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Mulheres e Justiça: Teorias da Justiça da Antiguidade ao Século XX Sob a Perspectiva Crítica de Gênero
Mulheres e Justiça: Teorias da Justiça da Antiguidade ao Século XX Sob a Perspectiva Crítica de Gênero
Mulheres e Justiça: Teorias da Justiça da Antiguidade ao Século XX Sob a Perspectiva Crítica de Gênero
E-book390 páginas6 horas

Mulheres e Justiça: Teorias da Justiça da Antiguidade ao Século XX Sob a Perspectiva Crítica de Gênero

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Sobre este e-book

O livro Mulheres e Justiça: teorias da justiça da Antiguidade ao século XX sob a perspectiva crítica de gênero investiga a relação existente entre o discurso filosófico sobre justiça e a construção da igualdade de gênero, considerando que as teorias da justiça, ao longo da história, têm servido para legitimar e perpetuar desigualdades de gênero, ao mesmo tempo que se constituem em um campo adequado para o florescimento de um discurso capaz de criticar, desestabilizar e alterar tais desigualdades, a partir do potencial emancipatório de sua força crítica. Com esse objetivo, revisita os principais teóricos da justiça da Antiguidade até o século XX, investigando de que modo os discursos jusfilosóficos sobre as mulheres transformaram-se em discursos de mulheres acerca do que seria uma sociedade justa, sob a perspectiva crítica de gênero. A partir dessa análise, examina a constituição das diversas correntes teóricas feministas que se propuseram a enfrentar tal questionamento, suas convergências e seus enfrentamentos teóricos/práticos, demonstrando assim a ascensão do pensamento feminista como um referencial crítico e emancipatório, e ao mesmo tempo evidenciando as fragilidades e os paradoxos dos feminismos do final do século XX. A autora realiza, assim, um mergulho na história da filosofia do direito e da justiça, traçando um panorama cuja leitura mostra-se indispensável para aquelas e aqueles que desejam refletir acerca da constituição da desigualdade de gênero e, a partir de então, auxiliar na compreensão e constituição de um referencial jurídico, filosófico e político capaz de superar o déficit de empoderamento feminino e o cenário persistente de dominação e exclusão de mulheres e demais sujeitos genderificados do espectro da justiça, recuperando o potencial crítico e emancipatório da filosofia feminista para o século XXI.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento17 de mai. de 2019
ISBN9788547326166
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    Mulheres e Justiça - Joice Graciele Nielsson

    COMITÊ CIENTÍFICO DA COLEÇÃO EDUCAÇÃO E DIREITOS HUMANOS:DIVERSIDADE DE GÊNERO, SEXUAL, ÉTNICO-RACIAL E INCLUSÃO SOCIAL

    Dedico este livro à minha família.

    Ao meu pai, professor Harry Nielsson, e ao meu esposo, Nelson Copetti,

    pela presença sempre constante que nunca me permitiu sentir só,

    mesmo na solidão da pesquisa e da escrita acadêmica.

    De um modo muito especial, dedico às MULHERES que, em sua LUTA cotidiana e incansável, contribuem para transformar e melhorar o mundo em que vivemos:

    À vó Almerinda, pelo que foi,

    À minha mãe, Gisela, pelo que é,

    À pequena Maria Eduarda, pelo que será.

    Com todo o meu amor.

    Aninha e suas pedras

    Não te deixes destruir...

    Ajuntando novas pedras

    e construindo novos poemas.

    Recria tua vida, sempre, sempre.

    Remove pedras e planta roseiras e faz doces. Recomeça.

    Faz de tua vida mesquinha

    um poema.

    E viverás no coração dos jovens

    e na memória das gerações que hão de vir.

    Esta fonte é para uso de todos os sedentos.

    Toma a tua parte.

    Vem a estas páginas

    e não entraves seu uso

    aos que têm sede.

    (Cora Coralina)

    PREFÁCIO

    Receber um convite para prefaciar um livro é algo que me deixa extremamente grato e feliz. Isso porque esse convite representa reconhecimento de que se é uma pessoa – e, no caso, um pesquisador – cuja opinião é cara ao autor da obra. Nesse caso específico, antecipo que participar do círculo de pessoas queridas pela Prof.ª Dr.ª Joice Graciele Nielsson é algo que muito me apraz, fundamentalmente pelas qualidades que ela apresenta tanto como pesquisadora quanto como pessoa implicada – não apenas teoricamente, diga-se de passagem – em uma luta que respeito muito: o feminismo. Mas, por outro lado, prefaciar uma obra – particularmente esta, Mulheres e justiça: teorias da justiça da Antiguidade ao século XX sob a perspectiva crítica de gênero – é atividade difícil e desafiadora: corre-se o risco de deixar fugir, ao sabor da admiração que se tem pelo(a) autor(a), aspectos de extrema relevância da obra.

    Pois bem. Com medo de pecar pela superficialidade que o curto espaço de um prefácio impõe, vamos à árdua tarefa!

    Ao propor-se a analisar a complexa e paradoxal relação entre justiça e gênero, a Prof.ª Dr.ª Joice Graciele Nielsson nos conduz – segurando firmemente nossa mão e sem saltos mortais na história – por um período de tempo que vai desde a Antiguidade até o apagar das luzes da Era dos Extremos – na léxica de Hobsbawm – que foi o século XX. A partir de uma aprofundada análise dos aportes gregos de Platão e Aristóteles – analisando a natureza, o estatuto e a função das mulheres na teoria da justiça formulada pelo primeiro e a natureza e o estatuto da mulher na obra do segundo –, a pesquisadora iça as velas para navegar pelos mares sombrios representados pelas complexas relações estabelecidas no medievo entre justiça, corpo e gênero. A justiça teológica agostiniana e a teoria da justiça em São Tomás de Aquino deságuam em uma análise sobre o papel da mulher na sociedade medieval, entre o sexo e o prazer, de um lado, e a fogueira purificadora da Inquisição – que de Santa nada tinha, como sabemos – de outro.

    Ao investigar o período que intitula Maioridade da Civilização, Joice debruça-se sobre o movimento Iluminista e os argumentos utilizados pelo pensamento liberal para a exclusão das mulheres. Dos contratualistas aos marxistas, a autora empenha-se em demonstrar que o pensamento, enquanto categoria abstrata, sempre exerceu forte influência sobre a posição das mulheres no mundo concreto, o que persiste – como a realidade brasileira pós-impeachment da presidenta democraticamente eleita Dilma Rousseff evidencia com bastante contundência – até os dias atuais. Nesse sentido, como alerta na sua introdução ao livro, a autora não pretende apenas listar pérolas da misoginia para um museu de curiosidades do passado, mas compreender de que forma episódios como os que recente e reiteradamente vivenciamos no Brasil – golpes políticos, assassinatos (#MariellePresente), estupros coletivos, violência doméstica, discriminação no mercado de trabalho etc. – repristinam, cada um a seu jeito, violências que estão diretamente relacionadas ao papel relegado às mulheres no contexto sociopolítico. E mais: à luz de discursos e argumentações que encontram eco na filosofia jurídica e política.

    Sem se deixar abater pelos inúmeros exemplos citados, a professora Joice Nielsson atraca, finalmente, no pensamento feminista do século XX: partindo do Feminismo Liberal das décadas de 1960-1980, do Feminismo Radical e da denúncia da opressão sexual que lhe subjaz, passando pelo Feminismo Socialista e pelos enfoques de gênero, até chegar à pós-modernidade e o Feminismo da Diferença, a pesquisadora, ao propugnar o repensar e o problematizar dessa diferença em prol de um feminismo inclusivo e plural, faz-nos compreender que, ao lado dos discursos patriarcalistas ditos oficiais – e, justamente por serem patriarcalistas, vencedores, já que essa lógica não se sustenta senão em um cenário de luta –, há muitas outras manifestações teóricas e práticas, plurais, multifacetadas, que foram produzidas principalmente por pensadoras mulheres e que servem para ilustrar a construção de espaços de resistência que evidenciam que o direito e a filosofia não necessariamente se constituem como discursos de legitimação da desigualdade.

    Dentre os inúmeros méritos da obra que tenho o prazer de prefaciar, este me parece o principal: demonstrar, como o faz Michel Foucault (2012), que as formas de resistência – no caso, representadas pelo pensamento feminista – não assumem a forma de uma Grande Recusa, mas se apresentam, ao longo da história, no plural. Elas são possíveis, necessárias, improváveis, espontâneas, selvagens, solitárias, planejadas, arrastadas, violentas, irreconciliáveis, prontas ao compromisso, interessadas ou fadadas ao sacrifício. Independentemente disso, essas resistências não podem existir a não ser no campo estratégico das relações de poder.

    Com efeito, a presente obra evidencia que todas essas formas de resistência estão distribuídas no tecido social de modo irregular, disseminando-se com mais ou menos densidade no tempo e no espaço, provocando, não raras vezes, o levante de grupos ou indivíduos de forma definitiva – o Feminismo Radical e a denúncia da opressão sexual que o digam.

    É comum, como demonstra a autora nestas páginas, que esses pontos de resistência sejam móveis, transitórios, e que introduzam na sociedade clivagens que se deslocam, rompendo unidades e suscitando reagrupamentos, percorrendo os próprios indivíduos, recortando-os e remodelando-os, enfim, traçando no seu corpo e na alma regiões irredutíveis. Em suma, essas formas de resistência configuram-se como singulares, dado que representam práticas de contestação dos dispositivos que obrigam os indivíduos a acatar identidades pré-constituídas e a se colocar em espaços de controle predispostos.

    Que tod@s aqueles – felizes – leitor@s que acessarem esta obra gozem do mesmo prazer que tive ao lê-la e prefaciá-la. E que a autora, minha amiga, Joice, siga produzindo com tamanha intensidade e qualidade. A academia – e o mundo além dos seus muros – agradecem!

    Inverno de 2018.

    Maiquel Ângelo Dezordi Wermuth

    Doutor em Direito Público pela Unisinos; professor dos cursos de Direito da Unijuí e Unisinos; professor-pesquisador do mestrado em Direitos Humanos da Unijuí.

    REFERÊNCIA

    FOUCAULT, Michel. História da Sexualidade I: a vontade de saber. Trad. Maria Thereza da Costa Albuquerque e J. A. Guilhon Albuquerque. 22. Impr. Rio de Janeiro: Graal, 2012.

    APRESENTAÇÃO

    As reflexões sobre o tema da justiça possuem uma longa trajetória histórica. Esse percurso teve início nas contribuições dos filósofos gregos clássicos, passou pelos formuladores do pensamento da Igreja e chegou à filosofia moderna e contemporânea. A presente obra não se afasta dessa tradição consolidada. Portanto, o presente livro não foge da melhor tradição da filosofia e de seus parâmetros mais sólidos já historicamente estabelecidos.

    Apesar da manutenção dessa reconstrução tradicional, esta obra é extremamente inovadora. A singularidade do livro pode ser constatada não no seu trabalho competente de reconstrução histórica do pensamento sobre o tema da justiça, mas sim na especificidade do seu olhar: o olhar das mulheres e, de forma mais específica, da perspectiva de gênero. De fato, esse deslocamento permite uma reapresentação diferente do olhar tradicional e uma revisita diferenciada ao pensamento dos principais teóricos da justiça.

    Além disso, o deslocamento realizado revela que as formulações teóricas sobre o tema da justiça se apresentam, ao longo da história, como sendo uma preocupação quase que exclusivamente masculina. Em consequência, torna-se possível afirmar, como tão bem demonstra a autora, que as construções teóricas sobre a justiça foram historicamente uma forma de pensamento pretensamente neutro, objetivo e universal. Portanto, sem qualquer singularidade e sem identidade de gênero. Essa é uma primeira contribuição importante da obra.

    Mas as novidades não param por aí. Joice avança em sua análise e indica que mesmo na maioridade da civilização (no mundo moderno e contemporâneo), apesar da reinvindicação por individualidade, defesa da autonomia dos sujeitos e da declaração recorrente de direitos humanos, a filosofia continuou excluindo as mulheres de suas formulações e negligenciando a questão de gênero. Mas agora já com muitas contradições e com a abertura para emancipação das mulheres e novas perspectivas de realização humana.

    Esse panorama somente começa a mudar de forma mais consistente, contudo, nas primeiras décadas do século XX, quando surgem os primeiros movimentos feministas. A partir desse momento, as mulheres conseguem colocar na agenda política a luta pela igualdade de direitos civis, políticos e educativos, até então reservados aos homens. Na sequência, surgem as primeiras formulações teóricas do feminismo e passa a ser revelada a denúncia sobre a opressão histórica que sofreram as mulheres.

    Assim, tem início uma grande mudança histórica: o momento de emancipação das mulheres (talvez o maior acontecimento político e social do século XX) e impulsiona o movimento feminista. De fato, os novos ciclos do movimento feminista vão rapidamente se consolidar e ganhar diversas roupagens, sendo, às vezes, convergentes e, em outras, bastante contraditórios. Mas o mais importante é sua contribuição, como demonstra a autora, para o debate sobre vários temas importantes, em especial para o tema da justiça e da necessidade de igualdade de gênero. Além disso, fica evidente também a constatação de que os diversos movimentos possuem um ponto de partida convergente: a necessidade de apresentar a constatação de que as mulheres, pelo simples fato de serem mulheres, foram historicamente discriminadas em diversos âmbitos da vida, e que isso precisa urgentemente ser alterado.

    A partir dessa constatação comum, o feminismo passa a reivindicar (o que a autora apresenta claramente) um olhar diversificado (de gênero) sobre os principais temas políticos e jurídicos da atualidade. Isso significa que as diferenças devem ser consideradas, mas não – defende Joice – como uma fratura, e sim como uma forma distinta (portanto, plural) de entender o mundo. Isso significa que é fundamental para a defesa da igualdade o respeito à diferença.

    É desse lugar que o tema da justiça deve ser historicamente recontado e presente e futuramente construído. Esse é o grande desafio do século XXI e que a autora apresenta a todos nós como uma perspectiva fundamental para a conformação de um mundo mais justo e igualitário. Dito de outra forma, um mundo que seja mais diversificado e voltado à emancipação das mulheres e de outras formas de gênero. Um desafio, portanto, extraordinário, mas fundamental.

    Devido a todas essas contribuições, o presente livro deve ser lido com atenção e cuidado por todos os interessados em construir um mundo melhor, com menos discriminações, opressões e subordinações. Um mundo, em poucas palavras, democrático e plural.

    Boa leitura a todos.

    Gilmar Antonio Bedin

    Doutor em Direito do Estado

    Sumário

    1

    introduçÃo

    2

    A GENEALOGIA DA BUSCA POR JUSTIÇA E A QUESTÃO DE GÊNERO: da Antiguidade à Idade Média

    2.1 Traços da antiguidade: os aportes gregos de Platão e Aristóteles

    2.1.1 A natureza, o estatuto e a função das mulheres na teoria da justiça de Platão

    2.1.2 A natureza e o estatuto da mulher em Aristóteles

    2.2 Idade Média, justiça, corpo e gênero: desvelando complexas relações

    2.2.1 A justiça teológica de Agostinho de Hipona e a ideia de justiça em Tomás de Aquino

    2.2.2 Sexo, corpo e prazer: a mulher no medievo, as bruxas e o fogo da Inquisição

    3

    JUSTIÇA E GÊNERO NA MAIORIDADE DA CIVILIZAÇÃO

    3.1 O Iluminismo e os argumentos liberais para a exclusão das mulheres

    3.1.1 Thomas Hobbes

    3.1.2 John Locke

    3.1.3 Jean-Jacques Rousseau

    3.1.4 Immanuel Kant

    3.2 Modernidade e feminismo

    3.2.1 O Iluminismo consequente

    3.2.2 As mulheres como sujeitos da prática política: a reivindicação de direitos

    3.3 O século XIX e o sufragismo

    3.3.1 O movimento sufragista americano: distintas forças políticas e intelectuais

    3.3.2 O liberalismo utilitarista

    3.3.3 O marxismo e as mulheres trabalhadoras

    4

    O SÉCULO XX E A JUSTIÇA FEMINISTA: TEORIAS COM PERSPECTIVA DE GÊNERO

    4.1 O século XX e o feminismo

    4.1.1 O feminismo liberal das décadas de 1960, 1970 e 1980

    4.1.2 O feminismo radical e a denúncia da opressão sexual

    4.1.3 O feminismo socialista

    4.1.4 Feminismo e o enfoque de gênero 

    4.2 A pós-modernidade e o feminismo da diferença

    4.2.1 O enfoque ético psicológico da diferença: o pensamento maternal e a ética do cuidado

    4.2.2 A pós-modernidade e o pensamento feminista

    4.2.3 A diferença dentro da diferença

    4.2.4 Repensar a diferença: em direção a feminismos inclusivos e plurais

    CONSIDERAÇÕES FINAIS

    REFERÊNCIAS

    1

    introduçÃo

    Este livro realiza uma análise da complexa e paradoxal relação entre justiça e gênero, desde as teorias da Antiguidade até o final do século XX. Desde o período clássico da civilização, a ideia de justiça tem intrigado e mobilizado pensadores e filósofos, buscando uma resposta a uma inquietação elementar: qual a melhor forma de vivermos juntos? Lado a lado com os debates sobre justiça caminham as construções sociais e patriarcais de gênero, a origem mais antiga, universal e poderosa de muitas conceitualizações moralmente valoradas do que nos rodeia. Apesar disso, o pensamento sobre justiça sempre foi, pretensamente, um pensamento sem gênero, um pensamento neutro e universal. No entanto, pode-se questionar: tem gênero a justiça? E se tiver, o que o gênero da justiça tem a nos dizer?

    Pensar a justiça como produtora e reprodutora de gênero implica a utilização de um referencial teórico composto do campo denominado de estudos de gênero. A utilização do gênero, nesse sentido, faz referência a um conceito construído pelas ciências sociais nas últimas décadas para analisar a construção sócio-histórica das identidades estáticas masculina e feminina como únicas possíveis. A teoria afirma que entre todos os elementos que constituem o sistema de gênero existem discursos de legitimação ou ideologia sexual. Esses discursos legitimam a ordem estabelecida, justificam a hierarquização dos homens e do masculino e das mulheres e do feminino, criam discursos para definir o que cada um desses polos, a fim de enquadrar os indivíduos neles, e encobrem todas as demais formas de manifestação sexual e identitária de gênero em cada sociedade. São sistemas de crenças que especificam o que é característico de um e outro sexo, como se somente tal manifestação binária fosse possível e legítima, e, a partir daí, determinam os direitos, os espaços, as atividades e as condutas próprias de cada um.

    A adoção da perspectiva de gênero e das epistemologias feministas permite denunciar a aparente neutralidade da produção do conhecimento, como se o sujeito que conhece fosse um agente externo ao processo de conhecer, pudesse abstrair-se de si mesmo e extrair dados objetivos e verdadeiros, universais. Seguindo Haraway (1995), não existe tal possibilidade: quem conhece o faz sempre a partir de uma posição situada, envolvendo nas coordenadas de seu tempo as condições das possibilidades históricas que permitem e produzem o conhecimento. Portanto, a partir da perspectiva de gênero, a pesquisa feminista traduz uma maneira de ser e de observar o mundo que ultrapassa os objetivos científicos e carrega uma proposta de mudança contextual, a partir de questionamentos que acompanham a própria formulação das perguntas ao longo do processo de investigação. De todas as perguntas, aquela sobre a ideia de justiça torna-se fundamental.

    A justiça é, possivelmente, um dos temas mais discutidos, debatidos e intrigantes da história humana, sobre o qual milhares de anos não conseguiram apontar uma base de argumentos ou fundamentos comuns. Está no centro da filosofia política desde A República de Platão, na qual Sócrates (1975, p. 98) já afirmava: Que outro assunto além deste uma pessoa sensata preferiria tratar com mais frequência em sua conversa?. É uma questão antiga, porém atual, que tem de ser sempre respondida novamente, e de certo modo não apenas no que se refere ao conteúdo normativo, mas também com relação à fundamentação, questionando como podem ser justificadas as normas que legitimam as relações jurídicas, políticas e sociais no interior de uma comunidade política. Na contemporaneidade, seu estudo assume especial relevância diante das consequências de um cenário de globalização que aproxima e expõe à convivência culturas e povos, essencialmente diferentes, e com as mais variadas práticas tradicionais de vida. Tal cenário torna imprescindível que voltemos nosso olhar às teorias sociais e políticas que possam explicar nossa existência coletiva, afinal, são essas teorias que fundamentam as normas e o convívio em sociedade e o direito e influenciam nossa autocompreensão de quem somos e dos motivos pelos quais vivemos juntos.

    Questões de justiça são, portanto, questões de justificação. Justificação no sentido normativo, de modo que as razões para escolher e agir de certas maneiras dependem dos melhores argumentos disponíveis, e esses assumem um sentido determinado no âmbito das teorias de fundo mais amplo. São as teorias da justiça que geram os critérios do julgamento sobre a ordem política ou, de modo mais geral, sobre a sociedade bem-ordenada, discorrendo sobre instituições, práticas sociais, escolhas coletivas e normas que, numa variedade essencial de contextos, constituem seu objeto. Portanto, são também as teorias da justiça que podem fornecer as respostas aos dilemas enfrentados pela nossa existência e convivência comum e coletiva, tendo em vista que as sociedades humanas, separadas no tempo e no espaço, adotam padrões valorativos, morais e jurídicos diferentes.

    O discurso filosófico sobre justiça, produzido a partir das mais diversas matrizes teóricas, tem servido, ao longo de sua história, para justificar a hierarquização da sociedade a partir de diferenças biológicas, principalmente, aquelas entre os sexos. Mas é também esse campo teórico que pode constituir-se em um discurso capaz de impugnar, criticar, desestabilizar e mudar tais relações injustas e opressivas. Em outras palavras, a ideia de justiça tem, ou pode ter, um caráter ideológico, mas pode também possuir um potencial emancipatório que reside em sua força crítica. Essa mudança de perspectiva pode ser viabilizada a partir da perspectiva metodológica introduzida pelos estudos de gênero.

    Nesse caminho, o percurso desta obra analisa a vinculação entre gênero e justiça, percorrendo as etapas historicamente desempenhadas, e que ainda hoje se constituem em tarefas de uma filosofia feminista, conforme a delimitação de Alicia Puleo (2000): 1) genealogia e desconstrução, 2) constituição de um corpus filosófico não sexista; 3) reconhecimento das mulheres filósofas; e 4) análise de argumentos e posicionamentos teóricos nos debates internos das propostas filosóficas e de justiça não sexistas que compõem um pensamento feminista no âmbito da filosofia, gerando teorias próprias que debatem entre si.

    A possibilidade que temos hoje de lançar um olhar crítico em relação ao discurso jusfilosófico tradicional foi cunhada a partir do (re)nascimento da luta do movimento feminista nos anos 1960. Essa tarefa implica a aplicação da perspectiva crítica dos estudos de gênero aos textos do corpus consagrado e consiste em partir do discurso existente, analisá-lo e desconstruí-lo, seguindo sua genealogia. Mediante esse trabalho, pôde-se manifestar uma das características do patriarcado como forma de poder, que é a capacidade que tem para definir os espaços do feminino.

    Sob essa perspectiva, a busca pelo que disseram Aristóteles, Agostinho ou Kant sobre as mulheres deve-se à influência (para o bem ou para o mal) do pensamento desses filósofos na prática social e política atual. O que se pretende nesta tarefa não é apenas listar pérolas da misoginia para um museu de curiosidades do passado, mas sim, nos termos de Puleo (2000), entender nosso presente, compreender por que chegamos onde estamos, que mecanismos teórico-práticos permitem nossa organização social, e que tipo de discursos e argumentações tem sido feito sobre isso desde a filosofia jurídica e política.

    Uma vez que as ideias de justiça influenciam a organização e nossa percepção do real, conhecer o que os nomes consagrados da filosofia ocidental afirmaram sobre as mulheres permitirá perceber de maneira mais clara nossa história e nosso presente, e nos possibilita compreender o que Puleo (2000) chama de cara simbólica das relações concretas. As relações de poder concretas e a distribuição dos papéis e do status em nossa sociedade têm uma matriz simbólica, um discurso que as justifica e retroalimenta. O discurso jusfilosófico forma parte substancial da rede de relações de poder.

    A proposição de analisar criticamente o corpus oficial das ideias de justiça deve levar em consideração que a história oficial da filosofia é sempre a história dos vencedores, e portanto uma história patriarcal. Seu corpus oficial está constituído por obras que justificam a ordem que se quer perpetuar, e aqueles pensadores e pensadoras que não aceitam a perpetuação da dicotomia masculino/feminino excludente tal como se presentava são invisibilizados dessa história. A história oficial da filosofia do direito, configurada pelo corpus consagrado, vai sendo formada com o conjunto de todos aqueles textos que não criticam e não impugnam essa hierarquia explícita ou implícita dos sexos.

    Surge, assim, a necessidade de aprofundarmos a segunda tarefa apontada por Puleo (2000), a constituição de um corpus filosófico e jurídico não sexista. O objetivo nesse caso é demonstrar que, paralelas aos discursos oficiais vencedores, há muitas outras manifestações teóricas e práticas, muitas vezes díspares ou críticas àquelas, produzidos inclusive por mulheres pensadoras. Nem sempre o direito e a filosofia têm sido discursos de legitimação da desigualdade. Ao contrário, como pensamento que busca pautar e transcender a realidade, têm sido capazes de gerar textos críticos, emancipatórios do ponto de vista das classes, das raças e dos gêneros, mas esse conjunto de obras é, justamente, o que a história oficial não conta.

    Isso nos remete à terceira tarefa, reconhecimento das filósofas e das pensadoras mulheres nas mais diversas áreas do conhecimento. Podemos perguntar em primeiro lugar: têm havido juristas e filósofas? Os manuais dirão que não, pois o corpus jusfilosófico tradicional é totalmente masculino. Hoje, graças ao movimento e à teoria feminista, começamos a reconhecer figuras e saberes desprezados.

    Todas essas tarefas de uma filosofia feminista serão desenvolvidas no decorrer destas páginas, até alcançarem a mudança estrutural representada pela ascensão do movimento feminista, principalmente na segunda metade do século passado. A partir de então uma nova tarefa se apresenta: averiguar e perpassar o debate interno promovido por teorias da justiça que incorporam a perspectiva de gênero e que são, fundamentalmente, mas não exclusivamente, propostas por mulheres. Com Benhabib e Cornell (1987) poderíamos afirmar que essa se constitui em uma tarefa de reconstrução teórica e aponta para um recorte temporal importante na constituição deste livro: a opção por abordar tais debates até a década final do século XX. Uma análise dos caminhos das teorias da justiça e da jusfilosofia feminista no século XXI demandaria um projeto próprio, que certamente só poderá ser levado a cabo a partir da retrospectiva aqui desenvolvida.

    Segundo Benhabib e Cornell (1987, p. 7), a última metade do século passado levou a uma significativa reestruturação de nossa tradição teórica a partir de uma perspectiva feminista, e após uma fase inicial de ‘desconstrução’, a tradição intelectual ocidental, na qual os teóricos feministas revelaram a cegueira de gênero, assim como as tendenciosidades dessa herança, começou a tarefa de ‘reconstrução’ teórica sob a perspectiva de gênero. Trata-se da elaboração de teorias ao calor de debates internos que afetam particularmente a práxis e a organização social humana do futuro. Essa tarefa, como se verá, foi levada a sério por pensadoras e tem refletido sobre muitos temas importantes: gênero e sexualidade como construções sociais, e não meras essências ontológicas, a questão da constituição das identidades e dos sujeitos; a redefinição das noções de democracia e cidadania, a polêmica entre igualdade e diferença, entre redistribuição e reconhecimento, universalidade ou particularismos culturais, a objetividade da ciência, dentre outros temas que daí afloraram.

    Tal é o percurso teórico e histórico percorrido neste livro, cujo objetivo maior consiste, por fim, em contribuir para a necessária reflexão crítica em torno de nossa práxis jusfeminista. Em um momento conturbado como o que se vivencia nestes anos finais da segunda década do século XXI, com um processo de avanço do conservadorismo, do fascismo, das práticas tradicionais patriarcais, machistas, misóginas, discriminatórias, e paralelamente, do avanço do neoliberalismo econômico e da fragilização dos laços e direitos sociais que têm vitimado, especialmente, mulheres e sujeitos historicamente discriminados.

    Diante desse contexto de retrocesso que assola não só o Brasil mas o mundo, a missão que se apresenta, e para a qual a presente reflexão pretende contribuir, constitui-se em recuperar o potencial crítico e anti-hegemônico do feminismo, tornando-o capaz de simbolizar um projeto emancipatório capaz de fazer frente a toda espécie de opressão.

    2

    A GENEALOGIA DA BUSCA POR JUSTIÇA E A QUESTÃO DE GÊNERO: da Antiguidade à Idade Média

    Durante milênios, o modelo de organização social predominante no mundo ocidental foi a compreensão antiga e medieval de uma sociedade marcada pela desigualdade, com espaços privilegiados e inalteráveis, distribuídos de acordo com uma rede de privilégios organizados no âmbito das relações privadas. Esse modelo foi justificado de várias formas pelas mais diversas teorias da justiça, as quais institucionalizaram a grande divisão entre masculino e feminino, incluindo aí seus papéis e seu status, a partir de uma legitimação essencialmente teológica e metafísica.

    Diante desse cenário, este capítulo inicial tem um caráter genealógico, e sua proposta é realizar uma retomada histórica que remonta à antiguidade grega e ao medievo e aos principais textos e

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