Encontre milhões de e-books, audiobooks e muito mais com um período de teste gratuito

Apenas $11.99/mês após o término do seu período de teste gratuito. Cancele a qualquer momento.

Nêumanne Entrevista 2: O Brasil passado a limpo em 35 dedos de prosa
Nêumanne Entrevista 2: O Brasil passado a limpo em 35 dedos de prosa
Nêumanne Entrevista 2: O Brasil passado a limpo em 35 dedos de prosa
E-book472 páginas6 horas

Nêumanne Entrevista 2: O Brasil passado a limpo em 35 dedos de prosa

Nota: 0 de 5 estrelas

()

Ler a amostra

Sobre este e-book

A ideia que Isabel teve na padaria Aracaju, quando me perguntou por que eu não entrevistava Paulo de Tarso Venceslau, sobrevivente do sequestro do embaixador norte-americano no Brasil, Charles Elbrick, deu-me a oportunidade de iniciar uma série que, até agora, reuniu 70 entrevistas publicadas originalmente no Blog do Nêumanne na plataforma virtual do Estadão. Minha mulher deu o nome da série - Nêumanne Entrevista - e também aos dois volumes ora publicados na Almedina. A lista dos entrevistados é eclética e o resultado final, atingido graças à ideia do editor Marco Pace, com quem já tinha trabalhado na Girafa Editora, permitiram-me ter uma amostra razoável de que, mesmo no ambiente de conflito, estupidez, ignorantismo, obscurantismo e sectarismo em que afundou a política e a vida em sociedade no Brasil, ainda é possível transmitir ao leitor a experiência de profissionais da política, das artes e dos esportes com verve, graça e, sobretudo, amor. Isto já é, em si, um grande feito. E também uma nesga de luz, um mínimo raiozinho de esperança de que ainda restará um mundo digno de ser vivido por nosso filho Artur, que começa a viver o segundo ano de sua vida no advento desta nova obra do pai dele.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento1 de set. de 2020
ISBN9788562938498
Nêumanne Entrevista 2: O Brasil passado a limpo em 35 dedos de prosa

Leia mais títulos de José Nêumanne Pinto

Autores relacionados

Relacionado a Nêumanne Entrevista 2

Ebooks relacionados

Artigos relacionados

Avaliações de Nêumanne Entrevista 2

Nota: 0 de 5 estrelas
0 notas

0 avaliação0 avaliação

O que você achou?

Toque para dar uma nota

A avaliação deve ter pelo menos 10 palavras

    Pré-visualização do livro

    Nêumanne Entrevista 2 - José Nêumanne Pinto

    NÊUMANNE ENTREVISTA

    José Nêumanne Pinto

    NÊUMANNE ENTREVISTA

    O Brasil passado a limpo em mais 35 dedos de prosa

    Volume 2

    70

    NÊUMANNE ENTREVISTA

    O BRASIL PASSADO A LIMPO EM MAIS 35 DEDOS DE PROSA – VOLUME 2

    © Almedina, 2020

    AUTOR: José Nêumanne Pinto

    REVISÃO: Marian Gabani

    EDITOR: Marco Pace

    DIAGRAMAÇÃO: Almedina

    DESIGN DE CAPA: Roberta Bassanetto

    FOTO DA CAPA: Alex Silva/Estadão

    ISBN: 9788562938498

    Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

    (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)


    Pinto, José Nêumanne

    Nêumanne entrevista vol. 2: o Brasil passado a limpo

    em mais 35 dedos de prosa: volume 2 / José Nêumanne Pinto.

    1. ed. – São Paulo: Almedina

    Brasil, 2020.

    ISBN 978-85-62938-49-8

    1. Brasil – Políticos – Entrevistas

    2. Comunicação 3. Entrevistas (Jornalismo)

    4. Jornalismo 5. Políticos – Brasil – Entrevistas

    I. Título.

    20-39838 CDD-070.449320


    Índices para catálogo sistemático:

    1. Brasil: Politicos: Entrevistas jornalísticas: Jornalismo 070.449320

    Maria Alice Ferreira – Bibliotecária – CRB-8/7964

    Este livro segue as regras do novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa (1990).

    Todos os direitos reservados. Nenhuma parte deste livro, protegido por copyright, pode ser reproduzida, armazenada ou transmitida de alguma forma ou por algum meio, seja eletrônico ou mecânico, inclusive fotocópia, gravação ou qualquer sistema de armazenagem de informações, sem a permissão expressa e por escrito da editora.

    Setembro, 2020

    EDITORA: Almedina Brasil

    Rua José Maria Lisboa, 860, Conj. 131 e 132, Jardim Paulista | 01423-001 São Paulo | Brasil

    editora@almedina.com.br

    www.almedina.com.br

    DIRETO AO PONTO

    A história é escrita e reescrita ao longo do tempo. Quanto mais distanciada dos fatos, melhor a busca da isenção da narrativa, uma vez que o historiador se distancia das influências conjunturais. A história consiste num corpo de fatos verificados. Primeiro acerte os fatos, só então corra o risco de mergulhar nas areias movediças da interpretação. Os fatos são sagrados, a opinião é livre.

    Conta-se que certa vez um jornalista perguntou a Mao Ze Dong, qual a opinião dele sobre a revolução francesa. O Velho Timoneiro respondeu que nenhuma, porque ela era muito recente... Inúmeras obras foram e são escritas sobre essa revolução e no entanto o tema não se esgota, ainda que os autores tenham opiniões diferentes sobre os mesmos fatos.

    Contudo, entre as fontes da história, está o depoimento dos personagens envolvidos. Suas declarações e afirmações atravessam o tempo e ficam à disposição de novos historiadores. Sofrem novas análises e confirmações, mas são indispensáveis para a reconstrução do passado de um povo, de uma civilização, de uma mudança profunda na sociedade da época. Segundo E. Carr, quando pontos desse tipo são levantados, fazem lembrar a observação de Housman de que exatidão é um dever, mas não uma virtude. O historiador é um ser humano individual. Como outros indivíduos, por exemplo os jornalistas, ele também é um fenômeno social, tanto o produto como o porta voz consciente ou inconsciente da sociedade em que vive. É nesta condição que aborda fatos do passado.

    O historiador pertence não ao passado, mas ao presente. O jornalista vive no presente e alimenta a pesquisa do historiador.

    Os personagens deste livro – e também do volume 1 – fazem parte da mais recente história do nosso país. Os depoimentos aqui registrados são uma contribuição importante do jornalista – de quem sou fã – José Nêumanne Pinto. As entrevistas aclaram episódios da vida política do Brasil e que são desconhecidos de boa parte da população. Se está nos documentos é porque é verdade.

    Heródoto Barbeiro é jornalista da Record News

    APRESENTAÇÃO

    Esta série de entrevistas começou de forma despretensiosa, com um gole de café, um pão na chapa para acompanhar, o burburinho na padaria e talheres em polvorosa para se juntarem às mesas e ao papo dos clientes mais assíduos, como nós. Começou com um conhecido que passa e pergunta pelo Brasil. Se vai pra frente. Se tem jeito. Qual é a opinião do jornalista. Falou, está falado. Tem credibilidade. Muita gente tem a certeza de que Nêumanne tem uma carta na manga, uma notícia de bastidor pronta para mudar os destinos da nação. O ritual no lugar preferido de muitos paulistanos era sempre o mesmo. Muitas vezes, previsível. Como por exemplo, encontrar Paulo de Tarso Venceslau nesse mesmo ruge à procura do pão e de um dedo de prosa. O primeiro entrevistado do blog que serviu de inspiração para este livro foi fisgado neste cenário de conversa comprida, de gritos de espera, faltou dizer mais alguma coisa. Não acabou por aqui. Fique mais um pouco, abraços que não chegam em tempos de Peste e expectativas de mudanças.

    Era abril de 2018. O presidente Jair Bolsonaro já estava à frente do Brasil cansado do desemprego, das promessas de sempre, da corrupção, da política do tapinha nas costas e dos eternos vendilhões da Pátria. Ninguém melhor que um dos fundadores do Partido dos Trabalhadores, lembrado por ter sido o primeiro a denunciar atos de corrupção em administrações petistas, para nos oferecer ampla dimensão da ascensão e derrocada da esquerda brasileira, liderada por Luís Inácio Lula da Silva.

    E não parou mais. O autor foi intimado a continuar sob penas severas e inconfessáveis. Foram setenta entrevistas às quais José Nêumanne Pinto, através da experiência de mais de cinquenta e dois anos de jornalismo, da argúcia, inteligência e dozes cavalares de lucidez, virtude esta motivo de orgulho para o jornalista, que a série de dez perguntas e respostas entrega nas mãos do leitor uma radiografia do País, sobretudo destes últimos dois anos. Não há dúvidas de que o prestígio e a credibilidade do entrevistador contribuíram para que tivesse a melhor cepa de entrevistados em seu currículo. A presente obra é prova inconteste de como o autor foi capaz de juntar gente da política, do judiciário, da cultura, das artes, do jornalismo, da diplomacia e do meio acadêmico. Nomes como Modesto Carvalhosa, José Paulo Cavalcanti Filho, Rubens Ricupero, José Murilo de Carvalho, Mary Del Priore, Mayana Zatz, Flávio Tavares, Romeu Tuma Junior, José Mario Pereira, Walter Maierovitch, além de todos os outros, nos dão a exata dimensão de como o nosso Brasil do futuro terá sempre o passado de erros recorrentes como guia, que se arrasta neste tempo presente e agoniza à sombra de uma pandemia.

    Ao currículo de Nêumanne Pinto, na condição de entrevistador, o Programa Roda Viva o consagrou definitivamente aos 4 dias do mês de abril de 2016, quando perguntado pelo Ministro do Supremo Tribunal Federal, Marco Aurélio Melo, se o jornalista não acreditava na nossa Suprema Corte. A resposta veio rápida e se eternizou na história dos programas de entrevista de que se tem notícia: Não, eu não acredito. A repercussão daquele dia reverbera até hoje, sobretudo quando os membros do STF se equivocam em alguma decisão tomada, através de vídeos editados centenas de vezes, por gente de todo o Brasil. Pelo visto, o escritor, jornalista e poeta não ficará devendo nada aos seus ídolos na arte das perguntas e respostas, a começar por Chico Maria, delegado paraibano que permutava as inquirições de revólver na cintura aos papos inteligentes com seus entrevistados, na TV Borborema. Tampouco ao astro da CNN americana, Larry King, que chegou a bater a marca invejável de 35 mil entrevistas. O leitor de Nêumanne Entrevista será prova inexorável desta afirmação. Que venham mais 70, poeta.

    Isabel de Castro Pinto, historiadora

    SUMÁRIO

    José Augusto Guilhon de Albuquerque

    Marina Colasanti

    Walter Fanganiello Maierovitch

    Hildeberto Aleluia

    Xico Graziano

    Coronel José Vicente

    Marcellus Ferreira Pinto

    Leo Chaves

    Fernando Coelho

    Malu Ribeiro

    Astier Basílio

    Romeu Tuma Jr.

    Isabel Lustosa

    Carlos Hugo Studart

    Joaci de Góes

    Edilson Martins

    Miguel Reale Júnior

    Tabata Amaral

    Flávio Tavares

    Fred Navarro

    Gaudêncio Torquato

    Mayana Zatz

    Carlos Alberto Di Franco

    Silvio Meira

    Denise Frossard

    René Ariel Dotti

    Bruno Dantas

    José Murilo de Carvalho

    Thaméa Danelon

    Eliana Calmon

    Cezar Benevides

    Rubens Barbosa

    Rubens Ricupero

    Chico Pereira

    Oriovisto Guimarães

    JOSÉ AUGUSTO GUILHON DE ALBUQUERQUE

    13 de dezembro de 2018

    Para Guilhon, Bolsonaro ganhou porque prometeu acabar com tudo o que, em cinco anos de indignação popular, não mereceu resposta da elite política.

    Para o especialista em ciências políticas paraense, radicado em São Paulo, José Augusto Guilhon de Albuquerque, o capitão e deputado Jair Bolsonaro ganhou a disputa eleitoral em outubro porque foi o único que, em vez de dizer ‘vou fazer o mesmo de sempre, só que melhor, mais bonito ou mais radical’, disse que ia acabar com tudo o que, em cinco anos de indignação popular, não mereceu resposta da elite política. O professor titular aposentado da USP analisou em profundidade a cena política nacional, tema de sua especialidade, desde os movimentos de rua há cinco anos até a eleição de dois meses atrás. Ao explicar por que as massas que saíram à rua não se mobilizaram, como era de esperar, em torno do impeachment de Dilma, ele ponderou: A aprovação das massas foi silenciosa porque já estava rouca de se esgoelar em vão. Note-se que o impeachment só foi encaminhado pelo PSDB quando se tornou evidente que o tapetão não garantiria a posse de Aécio sem uma nova eleição, mas não em resposta aos 80% que rejeitavam Dilma, e continuaram rejeitando o seu legítimo herdeiro, Temer, o que mostra o grande consenso popular, e não a divisão radical da sociedade. A imensa maioria busca a mesma coisa: menos desgoverno, menos politicagem, menos privilégios, menos incompetência, menos roubalheira.

    4

    Professor Guilhon acha que, em 2013, o povo disse estar por aqui com a política e os políticos, com o modo como somos tratados pelas elites dirigentes.

    Foto: Hélvio Romero/Estadão.

    Nascido em 19 de dezembro de 1940, em Belém do Pará, José Augusto Guilhon de Albuquerque viveu em diferentes cidades dos estados do Rio, do Espírito Santo, de São Paulo e, no exterior, em Washington D.C. e em Londres. É doutor em Sociologia pela Université Catholique de Louvain, professor titular aposentado da USP, atualmente pesquisador sênior no Núcleo de Pesquisa em Relações Internacionais da USP, senior research fellow do Wong Center for the Study of Multinational Corporations e diretor da Sobeet, a Sociedade Brasileira de Estudos de Empresas Transnacionais e da Globalização Econômica. Fundou e dirigiu o Departamento de Ciência Política da USP, serviu como chefe de gabinete da Reitoria da USP e em todos os níveis de governo, municipal, estadual e federal. Sua área de pesquisa tem foco na política brasileira doméstica e internacional, especialmente nas relações Brasil-EUA e Brasil-China. Publicou várias dezenas de artigos acadêmicos e algumas dezenas de livros em diversas línguas. Tem colaborado em todos os jornais de tiragem nacional e nas principais revistas semanais, e atua como convidado em programas nos principais canais de TV e rádio.

    Nêumanne – Qual foi, em sua opinião, o estopim que fez a classe média perder a paciência de vez com o tratamento dispensado pelo Estado brasileiro à sociedade de forma estroina, desleixada e insensível, levando-a a protestar em massivas manifestações de rua em 2013?

    José Augusto Guilhon – Qual estopim? No caso não acha que seriam inúmeros? Ou gota d’água, por que basta uma? Toda a população estava naquela atitude de "ras-le-bol, como diziam os franceses e, pelo visto, continuam dizendo, ou seja, estamos por aqui com todo tipo de governo, por aqui com a política e os políticos, por aqui" com o modo como somos tratados pelas elites dirigentes. Motivo não faltava para derramar a indignação e a revolta generalizadas. Saber por que o aumento das tarifas de transporte simbolizou a revolta ainda é tema para pesquisa, mas saber por que a classe média saiu na frente e por que seu desabafo calou fundo nos restantes 99% do povo suscita algumas hipóteses. A minha é de que, contrariamente às regalias que compartilha com as classes dirigentes – em seguridade, educação superior e atendimento médico, para dar alguns exemplos incontestáveis –, o descaso, o arbítrio, a verdadeira extorsão fiscal a que é submetida a classe média vem compartilhando, cada vez, mais como o povo em geral. Com isso a mensagem das ruas disse em alta voz o que a grande massa da população queria ouvir... e aprovou.

    "Povo quer menos

    privilégios, menos

    incompetência

    e menos

    roubalheira."

    N – Por que, a seu ver, mesmo tendo respondido de forma absolutamente alienada e inconvincente, propondo um programa absurdo de cinco falsos pactos, o principal alvo de tal ataque, a presidente à época, Dilma Rousseff, do PT, ao lado de seu companheiro de chapa, Michel Temer, do então PMDB, ainda venceu a eleição, embora por margem reduzida, contra o adversário Aécio Neves, do PSDB?

    JAG – Dois processos que ocorreram simultaneamente, e, em parte, se reforçaram, parecem ter dado origem tanto à autofagia do governo Dilma quanto à sua reeleição, apesar disso. E também ao suicídio da coalizão de centro-direita que fora bem-sucedida na era do Plano Real e levou ao desastroso desfecho das últimas eleições: o sucesso de um aventureiro, calçado numa campanha populista de direita, que alardeia profunda admiração por ideias de exercício do poder popular por via de corporações e democracia direta, com grande desconfiança com relação aos canais institucionais de representação.

    Refiro-me à absoluta recusa da classe política – governo Dilma incluído – de olhar para as ruas e ouvir sua mensagem. Essa omissão dolosa, e não apenas culposa – uma vez que a primeira obrigação da classe política é representar no poder os interesses e demandas do povo soberano –, pode ser simbolizada pelo fato de que, diante das primeira reações de desconforto por sua presença nas ruas, os partidos e os detentores de mandato popular fugiram quase todos da rua.

    Na revista Interesse Nacional, que avaliava os resultados das eleições de 2014, publiquei um artigo intitulado O recado (mudo) das urnas, que concluí com o seguinte alerta: "Restam três caminhos até 2018. O primeiro consistiria em vislumbrar, no decorrer dos próximos quatro anos, lideranças que encarnem a ‘nova política’ – cujo conteúdo ainda terá que ser construído – e acenem com compromissos críveis de uma gestão honesta e de ações decisivas para retomar o crescimento e estender, à imensa maioria, o bem-estar geral. Esse teria que ser o caminho das oposições, pois a viabilidade de vir do PT é totalmente incompatível com o petismo realmente existente. Outro caminho seria governo e oposições voltarem ao business as always, e apostarem na omissão das elites e no conservadorismo popular para deixar como está, como diria Getúlio, e ver como é que fica. Mas este caminho se cruza com o terceiro, um caminho retomado pela memória do levante de junho de 2013, agravada com as novas ofensas que os governantes não tardarão a causar. Seria o caldo de cultura para uma ‘revolução’ em busca de suas lideranças."

    N – A frustração provocada no eleitorado pela preguiça do senador mineiro Aécio Neves – que obteve 50 milhões de votos e passou a representar a esperança de pelo menos metade da população brasileira, depois da derrota sumiu de cena, ausentando-se das sessões em plenário da chamada Câmara Alta e conduzindo uma oposição evidentemente de fancaria – pode, de acordo com seu ponto de vista, ter desmotivado a volta dos manifestantes de 2013 às ruas, apesar do desmazelo, da incompetência e da comprovada corrupção da gestão petista na primeira metade do segundo governo de Dilma?

    JAG – A contribuição do PSDB para a avacalhação das instituições e o embaralhamento do sistema partidário foi geral: nunca os candidatos tucanos puderam contar com o apoio das suas principais lideranças ao candidato de turno, formando-se uma coalizão de veto entre São Paulo, Minas, Bahia e Ceará, e parte das lideranças regionais e das bancadas federais faziam alianças tácitas com Lula ou Dilma. Coroando esse papel desagregador da oposição, prevaleceu, desde a eclosão do escândalo do mensalão, a estratégia autodestrutiva de preservar o adversário para que ele sangre até o fim do mandato.

    Tal estratégia consiste em colocar-se no lugar do adversário, para avaliar sua principal ameaça, não para levá-lo à derrota, preservando os interesses da sociedade, mas dando-lhe corda para continuar agravando o sofrimento do povo e a estabilidade da Nação. Isso explica como foi possível que as ruas voltassem a se manifestar em 2014, justo no ano das eleições, com a mesma omissão dolosa da Dilma e de toda a classe política, sobretudo da pretensa oposição, que conjugou à teoria do sangramento até o fim a esperança de eleger Aécio no tapetão do TSE.

    N – O que o senhor acha que motivou a grande mobilização partidária para aprovar o impeachment da presidente petista e a sucessiva posse de seu vice, do então PMDB, sem que houvesse entusiasmo igual ao de 2013, mas, pelo menos, com aprovação da chamada maioria, então, silenciosa?

    JAG – A aprovação das massas foi silenciosa porque já estava rouca de se esgoelar em vão. Note-se que o impeachment só foi encaminhado pelo PSDB quando se tornou evidente que o tapetão não garantiria a posse de Aécio sem uma nova eleição, mas não em resposta aos 80% que rejeitavam Dilma e continuaram rejeitando o seu legítimo herdeiro, Temer, o que mostra o grande consenso popular, e não a divisão radical da sociedade. A imensa maioria busca a mesma coisa: menos desgoverno, menos politicagem, menos privilégios, menos incompetência, menos roubalheira.

    N – O senhor atribui a enorme impopularidade do presidente Michel Temer à revelação de sua conversa muito pouco republicana na garagem do Palácio do Jaburu com o marchante goiano, que virou titã da produção e comercialização da proteína mundial da noite para o dia, Joesley Batista, e à consequente compra de apoio na Câmara dos Deputados para impedir a abertura de inquérito criminal contra o chefe do Executivo?

    5

    Guilhon rumo ao Havre e ao doutorado na Université Catholique de Louvain, em Leuven, Bélgica, em 1965.

    Foto: Arquivo pessoal.

    JAG – Creio que se trata de três mecanismos causais, não necessariamente independentes, que contribuem para isso: entre os 80% da base de sustentação do governo Dilma, a maioria tinha interesse em chantagear a Presidência, enfraquecer o novo presidente, impedindo o sucesso de seu programa de liberalização da economia e austeridade do gasto público. Os tucanos se superaram, formulando uma nova política para o novo governo, fornecendo alguns de seus melhores quadros para dele participarem e votando contra todos os seus próprios projetos.

    Temer tentou empenhar-se em medidas impopulares, sem apoio programático em sua própria base e sem dar resposta à indignação popular, quando poderia combinar até duas hipóteses, mas não todas as três. Por cima, escolheu a pior combinação, virou de costas para a indignação popular e adotou medidas impopulares.

    Joesley Batista foi a gota d’água provocada pela revolta das corporações privilegiadas contra a ameaça de perda de suas prerrogativas e prebendas, que Temer jamais teria a coragem de efetuar. Se não fosse Joesley, as corporações investigativas e judiciárias teriam fabricado outra opção, com a generosa contribuição do próprio Temer.

    N – No começo de 2018, havia certa esperança no ar de uma eleição presidencial que permitisse ao eleitor encontrar um jeito de dar um drible da vaca nos chefões partidários e escolher alguém para a sucessão do breve Temer. Esse movimento sub-reptício foi contra a reeleição dos praticantes da velha política, que, em resposta, recusaram a possibilidade de candidaturas avulsas e outras fórmulas institucionais para o povo assumir, de fato, o poder que dele emana de acordo com a Constituição. Mas os chefões das organizações partidárias obstruíram todas essas saídas. O senhor diria que subestimaram a astúcia do povo, imaginando que cumpririam sua tarefa de manter o status quo, impedindo candidaturas rebeldes dentro de suas condições de luta pela impunidade e manutenção do foro privilegiado?

    JAG – Subestimaram, sim, mas também sobrestimaram a capacidade dos aventureiros para enfrentar o segundo maior desafio da política, a campanha eleitoral, atrás apenas do desafio de conter a cobiça dos grandes sem ofender demasiado o povo. O establishment perdeu tempo demais com a tentativa de travestir magnatas e saltimbancos em candidatos, e todos deram chabu. Quando veio a hora de apelar para a virtude dos candidatos já dados por inviáveis, mas em plena campanha, já foi tarde.

    N – Em que momento e circunstâncias, segundo sua visão, o deputado federal e capitão Jair Bolsonaro, do baixíssimo clero da Câmara, conseguiu, com seu partideco de direita, menos de R$ 2 milhões para gastar na campanha, 400 vezes menos do que Dilma e Temer empregaram em 2014, sem participar de debates nos meios de comunicação nem da campanha após ser esfaqueado, com apenas oito segundos no horário obrigatório dos partidos no rádio e na televisão, conquistar as mentes e os corações dos cidadãos brasileiros cansados dos desgovernos do PT, seus aliados e seus adversários da velha política?

    JAG – A prova de que Bolsonaro não conquistou corações e mentes do povo brasileiro é que foi eleito por uns 30% da população e menos de 40% do eleitorado, tendo a soma dos ausentes, votos em branco e nulos em segundo lugar, e Haddad em último.

    N – Qual foi o motivo de esse mesmo Bolsonaro haver se livrado de sua pecha de admirador de torturador e pretenso candidato a um golpe militar e ter convencido brasileiros desiludidos com a falácia e a desfaçatez do neopopulismo de rapina do PT, mas também nada propensos a abraçarem uma causa autoritária e militarista, para alcançar a marca espetacular de quase 58 milhões de votos, esmagando o adversário Lula, representado na eleição por Fernando Haddad?

    JAG – É que ele foi o único que, em vez de dizer vou fazer o mesmo de sempre, só que melhor, mais bonito ou mais radical, disse que ia acabar com tudo o que, em cinco anos de indignação popular, não mereceu resposta da elite política.

    6

    Guilhon, comendador da Ordem de Rio Branco, é pesquisador sênior no Núcleo de Pesquisa em Relações Internacionais da USP.

    Foto: Acervo pessoal.

    N – Que feridas dolorosas produzirão cicatrizes marcantes na alma da democracia brasileira com esta bipolarização radical e violenta com que a disputa entre o capitão e o ladrão maculou a disputa eleitoral, dificultando o processo de amadurecimento e crescimento de nossa democracia num pleito, apesar dos pesares, pacífico, ordeiro e, sobretudo, muito legítimo?

    JAG – A população não me parece radicalmente polarizada, as campanhas é que se empenharam em deixá-las sem opção, e as evidências são de que, entre os 80% que rejeitaram Dilma e os 80% que rejeitaram Temer, a grande maioria compartilhou ambas as rejeições. Se e quando ficar evidente que a missão assumida por Bolsonaro é inviável sem mudanças radicais em seu modus operandi, a revolta vai voltar a se manifestar.

    N – O senhor acredita que o presidente eleito, Jair Bolsonaro, terá condições, talento e disposição para enfrentar a tarefa ingente de reduzir o desemprego, debelar a crise econômica, financeira, política e ética e reconstruir o Brasil do desastre dos últimos anos, apesar da chantagem e da sabotagem de seus adversários, principalmente do PT, e não apenas dele, mas também da vetusta máfia política encastelada desde sempre no poder, e, enfim, cumprir suas promessas para atender às ambiciosas expectativas de seus eleitores fiéis e fanáticos e também da massa de antipetistas, sem os quais ele não teria vencido?

    JAG – Nenhuma das acima citadas. Uma nota: nos maiores eleitorados brasileiros, como São Paulo, Rio, Minas, Rio Grande do Sul, o antipetismo não explica nada.

    MARINA COLASANTI

    19 de dezembro de 2018

    Nascida na Eritreia em uma família italiana, com infância na Líbia e toda uma vida no Rio, Marina Colasanti diz que é difícil amar cidade entregue a si mesma.

    Para a jornalista, escritora e poeta Marina Colasanti, nascida na África e carioca por adoção, no futuro nossa era não ficará conhecida pelos avanços tecnológicos – que começaram no século 19 com a primeira lâmpada elétrica! – mas como a era das grandes migrações. Pois são elas que, como quando asiáticos atravessaram o estreito de Behring e povoaram a América, mudarão a face do mundo. Nesta entrevista, a feminista da primeira hora falou também de sua relação antiga e íntima com a cidade que cerca o apartamento onde vive com o marido, o poeta e crítico mineiro Affonso Romano de Sant’Anna, autor do poema seminal Que país é este?. Ela desabafou: Hoje, para amar o Rio, seria necessária uma cegueira social desmedida. Olho da minha janela e vejo a comunidade lá adiante crescer dia a dia, ocupando o lugar da mata. E sei que lá não há esgoto, a água não é potável, e que as vielas estreitas favorecem o surgir de doenças e o multiplicar-se de gangues de traficantes ou milicianos. Não sou a única a ver esse crescimento. O poder constituído também vê e nada faz. É duro amar uma cidade entregue a si mesma.

    7

    Sobre o Brasil, Marina cutuca a ferida: Recuperamos o voto popular, mas esquecemos de educar os eleitores para o seu exercício.

    Foto: Fábio Motta/Estadão

    Marina Colasanti nasceu na Eritreia, país africano à beira do Mar Vermelho, e morou na Líbia, país africano à beira do Mediterrâneo. Depois cruzou o mar e foi viver na Itália. Mas só até os 10 anos, quando cruzou o oceano e veio viver no Brasil. Aqui estudou pintura e cursou Belas Artes, o que faria dela, mais adiante, a sua própria ilustradora. Porém, mais uma vez, mudou o rumo da sua vida e foi ser jornalista. Trabalhou no Caderno B do Jornal do Brasil, como redatora, secretária de texto, cronista, colunista e editora do Caderno Infantil. Desempenhou-se paralelamente como editora do Segundo Tempo do Jornal dos Esportes. E rumou para a revista Nova e para 20 anos de atividade feminista. Foi âncora e apresentadora em televisão, foi publicitária. Ganhou sete Jabutis, dois Livros do Ano, um Portugal Telecom, um Prêmio Biblioteca Nacional e os internacionais Norma-Fundalectura e Prêmio SM. Agora escreve seus livros de prosa e de poesia para adultos e crianças, faz traduções, lê muito, desenha, e viaja, viaja e mais viaja. Dizem que cozinha muito bem.

    Nêumanne – A senhora nasceu na Eritreia, no Chifre da África, país pequeno e pobre, periférico na história africana, do Oriente e do Ocidente, mas agora está no meio da crise dos refugiados, que deslocou de repente para o centro da globalização planetária a pobreza que arrisca a vida no mar para escapar da morte por inanição. Como se sente no epicentro dessa tragédia, mas, ao mesmo tempo, no outro lado do vasto oceano, que não nos protege?

    Marina – Apesar de nunca mais ter conseguido regressar à Eritreia, a tragédia que nos chega dia a dia pela mídia me envolve de forma pessoal. Não só nasci em Asmara, capital da Eritreia, como morei em Trípoli, na Líbia. E a Líbia é ponto preferencial como saída para o Mediterrâneo. Os eritreus migrantes, não só por pobreza extrema, como para escapar a uma ditadura feroz, atravessam o Congo, o deserto e a Líbia para chegar à costa. Ao longo do caminho são escravizados, maltratados, passam fome, trabalham duro para juntar o dinheiro que pagarão aos atravessadores humanos, sem nenhuma certeza de chegar à Europa – e mais sofrem as mulheres, submetidas a estupros e prostituídas. Quando leio as notícias que ecoam os nomes da minha infância, não me sinto do outro lado do vasto oceano, eu me sinto africana, como nasci, e me sinto italiana, como fui criada, esperando a chegada dos barcos vindos do outro lado do Mediterrâneo, que vai ficando cheio de cadáveres.

    Escritora aposta

    que grandes

    migrações

    desta era mudarão a

    face da Terra.

    N – Como a senhora se situa na grande discussão global dos refugiados asiáticos e afri canos, que virou a Europa pelo avesso, desafiando velhos padrões clássicos da democracia burguesa e tradições institucionais milenares, herdadas de João Sem Terra, para agora desembarcar no outro lado do Atlântico, modificando até a divisão geopolítica do império ianque, ao fazer emergir um conservadorismo frio e brutal, que alguns apressadinhos confundem com o velho fascismo de Benito?

    M – Fiz uma conferência sobre isso no mês passado, em Curitiba, linkando livros e diversidade. E me parece claro que no futuro nossa era não ficará conhecida pelos avanços tecnológicos – que começaram no século 19 com a primeira lâmpada elétrica! – mas como a era das grandes migrações. Pois são elas que, como quando asiáticos atravessaram o estreito de Behring e povoaram a América, mudarão a face do mundo. Não só nas cores da pele – já está previsto que em menos de 50 anos os louros brancos não serão mais a população majoritária nos EUA –, mas nos códigos de comportamento. Essa mudança já começou na literatura e na arte, na dança e na música. Quem diria, na década de 50, quando as americanas usavam cinta, que os antigos quackers aplaudiriam a gloriosa geografia glútea de Jennifer Lopez e Beyoncé? Os países ricos alardeiam sua abastança, mostram ao mundo a bela vida que se vive em suas cidades. É uma estratégia de mercado para vender produtos, que chega aos países pobres, às aldeias miseráveis, e acende o desejo dos mais ousados. Toda terra de abastança é uma terra prometida. E todo ser humano tem direito à busca pela felicidade, como escrito na Declaração de Independência dos Estados Unidos, e devidamente esquecido.

    N – Assim como a questão dos refugiados, outro tema que ecoa hoje ainda mais que nos tempos de Betty Friedan e da incineração dos sutiãs, tratados como se fossem correntes escravistas nos anos 60, o feminismo – agora pomposamente tratado como empoderamento da mulher – é outro ponto cardeal de uma nova rebelião. Como ser humano do sexo feminino, dotada do dom de tratar sentimentos e emoções em palavras em prosa ou verso, a senhora percebe o que distingue esse novo tipo de luta feminina do tempo épico das sufragetes pelejando pelo direito cidadão elementar ao voto e o dos happenings de seios de fora da segunda metade do século passado?

    M – Sou mais do que um ser humano do sexo feminino, sou uma feminista histórica. E a rebelião não é nova. O que nos distingue das sufragetes é justamente o fato de elas terem existido, assim como Simone de Beauvoir, ou Betty Friedan, ou Júlia Lopes de Almeida, para pavimentar nosso caminho. Não se avança no presente desconhecendo o passado. Sem a conquista do voto feminino, plantada pelas sufragetes, não só seria obsceno falar em democracia, como seria impossível lutar, hoje, por maior presença feminina na política. Surpreendentemente, vem da Etiópia – outro de meus países africanos, porque quando nasci formava, juntamente com a Eritreia, a Abissínia – um belo exemplo: o primeiro-ministro Abiy Ahmed escolheu entre mulheres qualificadas a metade do seu Ministério. O empoderamento feminino é isso, distribuir o poder, ou a liderança, de acordo com a capacidade e não obedecendo a princípios preconceituosos baseados em gênero.

    N – Em texto publicado no caderno Ela, do Globo,de domingo 16 de dezembro, a acadêmica Nélida Piñon, de origem galega e vivência no Rio, Nova York e agora Lisboa, encontrou na famosa sentença de Gustave Flaubert " Emma, c’est moi"(Emma sou eu), referindo-se, é claro, à protagonista de seu clássico Madame Bovary, como sendo a definição sintética deste neofeminismo contemporâneo. Como Nélida, no ponto extremo da escala Richter deste terremoto, a senhora também se sente assim, meio como um palimpsesto do mundo?

    M – Sou mais modesta nessa questão. Não tinha em mim nenhum texto anteriormente escrito que devesse ser apagado. Não venho de uma família tradicional que me incutisse princípios tradicionais, nem foi tradicional a minha infância. Sou de uma família de artistas. A partir do momento em que comecei a pensar na identidade feminina, no lugar da mulher no mundo, dei início à escrita do meu pergaminho. Que segue até hoje, porque as situações mudam, os pensamentos envelhecem, e a cada momento é necessário repensar – sem apagar, porém, o que havia sido escrito. À famosíssima frase de Flaubert citada por minha cara amiga Nélida oponho outra menos conhecida, porque menos altissonante, escrita por ele em carta de 1857: Madame Bovary não tem nada que seja verdade. É uma história totalmente inventada, não botei nela nenhum dos meus sentimentos e nada da minha vida. Como diz Dacia Maraini no seu belíssimo ensaio Cercando Emma (Procurando Emma), se Flaubert fosse mesmo Emma, não a teria castigado com envenenamento tão lento e tão doloroso.

    N – A senhora também, como Nélida, tem no seu cabedal textual o longevo convívio

    Está gostando da amostra?
    Página 1 de 1