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Armênio Guedes: Um comunista singular
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Armênio Guedes: Um comunista singular
E-book824 páginas11 horas

Armênio Guedes: Um comunista singular

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Sobre este e-book

A biografia política de Armênio Guedes (1918-2015), contra o pano de fundo da vida política brasileira e internacional no passado e nos dias atuais, é leitura imperdível. Armênio, cujo centenário de nascimento comemorou-se em maio de 2018, foi talvez o melhor formulador da esquerda brasileira, destacando-se como o firme defensor da linha de ampla unidade democrática que levou à derrota da ditadura de 1964.
Filiou-se ao PCB em 1935. Sua grande escola foi a luta contra o fascismo durante a Segunda Guerra Mundial. Armênio vibrou com a conquista da legalidade pelo partido em 1945-46 e decepcionou-se profundamente com a perda de rumo do PCB após a cassação de seu registro, em 1947, sob o governo do general Dutra. Aí nasceu uma divergência profunda – mas leal – com Luiz Carlos Prestes, de quem fora colaborador direto.
Neste livro Armênio relata ainda o diálogo com comunistas da América Latina e passagens por Cuba bem antes e muito depois da revolução de Fidel Castro. A vida em Moscou numa "escola de quadros". A denúncia do stalinismo por Khrushev em 1956. Os governos de JK e Jango. As vésperas do golpe. A elaboração da política após o AI-5. O compulsório exílio devido à abordagem por um agente da CIA. O governo e a derrocada de Allende, no Chile. A tragédia de seu irmão Célio, assassinado sob tortura. E uma rica experiência na Europa na segunda metade dos anos 1970.
A sabedoria de Armênio pode ser condensada assim: impedir que utopia se transforme em voluntarismo, ou, no sentido oposto, evitar que realismo vire ceticismo ou cinismo. Antes de tudo, não ideologizar a política, mas politizar a ideologia.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento30 de set. de 2018
ISBN9788564116603
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    Armênio Guedes - Mauro Malin

    organizações.

    1. O despertar

    De Mucugê para Salvador

    Armênio Guedes nasce em Mucugê, na Chapada Diamantina, uma região que, se não tivesse sido redescoberta pelo turismo nas últimas décadas do século XX, estaria hoje imersa em esquecimento. A cidade teve sua importância na segunda metade do século XIX e nas duas primeiras décadas do século XX, por se localizar em região de lavra de diamantes. A maior cidade da Chapada Diamantina, Lençóis, chegou a ser a terceira mais importante da Bahia. Ainda hoje se encontra lá, imponente, o prédio que foi do Subconsulado da França.

    Armênio é um dos onze filhos de Adosinda Adolfina dos Santos Guedes, Dona Sinhá, nascida em 1889, e Júlio Augusto de Castro Guedes, nascido em 1882. Os dois, conta Armênio, eram de Mucugê, como os pais dela, Domitila e Manfredo. Os avós paternos, Maria do Carmo e Saturnino, se não nasceram em Mucugê, nasceram na mesma região. A origem desses Guedes é Diamantina, Minas Gerais. Daí para trás, nos dois casos, Santos e Guedes, trata-se de portugueses.

    Os avós maternos de Armênio eram pequenos comerciantes. Tinham uma vendinha, fabricavam pão no sábado e no domingo. A família do pai tinha tradição no artesanato com metais e ourivesaria. Fabricavam armas. Júlio Guedes herda essa habilidade, assim como dois irmãos dele que foram dentistas. Começaram como charlatães – nome que se dava aos práticos, sem diploma –, depois se formaram.

    Armênio é de maio de 1918, data muitíssimo distante, sobretudo para os leitores jovens, e até para os nem tão jovens, mas é possível aproximar-se dela na imaginação. A dificuldade de entender como foram as coisas no passado se repete a cada geração, que desse passado forma sua própria ideia. Se 25 anos depois os jovens nem sabem direito o que foi o impeachment de Collor – em 1992 –, quando Armênio entra no ginásio, em 1930, a Primeira Guerra Mundial é algo tão distante para ele quanto a Antiguidade romana. Depois passa a ser familiar, graças aos livros sobre o assunto que lhe vêm às mãos.

    Em 1922 a família se transfere para Salvador. Moram em bairros históricos: na Mouraria, nos Barris, em Itapagipe, no Largo de Santo Antônio.

    Nos Barris era terrível, eu me lembro, porque tinha um dique, uma espécie de lagoa, e muita muriçoca, meu pai ficava tomando conta dos mosquitos, mas não aguentamos nem um mês. O Largo de Santo Antônio é um lugar bonito. Tem uma ribanceira que dá para o mar, onde tinha a antiga Casa de Detenção, tem uma igreja histórica do lado da casa onde morávamos. Adiante tem as Portas do Carmo. E tem também um lugar muito bonito que é o chamado Largo dos Quinze Mistérios. Descendo de carro vai dar no Pelourinho.

    Em 1930 ele entra no ginásio. É o início de uma caminhada pelo território que o atrairá a vida toda, até o final: a política.

    Outubro de 1917

    Não entrei no Partido Comunista por influência da figura de Luiz Carlos Prestes, nem movido por sentimentos anti-imperialistas. O que me influenciou foi a Revolução de Outubro de 1917 na Rússia, da qual nasceria o primeiro país socialista do mundo, a URSS, União das Repúblicas Socialistas Soviéticas. Foi o socialismo.

    Tomei conhecimento da importância de Prestes quando já estava no partido, na Organização da Juventude Comunista, em 1935. Antes, tinha ouvido relatos familiares sobre a passagem da Coluna Prestes por Mucugê, em 1926, mas eram relatos sobre o temor à Coluna, que tinha provocado uma fuga da cidade. Prestes e seus liderados eram chamados de revoltosos e inspiravam pânico, como o bando de cangaceiros de Lampião. Dizia-se que estupravam e roubavam.

    Muitos anos depois Prestes me disse que Mucugê não teve importância para a Coluna. Os revoltosos queriam apenas cavalos novos, que um dos quarenta filhos do senhor da terra local, Douca Medrado, Anatalino, preso pelos homens da Coluna, havia prometido em troca de sua liberdade. Na cidade, enquanto alguns se preparavam para resistir, outros fugiam do ataque, inclusive um tio-avô meu, Sinfrônio, que, já meio cego, precisou ser carregado nos braços algumas léguas pelo fortíssimo Ademar, filho natural de uma filha dele. Mas não houve ataque.

    Não foi, portanto, o mito do Cavaleiro da Esperança que me atraiu para o Partido Comunista, mas o Manifesto Comunista de Marx e a existência da União Soviética. Ainda me lembro de alguns dos livros que me apresentaram a União Soviética: Rússia, de Maurício de Medeiros, URSS, um mundo novo, de Caio Prado Júnior, e Um engenheiro brasileiro na URSS, de Cláudio Edmundo, primeiro marido da doutora Nise da Silveira, Onde o proletariado dirige..., de Osório César,História do socialismo e das lutas sociais, de Max Beer, a literatura soviética da época – entre outros, Máximo Gorki, de quem li A mãe, O espião, A infância de Klim Sanguine, Minhas universidades. E o americano Michael Gold, comunista, autor de Judeus sem dinheiro.

    Uma de minhas irmãs mais velhas, Iracema, muito inteligente, primeira aluna, forma-se em Direito. É atraída pelo socialismo. Em 1933 ela vai para São Paulo, de onde me mandava livros editados pela Livraria Cultura Brasileira. São importantes na minha formação, entre eles O Volga desemboca no Mar Cáspio, de Boris Pilniak – depois condenado e executado sob a acusação de participar da sabotagem de uma usina no Cáspio –, e Cimento, de Fiódor Gládkov.

    Eu ouvi meu pai comentar filmes como O encouraçado Potemkin, ou, mais ainda, um que depois eu próprio vi na época, No caminho da vida, história de reeducação de jovens baseada no livro Poema pedagógico, de Makarenko.

    Mas não se crie a imagem de um bolchevique precoce. As leituras de criança tinham sido histórias policiais, como as de Raffles e Sherlock Holmes, a Coleção Terra-Mar-e-Ar, O último dos moicanos, de Karl May, Os três mosqueteiros, de Alexandre Dumas, Os miseráveis, de Victor Hugo.

    Um retrato do menino Armênio, aluno do Ginásio Carneiro Ribeiro, foi escrito por Wilson Lins no Jornal da Bahia, em 1979, sob o título Um comunista sem pressa:

    "Enquanto o seu irmão (Célio) era um cabeça de motim, no recreio, ele nunca se metia na algazarra natural das horas de folga, que aproveitava ou em leituras solitárias, na biblioteca cujas portas nunca se fechavam, ou em conversas adultas com os de mais idade, entre os quais pontificava Milton Caires de Brito".

    Adeus à religião

    Quando entrei no ginásio o ateísmo era pregado metodicamente por vários professores, entre eles Antônio Figueiredo e Orlando Gomes. Figueiredo, formado pela Escola Politécnica, tinha sido professor de Enéas, um de meus irmãos mais velhos – o outro é Carlos. Enéas foi o primeiro da família a ter contato com comunistas.

    Figueiredo era um dos comunistas pré-históricos que havia na Bahia, professor de Humanidades. Bom professor de Latim, excelente professor de Geografia, Matemática, Português. Era um conquistador, gostava muito das garotas. E era visto pela elite conservadora baiana como comunista perigoso. O ginásio era laico. Figueiredo às vezes dava uma aula inteira para provar a não existência de Deus.

    Em meu último ano de ginásio eu não tinha mais religião. Eu havia me desprendido de qualquer vertente mística. Desenvolvi uma simpatia muito grande pelo ateísmo. Como tantos brasileiros, eu havia feito primeira comunhão, depois de ter frequentado uma escola católica no primário, mas as pessoas de minha família eram batizadas por mera tradição, não iam à igreja. Eu tinha umas tias protestantes. No interior havia muitas missões protestantes. Em Mucugê, por exemplo, apareceram missionárias americanas. Minha tia Aydée – sogra de Diógenes de Arruda Câmara – sabia um bom inglês, aprendido com as missionárias americanas.

    Só minha irmã mais velha, Nair, era católica. Ia à igreja, mas não chegava a ser carola. E foi, no Partido Comunista, uma das mais militantes. Não via nenhuma contradição entre a militância e a Igreja. Casou-se com um advogado que viria a ser desembargador na Bahia, amigo de Antônio Carlos Magalhães. Ele era da importante família Batista Neves, de Caetité, no interior baiano. Mesmo assim, no golpe de 64 Nair foi procurada pela polícia, o que lhe provocou um problema cardíaco.

    Em casa eu discutia com meu pai, que dizia: Deve existir um ente superior. Não se tratava de Jesus Cristo, mas de explicar coisas como a perfeição que ele via no organismo do homem. Eu dizia: E quem é superior a esse que criou o homem?.

    Em 1934 Armênio já se verá como um jovem comunista, integrante de um grupo de colegas que se opõe ao integralismo.

    A família Guedes não traz de Mucugê uma preocupação política marcante. Havia na Chapada Diamantina partidos políticos, a divisão básica entre liberais e conservadores. Dona Sinhá contava que um irmão dela havia sido assassinado por pertencer a um desses partidos. Mas, tanto quanto Armênio se lembre, nem ela nem o marido eram ligados à política. É pela cultura que ele e os irmãos chegam à política.

    Sempre me perguntei por que meu pai teve uma grande preocupação com a cultura. Para mim, a explicação tem a ver com o processo de formação dele. Quando tinha 15 ou 16 anos, foi mandado para Salvador para estudar. A bolsa de estudos que havia era o seminário católico. A pessoa precisava se preparar para entrar no seminário e meu pai se interessou por Português e Francês. Ele acabou nem entrando no seminário – achou sinistro o prédio, onde hoje é o Museu de Arte Sacra, então um casarão cinzento, escuro. De volta a Mucugê, começou a dar aulas de Francês e Português e ganhar algum dinheiro.

    Nesse período, Júlio, aos 25 anos, casa-se com Adosinda, 19. Foi em 1907. Enéas, o primeiro filho, nasce em 1908. Júlio chega à conclusão de que não pode viver só das aulas. Resolve ser garimpeiro. Sem perder a formação que tivera. "Sabia escrever direito, garante Armênio. Júlio morrerá em 1938, com 56 anos. Meus irmãos que já estavam formados mandavam um dinheirinho para casa e a gente se aguentava ali".

    Em 1930, Revolução

    Há na casa dos Guedes muita torcida pela Revolução de 30, que leva Getúlio Vargas ao poder, embora na Bahia tenha sido pequeno o apoio dos políticos ao movimento: J.J. Seabra, ex-ministro e duas vezes governador da Bahia, e dois ou três partidos ligados à Aliança Liberal, entre eles o Partido Republicano Democrata.

    Enéas tem contato constante com esses grupos. Lançaram um jornal para fazer na Bahia a campanha de Getúlio Vargas, o candidato da Aliança Liberal: O Jornal. Um dos diretores é Nelson Carneiro, irmão do antropólogo Édison Carneiro. Muitos anos depois ele seria senador pelo MDB [Movimento Democrático Brasileiro] do então estado da Guanabara. Dão apoio dois ou três intelectuais famosos na Bahia, como Leopoldo Amaral, primeiro interventor no estado depois da vitória da Revolução.

    Em minha casa se comentava com entusiasmo o discurso de Vargas, candidato da Aliança Liberal, na Esplanada do Castelo, no Rio de Janeiro. Meu pai e Enéas, que faziam viagens frequentes ao Rio, haviam assistido a um discurso de João Neves da Fontoura. Vibrei, após a vitória da Revolução, com a chegada das colunas revolucionárias que vinham do Norte, como se chamava na época o Brasil da Bahia para cima, soldados com lenço vermelho no pescoço que abriram o Palácio do Rio Branco, sede do governo, para todo mundo entrar.

    Vivi aquela farra do bonde de graça, que durou dois ou três dias. Era uma festa. Prestes sempre repetia: A Revolução é a festa do povo, frase que talvez eu já tivesse lido em Marx. Realmente, o dia da vitória da Revolução de 30 na Bahia foi uma festa. Logo no início houve uma Tomada da Bastilha: queimaram mais de oitenta bondes da companhia Linha Circular em protesto contra o aumento do preço da passagem. A cidade ficaria um mês sem bondes. Empastelaram o jornal A Tarde, que defendia o governo e apoiara o aumento.

    A vitória da Revolução de 30 – bisonhamente analisada pelo PCB, à época em que ocorreu e ainda anos depois, como mero reflexo do deslocamento de interesses do imperialismo inglês por interesses do imperialismo americano – leva Armênio a elaborar algumas ideias sobre a realidade brasileira. São ideias de um garoto de 12 anos, mas capaz de perceber a extensão das transformações.

    Coronéis desarmados

    Eu via pelo prisma da minha terra. A Chapada Diamantina tinha dois chefes políticos. Douca Medrado, em Mucugê, e Horácio de Matos, em Lençóis. Horácio de Matos era realmente um senhor da terra naquele lugar. Eu ficava impressionado quando meu pai me dizia que todos os garimpeiros tinham que pagar uma taxa de um quinto a Douca Medrado para cada diamante que encontravam. Quando era garimpeiro, meu pai mergulhava com um martelo e uma broca para fazer um buraco na pedra do leito do rio. Ficava meio minuto, um minuto talvez, subia, respirava, descia e continuava durante um ou dois dias, até que coubesse no buraco uma banana de dinamite. E quando pegava um diamante, depois de árdua batalha, era obrigado a dar um quinto do valor da venda da pedra a Horácio de Matos – porque o garimpo era feito em suas terras e ele era o poder a quem se pagavam os tributos.

    Depois da Revolução todos esses coronéis, que tinham jagunços, tropas, tiveram que entregar as armas. Horácio de Matos foi para Salvador fugido, porque ia ser processado, e foi assassinado. Douca Medrado era menos violento, mais competente no exercício da hegemonia, não usava tanto a coerção como Horácio de Matos. Esses homens – como outros caudilhos: Franklin de Albuquerque, de Pilão Arcado, Francisco e Geraldo Rocha e Abílio Wolney, de Barreiras – perderam sua posição de mando.

    A intervenção do Estado passou a ter o sentido de modernizar, provocar a acumulação. Por isso eu achava que aquilo tinha sido realmente uma mudança muito grande na vida brasileira. Uma revolução para modernizar e traduzir o poder que tinha uma burguesia nascente. Terminou com o poder dos antigos partidos. Tornou mais nacional, menos local, a vida do país. As necessidades regionais passaram a se articular melhor em caráter nacional. A Revolução de 30 teve um conteúdo democrático. Passou a haver maior participação de massas no processo político. O país ficou mais sintonizado com o mundo.

    Essa avaliação não impede que os Guedes se juntem em torno do aparelho de rádio recém-comprado pela família para torcer pela Revolução Constitucionalista de 1932. Reúnem-se vinte, trinta pessoas para ouvir a Rádio Educadora de São Paulo. É uma rejeição ao que consideram governo ditatorial de Vargas.

    Quando Armênio conhece Prestes, em 1945, este se refere frequentemente à luta dos tenentes e a 30, mas nega que tenha sido uma revolução. Armênio vai aderir a essa visão quando passar a usar categorias ortodoxas para analisar 30. Revolução, só com mudança de classes sociais no poder.

    Esse conceito era estreito. A Revolução de 30 mudou muito o país. Getúlio Vargas, fosse o que fosse, representava uma classe diferente daquela velha oligarquia republicana que vinha da Proclamação da República. Criaram-se o Ministério do Trabalho, o Dasp (Departamento Administrativo do Serviço Público), para a formação dos quadros da gestão pública, o Ministério de Águas e Energia. E realmente o país deu um salto para a frente. Criaram-se universidades. Instituiu-se o Código Eleitoral e se criou a Justiça Eleitoral. O processo teve qualquer coisa de mudança feita de cima para baixo, revolução passiva, um tipo de reformismo. Não se pode pensar apenas nas revoluções socialistas. Há outras mudanças que podem ser vistas usando a categoria de revolução passiva.

    Essa compreensão, diz Armênio, ele só iria adquirir em alguma data posterior ao ano 2000 graças a esclarecimentos recebidos de Luiz Jorge Werneck Vianna, professor e sociólogo ligado ao PCB. Até então, a questão permaneceria confusa em suas reflexões sobre a Revolução de 30.

    2. Tempo de antifascismo

    Faculdade, PCB

    Eric Hobsbawm, no livro Tempos interessantes, citado em epígrafe, diz que foi formado na escola do antifascismo. Em 1935, quando Armênio entra na Faculdade de Direito da Bahia e no PCB, tinha começado um processo de grande transformação do movimento comunista.

    Deixava-se de combater a social-democracia como social-fascismo, política que causara grande prejuízo à esquerda e muito além dela. Nas eleições anteriores à ascensão do nazismo ao poder na Alemanha, a social-democracia e os comunistas tinham maioria esmagadora de votos. A divisão deles permite a ascensão de Hitler, em 1933, por um caminho parlamentar, embora pontilhado de violência – a SA, organização paramilitar do Partido Nazista, fora criada em 1921.

    Armênio explica por que os comunistas buscam formar, depois da ascensão dos nazistas ao poder, a mais ampla aliança popular antifascista e torná-la um movimento de massas:

    Os dois mais famosos comunistas italianos, Antonio Gramsci e Palmiro Togliatti, diziam que uma das peculiaridades do fascismo era ser uma política da reação com um movimento de massas organizado. Vimos isso aqui no Brasil com o integralismo. Plínio Salgado se proclama O Esperado. Havia no integralismo muitos artesãos, gente simples. O cabeleireiro de minha família na Bahia era integralista. Os integralistas tinham uma linguagem anticapitalista, misturavam judaísmo internacional, banqueiros e bolchevismo. O livro de Gustavo Barroso Brasil – colônia de banqueiros⁹ influenciou um certo número de pessoas. Havia um sentimento de aspiração à soberania nacional. Essas pessoas achavam que o integralismo ia romper com os banqueiros. O próprio partido de Hitler se chamava Partido Nacional Socialista dos Trabalhadores Alemães. A ideia do socialismo, quase hegemônica, foi cooptada pelos fascistas. Não esquecer que Mussolini, antes de fundar o fascismo, foi um dirigente do Partido Socialista Italiano.

    O Congresso de Intelectuais Antifascistas contra a Guerra e o Fascismo, na França, em 1934, foi um marco. Na minha visão, a Revolução de 30, no Brasil, havia sido feita por uma grande frente política. Não fiquei surpreso quando em 1935, sob a direção de Georgi Dimitrov [líder comunista búlgaro], a Internacional Comunista consolidou, em seu VII Congresso, o que se chama então mudança de tática, mas é adoção de uma nova estratégia: uma política de frente, de unidade ampla dos antifascistas.

    A nova tática foi vitoriosa na França, com o Front Populaire, na Espanha, com a Frente Popular – liquidada pelo franquismo na Guerra Civil –, no Chile e em Cuba. No Chile os comunistas participaram do governo do radical Pedro Aguirre Cerda, a partir do final de 1938. Em Cuba fizeram parte do primeiro governo de Fulgencio Batista, entre 1940 e 1944, na pessoa de Juan Marinello, então presidente do Partido Socialista Popular, nome do PC Cubano naquela época. Foi uma política ditada em toda parte pela resistência ao fascismo. Mudança importante.

    Em 1925 Maurice Thorez, o secretário-geral do Partido Comunista Francês, fazia discursos contra a democracia burguesa. No plano internacional, prevalecia a linha de classificar a social-democracia como social-fascismo. Entre 1934 e 1936 isso mudou muito. Ainda que o objetivo continuasse sendo uma espécie de acumulação de forças para um dia haver o assalto ao poder, essa nova política retomava algo que Marx dizia: em países como os Estados Unidos e outros em que imperava a democracia burguesa se poderia chegar ao socialismo legalmente, através do parlamento.

    Fascistas e comunistas duelam

    Entre 1922 e 1927, ano em que a Coluna Prestes cessa o combate contra as forças do governo brasileiro, entra na Bolívia e se dissolve, o Brasil é sacudido por um descontentamento militar que será componente decisivo da Revolução de 30. A Revolução Russa é divisor de águas que impele esquerda e direita a um combate hipoteticamente decisivo.

    O país volta ao regime constitucional – suspenso pela Revolução de 30 – com a promulgação de nova Carta Magna, em julho de 1934, e a eleição indireta de Vargas para presidente da República. O quadro é de intensa polarização.

    Sob a influência do fascismo italiano, que ajuda a financiá-la, havia sido fundada em 1932 a Ação Integralista Brasileira (AIB), chefiada pelo escritor Plínio Salgado. Isso ocorre imediatamente após a derrota da Revolução Constitucionalista que a elite paulista conduz, entre julho e outubro daquele ano, com forte apoio popular, contra o Governo Provisório de Vargas. A AIB crescerá de forma impressionante. Algumas estimativas lhe dão até 1 milhão de afiliados no ápice de seu prestígio, antes do golpe do Estado Novo, em 1937, num país que tinha 40 milhões de habitantes.

    Os comunistas são os adversários diretos dos integralistas, inclusive em conflitos de rua. O PCB é herdeiro de importantes lutas operárias conduzidas por anarquistas e sindicalistas nas duas primeiras décadas do século XX, mas sua influência limita-se a algumas poucas grandes cidades. O partido sofre conflitos internos e se submete à direção da Internacional Comunista, afinada com os interesses do Partido Comunista da União Soviética (PCUS), portanto do Estado soviético.

    O PCB dá um salto de popularidade quando Luiz Carlos Prestes, o herói da Coluna Invicta, passa a integrá-lo, em agosto de 1934, por imposição da Internacional Comunista, já que havia resistência à sua entrada na organização, resquício de um processo de proletarização que a própria Internacional Comunista havia instigado. A política de frente ampla antifascista se expressa no Brasil pela formação da Aliança Nacional Libertadora (ANL) em janeiro de 1935.

    Em 1934 já tinha havido muita agitação no Brasil, um congresso contra a Guerra no Rio de Janeiro que terminou em tiroteio, eu tinha visto uma greve na Bahia, toda a cidade de Salvador ficou parada, sem luz, sem nada.

    O camarada Estanislau

    Eu entrei na faculdade no início de 1935 e fui logo convocado para uma reunião com o objetivo de formar uma célula do partido. Eu havia entrado na ANL e não sabia qual era a diferença entre as duas entidades. Eu dava tratos à bola para saber o que era a Aliança, o que era o partido. Tivemos discussões, eu lia artigos no jornal A Classe Operária, mas não chegava a atinar. A reunião foi na casa de Édison Carneiro, colega meu de faculdade, no bairro dos Barris. Um casarão enorme, do século XIX. O assistente do partido, ou seja, o dirigente que fazia a ligação entre a direção e a célula, era Carlos Marighella.

    Ele se apresentou como o camarada Estanislau e nos explicou o que era uma célula, como funcionava, deu-nos instruções sobre como fazer propaganda e agitação e nos ensinou a construir uma aranha [dispositivo artesanal] para pendurar a bandeira vermelha. Eu já conhecia Marighella por intermédio de uma irmã mais velha que tinha sido colega dele no ginásio. Marighella, Fernando Marques dos Reis e minha irmã eram os melhores alunos de Matemática, Português e Inglês. Minha irmã me contava as loucuras de Marighella no colégio.

    Por exemplo, ele nunca usou meias. Um dia chegou à escola com metade da cabeça raspada. Era um sujeito revoltado. Figura mitológica. Filho de uma lavadeira negra com um mecânico italiano. Ao final da reunião ele brincou comigo: Tem tanto comuna em sua casa que você pode fazer uma célula na sua família. Tempos depois perguntei ao Édison Carneiro: Cadê aquele camarada?. E ele me disse: Psiu, psiu, fique calado. Esqueça aquele homem, esqueça o camarada Estanislau. Depois tive notícias de que ele fora preso no Rio, muito espancado. As histórias de Marighella chegavam ao movimento estudantil da Bahia.

    Marighella foi preso em 1936, libertado em 1937, preso novamente em 1939, até a anistia de abril de 1945. Foi muito torturado e se portou bravamente – os comandados de Filinto Müller [chefe da polícia política de Vargas] nada arrancaram dele, e isso o credenciou como dirigente do partido.

    A ANL realizou em 1935, em Salvador, três comícios em teatros, uma reunião no cinema Jandaia com a participação de João Cabanas, um dos signatários da ata de fundação da organização. Essa reunião teve grande repercussão dentro da esquerda e bem além dela.

    Os estudantes da Faculdade de Direito eram pessoas em geral de classe média, filhos de funcionários públicos e de profissionais liberais. Uma pequena burguesia acomodada, digamos, de acomodada para pobre. E alguns filhos de famílias ricas, como meu colega José Martins Catarino, depois um professor de Direito importante, especialista em Direito do Trabalho.

    Atraso brasileiro

    A Rússia soviética foi um grande fator de atração dos jovens antifascistas. Era um Novo Mundo, o paraíso na terra, um lugar que tinha uma grande força de atração. O próprio cordão sanitário que se criou em torno da Rússia era motivo de acharmos que a União Soviética era a negação das coisas ruins que conhecíamos do mundo capitalista. Ainda estava bem presente na nossa cabeça o que tinha sido a mortandade da Primeira Guerra Mundial, justamente de onde surgiu a Revolução Russa, depois os Partidos Comunistas. Isso tinha uma tremenda força de atração sobre uma juventude que buscava um caminho novo. Nós podíamos avaliar o atraso do Brasil. O cinema, por exemplo, era um elemento de referência para mim, eu via nos filmes o avanço da universidade americana, comparava com o que era a pequena e humilde faculdade onde a gente estudava. Tínhamos vontade de que o Brasil fosse um país com universidades grandes, esportes, uma indústria poderosa, onde houvesse bem-estar. Nós vivíamos também o ambiente da Revolução de 30.

    Havia uns quarenta comunistas da Faculdade de Direito da Bahia, num total de mais ou menos trezentos alunos. Mas os integralistas não ficavam atrás, também eram numerosos.

    O ano de 1935 começou com uma campanha por 50% de desconto para estudantes nos cinemas e nos transportes. Nós, comunistas, e outros democratas nos opusemos à realização de um congresso integralista em Salvador. Protestamos no Cruzeiro de São Francisco, perto da Faculdade de Medicina, contra a agressão da Itália à Etiópia, também chamada Abissínia. Foi a primeira vez que eu vi a repressão policial atuar, investir com gás lacrimogênio. Era famoso um tira chamado Ezequiel, ele vinha à frente dos demais policiais. Foram presos alguns estudantes de Direito, libertados um dia depois. Estudantes de todas as tendências antifascistas organizaram, na Associação dos Empregados do Comércio, no Paço Municipal [centro histórico de Salvador], um evento ligado à fundação da Juventude Proletária, Popular e Estudantil do Brasil, que se organizava em cada estado brasileiro.

    Castros e Guedes

    Um dos irmãos de meu pai, Durval, além de Odontologia, fez Medicina. Ele entrou para o integralismo. E os integralistas foram assediar o congresso. No último dia do evento, um orador se referiu ao musgo verde que está querendo cobrir a política brasileira – os integralistas, como se sabe, usavam camisas verdes – e um irmão de Édison e de Nelson Carneiro, Philon, gritou: Como os integralistas, não é?. Aquilo foi estopim para uma pancadaria. Descendo as escadarias, eu encontrei esse meu tio com um olho marretado. Daí em diante não nos referíamos a ele como Durval Guedes, e sim como Durval Castro. Ele, como meu pai, era Castro Guedes. Eu e meus irmãos nos considerávamos Guedes, e ele seria Castro...

    O clima da época era de confrontação. Ainda no ginásio eu acompanhei o caso Stavisky, que em fevereiro de 1934 deixou a França à beira de um golpe de direita. Na construção da Frente Popular, que ganhou as eleições de 1936 com o socialista Léon Blum, são nomes muito conhecidos os do dirigente comunista Thorez e do escritor Henri Barbusse, que se destacou no Congresso Internacional de Escritores, realizado em Paris em 1935. Da Alemanha vinha grande preocupação devido à ascensão do nazismo ao poder, em janeiro de 1933. Na Espanha, o movimento revolucionário de 1934 nas Astúrias motivou uma reação de generais fascistas, Francisco Franco à frente, que extinguiu a república. Foi uma época de grande aprendizado político.

    Intentona

    A atividade dos estudantes comunistas de Salvador é afinada com a ascensão da Aliança Nacional Libertadora. Sofrerá também com a derrota da Intentona Comunista, desastrada tentativa insurrecional feita em novembro de 1935 por militares comunistas em Natal, no Recife e no Rio de Janeiro, sob a orientação de Prestes e da Internacional Comunista (IC, ou Comintern), que envia ao Brasil, entre outros, os dirigentes Arthur Ernst Ewert (com o nome de Harry Berger), alemão, e Rodolfo Ghioldi, argentino.

    A ideia de que o Brasil está pronto para uma revolução comunista fora levada a Moscou pelo secretário-geral do PCB, Antônio Maciel Bonfim, professor do ensino secundário em Alagoinhas, nascido em outra cidade do interior baiano, Irará. Bonfim fizera carreira fulminante no partido após ter sido um dos líderes, no Brasil, de uma organização criada em 1930 por Prestes a partir de Buenos Aires, a Liga de Ação Revolucionária (LAR). Em poucos anos, num contexto de desbaratamento da direção comunista, Bonfim chegara como representante do prestismo à Secretaria-Geral. Ronald H. Chilcote, no livro Partido Comunista Brasileiro: conflito e integração (1922-1972),¹⁰ classifica-o sucessivamente como "agente de Vargas (p. 79, nota 59) e aparentemente agente policial" (p. 168, nota 10).

    Conhecido no partido como Miranda, na discussão que antecede a tentativa golpista de 1935 Bonfim mostra ao dirigente da Internacional Comunista Dmitri Manuilski, num grande mapa de parede do Brasil, uma constelação de pontos nos quais seria forte a organização revolucionária. Em sua descrição fantasiosa, que corrobora a proposta insurrecional feita por Prestes à IC, o PCB lidera todos os movimentos camponeses no país e os cangaceiros são revolucionários que contam com apoio de massas. Manuilski teria ficado extasiado e dito: "Se na Europa existisse um partido como esse nós já teríamos chegado ao poder há muito tempo".

    Bonfim é um dos dirigentes brasileiros que viajam para participar do VII Congresso da IC, inicialmente programado para outubro de 1934 e logo adiado para o ano seguinte. Entre os demais líderes do PCB presentes está Elias Reinaldo da Silva, que, segundo Armênio, "teve a audácia de desmentir um pouco aquilo e foi lançado para as profundas do inferno". Elias é um marítimo que dirige o setor militar do PCB.

    Era início, não auge

    Houve uma grande ascensão do movimento revolucionário em 1934, mas era o início, que foi tomado como plenitude. Que não se tratava de uma revolução em marcha, 1935 mostrou. Um pouco parecido com o período pré-golpe de 64, quando se tratava do início da luta pela reforma agrária, mas se dava a impressão de que os camponeses estavam tomando as terras em toda parte.

    O cenário, depois da Intentona, é de debandada, por causa da perseguição policial. É formada a União Democrática Estudantil, frente única contra o integralismo e contra as forças reacionárias agrupadas em torno do governo de Getúlio. No fim do ano uma reunião patrocinada pela Casa do Estudante do Rio de Janeiro lança as bases do que viria a ser a União Nacional dos Estudantes (UNE).

    Membros do Comitê Central do PCB que tinham fugido da repressão no Rio vão para Salvador, de onde passa a ser rearticulado, penosamente, o comando do partido no país. Chega à Bahia um irmão de Juraci Magalhães que era dirigente da ANL e do partido, Eliezer Magalhães. Juraci, nomeado interventor na Bahia em 1931, depois eleito governador, esconde Eliezer em Itaparica, na Baía de Todos os Santos. Alguns integrantes do governo de Juraci são anti-integralistas, o que explica a repressão ser mais branda no estado. Após o golpe de 37, que instituiu o Estado Novo, Carlos Lacerda, nessa época um jovem estudante comunista, também ficaria escondido em Itaparica. Ele integrava uma caravana de estudantes do Rio que faziam comícios na Bahia.

    No fim de 1935 eu, Augusto Villas Boas e outros estudantes participamos de um curso para aprender a montar bombas. Terrorismo a favor da revolução. Vontade de permanecer na luta: ao contrário dos que haviam debandado, nós estávamos convencidos de que o caminho era o da luta revolucionária. Eu ainda não tinha completado 18 anos.

    A guerra espanhola

    No início de 1936 começam as aulas. O grupo que quer continuar militando no PCB – pouco mais do que meia dúzia dos inscritos no ano anterior – se reúne e faz um balanço. A imprensa favorável à ANL tinha desaparecido. Eram o jornal A Manhã, porta-voz da Aliança Nacional Libertadora, publicado no Rio de Janeiro sob a direção de Pedro Mota Lima, e revistas estudantis que eu e outros companheiros tínhamos feito. O caminho para travar a luta nas novas condições é concorrer à direção da Associação Universitária da Bahia (AUB).

    São estudantes principalmente da Faculdade de Medicina (onde são ministrados também os cursos de Odontologia e de Farmácia) e de Direito. Um dos estudantes da Faculdade de Direito é Sinval Palmeira, que se tornará um advogado comunista conhecido. Há alguns ativistas na Engenharia. Não existem outras faculdades. Há um curso de economia onde se ensina contabilidade. E há uma Escola de Belas Artes.

    Resolvemos participar das eleições nos grêmios estudantis e nos diretórios acadêmicos, recém-criados. Em meados de 1936 ganhamos as eleições para a AUB, além do diretório acadêmico da Faculdade de Medicina. Nas eleições enfrentam-se chapas formadas por comunistas e integralistas. Não são chapas puro-sangue. Na Faculdade de Direito, por exemplo, integram a direção do Diretório Acadêmico aliados como Josaphat Marinho, futuro senador, e outros democratas que fariam carreira na política e no Judiciário. Nós, comunistas, continuávamos com hegemonia no movimento estudantil, mas passamos a trabalhar de uma forma diferente. Não se tratava de dar passos no caminho de uma revolução socialista. Intuitivamente, voltamos à luta dentro do quadro institucional do país.

    O assunto que domina o ano de 1936 é a Guerra da Espanha. Tratava-se de um choque que ia determinar um pouco o futuro, se ia ou não haver guerra, como as forças da esquerda e as forças do fascismo iam ficar no mundo. Então começou uma mobilização intelectual, uma mobilização na imprensa, nas escolas, o acompanhamento que se podia fazer da guerra na Espanha.

    Anos depois ouvi de Roberto Morena, que tinha estado na Espanha durante a guerra civil, um relato de suas peripécias na volta ao Brasil. Morena fez uma longa peregrinação pelo mundo, que contava com muita graça. Fugiu da Espanha para a União Soviética e estava entre os que se retiraram para os Urais quando Hitler ameaçou Moscou. A Conferência da Mantiqueira resolveu que ele viria para o Brasil passando pelo Japão. Chegou lá com passaporte cubano, foi convidado a conversar pelo cônsul de Cuba, que queria saber coisas de Cuba, acabou indo para o México, daí veio para o Brasil. Dinarco Reis, Apolônio de Carvalho e David Capistrano da Costa participaram da Resistência francesa, quando os alemães invadiram o Norte eles fugiram para o Sul, daí para Portugal e depois para o Brasil. Houve nessa época uma passagem engraçada. Um grupo que vivia no Uruguai, entre eles Pedro Mota Lima, resolveu voltar para o Brasil e se apresentar. O Getúlio mandou todo mundo para a cadeia...

    O combate dos comunistas aos integralistas não cessara após a calamitosa Intentona. Diante da programação de um congresso integralista na Bahia, os estudantes criam, com a União Sindical da Bahia, presidida por Félix Noblat, um comitê de denúncia do congresso.

    Para dar vida à AUB, conseguimos formar uma banda, a Jazz Acadêmica. Eu me lembro especialmente do excepcional pianista, o estudante de Medicina José Guerra. A banda faz sucesso. A AUB passa a representar também os estudantes secundaristas. Em 1940 transforma-se na UEB, União dos Estudantes da Bahia, filiada à UNE, União Nacional dos Estudantes.

    É a experiência do chamado trabalho de massas, a atividade desenvolvida em instâncias públicas, não clandestinas, que será desde então marca registrada da política do PCB na maior parte de sua existência.

    Havia campanhas cívicas. Por exemplo, em certo momento houve uma inundação do Rio Paraguaçu, nas cidades de Cachoeira e São Félix. Fizemos caravanas para auxiliar os flagelados, coleta de gêneros entre os comerciantes dali.

    Revistas e jornais

    Criamos um jornal da AUB com artigos de Édison Carneiro, Aydano do Couto Ferraz, Alves Ribeiro, Clóvis Amorim, Dias da Costa e outros intelectuais, ligados ou não ao partido. Em 1937 entramos no clima da eleição presidencial programada para o ano seguinte. Ressurgiu uma imprensa de esquerda, com pequenos jornais e, principalmente, revistas. Outra entidade que canalizou a atividade dos jovens foi a União Democrática Estudantil, fechada com o golpe de 1937. Teve um papel muito grande de agitação, de apoio a José Américo de Almeida [candidato à presidência da República], ligado a Vargas, de quem havia sido ministro da Viação.

    Com Juraci Magalhães e outros aliados anti-integralistas, ajudamos a lançar o Jornal da Bahia. Fernando Tude de Souza foi um dos diretores do jornal. Outro foi Vítor do Espírito Santo, jornalista que havia trabalhado com Assis Chateaubriand na organização dos Diários Associados e, após desentendimento com Chateaubriand, tinha recebido a incumbência de dirigir O Estado da Bahia e o Diário de Notícias, agora incorporado aos Associados.

    O Estado da Bahia era de Chateaubriand, mas torcia pela esquerda. Trabalhavam nele Rui Facó, Sodré Vianna e Alves Ribeiro. Édison Carneiro fazia reportagens sobre os índios da região de Ilhéus e Itabuna, o que provocou um conflito com Juraci, aliado aos latifundiários locais. O partido estava metido nesse movimento indígena. O líder era Martinzão, que eu viria a conhecer em São Paulo nos anos 1950 como dirigente comunista local.

    Armênio menciona ainda o Bahia Jornal: "Reunia muita gente de esquerda que apoiava Juraci Magalhães. [...] Em 1937 ele foi deposto e o jornal fechou".¹¹

    Em 1937 nós, comunistas, organizamos um congresso em defesa da siderurgia nacional. Apoiamos o Plano Raul Ribeiro, éramos contra os projetos do governo, que, entendíamos, queria entregar a siderurgia ao imperialismo. A proposta é semelhante à que se concretizaria anos depois na construção da usina siderúrgica de Volta Redonda, uma conquista de Getúlio no contexto da Segunda Guerra Mundial, após a visita ao Brasil do presidente americano Franklin Roosevelt, que liberou o capital necessário à construção da Companhia Siderúrgica Nacional. Isso é algo que deve ser destacado na história do Partido Comunista: sempre fizemos coisas concretas a favor da modernização e da democracia no país.

    3. Estado Novo

    Na Bahia, violência atenuada

    O golpe do Estado Novo (11 de novembro de 1937) mais uma vez interrompeu um processo ascensional da esquerda. A reação anticomunista e a repressão adquiriram novas características. Os intelectuais ligados ao partido foram todos presos, assim como meu irmão Enéas. Eu fugi para Caetité na noite do golpe, com um primo, Juvêncio. Passamos nessa cidade os primeiros meses depois do golpe. Milton Caires de Brito, comunista muito ativo, estudante de Medicina, fugiu para outra cidade.

    As aulas recomeçaram em 1938. Não havia mais perseguição. O período de Juraci como interventor e governador tinha sido relevante. Inspirados na Guerra Civil Espanhola, nós chamávamos Salvador de a Barcelona do Brasil. Barcelona era um baluarte dos republicanos na luta contra os franquistas.

    As prisões tinham durado entre quinze e vinte dias. Nesse clima amainado, os fugitivos, eu inclusive, voltamos a Salvador. Juraci renunciou e pouco depois assumiu o interventor Landulfo Alves. Ele e seus colaboradores eram homens do Estado Novo, mas encontraram uma situação em que a repressão não tinha muito apoio. Por exemplo, havia um delegado de polícia engajado na luta contra o integralismo, Hannequim Dantas.

    Frente única

    Diante do Estado Novo não cabem mais os velhos métodos do partido dos anos 1920. Fica mais patente a necessidade de seguir a linha da Internacional. A consigna é fazer frente única com as forças democráticas. Na luta contra o integralismo, os comunistas da Faculdade de Direito sempre se unem a professores ou estudantes democratas, antifascistas. Não querem a revolução comunista. Essa linha de trabalho lhes permite ter bom entendimento com estudantes como Josaphat Marinho e Rômulo Almeida, futuro deputado federal. Rômulo tinha sido integralista. Esse entendimento vai perdurar durante o período da legalidade do PCB, após a Segunda Guerra Mundial. Os jovens comunistas baianos – um deles é João Falcão – participam em dezembro de 1938 do congresso nacional realizado na Casa do Estudante do Brasil, no Rio de Janeiro, durante o qual é fundada a UNE.

    Depois do golpe de 37 a Bahia novamente é refúgio de integrantes da direção nacional do PCB, entre eles o secretário-geral, Lauro Reginaldo da Rocha, dito Bangu, e de militares que, como Antônio Bento Monteiro Tourinho, haviam escapado da cadeia após terem sido presos em 1935.

    O trabalho dos estudantes comunistas passa mais uma vez a ser de reorganização. "No livro Adorável comunista, biografia de Fernando Sant’Anna escrita por Antonio Risério,¹² esse clima está muito bem descrito", indica Armênio. E há muitos detalhes sobre a atividade dos estudantes comunistas da Bahia no livro de João Falcão O Partido Comunista que eu conheci – 20 anos de clandestinidade. ¹³

    (O início do Estado Novo) é um período em que o governo é superautoritário, centralizado, e o povo está muito despolitizado. Os sindicatos praticamente só podiam realizar assembleias com autorização da polícia. Era preciso, primeiro, fazer a ordem do dia, enviar para a polícia, e a Delegacia do Trabalho mandava uma pessoa acompanhar. Ninguém tinha clareza de como sair daquela noite escura que era o Estado Novo. Nós, jovens que tínhamos despontado para a vida no mundo no ano de 35, um ano de grande agitação, de repente caímos numa total falta de liberdade, total arbítrio, polícia nas escolas, víamos gente presa, os professores se autocensuravam. Alguns democratas, como Nestor Duarte e Aloísio de Carvalho, na Faculdade de Direito da Bahia, sempre que podiam, faziam uma certa pregação democrática. Mas, na realidade, foram anos de muita despolitização. Ao mesmo tempo, nós acompanhamos angustiados a Guerra da Espanha, que marcharia para um desfecho de derrota das forças da Frente Popular, numa situação que evoluía para a Segunda Guerra. E nós sem nenhuma perspectiva.

    Intelectuais

    Quando se trata de divulgar as posições políticas do partido, a saída era sempre fazer uma revista literária ou cultural. Nós, do PC baiano, estávamos sempre falando de usar e abusar da linguagem de Esopo. Surgem na Bahia algumas revistas. A primeira é Flama. A mesma coisa ocorre no Rio. É mais ou menos nessa época que começa a circular Diretrizes, de Samuel Wainer. Conheci Wainer na modesta redação da revista, na Rua Primeiro de Março, entrada pelo Beco dos Barbeiros, Centro do Rio, no início dos anos 1940. Há a Revista Acadêmica, de Murilo Miranda e Moacyr Werneck de Castro. Em São Paulo é lançada a revista Problemas, dirigida, entre outros, por Paulo Emílio Salles Gomes e Caio Prado Júnior. O título será, anos depois, apropriado pelo partido. Os intelectuais sempre com um papel muito grande na organização política. São uma espécie de núcleo que formula as ideias e a estratégia do antifascismo.

    Em São Paulo as lutas às vezes eram mais acirradas contra o trotskismo, porque isso era mais fácil do que reconstruir o partido. Mas há uma reconstrução do PCB. Em junho de 1937 o ministro da Justiça, José Carlos de Macedo Soares, tinha mandado soltar mais de quatrocentas pessoas presas após a Intentona e que continuavam sem processo formado. Esse episódio ficou conhecido como Macedada.

    Arruda comanda

    Na história do PCB assumirá proporções quase mitológicas o chamado grupo baiano. Muitos jovens baianos dessa geração terão, de fato, grande projeção no universo comunista brasileiro: Alberto Passos Guimarães (que era alagoano, companheiro de Graciliano Ramos, mas vai morar em Salvador em 1940), Aristeu Nogueira, Aydano do Couto Ferraz, Carlos Marighella, Giocondo Dias – o cabo Dias, um dos dirigentes, em Natal, da tentativa insurrecional de 1935 –, Jacob Gorender, Mário Alves, Maurício Grabois, Milton Caires de Brito, além, é claro, de Armênio. São, entretanto, pessoas cujos papéis se articulam de maneiras diferentes, em lugares diferentes.

    Leôncio Basbaum, médico, fora da direção nacional do PCB no final dos anos 1920. Como secretário-geral da União da Juventude Comunista, participara em Moscou de um congresso da Internacional Comunista. Ele anda por Salvador, como gerente da sucursal local das Lojas Brasileiras, que pertencem a sua família. Leôncio ajuda Diógenes de Arruda Câmara, vindo de Pernambuco, e que começa a aparecer como dirigente do partido, no qual havia ingressado em 1934. Um tio de Arruda, o Monsenhor Arruda Câmara, que exerceu muitos mandatos de deputado federal entre 1934 e 1970, é importante na política de Pernambuco e consegue que o sobrinho seja nomeado para o Ministério do Trabalho. Arruda estuda Agronomia e trabalha com o delegado regional do Trabalho na Bahia. Aproveita-se de sua condição de funcionário do Ministério do Trabalho para organizar alguma resistência do movimento sindical na Bahia à política do Estado Novo. Arruda é o principal dirigente dos comunistas na Bahia.

    O movimento de estudantes, intelectuais e sindicalistas começa a crescer e em 1940 há uma onda repressiva promovida pelo secretário de Segurança do interventor Landulfo Alves, Urbano Pedral Sampaio. Arruda é preso e torturado, e fica na cadeia até o fim do ano. É preso meu irmão mais novo, Célio, estudante secundarista do Colégio da Bahia, na época ainda Ginásio da Bahia. Havia um policial infiltrado entre os alunos. Eu escapei.

    Arruda era noivo de uma prima minha, Aldeir Paraguassu, com quem se casou ao sair da cadeia. Ele já havia concluído o curso de Agronomia e tinha sido demitido do Ministério do Trabalho.

    Comitê Regional

    Durante o período da prisão de Arruda eu fui cooptado para o Comitê Regional do partido e encarregado da Propaganda. Fui o secretário da Seiva, a primeira revista não clandestina do PCB. Logo depois da fundação do partido, em 1922, Astrojildo Pereira e outros tinham criado a revista Movimento Comunista, feita ilegalmente. A Seiva foi criada em dezembro de 1938 por iniciativa de João Falcão. Desempenhou papel importante na divulgação das posições do PCB, mas também por abrigar, de forma bem aberta, contribuições de intelectuais antifascistas de diferentes horizontes políticos e ideológicos.

    Entre muitos outros, podem ser citados Abguar Bastos, Afrânio Coutinho, Aliomar Baleeiro, Carlos Lacerda, Carlos Drummond de Andrade, Joel Silveira, Lêdo Ivo, Luiz Viana Filho, Murilo Mendes, Manoel Diegues Jr., Nestor Duarte, Orlando Gomes, Odorico Tavares, Rubem Braga. No prefácio à edição comemorativa dos 50 anos da Seiva (A história da revista Seiva),¹⁴ João Falcão publica a lista completa dos colaboradores da revista.

    Eu me dediquei integralmente à revista após terminar o curso de Direito. Desisti definitivamente de ser advogado depois de assistir a uma sessão do júri. Fui muito entusiasmado, mas, como espectador, achei a coisa tão asquerosa, aquela quantidade de papel velho, sujo, e aqueles burocratas da Justiça, que nunca mais me interessei pelo direito. Queria fazer política e trabalhar em jornalismo na medida em que isso fosse possível, combinasse com a política.

    Romantismo

    Nós tínhamos uma oficina primitivíssima, era composição a mão e uma máquina de imprimir a pedal. Para tirar uma revista com trinta páginas levava um mês, compondo aquelas letras e depois imprimindo. Era uma salinha ali no Comércio, na Cidade Baixa. Em 1938, no 1º de Maio que se fez depois do Estado Novo, eu e o João Falcão ficamos pintando umas bandeiras que íamos botar na rua. Esperamos que dois operários saíssem. Eles trancaram o prédio, nós ficamos lá, um prédio velho daqueles da Bahia, preocupados com as nossas famílias, deitamos em cima da resma de papel, dormimos, só saímos dali de manhã cedo, quando abriram o prédio. Mas tudo aquilo era feito com uma alegria imensa, um romantismo muito grande.

    Era uma época em que nós achávamos que íamos tomar o céu de assalto, que estava próxima a revolução. Não dávamos importância a nada do que fazíamos convencionalmente. Estudar direito, para quê? O pessoal vai acabar com esse negócio de direito burguês. Fazer CPOR [Centro de Preparação de Oficiais da Reserva], para quê? Esse exército de classes vai acabar e vai se formar um Exército Vermelho.

    Um de meus companheiros no Comitê Regional era o artesão de móveis de vime Bedegueba [Manoel Batista de Souza], que depois foi para o Rio e ficou tomando conta de um aparelho do partido, ou seja, uma casa para reuniões clandestinas. Ele morreu depois do golpe de 64. Era de um grupo que vinha dos anos 27, 28. Foi o primeiro contato que meu irmão Enéas teve no partido. Havia um sapateiro, Reinaldo [Manuel Reinaldo Pinheiro], dirigente sindical. Tinha uma sapataria na Sé. Sempre muito bem-vestido, muito delicado no falar. Acho que era espírita, qualquer coisa assim. Praticante de um marxis­­mo sincrético...

    Não havia em Salvador, nesses anos, mais do que cinquenta pessoas organizadas que frequentavam as reuniões do partido. Estudantes, empregados das linhas de bondes, trabalhadores do cais do porto, alguns operários de fábricas de tecido que ainda existiam naquele momento na Bahia – Luís Tarquínio, Fábrica Paraguassu, Empório Industrial do Norte –, alguns ferroviários e empregados da empresa aérea Panair que trabalhavam no hidroporto da Ribeira, onde hoje fica a Marina Porto dos Tainheiros.

    Quem teve um papel destacado foi Giovanni Guimarães, companheiro de Jorge Amado desde a meninice no colégio. Giovanni era formado em Medicina, mas foi editor do jornal A Tarde, se dava bem com o dono do jornal, Simões Filho. Ele tinha uma coluna – assinava-se GG – onde às vezes publicava alguma coisa que nos ajudava.

    No período em que Arruda ficou preso, João Falcão foi a um congresso nacional na Casa do Estudante, no Rio, onde entrou em contato com Maxim Carone, irmão de Edgard Carone, futuro professor da Universidade de São Paulo que viria a ser autor de importantes histórias da República, do movimento operário brasileiro e do PCB. Maxim disse a Falcão que em São Paulo se havia constituído, com dirigentes escapados da repressão policial, um núcleo da direção nacional do partido. João levou para a Bahia essa notícia e indicações que permitiriam entrar em contato com essas pessoas.

    Reorganizar o PCB

    Reorganizar a direção do PCB não é veleidade nem capricho, é tarefa embalada pelo sucesso inicial da política das Frentes Populares, pela guerra civil na Espanha e pela repercussão da Longa Marcha de Mao Tsé-Tung na China (1934-1935).

    Pesou também o grande apoio popular conquistado pelo New Deal, resposta do presidente Franklin Roosevelt à Grande Depressão americana. E tivera repercussão a luta de Augusto Sandino, na Nicarágua, contra o imperialismo americano. Outro fator que incitava ao combate era a existência de três ditaduras no Cone Sul: a de Vargas no Brasil, a do general Agustín Justo na Argentina e a de Gabriel Terra no Uruguai. A experiência de frente popular no Chile, durante a presidência de Cerda, também foi um estímulo.

    Na visão marxista, a dramática ascensão do fascismo é fenômeno que atesta a crise do capitalismo. No dia a dia é antes de mais nada ameaça de aniquilação à qual é preciso se contrapor. A cronologia dos acontecimentos que antecedem o início da Segunda Guerra Mundial desde 1935, quando a Itália de Mussolini invade a Etiópia, fala por si mesma. Na Europa, às ditaduras fascistas da Alemanha e da Áustria, da Itália, da Polônia, da Iugoslávia, da Bulgária e de Portugal vão se somar, ano após ano, as da Estônia, da Letônia, da Lituânia, da Grécia, da Espanha, da Romênia e da Hungria.

    O nacionalismo militarista não se alastra apenas no continente europeu. Em 1937 o Japão invade a China e anexa a Manchúria. Os passos da Alemanha hitlerista antes da invasão da Polônia, iniciada em 1o de setembro de 1939, só enganam quem prefere se iludir: a reconstituição da Força Aérea e a expansão do Exército, proibidas pelo Tratado de Versalhes; a retomada da região mineira do Sarre, que estava sob jurisdição da Liga das Nações; a criação do Eixo e a assinatura do Pacto Anti-Comintern com os aliados italianos e japoneses; a participação direta e mortífera na Guerra Civil Espanhola; a anexação da Áustria e a conquista do território tcheco dos Sudetos na vergonhosa negociação que Inglaterra e França fazem com Hitler em 1938, quando é assinado o Acordo de Munique.

    Influência aliancista

    No Brasil a Aliança Nacional Libertadora, cujo presidente de honra fora Luiz Carlos Prestes, deixara, em sua curta trajetória legal, de março a julho de 1935, muitas sementes de mobilização entusiasmada. Estimativas do número de participantes chegam a 100 mil pessoas. A influência do movimento se mede ainda por adesões extremamente qualificadas no campo intelectual e artístico: Jorge Amado – que Armênio, estudante de Direito, conheceria em Salvador em 1937 –, Oscar Niemeyer, Candido Portinari, Emiliano Di Cavalcanti, Graciliano Ramos, Caio Prado Júnior, Vinicius de Moraes, Oswald de Andrade, Rubem Braga, Eneida (de Moraes), Álvaro Moreyra e sua mulher, Eugênia, Vilanova Artigas e Quirino Campofiorito são alguns dos nomes mais conhecidos. Vários se filiarão ao PCB após a conquista da legalidade, em 1945.

    O regime do Estado Novo sufocava as manifestações políticas, mas havia brechas por onde os ativistas se movimentavam. O leque de escritores de convicções democráticas preocupados em retratar a vida do povo era notável: Mário de Andrade, Afonso Schmidt, José Américo de Almeida, Raquel de Queirós, José Lins do Rego, Erico Verissimo, Viana Moog, Dyonélio Machado, Dalcídio Jurandir, Patrícia Galvão, os poetas Carlos Drummond de Andrade, Raul Bopp, Jorge de Lima, Murilo Mendes. Havia um movimento cultural que se estruturava em torno de revistas.

    Máquina de guerra nazista

    Em agosto de 1939 Josef Stálin, o líder soviético, faz um pacto de não agressão com Hitler. Isso se deu mediante inversão da linha proposta pelo ministro das Re­la­ções Ex­te­rio­res da URSS, Maxim Litvinov, até a reunião de setembro de 1938 em Muni­que, Ale­manha, na qual os primeiros-ministros britânico e francês, Neville Chamberlain e Édouard Daladier, capitularam diante de Hitler. Litvinov propusera uma aliança anti-Eixo.

    Os comunistas brasileiros, testemunha Armênio, entendem o Pacto Germano-Soviético como expediente necessário para ganhar tempo, e nada além disso. A máquina de guerra nazista se põe em marcha. Em setembro de 1940, um ano após o início da invasão da Polônia, Dinamarca, Noruega, Holanda, Bélgica e França estão ocupadas pelos alemães.

    No Brasil, apesar da forte presença de simpatizantes do Eixo, colônias alemãs e italianas pró-fascistas nos estados do Sul e do Sudeste, até espanhóis franquistas na Bahia, além de remanescentes do integralismo por toda parte, a maioria do povo é contra os agressores. E isso aflora em comícios improvisados que a polícia política – tropa de choque do governo autoritário – não consegue reprimir.

    Em junho de 1940 Vargas discursa a bordo do encouraçado Minas Gerais. A fala é interpretada como preferência pelo Eixo, o que Getúlio desmente por intermédio do ministro das Relações Exteriores, Osvaldo Aranha, preocupado com a má repercussão na imprensa internacional e, principalmente, nos Estados Unidos. Mas o texto de Vargas é incisivo:

    "A ordenação política não se faz, agora, à sombra do vago humanitarismo retórico que pretendia anular as fronteiras e criar uma sociedade internacional sem peculiaridades nem atritos, unida e fraterna, gozando a paz como um bem natural, e não como uma conquista de cada dia. Em vez desse panorama de equilíbrio e justa distribuição dos bens da Terra, assistimos à exacerbação dos nacionalismos, as nações fortes impondo-se pela organização baseada no sentimento da Pátria e sustentando-se pela convicção da própria superioridade".

    Os comunistas, até a invasão da União Soviética, defenderão uma política de neutralidade, "para contrabalançar a tendência que existia no mundo oficial brasileiro a favor do Eixo", explica Armênio.

    Terreno minado

    Quando Arruda saiu da cadeia, no final de 1940, a tarefa urgente era reconstruir o PCB. Ele e eu, baseados em informações de João Falcão, tomamos a decisão de ir para São Paulo. Imaginamos que isso nos permitiria entrar em contato com remanescentes da direção comunista. Arruda recebeu algum dinheiro da família dele e da sogra, minha tia. Ela vendeu tudo que tinha na Bahia para financiar a viagem. Minha mãe me deu uns 200 mil-réis, o valor de uma mesada de estudante na época, ou metade do aluguel de uma casa modesta.

    Pegamos um navio em Salvador. Arruda, para fugir à repressão, evitou o Rio de Janeiro. Ficou em Vitória, de onde veio para São Paulo de trem. Eu segui até o Rio e Santos. Em maio de 1941 nos encontramos no Hotel do Oeste, no Largo de São Bento. O plano era entrar em contato com um irmão de Milton Caires de Brito, Nabor, jornalista dos Diários Associados, mas uma semana antes de nossa chegada a polícia desbaratou toda a organização comunista que havia em São Paulo.

    Arruda arranjou um estágio como agrônomo no Instituto Agronômico de Campinas. Trabalhou com José Setzer, um competente especialista em solos. Ele não era do PCB, mas era ligado à esquerda, um judeu antifascista. A colônia judaica em São Paulo, em especial médicos e engenheiros, tinha fortes ligações com o partido. Arranjamos uma casa para morar em Campinas. Duas ou três vezes por semana nos reuníamos para estudar O capital. Frequentemente pegávamos um trem muito confortável da São Paulo Railway e íamos à capital nos encontrar com Nabor e outros comunistas dispersos, entre eles o próprio Milton Caires – que, já formado, abrira um consultório na Zona

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