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O Vermelho e o Negro
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E-book773 páginas10 horas

O Vermelho e o Negro

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Sobre este e-book

«Apesar das numerosas semelhanças entre O Vermelho e o Negro e A Cartuxa de Parma, os dois romances são subtilmente diferentes na sua perspectiva erótica e na representação dos protagonistas de Stendhal. A nostalgia de glória napoleónica não abandona Julien quase até ao fim, mas extingue-se em Fabrizio depois da derrota de Waterioo. O autêntico amor não se apodera de Julien a não ser nos seus últimos dias e, ainda que não existam motivos para duvidar da sua sinceridade, tanto ele como Madame de Renal sabem que não têm futuro, o que constitui um nada negligenciável motivo para intensificar a paixão.»


«Julien Sorel nada sabe de si próprio; só é capaz de sentir as paixões depois de as simular e tem um inegável talento para a hipocrisia. E, no entanto, Julien mantém o nosso interesse e, mais do que isso, fascina-nos, não somos capazes de sentir antipatia por ele.» [Harold Bloom, O Futuro da Imaginação]

«Stendhal faz com que o leitor se sinta orgulhoso de ser seu leitor.» [Paul Valéry]
IdiomaPortuguês
EditoraRelógio D'Água Editores
Data de lançamento17 de fev. de 2025
ISBN9789897835483
O Vermelho e o Negro
Autor

Stendhal

MARIE-HENRI BEYLE (23 January 1783 - 23 March 1842), better known by his pen name Stendhal, was a 19th-century French writer. Best known for the novels Le Rouge et le Noir (The Red and the Black, 1830) and La Chartreuse de Parme (The Charterhouse of Parma, 1839), he is highly regarded for the acute analysis of his characters’ psychology and considered one of the earliest and foremost practitioners of realism. Born in Grenoble, Isère, he relocated to Italy following the 1814 Treaty of Fontainebleau, settling in Milan. He formed a particular attachment to Italy, where he spent much of the remainder of his career, serving as French consul at Trieste and Civitavecchia. Having suffered a number of physical disabilities in his final years of writing, Stendhal died at the age of 59 in March 1842, just a few hours after collapsing with a seizure on the streets of Paris. He is interred in the Cimetière de Montmartre. HAAKON MAURICE CHEVALIER (September 10, 1901 - July 4, 1985) was an American author, translator, and professor of French literature at the University of California, Berkeley best known for his friendship with physicist J. Robert Oppenheimer, whom he met at Berkeley, California in 1937. Born in Lakewood Township, New Jersey, Chevalier served as a translator for the Nuremberg Trials in 1945 and has translated many works by Salvador Dalí, André Malraux, Vladimir Pozner, Louis Aragon, Frantz Fanon and Victor Vasarely into English. He died in 1985 in Paris at the age of 83.

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    O Vermelho e o Negro - Stendhal

    PRIMEIRA PARTE

    A verdade, a dura verdade!

    Danton

    I. UMA CIDADE PEQUENA

    Put thousands together

    Less bad,

    But the cage less gay.

    Hobbes

    ¹

    A pequena cidade de Verrières pode ser considerada uma das terras mais bonitas do Franche-Comté. As suas casas brancas, de pontiagudos telhados vermelhos, estendem-se pela encosta de uma colina coberta de vigorosos castanheiros, cujas copas assinalam as mais ínfimas sinuosidades do terreno. O Doubs corre algumas centenas de pés abaixo das suas muralhas, outrora construídas pelos espanhóis e hoje em ruínas.

    Verrières está abrigada a norte por uma elevada montanha, um dos contrafortes do Jura. Os cumes recortados do Verra cobrem-se de neve logo aos primeiros frios de Outubro. Uma torrente, que se precipita da montanha, atravessa Verrières antes de verter o seu caudal no Doubs, pondo em movimento um grande número de serrações de madeira. Graças a esta indústria, a maior parte dos habitantes, mais aldeões do que burgueses, desfruta de um certo bem-estar, embora não tenham sido as serrações que enriqueceram a pequena cidade. É à fábrica de tecidos estampados, conhecidos por chitas de Mulhouse, que se deve a abastança geral que, após a queda de Napoleão, permitiu a reconstrução das fachadas de quase todas as casas de Verrières.

    Mal se entra na cidade, fica-se de imediato atordoado pelo estrépito ensurdecedor de uma máquina barulhenta de aspecto terrível. Uma roda movida pela torrente levanta vinte pesados martelos que, ao caírem, produzem um estrondo tão forte que faz tremer o pavimento. Cada um destes martelos fabrica por dia uma infinidade de milhares de pregos. E são frescas e graciosas raparigas que submetem à acção destes enormes martelos os pedacinhos de ferro que rapidamente se transformam em pregos. Este trabalho, aparentemente tão rude, é um dos que causa mais estranheza ao visitante que pela primeira vez penetra nas montanhas que separam a França da Helvécia. Se, ao entrar em Verrières, o viajante perguntar a quem pertence aquela imponente fábrica de pregos que ensurdece as pessoas que sobem a rua principal, ouvirá responder com uma entoação arrastada: Ah! Essa fábrica pertence a Sua Excelência, o «maire»².

    Por muito pouco que o viajante se demore nessa rua de Verrières, que vai da margem do Doubs até ao alto da colina, é de apostar cem contra um que verá por lá um homem corpulento com ar atarefado e importante.

    Assim que ele chega à rua, toda a gente tira rapidamente o chapéu. Tem o cabelo grisalho e anda de fato cinzento. É cavaleiro de várias ordens, tem uma testa larga, nariz aquilino, e, no conjunto, a sua figura revela uma certa regularidade: talvez até se ache que, à primeira vista, reúne à dignidade do maire de província a aparência atractiva que ainda se pode ter aos quarenta e oito ou aos cinquenta anos. Mas o viajante parisiense não tardará a sentir-se chocado com um certo ar de arrogância, de mistura com um não sei quê de tacanhez e de falta de imaginação. Sente-se, em suma, que o talento desse homem se limita a fazer com que lhe paguem, rigorosamente, o que lhe devem, e a pagar ele próprio, o mais tarde que puder, aquilo que deve.

    Assim é o maire de Verrières, monsieur de Rênal. Depois de ter atravessado a rua num andar compassado, entra na mairie, desaparecendo dos olhos do viajante. Mas, se este prosseguir o passeio, verá cem passos adiante uma casa de aspecto luxuoso e, através do gradeamento de ferro, ladeando a casa, um magnífico jardim. Para além da casa, vê a linha do horizonte formada pelas colinas da Borgonha, e que parece feita de propósito para recrear a vista. E esta paisagem faz-lhe esquecer a atmosfera pestilenta dos sórdidos interesses de dinheiro que vinha respirando e que começava a asfixiá-lo.

    Informam-no de que aquela casa pertence a monsieur de Rênal. É aos avantajados rendimentos que retirou da sua lucrativa fábrica de pregos que o maire de Verrières deve a bela residência de pedra talhada, cuja construção está neste momento a terminar. Dizem que a sua família é antiga e de origem espanhola, e que se estabeleceu na região muito antes de Luís XIV a ter conquistado.

    Desde 1815, envergonha-se de ser industrial; foi 1815 que o fez maire de Verrières. Os muros que suportam as diversas partes desse magnífico jardim que, de socalco em socalco, desce até ao Doubs, são também a recompensa da perícia de monsieur de Rênal no negócio do ferro.

    O leitor que não espere encontrar em França esses pitorescos jardins que rodeiam as cidades fabris da Alemanha, como Leipzig, Frankfurt, Nuremberga, etc. No Franche-Comté, quanto mais muros se construírem e quanto mais pedras se empilharem à volta das propriedades, tanto mais direitos se adquirem ao respeito e à consideração dos vizinhos. Os jardins de monsieur de Rênal, cheios de muros, são também admirados por ele ter comprado, a peso de ouro, certas parcelas do terreno que hoje ocupam. Por exemplo, a serração de madeira, cuja singular localização na margem do Doubs impressionou o visitante ao entrar em Verrières, e onde se vê o nome sorel, escrito em gigantescos caracteres numa placa por cima do telhado, ocupava, seis anos antes, o lugar onde se ergue agora o muro do quarto terraço dos jardins de monsieur de Rênal.

    Apesar do seu orgulho, sua excelência, o maire, viu-se obrigado a fazer bastantes diligências junto do velho Sorel, camponês duro e teimoso; teve de lhe dar uma bela soma em luíses de ouro para o convencer a mudar a fábrica para outro lugar. Quanto ao ribeiro público que accionava a serração, monsieur de Rênal conseguiu desviá-lo, graças às influências de que gozava em Paris. Esta mercê foi-lhe concedida após as eleições de 182…

    O negócio fez com que Sorel passasse a ter quatro arpentes de terreno em vez de um, quinhentos passos mais abaixo, na margem do Doubs. E, embora esta situação fosse muito mais vantajosa para o seu comércio de madeira de pinho, o tio Sorel, como lhe chamam desde que ficou rico, teve a arte de obter, à custa da impaciência e da mania da posse de que estava imbuído o seu vizinho, uma soma de seis mil francos.

    É certo que o negócio foi criticado pelas cabeças sensatas da terra. Uma vez, num domingo, já lá vão quatro anos, quando monsieur de Rênal vinha da missa na sua farda de chefe do município, viu de longe o velho Sorel, rodeado pelos três filhos, que sorria a olhar para ele. Este sorriso foi um golpe fatal na alma do maire que, desde esse dia, pensa que teria conseguido a troca por um preço mais favorável.

    Para se conquistar em Verrières a consideração pública, é essencial não adoptar, mesmo que se construam muitos muros, nenhum plano trazido de Itália por esses pedreiros que, na Primavera, atravessam as gargantas do Jura, a caminho de Paris. Semelhante inovação valeria ao imprudente construtor a eterna reputação de ser uma má cabeça, e ficaria para sempre desqualificado no conceito das pessoas sensatas e moderadas que no Franche-Comté decidem quem é digno da consideração social.

    Para falar a verdade, as tais pessoas sensatas exercem ali o mais enfadonho despotismo. Por culpa desta palavra odiosa, torna-se insuportável a permanência nas terras pequenas para quem tenha vivido na grande república que se chama Paris. A tirania da opinião — e que opinião! — é tão estúpida nas cidades pequenas de França como nos Estados Unidos da América.

    1 Reunidos aos milhares / estarão melhor, / mas a jaula será menos alegre. Hobbes. (N. R.)

    2 O maire representa a autoridade do poder local, ao nível de uma cidade, de uma vila ou de uma aldeia, semelhante ao cargo desempenhado entre nós pelo Presidente da Câmara Municipal e, em certos casos, também pelo Presidente da Junta de Freguesia. Para além de outras funções, a lei outorga-lhes o poder de celebrar o casamento civil.

    II. UM MAIRE

    A importância? O respeito dos tolos, o pasmo das crianças, a inveja dos ricos, o desprezo do sábio: isto não será nada, senhor?

    Barnave

    Felizmente para a reputação de monsieur de Rênal como maire, o passeio público que borda a colina, a uma centena de pés acima do curso do Doubs (e a cuja admirável situação se deve uma das mais pitorescas paisagens de França), precisava de um enorme muro de suporte. Acontecia que todos os anos, ao chegar a Primavera, as águas da chuva abriam sulcos no pavimento e enchiam-no de ravinas que o tornavam impraticável. Este inconveniente, que todos sentiam, deu a monsieur de Rênal a abençoada obrigação de imortalizar a sua administração com uma muralha de vinte pés de altura e trinta ou quarenta toesas de comprimento.

    O parapeito desta muralha, por causa da qual monsieur de Rênal teve de fazer três viagens a Paris, visto o penúltimo ministro do Interior se ter declarado inimigo figadal do passeio de Verrières, eleva-se agora a quatro pés acima do solo. E, como que para desafiar todos os ministros presentes e passados, estão neste momento a guarnecê-lo com pedra de cantaria.

    Quantas vezes, sonhando com os bailes de Paris abandonados na véspera, com o peito encostado a esses grandes blocos de pedra de um belo cinzento-azulado, os meus olhos mergulharam no vale do Doubs! Mais além, na margem esquerda, serpenteiam cinco ou seis vales no fundo dos quais a nossa vista distingue bem os pequenos regatos que, depois de terem corrido de cascata em cascata, são engolidos pelo Doubs. O Sol queima nestas montanhas; quando cai a prumo, o viajante pode sonhar neste terraço à sombra dos seus plátanos magníficos.

    O seu rápido crescimento e a sua verdura a atirar para o azul são devidos à terra que o maire mandou pôr por detrás do enorme muro de suporte, visto que, apesar da oposição do conselho municipal, alargou o passeio para mais de seis pés (embora ele seja ultramontano e eu liberal, não deixo de o louvar por esta iniciativa); é por isso que, na opinião dele e na de monsieur Valenod, o feliz director do asilo da mendicidade de Verrières, este terraço não fica atrás do de Saint-Germain-en-Laye.

    Quanto a mim, só tenho uma coisa a censurar ao Passeio da Fidelidade — designação oficial que se lê em quinze ou vinte placas de mármore espalhadas por outros tantos lugares da cidade, e que valeu mais uma condecoração a monsieur de Rênal — é a maneira bárbara como a autoridade mandou podar e tosquiar os vigorosos plátanos. Em vez de se assemelharem, com as suas copas baixas, redondas e achatadas, a vulgares árvores de um pomar, poderiam ter essas formas magníficas que se vêem em Inglaterra. Mas a vontade do maire é despótica, e duas vezes por ano todas as árvores que pertencem à comarca são impiedosamente amputadas. Os liberais da terra pretendem, mas é exagero, que a mão do jardineiro oficial se tornou muito mais pesada desde que monsieur Maslon, o vigário, se habituou a apoderar-se dos produtos da tosquia.

    Este jovem eclesiástico foi enviado de Besançon, há alguns anos, para vigiar o abade Chélan e alguns curas das redondezas. Um velho cirurgião-mor do exército de Itália, retirado em Verrières, e que tinha sido, ao mesmo tempo, na opinião do maire, jacobino e bonapartista, atreveu-se um dia a queixar-se-lhe da mutilação periódica dessas belas árvores.

    — Gosto da sombra — respondeu monsieur de Rênal no tom de superioridade adequado para falar a um cirurgião, membro da Legião de Honra, — gosto da sombra, mando podar as minhas árvores para darem sombra, e não concebo que uma árvore sirva para outra coisa, sobretudo quando, ao contrário, da útil nogueira, não serve para me dar lucro.

    Eis a palavra sacramental que tudo decide em Verrières: dar lucro. Representa só por si o pensamento habitual de mais de três quartos dos seus habitantes.

    Dar lucro é a razão que tudo decide nesta pequena cidade que nos parecia tão bonita. O estrangeiro que aqui chega, seduzido pela beleza dos frescos e profundos vales que a rodeiam, imagina a princípio que os seus habitantes são sensíveis ao belo, já que estão sempre a falar da beleza da terra: não se pode negar que lhe atribuem grande importância, mas é por ela atrair alguns forasteiros cujo dinheiro enriquece os estalajadeiros, coisa que, com o mecanismo de imposto, dá rendimento à cidade.

    Num belo dia de Outono, monsieur de Rênal passeava no Passeio da Fidelidade, de braço dado com a esposa. Enquanto escutava o marido, que falava em tom sério, o olhar de madame de Rênal seguia com inquietação os movimentos de três crianças. A mais velha, que devia andar à volta de uns onze anos, aproximava-se com demasiada frequência do parapeito, fazendo menção de trepar. Uma voz doce pronunciava então o nome de Adolphe, e a criança renunciava ao seu ambicioso projecto. Madame de Rênal aparentava uns trinta anos, mas era uma mulher ainda muito bonita.

    — Pode bem ser que esse arrogante senhor de Paris se venha a arrepender! — dizia monsieur de Rênal com ar ofendido, e o rosto mais pálido do que de costume. — Não me faltam bons amigos no Palácio…

    Mas, embora eu pretenda falar-lhes da província ao longo de duzentas páginas, não terei a crueldade de os fazer suportar, caros leitores, a extensão e a sagaz circunspecção de um diálogo provinciano.

    O arrogante senhor de Paris, tão odioso ao maire de Verrières, era um tal Appert que, dois dias antes, achara maneira de se introduzir, não só na prisão e no asilo de mendicidade de Verrières, mas também no hospital, administrado gratuitamente pelo maire e pelos principais proprietários da terra.

    — Mas — dizia timidamente madame de Rênal — em que é que o pode prejudicar esse senhor de Paris, se o meu amigo administra os bens dos pobres com a mais escrupulosa probidade?

    — Ele só cá vem fazer censuras para depois publicar artigos nos jornais do liberalismo.

    — Que o senhor nunca lê…

    — Mas vêm-nos falar desses artigos jacobinos; tudo isso nos distrai e nos impede de praticar o bem³. Quanto a mim, nunca perdoarei ao cura.

    3 Histórico.

    III. O BEM DOS POBRES

    Um cura virtuoso que não se entretém com intrigas é uma providência para a aldeia.

    Fleury

    É necessário saber-se que o cura de Verrières, um ancião de oitenta anos, mas que devia ao ar vivo daquelas montanhas uma saúde e um carácter de ferro, tinha o direito de visitar, fosse a que hora fosse, a prisão, o hospital e até o asilo de mendicidade. Fora precisamente às seis da manhã que monsieur Appert, que vinha recomendado de Paris ao abade, teve a feliz ideia de chegar àquela terra que, como todas as cidades pequenas, tem as suas curiosidades. Dirigiu-se imediatamente ao presbitério.

    Ao ler a carta que lhe enviava o senhor marquês de La Mole, par de França, e o mais rico proprietário da região, o padre Chélan ficou pensativo.

    — Estou velho e sou estimado aqui… — disse a meia voz; — não se atreveriam a tanto!

    E voltando-se imediatamente para o senhor de Paris, com um olhar no qual, apesar da idade, brilhava aquele fogo sagrado que anuncia o prazer de praticar uma boa acção, ainda que um pouco arriscada, disse:

    — Venha comigo, senhor, e na presença do carcereiro, e sobretudo dos vigilantes do asilo de mendicidade, peço-lhe que não emita nenhuma opinião sobre nada do que virmos.

    Monsieur Appert compreendeu que estava diante de um homem de bom coração: seguiu o venerável abade, visitou a prisão, o hospício, o asilo, fez muitas perguntas, e, apesar das estranhas respostas que recebeu, não fez o mais pequeno reparo.

    A visita durou algumas horas. O abade convidou monsieur Appert para jantar, mas este alegou ter cartas para escrever: não queria comprometer mais o generoso acompanhante. Por volta das três horas, foram concluir a inspecção do asilo e depois voltaram à prisão. Ao chegarem à porta, deram com o carcereiro, uma espécie de gigante de seis pés de altura e de pernas arqueadas; a sua figura ignóbil tinha-se tornado hedionda pelo terror que provocava.

    — Ah! Senhor abade, — disse ele ao abade, mal o viu — o cavalheiro que acompanha o meu reverendo padre não é monsieur Appert?

    — Que lhe importa isso? — disse o abade.

    — É que tenho desde ontem as ordens mais terminantes, que o senhor prefeito mandou por um gendarme, que deve ter cavalgado toda a noite, para não deixar entrar monsieur Appert na prisão.

    — Declaro-lhe, monsieur Noiroud, — disse o abade — que este viajante que está aqui a meu lado é mesmo monsieur Appert. Não me reconhece o direito de entrar na prisão a qualquer hora do dia e da noite, acompanhado por quem eu quiser?

    — Sim, senhor abade, — disse o carcereiro em voz baixa, curvando a cabeça como um buldogue que só obedece com medo do pau. — O caso, senhor abade, é que tenho mulher e filhos, e, se me denunciarem, põem-me na rua; não posso perder o meu sustento.

    — Também eu não gostaria nada de perder o meu, — replicou o bom cura, numa voz cada vez mais comovida.

    — Há uma grande diferença! — replicou o carcereiro com vivacidade. — Toda a gente sabe que o senhor abade é abastado, que tem terras com um rendimento de oitocentas libras.

    Eis os factos que, comentados, exagerados de vinte maneiras diferentes, agitavam havia dois dias todas as odiosas paixões da pequena cidade de Verrières. Neste momento, serviam de assunto à pequena discussão de monsieur de Rênal com a mulher. Pela manhã, seguido de monsieur Valenod, o director do asilo, fora a casa do abade para lhe manifestar o seu grande descontentamento. O padre Chélan, que não tinha protectores, compreendeu de imediato todo o alcance dessas palavras.

    — Pois bem, meus senhores, serei o terceiro abade destituído, aos oitenta anos, nestas redondezas! Há cinquenta e seis que estou aqui; baptizei quase todos os habitantes desta cidade que, quando cá cheguei, não passava de uma vilória. Todos os dias caso jovens, cujos avós também já casei. Verrières é a minha família, mas o medo de a deixar nunca me fará transigir com a minha consciência nem admitir que as minhas acções sejam determinadas por outros. Disse com os meus botões, ao ver aquele estranho: «Este homem que veio de Paris pode ser realmente um liberal; é coisa que não falta por aí; mas que mal pode ele fazer aos nossos pobres e aos nossos encarcerados?»

    Como as censuras de monsieur de Rênal, e sobretudo as de monsieur Valenod, o director do asilo, fossem cada vez mais azedas, o velho padre exclamou com voz trémula:

    — Pois bem, meus senhores, destituam-me! Nem por isso deixarei de ficar a viver aqui. Toda a gente sabe que herdei há quarenta e oito anos umas terras que me dão oitocentas libras. Viverei desse rendimento. Não faço economias ilícitas com a ajuda de meu cargo, meus senhores, e talvez por isso não me assusto quando falam em destituir-me.

    Monsieur de Rênal vivia em excelente harmonia com a mulher, que esperava uma grande herança, mas não sabia o que responder à pergunta que ela lhe repetia timidamente («Que mal pode fazer aos presos esse senhor de Paris?»), estava quase a zangar-se, quando ela soltou um grito. O seu segundo filho acabara de escalar o parapeito do terraço, e corria por ele fora, sem se dar conta de que estava vinte pés acima da vinha que ficava do outro lado. O receio de assustar o filho e de o fazer cair impedia madame de Rênal de lhe dizer fosse o que fosse. Por fim, a criança, que ria da proeza, olhou para a mãe, e como viu que ela estava pálida, saltou do parapeito e correu para ela. Levou uma boa reprimenda.

    Esta pequena ocorrência modificou o curso da conversa.

    — Estou decidido a contratar o Sorel, o filho do serrador, para ir lá para casa— disse monsieur de Rênal. — Tomará conta dos pequenos, que estão a ficar uns vivos diabos e difíceis de aturar. É uma espécie de padre, ou é quase padre, bom latinista, e que fará progredir as crianças; segundo me disse o abade, possui firmeza de carácter. Dou-lhe trezentos francos e alimentação. Tinha algumas dúvidas sobre a sua moralidade, por ser o menino querido desse velho cirurgião, membro da Legião de Honra, que, a pretexto de ser primo deles, se tinha instalado em casa dos Sorel. Sempre tive suspeitas de que ele podia muito bem ser um agente secreto dos liberais: dizia que o ar das montanhas lhe fazia bem à asma; mas é o que resta provar. Fez todas as campanhas de Bonaparte na Itália, mas também tinha estado, segundo se diz, contra o império. Este liberal dava lições de latim ao filho do Sorel, e deixou-lhe todos os livros. Só por isso, nunca eu me lembraria de trazer o filho do carpinteiro para junto dos nossos filhos; mas o abade, precisamente na véspera da cena que acaba de nos indispor para sempre, disse-me que esse Sorel anda há três anos a estudar teologia, com o projecto de entrar para o seminário. Portanto, não é liberal e é latinista. Esta combinação convém por mais de uma razão — prosseguiu monsieur de Rênal, olhando para a mulher com um ar diplomático; — o Valenod está todo inchado com os dois cavalos normandos que comprou para a caleche. Mas não tem preceptor para os filhos.

    — E podia muito bem tirar-nos este…

    — Então aprovas o meu projecto? — interrogou monsieur de Rênal, agradecendo à mulher, com um sorriso, a excelente ideia que ela acabava de ter. — Bem, nesse caso, está resolvido.

    — Ah, santo Deus! Meu bom amigo, como tu decides depressa!

    — É que eu tenho carácter, e o abade bem o viu. Não tenhamos ilusões; estamos cercados de liberais. Todos esses comerciantes de tecidos me invejam, tenho a certeza; dois ou três deles estão a ficar uns ricaços. Pois bem, não me desagrada nada que vejam os filhos de monsieur de Rênal a passear sob a vigilância do seu preceptor. Temos mesmo de fazer isto. O meu avô contava muitas vezes que, na sua juventude, tinha tido preceptor. São uns tantos francos que me saem do bolso, mas esta despesa deve ser vista como uma daquelas que é necessário fazer para mantermos a nossa posição.

    Esta súbita resolução deixou madame de Rênal muito pensativa. Era uma mulher alta, bem feita, que fora a beldade da terra, como se diz nessas montanhas. Tinha um certo ar de simplicidade e um andar jovem; aos olhos de um parisiense, essa graciosidade ingénua, cheia de inocência e de vivacidade, poderia mesmo sugerir uma doce voluptuosidade. Se tivesse percebido que despertava tal sentimento, madame de Rênal ficaria bastante envergonhada. Nem a garridice nem a vaidade tinham alguma vez afectado aquele coração. Constara que monsieur Valenod, o abastado director do asilo, lhe tinha feito a corte, mas sem sucesso, o que dera singular relevo à sua virtude; porque esse senhor, homem ainda novo, alto e forte, de rosto rubicundo e grandes suíças negras, era um desses seres grosseiros, descarados e faladores a que na província chamam um bonito homem.

    Madame de Rênal, muito tímida, e de carácter aparentemente muito desigual, sentia-se sobretudo chocada pela contínua agitação e pelo vozeirão de Monsieur Valenod. A sua falta de inclinação para aquilo que, em Verrières, é considerado alegria e diversão, valera-lhe a reputação de ter demasiado orgulho do seu nascimento. Estava longe de pensar tal coisa, mas ficara bem contente por ver que os habitantes da cidade eram menos assíduos em sua casa. Também não pretendemos ocultar que tinha fama de tola entre as senhoras da terra, porque, não usando nenhuma diplomacia com o marido, perdia as melhores ocasiões para conseguir que ele lhe comprasse lindos chapéus de Paris ou de Besançon. Desde que a deixassem vaguear sozinha pelo seu belo jardim, nunca se queixava.

    Era uma alma ingénua, que nunca se atrevera a julgar o marido, nem sequer a confessar a si própria que ele a maçava. Supunha, sem o dizer, que entre marido e mulher não havia relações de outro género. Gostava de monsieur de Rênal sobretudo quando ele lhe falava dos projectos relativos aos filhos, que destinava o primeiro ao exército, o segundo à magistratura e o terceiro à Igreja. Em suma, achava monsieur de Rênal mais suportável do que todos os outros homens das suas relações.

    Este juízo conjugal tinha algum fundamento. O maire de Verrières ganhara fama de homem de espírito, e sobretudo de boas maneiras, graças a meia dúzia de ditos que herdara de um tio. O velho capitão de Rênal servia, antes da Revolução, no regimento do senhor duque de Orléans e, quando ia a Paris, era recebido nos salões do príncipe. Tinha visto madame de Lontesson, a famosa madame de Genlis, e monsieur Ducrest, o inventor do Palais-Royal. Estas personagens apareciam com demasiada frequência nas histórias de monsieur de Rênal. Mas, pouco a pouco, tornara-se-lhe trabalhoso recordar coisas tão difíceis de contar e havia algum tempo que só nas grandes ocasiões repetia as suas histórias sobre a casa de Orléans. Como era, aliás, muito educado, excepto quando se tratava de dinheiro, passava, e com razão, por ser a pessoa mais aristocrática de Verrières.

    IV. UM PAI E UM FILHO

    E sarà mia colpa

    Se cosi è?

    Machiavelli

    «A minha mulher tem realmente cabeça!», dizia para consigo o maire de Verrières, quando descia até à serração do tio Sorel pelas seis horas da manhã do dia seguinte. «Apesar do que eu lhe disse, para conservar a superioridade que me compete, nem me tinha passado pela cabeça que, se não fico com o padreca do Sorel que, segundo se diz, sabe latim como um anjo, essa alma inquieta e invejosa do director do asilo podia muito bem ter a mesma ideia que eu e ficar-me com ele. Com que ar de grandeza ele não havia de falar no preceptor dos filhos!… Quando ele for meu preceptor, andará de sotaina?»

    Monsieur de Rênal debatia-se com esta dúvida quando viu ao longe um camponês, homem de quase seis pés de altura, que, desde o despontar do dia, parecia muito ocupado a medir os troncos dispostos no caminho ao longo do Doubs. O camponês não deu mostras de uma grande satisfação ao ver o maire aproximar-se, porque os troncos que obstruíam o caminho estavam ali em contravenção.

    O tio Sorel, porque era dele que se tratava, ficou muito surpreendido e mais contente ainda com a estranha proposta que monsieur de Rênal lhe vinha fazer para o seu filho Julien. Nem por isso deixou de o escutar com aquele ar de tristeza descorçoada e de indiferença, de que tão bem se sabe revestir a esperteza dos habitantes dessas montanhas. Escravos, no tempo do domínio espanhol, conservam ainda esse traço de fisionomia do felá do Egipto.

    A resposta de Sorel começou com a infindável recitação de todas as fórmulas respeitosas que sabia de cor. Enquanto repetia essas vãs palavras, com um sorriso tímido que fazia sobressair o ar de falsidade e quase de velhacaria natural da sua fisionomia, o espírito activo do velho camponês procurava descobrir que motivo podia levar um homem tão importante a querer em sua casa o valdevinos do filho. Estava muito descontente com Julien e era por ele que monsieur de Rênal lhe vinha oferecer um ordenado de trezentos francos por ano, fora a alimentação e o vestuário. Esta última pretensão, que o tio Sorel tivera a habilidade de apresentar subitamente, fora imediatamente aceite por monsieur de Rênal.

    Este pedido impressionou o maire. «Já que o Sorel não ficou encantado com a minha oferta, como era natural que sucedesse, é evidente — disse ele com os seus botões — que já teve qualquer outra oferta; e de quem podia ela vir senão do Valenod?» Foi então que monsieur de Rênal tentou fechar o negócio imediatamente: a astúcia do velho camponês recusou-lho obstinadamente; dizia querer consultar o filho, como se na província um pai rico fosse consultar um filho que nada possui, a não ser por mera formalidade.

    Uma serração movida a água é um barracão à beira de um regato. O telhado assenta sobre o vigamento sustentado por quatro grandes pilares de madeira. A oito ou dez pés de altura no meio do barracão vê-se uma serra subir e descer, ao mesmo tempo que um mecanismo muito simples empurra para a serra as pranchas de madeira. É uma roda movida pelo regato que faz funcionar este duplo mecanismo, o da serra que sobe e desce, e o que impele lentamente a prancha para a serra, de maneira que esta a corte em tábuas.

    Ao aproximar-se da fábrica, o tio Sorel chamou Julien com a sua voz de estertor; ninguém respondeu. Viu apenas os filhos mais velhos, uma espécie de gigantes que, empunhando pesados machados, preparavam os troncos de pinho que levariam depois para a serra. Muito ocupados em seguir exactamente o risco negro feito no tronco, cada machadada fazia saltar enormes pedaços. Não ouviram a voz do pai. Este dirigiu-se para o barracão; ao entrar, em vão procurou Julien no lugar que ele devia ocupar ao lado da serra; viu-o cinco ou seis pés mais acima, encavalitado numa das vigas. Em vez de vigiar com toda a atenção o funcionamento do mecanismo, Julien lia. Não havia coisa mais antipática aos olhos do velho Sorel; talvez fosse capaz de perdoar a Julien a sua débil compleição pouco adequada aos trabalhos violentos e tão diferente da dos irmãos mais velhos; mas aquela mania da leitura era-lhe odiosa, porque ele próprio não sabia ler.

    Em vão chamou duas ou três vezes por Julien. A atenção com que o moço seguia a leitura, mais ainda do que o barulho da serra, impediu-o de ouvir a terrível voz do pai. Por fim, apesar da idade, este saltou lepidamente para cima do tronco que estava a ser cortado, e dali para a viga transversal que sustinha o telhado. Uma pancada violenta atirou ao regato o livro que Julien estava a ler; outra não menos violenta, dada na cabeça à laia de carolo, fez-lhe perder o equilíbrio. Ia cair doze ou quinze pés mais abaixo, no meio das alavancas da máquina em movimento, que o teriam esborrachado, mas o pai segurou-o com a mão esquerda.

    — Com que então, meu preguiçoso, sempre com os malditos livros, enquanto estás de guarda à serra? Lê-os à noite, quando vais perder tempo para casa do cura, e já chega.

    Julien, embora atordoado pela violência da pancada, e cheio de sangue, dirigiu-se para o seu posto oficial, ao lado da serra; tinha lágrimas nos olhos, não só pela dor física mas sobretudo pela perda do livro que adorava.

    — Desce daí, animal, que tenho de te falar! — O barulho da máquina impediu ainda desta vez Julien de ouvir a ordem.

    O pai, que já descera, não estando para se dar ao trabalho de tornar a subir para o mecanismo, foi procurar uma comprida vara de varejar nozes e bateu-lhe com ela no ombro. Mal Julien pôs o pé em terra, o velho, empurrando-o com dureza à sua frente, levou-o para casa. «Sabe Deus o que me irá fazer», dizia para consigo o rapaz. Ao passar, olhou tristemente para o regato, onde o livro tinha caído: era o Memorial de Santa Helena, o seu livro preferido.

    Tinha as faces purpúreas e os olhos baixos. Era um rapaz dos seus dezoito ou dezanove anos, aparentemente débil, com traços irregulares mas delicados, e um nariz aquilino. Os grandes olhos negros que, nos momentos tranquilos, prometiam reflexão e veemência de sentimentos, brilhavam naquele instante com a expressão do ódio mais intenso. O cabelo castanho-escuro tapava-lhe parte da testa e reduzia-lhe consideravelmente o tamanho, dando-lhe uma expressão sinistra, sobretudo nos momentos de cólera. Entre as inúmeras variedades da fisionomia humana, talvez nenhuma delas se tenha distinguido por tão impressionante característica. A figura esbelta e elegante indicava mais agilidade do que vigor. Desde a sua primeira juventude, o ar extremamente pensativo e a grande palidez tinham levado o pai a pensar que ele não teria uma vida muito longa, ou que só viveria para ser um encargo para a família. Objecto do desprezo de todos, em casa, odiava os irmãos e o pai; nos jogos de domingo, na praça pública, saía sempre vencido.

    No último ano, a sua cara bonita começara a dar-lhe algumas vozes amigas entre as raparigas. Desprezado por toda a gente como um ser débil, Julien adorava aquele velho cirurgião-mor que um dia se atrevera a falar ao maire acerca dos plátanos.

    Às vezes, o bom cirurgião pagava ao tio Sorel um dia de trabalho do rapaz, e ensinava-lhe latim e história, quer dizer, o que ele sabia de história: a campanha de 1796 em Itália. Ao morrer, legara-lhe a sua cruz da Legião de Honra, as mensalidades da sua reforma em atraso e trinta ou quarenta volumes, dos quais o mais precioso acabara de ser lançado no ribeiro público que a influência do maire fizera desviar do seu primitivo curso.

    Mal entrou em casa, Julien sentiu a mão pesada do pai cair-lhe sobre o ombro; tremia, na expectativa de apanhar mais pancada.

    — Responde-me, sem mentir! — gritou-lhe aos ouvidos a voz dura do velho camponês, enquanto com a mão lhe fazia dar meia volta, tal como a mão de uma criança faz girar um soldadinho de chumbo. Os grandes olhos negros e cheios de lágrimas de Julien ficaram frente a frente com os olhinhos cinzentos e maldosos do velho carpinteiro, que tinha o ar de lhe querer ler até ao fundo da alma.

    4 E será culpa minha, / se assim for? Maquiavel. (N. R.)

    V. UMA NEGOCIAÇÃO

    Cunctando restituit rem.

    Ennius

    — Responde-me sem mentir, se fores capaz, meu papa-livros rafeiro! De onde conheces tu madame de Rênal? Quando é que falaste com ela?

    — Nunca lhe falei, — respondeu Julien — nunca vi essa senhora a não ser na igreja.

    — Mas olhaste para ela, meu desavergonhado?

    — Nunca! Bem sabe que na igreja só vejo Deus, — acrescentou Julien, com um arzinho hipócrita, muito adequado, no seu entender, para evitar mais pancada.

    — Aqui há coisa… — replicou o manhoso aldeão; e calou-se durante uns instantes; — mas não conseguirei tirar nada de ti, maldito hipócrita. Seja como for, vou ver-me livre de ti, e a minha serração só tem a ganhar com isso. Caíste nas boas graças do abade ou de qualquer outro para arranjares este belo lugar. Vai fazer a trouxa, que te vou levar a casa de monsieur de Rênal, onde serás preceptor dos filhos dele.

    — Quanto é que vou ganhar?

    — A alimentação, vestuário e trezentos francos de ordenado.

    — Não quero ser criado.

    — Quem te falou em ser criado, animal! Então eu havia de deixar que filho meu fosse um criado?

    — Mas com quem vou comer?

    A pergunta desconcertou o velho Sorel, e sentiu que, falando, poderia cometer qualquer imprudência; irritou-se com Julien, cobriu-o de insultos, acusando-o de ser guloso, e deixou-o para ir consultar os outros filhos.

    Julien viu-os pouco depois, de machado na mão, em concílio. Ficou muito tempo a olhar para eles, mas como não conseguia adivinhar o que estavam a dizer, foi-se pôr do outro lado da serra, para não ser surpreendido. Queria meditar naquele inesperado acontecimento que ia transformar o seu destino, mas sentia-se incapaz de ser prudente; a sua imaginação estava totalmente ocupada a fantasiar sobre o que iria ver na bela casa de monsieur de Rênal.

    «Prefiro renunciar a tudo isso — disse ele para consigo — a ter de comer com os criados. O meu pai vai obrigar-me a ir; prefiro a morte! Tenho quinze francos e oito soldos de economias, e fujo esta noite; em dois dias, por caminhos de cabras onde não há perigo de encontrar nenhum gendarme, ponho-me em Besançon; depois, alisto-me na tropa e, se for preciso, passo para a Suíça. Mas, nesse caso, acabaram-se as ambições, lá se vai o belo futuro de padre, que é a chave para abrir tudo».

    Este horror a comer com os criados não era natural em Julien; para conseguir fortuna seria capaz de coisas bem mais penosas. Aquela repugnância vinha-lhe das Confissões de Rousseau. Era o livro em que a sua imaginação se apoiava para fazer uma ideia do mundo. A colectânea dos Boletins do Grande Exército e o Memorial de Santa Helena completavam o seu Corão. Deixar-se-ia matar por estas três obras. Nunca acreditou em mais nenhuma outra. De acordo com uma frase do velho cirurgião-mor, considerava que todos os outros livros do mundo eram mentirosos e escritos por impostores para subirem na vida.

    Com uma alma ardente, Julien possuía uma destas memórias espantosas que tantas vezes acompanham a estupidez. Para obter as boas graças do velho padre Chélan, do qual ele bem via que estava dependente a sua futura sorte, tinha decorado o Novo Testamento em latim; sabia igualmente de cor o livro Do Papa de monsieur de Maistre, e acreditava tão pouco num como no outro.

    Como que de mútuo acordo, Sorel e o filho evitaram falar nesse dia. À tardinha, Julien foi para a lição de teologia em casa do abade, mas não achou prudente contar-lhe nada acerca da estranha proposta que tinham feito ao pai. «Talvez seja uma armadilha — pensava ele; — é preciso fingir que me esqueci».

    Muito cedo, no dia seguinte, monsieur de Rênal mandou chamar o velho Sorel, o qual, depois de se ter feito esperar quase duas horas, apareceu, desfazendo-se, mal passou a porta, em desculpas e reverências. À força de recorrer a toda a espécie de objecções, Sorel acabou por concluir que, habitualmente, o filho comeria com os donos da casa e, nos dias em que houvesse visitas, numa sala à parte com as crianças. Cada vez mais disposto a pôr dificuldades à medida que se ia apercebendo do interesse do maire, e cheio ao mesmo tempo de desconfiança e de espanto, Sorel pediu para ver o quarto onde o filho iria dormir. Era um grande aposento bem mobilado, mas para o qual estavam já a levar as camas dos três pequenos.

    Esta circunstância deu uma ideia luminosa ao velho camponês; pediu logo com arrogância para ver o fato que iam dar ao filho. Monsieur de Rênal abriu a escrivaninha e tirou cem francos.

    — Com este dinheiro, o seu filho irá ter com monsieur Durand, o alfaiate, e mandará fazer um fato preto completo.

    — E mesmo que eu o tire da sua casa, — perguntou o camponês, que esquecera de repente todas as fórmulas de reverência — ele pode ficar com o fato?

    — É óbvio!

    — Ah, então está bem! — exclamou Sorel com voz arrastada. — Agora só falta chegarmos a acordo sobre o dinheiro que lhe vai dar.

    — Como? — perguntou monsieur de Rênal indignado. — Não ficou tudo combinado ontem? Dou trezentos francos; creio que é muito, e talvez até demasiado.

    — Isso foi a sua oferta, não o nego, — disse o velho Sorel falando ainda mais devagar; e, num rasgo de génio que só estranharão aqueles que não conhecem os aldeões da região, acrescentou, olhando fixamente para monsieur de Rênal: — Temos quem nos dê mais.

    Ao ouvir isto, o rosto do maire ficou transtornado. Voltou contudo a si, e, após uma sábia discussão de duas horas, durante a qual nem uma só palavra foi dita sem intenção, a esperteza do camponês venceu a do homem rico, que não precisava dela para viver. Assentaram em todos os inúmeros parágrafos pelos quais se deveria reger a nova existência de Julien; e não só os seus honorários se fixaram em quatrocentos francos, como ficou estabelecido que seriam pagos adiantadamente, no primeiro dia do mês.

    — Bom, vou entregar-lhe trinta e cinco francos — disse monsieur de Rênal.

    — Para arredondar a conta, um homem tão rico e generoso como o senhor nosso maire — disse o camponês numa voz melíflua — bem podia ir até trinta e seis francos.

    — Pois sim, — disse monsieur de Rênal — mas acabemos com isto!

    Desta vez, a cólera deu-lhe à voz um tom da firmeza. O aldeão viu que não podia ir mais longe. Então foi a vez de monsieur de Rênal fazer exigências. Não se deixou convencer a entregar os trinta e seis francos do primeiro mês ao velho Sorel, todo preparado para os receber pelo filho. Depois, monsieur de Rênal lembrou-se de que teria de contar à mulher a figura que fizera durante as negociações.

    — Devolva-me os cem francos que lhe entreguei, — disse ele com mau humor. — Monsieur Durand está a dever-me dinheiro. Irei com o seu filho tirar as medidas do fato.

    Esta manifestação de firmeza obrigou Sorel a voltar prudentemente às fórmulas respeitosas, que lhe levaram um bom quarto de hora. Por fim, convencido que a fase de conquista tinha terminado definitivamente, foi-se embora. A sua derradeira reverência foi acompanhada destas palavras: — Vou mandar o meu filho para o castelo.

    Era assim que os subalternos se referiam à casa de monsieur de Rênal quando o queriam adular.

    De regresso à fábrica, foi em vão que Sorel procurou o filho. Receoso com o que lhe pudesse acontecer, Julien saíra de casa a meio da noite. Quisera pôr em segurança os livros e a condecoração da Legião de Honra. Transportara tudo para casa de um amigo que negociava em madeiras, um tal Fouqué, que morava no cimo da montanha que domina Verrières.

    Quando voltou a aparecer, disse-lhe o pai:

    — Sabe Deus, maldito preguiçoso, se virás um dia a ser tão honrado que me pagues o que gastei com a tua comida ao longo de todos estes anos! Faz a trouxa, e vai para casa do maire.

    Julien, admirado por não apanhar pancada, apressou-se a partir. Mas, logo que se viu longe da vista do terrível pai, abrandou o passo. Entendeu que uma passagem pela igreja seria útil à sua hipocrisia.

    Estão surpreendidos com esta palavra? Antes de chegar a esta horrível palavra, a alma do jovem aldeão percorrera um longo caminho.

    Desde a sua primeira infância que a imagem de certos dragões do sexto regimento, com os seus longos capotes brancos e os seus capacetes de grandes penachos negros, que voltavam de Itália, e que prendiam os cavalos às grades da janela da casa do pai, lhe tinha despertado uma paixão louca pela carreira das armas. Mais tarde, escutava em êxtase as narrações das batalhas da ponte de Lodi, de Arcole, de Rivoli, que lhe fazia o velho cirurgião-mor, e observava os olhares inflamados que o velho lançava à sua condecoração.

    Mas, quando Julien tinha catorze anos, começaram a construir em Verrières uma igreja que se pode considerar magnífica para uma cidade tão pequena. Ficou sobretudo impressionado pelas quatro colunas de mármore que ficaram célebres na região por causa do ódio mortal que suscitaram entre o juiz de paz e o jovem vigário, enviado de Besançon, de quem se dizia, à boca pequena, ser o espião da congregação. O juiz de paz esteve na iminência de perder o lugar; pelo menos, era essa a opinião de toda a gente. Pois não se tinha atrevido a ter uma questão com um padre que ia quase todos os quinze dias a Besançon, onde, segundo constava, era recebido pelo bispo?

    Para resolver este desentendimento que quase lhe custou o emprego, o juiz de paz, pai de uma prole numerosa, começou a proferir certas sentenças que foram consideradas injustas, dando-se a coincidência de todas elas serem contra pessoas que liam o Constitutionnel⁶. O bom partido triunfou. Não se tratava, é certo, senão de multas de três ou cinco francos; mas um dos multados foi um ferrageiro, padrinho de Julien. Na sua cólera, o pobre homem berrava: «Parece mentira! Quem havia de dizer que o juiz de paz ia fazer uma coisa destas, ele, que há mais de vinte anos, tinha fama de ser um homem honesto!»

    O cirurgião-mor, amigo de Julien, tinha morrido.

    De um momento para o outro, Julien deixou de falar em Napoleão; anunciou o projecto de ir para padre, e viam-no, na serração do pai, dedicado a decorar uma Bíblia latina que o cura lhe tinha emprestado. O bom velhinho, maravilhado com os seus progressos, passava serões inteiros a ensinar-lhe teologia. Diante dele, Julien só mostrava sentimentos piedosos. Quem poderia adivinhar que aquela carinha de menina, tão pálida e tão doce, escondia a decisão inabalável de preferir arriscar-se a mil mortes do que a não fazer fortuna?

    Fazer fortuna era, para Julien, em primeiro lugar, sair de Verrières; detestava a sua terra natal. Tudo o que observava ali gelava a sua imaginação.

    Desde a sua primeira infância que tivera momentos de exaltação. Sonhava então, com arroubo, que um dia havia de ser apresentado às belas mulheres de Paris, e que saberia chamar a sua atenção graças a qualquer acção de relevo. Por que razão não havia uma delas de se apaixonar por ele, como a brilhante madame de Beauharnais, que se apaixonara por um Bonaparte ainda pobre? Havia muitos anos que Julien não passava, talvez, uma hora da sua vida, sem dizer consigo mesmo, que Bonaparte, tenente obscuro e sem fortuna, se fizera senhor do mundo graças à sua espada. Esta ideia consolava-o das suas desgraças, que achava grandes, e quando ela lhe vinha à mente, redobrava-lhe a alegria.

    A construção da igreja e as sentenças do juiz de paz foram para ele uma súbita iluminação; uma ideia que lhe surgiu fê-lo andar como doido durante algumas semanas, e por fim apoderou-se dele com aquela omnipotência da primeira ideia que uma alma apaixonada julga ter inventado.

    «Quando Bonaparte começou a dar que falar, a França temia ser invadida; o mérito militar era necessário e estava na moda. Hoje, vêem-se padres de quarenta anos com cem mil francos de vencimento, quer dizer, o triplo do que ganhavam os famosos generais de divisão de Napoleão. Precisam de quem prossiga o seu trabalho. Aí está esse juiz de paz, de cabeça tão sólida, que tinha sido tão sério até hoje, e que com aquela idade se desonra com medo de desagradar a um jovem vigário de trinta anos. Tenho de ser padre.»

    Uma vez, no meio da sua nova devoção, e quando Julien já estudava teologia há dois anos, foi traído por uma súbita irrupção do fogo que devorava a sua alma. Foi em casa do padre Chélan. Num jantar de padres, durante o qual o bom do cura o tinha apresentado como um prodígio de sabedoria, fez um panegírico entusiasmado de Napoleão. Ligou o braço direito ao peito, pretendeu tê-lo deslocado ao arrastar um tronco de pinho, e andou durante dois meses com ele nessa posição incómoda. Após este castigo, concedeu o perdão a si próprio. Eis como era a têmpera deste jovem de dezanove anos, mas de aparência débil, a quem se dariam quando muito dezassete, que, com uma pequena trouxa debaixo do braço, entrava na magnífica igreja de Verrières.

    Achou-a sombria e solitária. Devido a uma festa, todas as janelas do edifício tinham sido cobertas com pano carmesim, o que produzia, sob os raios de Sol, um efeito de luz ofuscante, imponente e religioso. Julien estremeceu. Sozinho na igreja, instalou-se no banco de melhor aspecto. Tinha o brasão de monsieur de Rênal.

    No genuflexório, Julien reparou num pedacinho de papel impresso, que parecia estar ali para ser lido. Lançou-lhe os olhos e leu:

    Pormenores da execução e dos últimos momentos de Louis Jenrel, executado em Besançon

    O papel estava rasgado. Nas costas, liam-se as primeiras palavras de uma linha, que eram o primeiro passo.

    — Quem terá posto este papel aqui? — pensou Julien. — Pobre desgraçado! — acrescentou suspirando. — O nome dele acaba como o meu… — e amarrotou o papel.

    Ao sair, pareceu-lhe ver sangue ao lado da pia da água benta; era água que tinham entornado: o reflexo das cortinas vermelhas que cobriam as janelas fazia-a parecer sangue.

    Acabou por se sentir envergonhado do secreto terror que o tinha invadido.

    — Serei um cobarde? — disse para consigo — Às armas!

    Esta expressão, tantas vezes repetida nas narrações de batalhas do velho cirurgião, era heróica para Julien. Ergueu-se com resolução e encaminhou-se para casa de monsieur de Rênal. Apesar das suas boas intenções, mal a viu, a vinte passos à sua frente, sentiu-se dominado por uma invencível timidez. O portão de ferro, que lhe parecia magnífico, estava aberto de par em par. Tinha mesmo de entrar.

    Julien não era a única pessoa que se sentia perturbada com a sua chegada àquela casa. A extrema timidez de madame de Rênal enchia-a de aflição à ideia daquele estranho que, devido às suas funções, ia estar constantemente entre ela e os filhos. Estava habituada a que os filhos dormissem no seu quarto. Pela manhã, muitas lágrimas tinham corrido ao ver as suas caminhas levadas para o aposento que se destinava ao preceptor. Em vão pediu ao marido que a cama de Stanislas-Xavier, o mais novo, voltasse para o quarto dela.

    A delicadeza feminina tomara em madame de Rênal proporções excessivas. Imaginava o preceptor como um indivíduo grosseiro e mal penteado, cuja missão seria ralhar aos filhos, unicamente por saber latim, uma língua bárbara por causa da qual eles apanhariam açoites.

    5 Restabeleceu a situação, contemporizando. Énio. (N. R.)

    6 Le Constitutionnel foi um diário francês, de tendência liberal, bonapartista e anticlerical, fundado por Fouché, no período dos Cem Dias, último governo de Napoleão até à derrota em Waterloo. (N. R.)

    VI. O TÉDIO

    Non so più cosa son,

    Cosa facio

    Mozart

    , Fígaro

    Com a vivacidade e o encanto que lhe eram naturais quando se achava longe dos olhares dos homens, madame de Rênal estava a sair pela porta envidraçada do salão que dava para o jardim, quando viu junto à entrada da casa um jovem camponês, quase criança ainda, extremamente pálido e que tinha acabado de chorar. Vestia uma camisa branca, e trazia uma bata de ratina roxa, muito limpa, debaixo do braço.

    A tez do pobre camponês era tão branca e os seus olhos tão meigos que ao espírito um tanto romanesco de madame de Rênal lhe veio a princípio a ideia de que podia ser uma rapariga disfarçada, que vinha pedir qualquer favor ao maire. Teve piedade daquela pobre criatura, parada junto do portão, e que, era evidente, não se atrevia a levantar a mão para puxar a sineta. Madame de Rênal aproximou-se, momentaneamente distraída da amarga tristeza que lhe causava a vinda do preceptor. Julien, voltado para a porta, não a viu aproximar-se. Estremeceu quando ouviu uma voz doce dizer, muito perto do seu ouvido:

    — O que deseja daqui, meu filho?

    Julien voltou-se com vivacidade, e, impressionado pelo olhar tão cheio de graça de madame de Rênal, perdeu um pouco a timidez. Não tardou que, pasmado ante a beleza dela, esquecesse tudo, mesmo o que vinha ali fazer. Madame de Rênal repetiu a pergunta.

    — Venho para ser preceptor, minha senhora — disse-lhe ele por fim, cheio de vergonha pelas lágrimas que procurava limpar.

    Madame de Rênal ficou perturbada; estavam muito perto um do outro, e olhavam-se nos olhos. Julien nunca vira um ser tão bem vestido, e sobretudo uma mulher de tez tão maravilhosa, falar-lhe com tanta doçura. Ela, por sua vez, contemplava as lágrimas que corriam lentas pelo rosto, há pouco tão pálido e agora tão rosado, daquele moço aldeão. Desatou a rir, com a alegria buliçosa de uma menina travessa; ria-se de si própria, e não podia crer na sua felicidade. Como! Então era este o preceptor, que ela imaginara ser um padre sujo e mal vestido, que viria ralhar e dar açoites aos

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