Ontologia e economia política: Marx leitor de Hegel
De Wécio Araújo
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Sobre este e-book
(Autor: Diogo Ferrer – Universidade de Coimbra).
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Ontologia e economia política - Wécio Araújo
À Buneka,
que sempre me resgata
quando passo tempo demais
na companhia de Hegel e Marx.
Todas as coisas têm ser?
Manoel de Barros¹
1 Barros, 2013, p. 58.
NOTAS DO AUTOR
I
A exposição apresentada neste livro decorre de uma pesquisa iniciada ainda em meados dos anos 2010. Ao longo deste percurso, publiquei vários artigos e ensaios, dentre outras produções, incluindo a minha tese de doutorado com estágio na Alemanha (PDSE/CAPES)², onde tive a oportunidade de ser orientado pelo Prof. Christoph Türcke, que escreve a apresentação desta obra. O ponto em questão é que sintetizo aqui este itinerário investigativo, de modo que significativa parte desta produção supracitada é revisitada (revista, ampliada e corrigida) nesta obra que o leitor tem em mãos. Por fim, ressalto ainda que não se trata da publicação na íntegra da minha tese doutoral (muito longe disso), embora contenha grande parte dela (igualmente revista e ampliada).
II
As citações de Hegel e Marx, não raro, mesclam traduções com o original, no sentido de reproduzir fielmente o processo investigativo no processo expositivo. Por outro lado, em outros momentos (sobretudo no que tange às obras de comentadores sem tradução no Brasil) realizo livre tradução do original, obviamente submetida à revisão de especialistas.
2 Pesquisa realizada com estágio doutoral na Hochschule für Grafik und Buchkunst (HGB/Alemanha), proporcionado pela bolsa do Programa de Doutorado Sanduíche (PDSE/CAPES) durante o ano de 2017, processo n.º 88881.133482/2016-01. Também participei de atividades na Leipzig Universität (Universidade de Leipzig) e na Humboldt Universität zu Berlin (Universidade Humboldt de Berlim).
APRESENTAÇÃO
Christoph Türcke³
O sábado foi feito para o homem e não o homem para o sábado
. Esta sentença bíblica (Marcos 2, 27) – provavelmente uma palavra autêntica do Jesus histórico, pois ela rompeu com todas as representações contemporâneas vigentes do sábado – pode ser lida, hoje em dia, como a fórmula mais breve para o conflito entre Marx e Hegel, conflito que se encontra reatualizado neste livro inteligente de Wécio Pinheiro Araújo sobre Ontologia e Economia Política
.
Ontologia? Sim e não. O jeito hegeliano era liquidar tudo que os filósofos desde Parmênides e Platão tinham considerado o ser por excelência; um ser incondicionado, imperecível, perfeitamente consistente e subsistente em si mesmo; algo que só pôde ter qualidade imaterial e espiritual, pois o mundo físico sofre de inconsistência, instabilidade e falta de confiabilidade. Mas por liquidar tal ser Hegel não entendeu aniquilá-lo, senão diluí-lo para o estado de liquidez e fugacidade máxima, ou seja, para o movimento puro do nada para o nada de volta por si mesmo
(von Nichts zu Nichts durch sich selbst zurück).
Esse movimento do nada (Nichts), porém, Hegel sugeriu como o movimento do espírito divino que constituiu e penetra o mundo inteiro. Infelizmente, tal coincidência paradoxal do nada com o divino não se restringe a um espectro cerebral. Ela ganhou realidade na sociedade moderna. O sábado
não consiste no santo repouso final, mas no percurso incessante de mercadorias. E a força percussiva que não passa de um mero movimento e, não obstante, abrange e permeia a sociedade inteira, é o capital: um deus e um nada ao mesmo tempo. Ele é o fim de qualquer ontologia, mas este fim faz questão de contrair duração eterna.
Romper com esta eternidade foi o projeto de Marx. Um movimento puro sem qualquer essência própria e tanto mais capaz de subjugar todos os movimentos físicos e sociais dos homens lhe parecia o ápice da perversão. Por isso seu famoso impulso de inverter o Hegel da cabeça aos pés – claramente não para retroceder à ontologia estática antiga, mas para revolucionar a sociedade capitalista. Marx também pretendeu liquidar a ontologia, mas num sentido contrário: a favor do ser real físico da humanidade que não é eterno, mas perecível; fraco e ameaçado, mas tanto mais precioso. Preparar a sociedade a serviço deste ser físico, a fim de preservar e salvá-lo na medida do possível: isso seria a versão moderna de preparar o sábado
para o homem.
O livro de Araújo traça duas maneiras de levar a ontologia ao fim, a idealista e a materialista, e dedica-se profundamente à analogia, ao contraste e ao ponto da reviravolta entre elas. Desejo-lhe muitos leitores atentos.
3 Christoph Türcke é um dos principais representantes da Teoria Crítica na contemporaneidade, herdeiro da tradição inaugurada por Walter Benjamin, Theodor Adorno e Max Horkheimer, que ficou conhecida como a Escola de Frankfurt. Desde a sua aposentadoria em 2014, segue desenvolvendo atividades acadêmicas como professor emérito de filosofia na Escola de Belas Artes de Leipzig (Hochschule für Grafik und Buchkunst - HGB). Sua obra está situada no arco teórico das tradições da Teoria Crítica, do marxismo e da psicanálise freudiana. Seus campos de trabalho abarcam a crítica da teologia, da violência, dos tabus, a questão da indústria cultural e da sociedade do espetáculo, bem como a análise do significado dos rituais das causas sociais e antropológicas de sintomas socioculturais como o fundamentalismo e a hiperatividade. Nos últimos anos tem publicado uma série de obras que compõem uma contribuição de grande relevância para a atualização da Teoria Crítica.
PREFÁCIO
Permanecemos contemporâneos do velho Hegel: Marx e a tarefa renovada de pensar criticamente o tempo presente
Leonardo da Hora⁴
Medir a influência de Hegel sobre Marx é um problema tão clássico quanto difícil no campo de estudos marxianos. Marx nem sempre é claro em relação à sua dívida teórica com o antigo professor da Universidade de Berlim, ainda que esta, para qualquer leitor minimamente atento de sua extensa obra, seja inegável. Mas se determinar, com alguma precisão teórica, a natureza e a extensão de tal influência está longe de ser uma tarefa fácil, não se pode tampouco renunciar facilmente a tal empreitada, sobretudo se quisermos obter uma compreensão mais clara e profunda do método que Marx mobiliza para desenvolver a sua crítica da economia política.
A leitora pode, contudo, se perguntar: existe ainda algo de novo a ser dito sobre tal tema? Não já existem inúmeros estudos que esmiúçam diversos aspectos da intricada relação entre dialética marxista
e dialética hegeliana
, para relembrarmos o título de um livro de um eminente especialista nessa questão?⁵ Com efeito, desde a famosa negação althusseriana de tal influência na obra de maturidade de Marx, estabelecendo o controverso corte epistemológico
entre o jovem
e o velho
Marx (Althusser, 2015), incontáveis estudos foram publicados a fim de refutar tal perspectiva, mostrando que a influência da filosofia de Hegel sobre a crítica do capitalismo desenvolvida por Marx se estende pelo menos até O Capital, passando sobretudo pelos Grundrisse. Deixando entre parênteses a enorme bibliografia internacional sobre o tema, é importante reconhecer que aqui no Brasil tivemos uma produção teórica do mais alto nível, a começar pelo trabalho do já citado Ruy Fausto, mas também com destaque para as contribuições de José Arthur Giannotti (1975, 1985), Marcos Lutz Müller (1982) e Jorge Grespan (2012).
É com enorme satisfação que posso constatar, a partir da publicação deste presente livro de Wécio Pinheiro Araújo, Ontologia e economia política: Marx leitor de Hegel, que esta tradição brasileira de estudos hegelo-marxianos está mais viva do que nunca. Satisfação porque trata-se não apenas de uma tradição teórica e acadêmica de especialistas fechados em torno de um determinado tema, mas sobretudo de uma perspectiva de teoria social crítica, em que o legado dialético é posto a serviço da renovação da crítica do capitalismo na contemporaneidade.
Mas em que consiste a contribuição do presente livro, em meio a tão rica tradição? Em primeiro lugar, eu diria que este livro é, salvo engano, um dos primeiros, no Brasil, a dialogar de modo sistemático com um conjunto de autores – tais como Christopher Arthur (2016), Fred Moseley e Tony Smith (2015) – vinculados à chamada New Dialectics, a qual visa renovar os estudos dialéticos acerca da influência de Hegel sobre Marx. Nesse sentido, Araújo, desde a introdução, se filia a essa ênfase na dimensão sistemática
, em oposição à dimensão histórica, da dialética hegeliana. Com isso, no lugar de uma lógica dialética do desenvolvimento que fundamentaria a história mundial, pautada na contradição entre forças produtivas e relações de produção, bem como na contradição e na luta entre as classes, temos uma ênfase na articulação de categorias designadas a conceituar um todo concreto existente, em que a ordem de exposição destas categorias não precisa coincidir com a ordem da sua aparição na história. É essa perspectiva que irá servir para interpretar O Capital e seu método expositivo à luz da Ciência da Lógica, por exemplo.
No entanto, para além dessa filiação, de modo mais específico, temos o título da presente obra que, em certa medida, já indica que a articulação entre ontologia e economia política é a chave para compreender o seu escopo central. Mas se economia política
é facilmente associável à crítica de Marx ao capitalismo, qual o sentido da palavra ontologia aqui? Em que medida a ontologia desempenha um papel na crítica da economia política? Trata-se, na realidade, de uma ontologia do sujeito, isto é, de um resgate dos caracteres fundamentais que traçam e estruturam a formação do sujeito, segundo a perspectiva hegeliana.
De fato, a leitura que Araújo nos propõe se notabiliza por recuperar, notadamente, a filosofia do espírito hegeliana enquanto uma espécie de ontologia social, que nos fornece as bases fundamentais a partir das quais podemos compreender o modo como não apenas Hegel, mas também Marx analisa a sociabilidade humana, em geral, e a sociedade capitalista em particular. Isto é, os elementos centrais de tal ontologia se mostrarão essenciais para o modo como Marx vai abordar as formações sócio-históricas, notadamente a concepção da vida humana totalizada no ser social, formado no e pelo trabalho enquanto essência objetiva e subjetiva do sujeito.
Como esclarece Araújo, ao produzir um conteúdo material, o trabalho produz também uma racionalidade enquanto forma subjetiva deste conteúdo a ser vivenciado pelos sujeitos produtores em sociedade. E, neste sentido, o conceito hegeliano de formação (Bildung) permite-nos compreender que o trabalho não se refere apenas à produção de objetos em sentido material, mas sobretudo à produção de racionalidade segundo relações que formam e educam socialmente o indivíduo, estabelecendo assim uma verdadeira ontologia social enquanto uma ontologia do sujeito que tem seu pressuposto central no fato social de que o trabalho forma
. Neste sentido, o Espírito (Geist) pode ser compreendido enquanto razão imanente à atividade consciente objetiva que se expressa no processo de trabalho e nos seus resultados. Dito de outro modo, o espírito é, em última instância, a forma geral do agir intencional do conceito na forma da racionalidade imanente produzida no processo de trabalho como atividade consciente objetiva (práxis). O Espírito representa a unidade entre subjetividade e objetividade que se estabelece como um Todo, para além da vontade individual, mas decorrente das relações sociais estabelecidas pelos indivíduos em sociedade.
Logo, no mundo humano, as coisas materiais produzidas pelo trabalho são dotadas de espírito
enquanto razão imanente que se torna real à medida que é vivenciada pelos próprios indivíduos produtores, na medida em que tais indivíduos são sujeitos na experiência da vida em sociedade. Nenhuma outra espécie no planeta põe no mundo racionalidade imanente à sua realidade a partir de um processo ativo consciente e objetivo que se realiza também subjetivamente, isto é, sendo dito e, portanto, transpassado pela linguagem. Neste sentido, somente o ser humano produz – em sentido rigoroso – realidade no mundo, porque somente ele põe espírito
(leia-se: racionalidade) nas coisas que produz e na forma de vivenciá-las subjetivamente na experiência histórica.
A partir deste núcleo sócio-ontológico acerca do sujeito, não apenas Hegel, mas também Marx pode tanto descrever quanto criticar a sociedade capitalista. Isso porque tal base conceitual lhe fornece critérios para avaliar em que medida tal sujeito que, ao mesmo tempo, se forma e se exterioriza nos objetos que produz, se reconhece e se reconcilia com essa produção, articulando objetividade e subjetividade. E a resposta de Marx a esse respeito não deixa de ser surpreendente: neste tipo de sociedade, não é o ser humano que aparece como sujeito ou espírito nesse processo de produção da vida e da sociedade, mas sim o próprio capital. Em outras palavras, enquanto relação social dominante na sociedade moderna, o capital adquire a estatura ontológica de Espírito à medida que age como Sujeito autônomo e negativo do trabalho substantivado na forma valor, ao passo que os indivíduos se encontram alienados de sua própria essência de ser social dotado de atividade livre.
O uso do verbo aparecer não é gratuito aqui e, mais uma vez, Marx se mostra devedor da ontologia hegeliana ao mostrar que o modo de produção capitalista é essencialmente perpassado por uma dialética entre essência e aparência, em que a segunda esconde e deforma a primeira. Temos então uma crítica da aparência (Schein) na busca daquilo que acontece para além dela, isto é, em uma esfera mediatizada da realidade que Hegel determina como efetividade (Wirklichkeit) e essência (Wesen). Essa referência marxiana carrega o sentido da efetividade hegeliana, que diz respeito ao mais concreto não por ser o sensível ou o tangível (rico de sensações), mas, ao contrário e em sentido dialético, por ser a essência (Wesen) e, portanto, aquela esfera da realidade que, embora pobre de sensações, se revela rica de mediações estabelecidas entre aquilo que aparece e aquilo que a coisa é para além de sua aparência.
Os sujeitos (os trabalhadores) não se reconhecem no seu próprio mundo, seja nos objetos resultantes do seu trabalho, seja nos outros indivíduos com os quais estabelece relações, precisamente porque a riqueza aparece na sociedade capitalista sob as formas fetichistas da mercadoria, do dinheiro e do capital e jamais como trabalho humano socializado. Todavia, segundo a leitura de Araújo, se a substância do capital é produzida pelo trabalho, Marx percebe que o valor se refere à essência historicamente determinada e socialmente condicionada que está por trás
da forma fenomênica basilar por meio da qual a riqueza aparece na sociedade capitalista: a forma mercadoria. Este