, Dis.Com.Fou. As discussões giraram em torno do quarto volume da História da sexualidade, de Michel Foucault. Outras ações igualmente importantes vinculadas ao projeto pós-doutoral foram: o Fórum de Pesquisa Corpo e Audiovisualidades; as participações do Prof. Dr. Nilton Milanez no Lector in fabula, projeto de leitura da literatura desenvolvido pelo GPEA; a criação do Agnus Guei (LABEDISCO); o Diário foucaultiano no Facebook e no Spotify; a produção do estudo Corpo-espaço: organização e funcionamento de uma noção discursiva² pelo Prof. Milanez e por mim e sua posterior publicação em periódico científico, e em formato documentário audiovisual; a publicação de dois outros artigos: Políticas de morte: o corpo do sujeito trans na pandemia³ e Corpo e experiência de nós mesmos: sobre o Diário Foucaultiano de Quarentena do Labedisco na pandemia⁴.

    Todas essas ações ofereceram a Milanez indícios, caminhos, experiências frutuosas para a feitura deste livro. E nesse sentido, é possível ao leitor perceber que este livro se constitui metafórica e concretamente como um exemplar e rico nó em uma rede⁵, recuperando a ideia foucaultiana, nó na rede que tem em seu centro irradiador a tradução de A hermafrodita e os ensaios que articulam saberes acerca desse até então desconhecido romance no contexto dos estudos literários no Brasil.

    Marisa Martins Gama-Khalil

    Porto Velho, maio de 2021


    1 FOUCAULT, Michel. O verdadeiro sexo. In: MOTTA, Manoel Barros da (Org.). Ditos e Escritos V: Ética, sexualidade, política. Tradução de Elisa Monteiro, Inês Autran Dourado Barbosa. 2 ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2006, p. 82

    2 GAMA-KHALIL, Marisa Martins; MILANEZ, Nilton. Corpo-espaço: organização e funcionamento de uma noção discursiva. In: NAVARRO, Pedro; NEVES, Ivânia dos Santos (orgs). Moara – Revista Eletrônica do Programa de Pós-Graduação em Letras Universidade Federal do Pará: 50 anos de Arqueologia do Saber - as contribuições aos estudos da linguagem no Brasil. V. 1, n. 57, 2020, p. 143-162.

    GAMA-KHALIL, Marisa Martins; MILANEZ, Nilton. Corpo-espaço: organização e funcionamento de uma noção discursiva. In: Moara – Revista Eletrônica do Programa de Pós-Graduação em Letras Universidade Federal do Pará, 2021. v. 2, n. 57, p. 143-162, jan-jul. 2021.

    3 MOURA, Ismarina Mendonça; MILANEZ, Nilton. Políticas de morte: o corpo do sujeito trans na pandemia. Humanidades & Inovação, Palmas-TO, v. 7, n. 27, 2020, p. 49-162.

    4 MILANEZ, Nilton; ALMEIDA, Beatriz Souza. Corpo e experiência de nós mesmos: sobre o Diário Foucaultiano de Quarentena do Labedisco na pandemia. Revista Heterotópica, 2021, V. 3, n. 1, jan/jun, 2021, p. 191-207.

    5 FOUCAULT, Michel. As Unidades do Discurso. In: A Arqueologia do Saber. Tradução de Luiz Felipe Baeta Neves. 7ª ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2008. p. 26

    A LEI DO GENITAL NA BIOLOGIA DE DUBARRY

    A intersexualidade é o grande campo de enunciação que a narrativização da vida de Brigitte Lambert, contada no romance A hermafrodita de Armand Dubarry, ocupa, no que se refere aos estudos discursivos sobre o sujeito intersexual, na literatura francesa do final do século XIX, mais precisamente, no ano de 1897. Esse momento de virada entre séculos, em plena modernidade, tem um lugar específico na história das narrações biográficas sobre a intersexualidade. Quero demonstrar que tipo de recorte Dubarry estabeleceu com sua literatura sobre o corpo interditado de Brigitte, tão explorado e violentado pelos saberes médicos da época até hoje.

    De onde vem, então, a narrativa de A hermafrodita, quais literaturas estão a ela associadas e que modos de encadeamento existem entre elas são algumas das questões que gostaria de localizar ao longo deste ensaio. Vou, portanto, revisitar as obras que dão o contorno das condições que permitiram a emergência de A hermafrodita e sua circulação, não sem situar as veredas dessa discussão naquilo que ela tem de biológico e jurídico e que aparece a partir do discurso clínico sobre o corpo e sobre o sexo do sujeito intersexo, restringindo práticas de liberdade diante das escolhas que o sujeito poderia fazer de seu corpo e do modo de vida que poderia levar.

    Vamos entrar no domínio de um dizer que constrói uma verdade sobre o outro, a partir da fala do outro, medicalizada e judicializada. Ainda que os sujeitos dos quais vou tratar tenham podido falar como se reconhecem a si, aos seus próprios olhos e aos olhos dos outros⁶, prevaleceu, no entanto, o dizer sobre uma prática delinquente e desvairada a partir da perspectiva do outro. Saio, assim, para delimitar certas práticas e discursos que buscaram instalar um regime de verdade sobre o sujeito intersexo.

    Questões médico-legais da narrativa de um verdadeiro sexo

    A Hermafrodita de Dubarry foi livremente inspirada nas memórias de Alexina Barbin, pessoa intersexo que viveu na região francesa de La Rochelle, onde trabalhou como professora primária e viveu como mulher até quando se constatou, por meio de exame médico, que ela tinha sido vítima de um erro sobre a identificação de seu sexo na hora do nascimento. A conclusão de seu relatório estabelece que Alexina é um homem, hermafrodita sem dúvida⁷, o que a obrigou a retificar seu sexo juridicamente, assumindo o nome de Abel, e a se conduzir socialmente como homem. O diagnóstico sob a nomenclatura de hermafrodita coloca Alexina sob a égide da anormalidade corporal e do desvio moral. A intervenção clínica e subsequentemente jurídica, exigindo a mudança de seu nome, dizem uma verdade da patologização do sujeito, da doença, da perversidade. Isso demonstra como o controle do corpo está atrelado à coação da liberdade de expressão de si por parte do sujeito cuja voz não é ouvida, mas afogada no lago de um dito saber médico que, feito uma ciência régia, toma seu lugar na história da medicina e usurpa o lugar social do sujeito intersexo.

    Na rede discursiva da literatura sobre Alexina Barbin, primeiramente, suas Memórias vão fazer parte do livro, que tem como título principal, Question médico-légale de l’identité dans ses rapports avec les vices de conformation des organes sexuels⁸ [Questão médico-legal da identidade em suas relações com os vícios de conformação dos órgãos sexuais], de Ambroise Tardieu, publicado em 1874, pouco mais de 20 anos antes do romance de Dubarry. Ali Tardieu vai apresentar um estudo ao mesmo tempo clínico e jurídico, uma vez que os casos demonstram o que ele entende por uma má conformação dos órgãos sexuais, no sentido anatômico, como também se referem à vida social dos investigados, cujo estado civil, no âmbito da ciência do direito, não correspondia ao que ele chamava de verdadeiro sexo.

    Tardieu atesta logo na abertura do primeiro capítulo de sua obra que O estado civil dos indivíduos, falso desde seu nascimento, manteve-os durante longos anos em uma situação estranha a seu verdadeiro sexo, até o dia em que, o erro sendo reconhecido, retomaram os hábitos e o tipo de vida que lhes pertencia⁹. A visada de Tardieu compreendia um ponto de vista que ligava diretamente a fisiologia com a moral do indivíduo, um modo de vida cristalizado e fechado em posições estabelecidas de acordo com a designação de seu sexo, que deveria ser homogênea, sem possibilidades que escapassem aos papéis sociais vinculados ao genital, o pênis para o homem, e a vagina para a mulher, sendo preponderante o sexo que mais se sobressaísse no caso de ambiguidade fisiológica. Não havia, portanto, qualquer via outra de manifestação para identidades de gênero e orientações sexuais fora de um quadro de doença mental.

    Um dos casos de medicina legal desse tipo que Tardieu vai discutir é o de Alexina Barbin, abordado no subtítulo de sua obra, contenant les souvenirs et impressions d’un individu dont le sexe avait été méconnu [contendo as memórias e impressões de um indivíduo cujo sexo fora mal compreendido], apresentando o diário de Alexina, ou pelo menos as partes que considerou significativas - mesmo tendo recebido o manuscrito completo do médico do estado, Doutor Régnier, que fez o atestado de óbito e a autópsia – para justificar os casos que apresenta na primeira parte de seu livro. Quero dizer com isso, que Tardieu, como atesta Foucault, guardou consigo o manuscrito, publicando apenas a parte que lhe parecia importante. Negligenciou as memórias dos últimos anos de Alexina – tudo aquilo que, segundo ele, não passava de lamentos, recriminações e incoerências.¹⁰

    O jeito que Tardieu trata Alexina, portanto, é sob uma perspectiva médico-clínica, tomando seu corpo como objeto de verificação e investigação de seu sexo, esvaziando-a de qualquer escuta sobre suas angústias, suas vivências sociais, seu modo de vida, fazendo dela um instrumento patológico passível de correção moral. Enfim, a dessubjetivação¹¹ se torna a intervenção médica de Tardieu sobre Alexina, arrancando-a de si e obrigando-a a confessar seu sexo e ser à maneira de seu sexo, um vício, mal ajambrado, delirante, sem direito à orientação sexo-afetiva que tinha em conformidade expressiva da manifestação de sua sexualidade para si.

    Tratar a sexualidade desse modo é empurrar o sujeito em direção a um dispositivo de produção de verdade, e Convém, portanto, perguntar, antes de mais nada: que injunção é essa? Por que essa grande caça à verdade do sexo, à verdade no sexo?¹² tão centrada na organicidade do indivíduo, isto é, no órgão do sujeito para além da biologia em uma ordem social biopolítica. O tipo de injunção que encontraremos será a do saber e do discurso médico, não somente mediando a relação entre corpo e sociedade, mas instaurando regramentos sobre o corpo do outro, junto com um sistema jurídico de controle que autoriza uma prática e a acolhe. Não é sem efeito que Foucault escolhe a palavra caça para se referir ao sexo, pois o sexo se torna objeto de perseguição, motivo para estar ao encalço dos sujeitos, encontrando ali um meio de aprisioná-los para que não sejam mestres de si. Essa caçada freia a continuidade dos sujeitos em movimentar a mecânica de uma máquina social a qual deveriam servir, impedindo-os de se rebelar contra ela, ou apenas participar dela seguindo seus próprios rumos, em vez de obedecer a esse programa ditatorial do sexo do corpo.

    A marginalidade à qual foi lançada Alexina, devido à busca pela verdade de seu sexo e à condução de sua sexualidade como mulher que se relaciona com mulheres, chamou a atenção de Foucault a ponto de que ele republicasse parcialmente a obra de Tardieu, pouco mais de um século depois, em 1978, naquele ponto das Memórias de Alexina, com o título de Herculine Barbin dite Alexina B¹³. Herculine era o nome de batismo que constava em sua certidão de nascimento, entretanto, era conhecida por Alexina, um desdobramento que já prenunciava as várias possibilidades de o sujeito se manifestar e de se posicionar diferentemente de sua nomeação¹⁴, e da pessoa, em seu momento do nascimento, de viver politicamente sua vida de outro modo. Alexina se ampliava a partir do sexo de seu corpo. Mes souvenirs, como chamou Alexina suas memórias, foi, então, apresentada por Foucault junto com um dossier de nomes, datas, lugares, relatórios médicos, documentos jurídicos e notícias da imprensa francesa daquele período, um arsenal histórico de documentos que atestam o lugar da subjetividade do sujeito intersexual.

    A centralidade na biologia do sexo nos estudos de caso médico-legais vai dar ensejo, ao escrito O verdadeiro sexo, de Foucault, em 1980, colocando em xeque, quase cem anos depois, a máxima de Tardieu sobre um sexo verdadeiro, recolocada na seguinte questão: "Precisamos verdadeiramente de um verdadeiro sexo?"¹⁵. Desse modo, Foucault situa a problematização do sexo em relação à identidade de gênero, do modo como a compreendemos hoje, em um quadro de teorias biológicas da sexualidade ao lado das condições jurídicas, que vão acabar com a restrição e desaparecimento da livre escolha do indivíduo. Não cabe mais ao indivíduo decidir o sexo ao qual ele deseja pertencer jurídica ou socialmente, mas sim ao perito dizer que sexo a natureza escolheu para ele, e ao qual, consequentemente, a sociedade deve lhe exigir restringir-se.¹⁶

    Desequilibrados e imorais: a emergência do jurídico-biológico

    É nesse mesmo escrito que Foucault vai fazer referência à recepção da história de Alexina no século XIX, nos explicando que ela não tinha despertado muito interesse na época, quando então vai citar muito brevemente Armand Dubarry, "um autor polígrafo de histórias de aventura e de romances médico-pornográficos, gêneros tão apreciados na época, manifestamente tomou emprestado para o seu Hermaphrodite vários elementos da história de Herculine Barbin."¹⁷ Em nota de rodapé, Foucault cita apenas algumas das 12 obras que vão compor a série de Dubarry intitulada Les désequilibrés de l’amour. Em seu escrito em francês Foucault denomina adequadamente essa série de récits, une longue série de récits¹⁸, que compreendemos como narrativas, tais são os casos dessa reunião de romances de Dubarry. No entanto, a série de récits foi traduzida na versão brasileira por série de ensaios¹⁹, o que não corresponde ao caráter romanesco e popular dessa série de livros à qual se dedicou Armand Dubarry durante o período de 1896 a 1902.

    A publicação da série, títulos e datas de Les déséquilibrés de l’amour assim se compõem na sua totalidade: 1. Le fétichiste (Paris: Chamuel, 1896); 2. Les invertis: le vice allemand (Paris: Chamuel, 1896); 3. L’hermaphrodite (Paris: Chamuel, 1896); 4. Hystérique (Paris: Chamuel, 1897); 5. Coupeur de nattes (Paris: Chamuel, 1898); 6. Les flagellants (Paris: Chamuel, 1898); 7. Le vieux et l’amour (Paris: Chamuel, 1898); 8. Les femmes eunuques (Paris: Chamuel, 1899); 9. Lourde, amourese et mystique (Paris: Chamuel, 1900); 10. Mademoiselle Callypige (Paris: Chamuel, 1900); 11. Le plaisir sanglant (Paris: Chamuel, 1901); 12. L’abbéé cornifleur: L’inceste (Paris: Chamuel, 1902).

    Essa série de livros parte, portanto, de um discurso sobre a medicalização dos corpos e das condutas, conhecidas por modos diferentes de narrar como literatura médico-erótica, roman de moeurs ou romances psicopatológicos, chegando a serem tomados como pornográficos. Essa caracterização propõe um campo de formação entre o discurso médico, a literatura e o modo de conceber a sexualidade no fim do século XIX na França, destacando aspectos sexuais segundo a configuração de erro e anomalia à maneira de Tardieu, momento em que a Europa vivia a conhecida era vitoriana, marcada por uma discutível repressão da sexualidade.

    Por outro lado, esses romances, como atestou Foucault em sua História da sexualidade: a vontade de saber, demonstram que a sexualidade não apenas era divulgada e debatida em grande escala, como também era incitada tanto pelos estudos médicos quanto pelo interesse sobre possíveis desordens sexuais e morais que dela decorressem. A incitação do discurso sobre o sexo, portanto, é assim verificada e posta em circulação com a literatura de Armand Dubarry, produzindo um impacto sobre as formas do sujeito se relacionar com sua sexualidade, insistindo em uma veiculação expressivamente passional e psicopatológica.

    A hermafrodita de Dubarry vai aproximar o estilo gracioso, afetado, alusivo, um pouco pomposo e em desuso²⁰ das memórias de Alexina, à narrativa das desaventuras de uma jovem moça intersexual, que vive um clímax desafortunado atrás da outro, numa história de abuso sexual, ironias sobre a confiança, o amor na vida, e bandidagem em clima de faroeste com personagens nojentos, escrotos, desonestos e mal ajambrados. A própria personagem, à maneira de uma autobiografia, narra ela mesma a história de seus infortúnios desde seu nascimento, tendo como pai um ladrão sanguinolento que seduziu sua pobre mãe, infeliz e sem emprego. Entende que foi concebida tragicamente, marcada por um genitor monstruoso, tendo ao nascimento sido tomada como menina e recebido o nome de Brigitte. A partir daí, Brigitte viverá a ambiguidade de seu corpo intersexo na cidade de Paris, viajará para Nova York, Chicago e São Francisco, alcançará o Equador, na cidade de Quito, chegando pelo Amazonas até o Brasil, nas cidades de Manaus e Pernambuco. Não apenas nesse circuito corpo-espaço reverberam o abuso e punição do corpo de Brigitte, como também as espacialidades se ligam a seu corpo em termos do aviltamento da colonização de um território ao qual era permitido e instado ser socialmente invadido. As práticas judiciárias que envolvem o corpo de Brigitte no trabalho, na sexualidade, nas relações sociais vão nos guiando para o questionamento do espaço de veridicção e da obrigatoriedade da confissão de seu sexo.

    Portanto, o terceiro volume da série de Les désequilibrés de l’amour enuncia a sexualidade de uma posição deflagrada sob o excesso, a desmesura, a intemperança, que desembocam na loucura e na desordem moral. O sujeito intersexo será patologizado sob o estigma da loucura, não sem efeitos de normalização. Era tomado por uma anomalia mental, de um lado, e por uma anomalia sexual, do outro, como alerta Dubarry ao seu leitor em dois extratos que trago do Prefácio de L’hermaphrodite:

    Queimando por dentro com o fogo da paixão, psiquismo imponente, o hermafrodita está em perpétuo suplício de Tântalo, e sua incapacidade o humilha a tal ponto na mesma medida em que o atormenta, não sendo raro ele se entregar à melancolia e à demência furiosa.²¹

    O primeiro aspecto que desponta nesse extrato é o modo de Dubarry enunciar a paixão nos domínios da doença, medicalmente centrado, psiquiatricamente delineado em um campo da histerização do corpo do hermafrodita. Esse corpo é descrito como descontrolado, porque entregue às desmesuras mentais, ao desligamento da realidade na melancolia, à fuga dos sentidos e da razão por meio de uma demência, descrita como furiosa. Nessa linha, Dubarry levanta os recônditos da animalidade, afasta o sujeito do humano, lhe destitui de tomar decisões e o faz ceder à subjugação de um poder jurídico. Em primeira instância, o diálogo que se

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