A Ética do Sentido da Vida: Fundamentos Filosóficos da Logoterapia
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A Ética do Sentido da Vida - Ivo Studart Pereira
1. O mundo e o sentido
Numa época em que já não se consegue mais encontrar o sentido incriável, as pessoas passam a considerar o absurdo como a única coisa que podem criar por si mesmas. [...] Fazemos um teatro do absurdo para podermos, pelo menos, embebedarmo-nos de falta de sentido. Porque esta, sim, pode ser fabricada; e a fabricamos ad nauseam (FRANKL, 2003b, p. 47).
A acepção do termo sentido
constitui, em nosso entendimento, a pedra angular sobre a qual se alicerça a visão de mundo subjacente à logoterapia. Lamentável é o fato de que este mesmo vocábulo também seja fonte das mais diversas formas de apropriação indevida do sistema construído por Viktor Frankl e discípulos. Em boa parte das publicações sobre o assunto, o mencionado conceito é tomado como pressuposto vago, o que tem ensejado toda uma série de críticas infecundas e pouco embasadas. A própria polissemia do termo, identificada nas mais diversas acepções (direcionamento, justificação, propósito, revelação etc.) parece, também, tornar o tema ainda mais obscuro. Recorreremos, no entanto, à própria letra de Frankl a fim de esclarecer nosso ponto de partida.
Na base mesma da visão de mundo da logoterapia, existe a distinção de um par dialético fundamental, o qual engendra outros dois. O mundo em que o homem existe é atravessado pela dualidade do possível e do real, tensão essa no interior da qual surgem as condições do mutável e do imutável e do destino e da liberdade. A distinção entre esses pares nos serve como ponto de partida para entender o que Frankl quis designar como sentido
. Lukas (1989b) define o real como o conjunto de todas as possibilidades do mundo realizadas até agora: o reino do real é idêntico ao que é
(p. 155). O reino do possível é caracterizado como o pré-estágio do ser
, isto é, o plano de todas as possibilidades do mundo ainda não realizadas, num conjunto que inclui as possibilidades que se incorporarão ao ser mais as possibilidades que fluirão para o nada, perdendo suas condições de atualização. O nada aí se caracteriza como o impossível, incluindo tanto aquilo que nunca figurou como possibilidade, quanto as possibilidades que se extinguiram no não-realizar-se
. Conforme se vê na figura 1, o fluxo do tempo se orienta, univocamente, do possível para o real, não ao contrário, demonstrando a fugacidade própria do possível, que urge pelo ser
, assim como numa espécie de horror vacui, segundo a imagem proposta por Frankl.
Figura 1 (LUKAS, 1989b, p. 154)
Para a fiel compreensão do esquema acima, deve-se explicitar o pressuposto mesmo da liberdade da vontade humana,⁷ princípio esse decorrente da concepção antropológica da logoterapia, a qual, incluindo em sua imago hominis a dimensão noológica (ou espiritual), defende a dialética de uma autodeterminação do ser humano por sobre seus inelimináveis condicionamentos biológicos e psíquicos. Como condição residual – e, para Frankl, especificamente humana – surge a inescapável condição de liberdade, de faculdade de decisão. Isto é, o homem tem a capacidade de vislumbrar e atualizar as possibilidades que se lhe apresentam em um determinado momento de sua vida, bem como deve encarar o que aparece a ele como destino
, como o inexorável.⁸
A ontologia do tempo
da logoterapia traduz o que Frankl entendeu por respeito ao passado
(FRANKL, 1978), ou otimismo do passado
(FRANKL, 2005). Afirma ele que a crença da maioria dos homens sobre o tempo (isto é, a concepção de que o tempo escoa do futuro, através do presente, para o passado) é duplamente errônea. Usando uma metáfora geológica, o autor afirma que o que se vê mais facilmente, no fluxo temporal, é a erosão, a lima do tempo
. Mas o que sempre se esquece é de que essa erosão
também implica acúmulo, pois tudo o que já passou, tudo que ocorreu, todas as decisões humanas são salvas da transitoriedade pela guarda eterna do passado: o tempo flui, mas o acontecimento "se coagula em forma de história. Nada que aconteceu pode ser desfeito. Nada que foi criado pode ser exterminado. No passado, nada está irreparavelmente perdido. No ser-passado está tudo absolutamente preservado" (FRANKL, 1978, p. 150, grifos originais). Diante disso, no jargão da geologia, viveríamos numa perene aluvião.⁹
A outra face da concepção errônea sobre o tempo diz respeito àquela ilusão de ótica
segundo a qual o tempo correria diante de nós, que iríamos ao encontro de um futuro. Frankl, no entanto, defende que, na verdade, nunca atuamos sobre um futuro; atuamos sempre sobre um passado. Ora, o futuro diz respeito às possibilidades a serem atualizadas. A grande questão que aparece aí é a de saber quais desses inúmeros possíveis de cada momento devem chegar ao ser, isto é, de saber que possibilidades devem ser salvas da transitoriedade da vida e incorporadas à estabilidade eterna do ser passado. O que fazemos, a cada instante, é decidir – dentro de nosso espaço livre – o que deveremos incorporar ao nosso patrimônio de vida. Como coloca Frankl (2020, p. 99), não se trata de preservar nada para o futuro, mas, sim, de conservar no passado:
O de que nós precisamos é respeito ao passado, não ao futuro; o passado é inevitável, o futuro, o nosso futuro está à frente da nossa decisão e da nossa responsabilidade. Nesta ótica, fica sem dúvida demonstrado que constitui um erro dizer que somos, perante o futuro, responsáveis pelo passado. Pelo contrário, somos precisamente responsáveis, perante o passado inevitável, pelo futuro decisivo (FRANKL, 1978, p. 151).
Frankl interpreta que, com relação ao tempo e à transitoriedade da vida, o existencialismo, diante da inexistência factual do passado e do futuro, enfatiza o presente, apontando a possibilidade de afirmação da vida a partir de um heroísmo trágico
. No outro extremo, seguindo a tradição de Platão e Santo Agostinho, Frankl lê o quietismo como a afirmação da eternidade – e não do presente – como a verdadeira realidade. A eternidade – permanente, rígida e predeterminada – é a realidade simultânea que abrange presente, passado e futuro, de modo que a sequência temporal que percebemos não passa de uma ilusão de nossa consciência: os fatos não são sucessivos, são coexistentes.
Entre o fatalismo-da-eternidade, presente no quietismo (a realidade já é
, nada mais se pode fazer), e o pessimismo-do-presente da filosofia existencial (a realidade é instável e caoticamente mutável), a logoterapia se posiciona como via média (FRANKL, 2005, p. 94) e elege a imagem da ampulheta como ilustração dessa ideia. A parte superior da ampulheta representa o futuro, a estreita passagem mediana simboliza o presente, e a areia depositada no fundo figura como o passado. O existencialismo veria apenas o movimento da areia na passagem central da ampulheta. O quietismo, por sua vez, veria a ampulheta como um todo, considerando, no entanto, a areia como uma massa inerte que não escorre, mas, simplesmente, ‘é’
(idem).
Para a logoterapia, o futuro não é
, mas o passado é a pura realidade
(idem). Através das falhas da metáfora da ampulheta, Frankl expõe o que acredita ser a essência do tempo. Uma ampulheta pode ser virada quando toda a areia de cima tiver escorrido para baixo. Obviamente, isso não ocorre com o nosso tempo, que é irreversível. Poderíamos sacudir a ampulheta, misturando os grãos de areia e mudando suas posições relativas. Na verdade, só em parte, isso ocorre com o tempo: na parte de cima, podemos sacudir
os grãos e modificar o futuro – no qual e com o qual poderemos, inclusive, modificar a nós mesmos – mas o passado permanece definitivo, como se a areia que caísse no recipiente inferior fosse tratada com um fixador, que solidificasse irrevogavelmente sua posição:
Esta é a razão pela qual tudo é tão transitório: tudo é passageiro porque tudo foge da nulidade do futuro para a segurança do passado! É como se cada coisa estivesse dominada por aquilo que os físicos antigos chamavam de horror vacui, o medo do vazio: é por isso que tudo vai correndo do futuro para o passado, do vazio do futuro para existência do passado. [...] O presente é a fronteira entre a não-realidade do futuro e realidade eterna do passado. Justamente por isso, é a linha ‘demarcatória da eternidade’; em outras palavras, a eternidade é finita: estende-se só até o presente, o momento presente em que escolhemos o que desejamos admitir na eternidade. A fronteira da eternidade é onde, a cada momento de nossas vidas, é tomada a decisão sobre o que queremos eternizar ou não (idem, p. 101).
Essa noção a respeito do ser-passado implica, para Frankl, tanto ativismo quanto otimismo¹⁰ (FRANKL, 2020, p. 50). Ativismo porque o homem, a cada instante, é chamado a fazer o melhor uso possível de cada momento, dando o melhor de si no que vier a fazer, em quem vier a amar ou em como tiver que sofrer. E otimismo porque nada poderá mudar o que foi conquistado a cada instante. Nesse ponto, Frankl cita Lao-Tsé: Quando finalizamos uma tarefa, tornamo-la eterna
(idem). A possibilidade perene da morte não torna vão o esforço para o sentido. Não seríamos simplesmente ser-para-morte, mas ser-para-sentido. Se nossa existência não viesse a possuir limite temporal – se a câmara superior da ampulheta não estivesse, desde o início, destinada a esvaziar-se por completo –, poderíamos, justificadamente, adiar, por tempo indeterminado, qualquer ação. Mas é precisamente por existir um limite temporal último para nossa vida¹¹ – isto é, um limite para a possibilidade de agir – que experimentamos a obrigação de respeitar e aproveitar o tempo, não perdendo de vista as oportunidades de ação que aparecerem. Por isso, é justamente a morte que, dessa forma, confere sentido à nossa vida e à nossa existência como algo único
(FRANKL, 1995, p. 24); a morte constitui o fundo sobre o qual o nosso ser é exatamente um ser responsável
(FRANKL, 1981, p. 75).
Isto é, contra a possibilidade do caráter vão das realizações de sentido, tão bem trabalhadas por alguns existencialistas, como, por exemplo, em Albert Camus (1913-1960), no seu célebre ensaio sobre o suicídio, O mito de Sísifo, Frankl reafirma sua tese sobre a estabilidade do ser-passado: ter-sido é a forma mais segura de ser. Todas as escolhas que transformaram uma única possibilidade de sentido em ser, condenando todas as outras ao não ser, constituem um patrimônio inalienável da pessoa humana, salvas da transitoriedade da vida. Essa foi uma das aproximações teóricas de Frankl com Martin Heidegger (1889-1976). Numa visita deste ao colega vienense, desejando sublinhar o parentesco
de opiniões sobre o tema, Heidegger escreveu no verso de uma foto dedicada a Frankl: "Das Vergangene geht. Das Gewesene kommt"¹² (FRANKL, 1981, p. 112). Para Frankl, o decurso do tempo se mostra ao mesmo tempo como um ladrão
e um fiel depositário
(FRANKL, 2003a, p. 65).
Até o presente momento, servimo-nos de um modelo de duas dimensões, isto é, explicitamos o reino do possível
e o reino do real
. Para a logoterapia, engendra-se a necessidade de uma terceira coordenada – referimo-nos, agora, ao reino dos valores
. Aqui, lidamos com a tensão axiológica que atravessa o ser e o poder-ser, isto é: entre o real e o possível, o que deve
ser?¹³ Lukas (1989b, p. 157) define o reino dos valores como o conjunto de tudo aquilo que deveria ser e vir-a-ser
, revelando-se, conforme a figura 1, supratemporal, pelo fato de não submeter-se ao fluxo do tempo, já que abrange tanto o que é quanto o que pode ser. O modelo de argumentação do presente capítulo pretende explicitar a acepção da categoria sentido
a partir de seu conteúdo axiológico e no contexto da ontologia do tempo
da