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Dai Nippon: O Grande Japão
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E-book415 páginas5 horas

Dai Nippon: O Grande Japão

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Sobre este e-book

Encantado com o Japão e enamorado pela cultura milenar japonesa, depois de visitar o país pela primeira vez, em 1889, Venceslau de Morais, um oficial da Marinha Portuguesa colocado em Macau, decide escrever sobre tudo o que viu e sentiu.

O resultado, a obra-mestra de Venceslau de Morais, Dai Nippon é um hino de louvor ao Japão, em que o leitor é levado numa viagem pela história, arte, paisagem e cultura nipónica, através dos olhos de um português culto, inteligente e apaixonado.

IdiomaPortuguês
Data de lançamento27 de dez. de 2021
ISBN9781005560218
Dai Nippon: O Grande Japão

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    Dai Nippon - Venceslau de Morais

    DAI NIPPON

    O Grande Japão

    Venceslau de Morais

    Nova edição revista e anotada

    MarcoPolo Editions

    2021

    Título: Dai Nippon: O Grande Japão

    Autor: Venceslau de Morais

    Revisão e notas: João Máximo and Luís Chainho

    Original: 1.ª edição de 1897 da Imprensa Nacional de Lisboa para a Comissão Executiva do Centenário da Índia.

    Materiais de referência: Wikipedia, Wikcionário e Wikimedia Commons e outros especificamente mencionados, a quem os editores agradecem.

    Capa: detalhe de Chureito Pagoda - Fujiyoshida-shi, Japan - Travel photography de Giuseppe Milo (Creative Commons Attribution 2.0 Generic: CC BY 2.0)

    Data de publicação: 27 de dezembro de 2021

    Edição 1.00 de 27 de dezembro de 2021

    Copyright © João Máximo and Luís Chainho, 2020.

    Todos os direitos reservados.

    Esta publicação não poderá ser reproduzida nem transmitida, parcial ou totalmente, de nenhuma forma e por nenhuns meios, eletrónicos ou mecânicos, incluindo fotocópia, digitalização, gravação ou qualquer outro suporte de informação ou sistema de reprodução, sem o consentimento escrito prévio dos editores, exceto no caso de citações breves para inclusão em artigos críticos ou estudos.

    MarcoPolo Editions

    marcopolo-travel.com

    Lisboa, Portugal

    ISBN: 9781005560218

    INTRODUÇÃO

    Venceslau de Morais

    Venceslau José de Sousa de Morais (Lisboa, 30 de Maio de 1854 - Tokushima, 1 de Julho de 1929) foi um escritor e militar da Marinha Portuguesa.

    Fotografia de Venceslau de Morais

    Biografia

    Filho de Venceslau de Morais e de sua mulher Maria Amélia de Figueiredo, Venceslau de Morais completou o curso da Escola Naval em 1875, tendo prestado serviço em Moçambique, Macau, Timor Português e no Japão como oficial, a bordo de diversos navios da Marinha de Guerra Portuguesa. Em 1885, viaja pela primeira vez até Macau, onde se estabelece. Foi imediato da capitania do Porto de Macau e professor do Liceu de Macau desde a sua fundação em 1894. Durante a sua estadia em Macau casou com Vong-Io-Chan (Atchan), uma anglo-chinesa, de quem teve dois filhos, e estabeleceu laços de amizade com Camilo Pessanha. Em 1891, visitou Portugal pela última vez.

    Entretanto, em 1889, viajara até ao Japão, país que o encanta, e onde regressará várias vezes nos anos que se seguem, no exercício das suas funções. Em 1897, visita o Japão na companhia do Governador de Macau, José Maria de Sousa Horta e Costa, sendo recebido pelo Imperador Meiji. No ano seguinte, abandona a sua mulher Atchan e os seus dois filhos, sem no entanto deixar de os apoiar financeiramente, e muda-se definitivamente para o Japão, como cônsul em Cobe.

    No Japão, a sua vida é marcada pela sua atividade literária e jornalística, pelas suas relações amorosas com duas japonesas (a gueixa Ó-Yoné Fukumoto e, depois, a sobrinha desta, Ko-Haru) e pela sua crescente japonização.

    Durante os trinta anos que se seguiram, Venceslau de Morais tornou-se a grande fonte de informação portuguesa sobre o Oriente, partilhando as suas experiências íntimas do quotidiano japonês com os seus leitores portugueses, numa atividade paralela à de Lafcadio Hearn, o grande divulgador da cultura nipónica no mundo anglo-saxão, de quem foi contemporâneo e a quem confessou dever muita da sua formação literária.

    Amargurado com a morte, por doença, de Ó-Yoné, Venceslau de Morais renunciou ao seu cargo consular em 1913, quando já era graduado em capitão de fragata, e mudou-se para Tokushima, a terra natal daquela, onde viveu com Ko-Haru.

    Em Tokushima, a escrita tornou-se a sua ocupação quotidiana, e o seu estilo de vida aproximou-se cada vez mais do dos japoneses. Cada vez mais isolado e fisicamente debilitado, Venceslau de Morais deixou de ser relacionar com os europeus e macaenses residentes no Japão, e viria a falecer em Tokushima, no dia 1 de julho de 1929, vítima de uma queda no pátio da sua casa. As suas cinzas encontram-se no cemitério de Tokushima, reunidas às de Ko-Haru e ao lado do túmulo de Ó-Yoné.

    Apesar do ostracismo e xenofobia de que foi alvo em vida por parte da sociedade japonesa, depois da sua morte, em Tokushima, foi criado o Museu Wenceslau de Moraes e ergueu-se uma estátua em sua homenagem. Além disso, a sua obra foi integralmente traduzida e publicada em japonês.

    Obra

    Venceslau de Morais foi autor de vários livros sobre o Oriente, e em especial o Japão. Colaborou com o semanário Branco e Negro (1896-1898) e com as revistas Brasil-Portugal (1899-1914), Serões (1901-1911) e Tiro e Sport (1904-1913).

    Entre os livros que publicou contam-se:

    Traços do Extremo Oriente: Siam, China, Japão; Lisboa: António Maria Pereira, 1895.

    Dai-Nippon: O Grande Japão; Lisboa: Imprensa Nacional, 1897.

    Cartas do Japão; Porto: Magalhães & Moniz, 1904.

    O Culto do Chá; Kobe: Kobe Herald, 1905.

    Paisagens da China e do Japão; Lisboa: Viúva Tavares Cardoso, 1906.

    A Vida Japonesa; 3.ª série de Cartas do Japão; Porto: Lello & Irmão, 1907

    O Bon-Odori em Tokushima; Porto: Magalhães & Moniz, 1916.

    Fernão Mendes Pinto no Japão; Porto, 1920.

    Os Serões no Japão; Lisboa: Portugal-Brasil, 1922.

    Ó-Yoné e Ko-Haru; Porto: Renascença Portuguesa, 1923.

    Relance da História do Japão; Porto: Maranus, 1923.

    Relance da Alma Japonesa; Lisboa: Portugal-Brasil, 1925.

    Osoroshi; Lisboa: Casa Ventura Abrantes, 1933 (póstumo).

    Cartas Íntimas; Lisboa: Empresa Nacional de Publicidade, 1944 (póstumo).

    Dai Nippon

    Dai Nippon (O Grande Japão) teve a primeira edição em 1897, no âmbito das comemorações do IV centenário do descobrimento da Índia. A primeira edição esgotou rapidamente, mas o livro só teria segunda edição em 1923. Esta 2.ª edição, não autorizada pelo autor, foi organizada e apresentada por Almeida d’Eça. A 3.ª edição de Dai Nippon surgiria em 1972.

    O Grande Japão foi traduzido para francês e publicado em 1889 (Dai Nippon: le Japon) e para japonês em 1969, no 1.º volume de uma coletânea da obra de Venceslau de Morais.

    DAI NIPPON

    O Grande Japão

    À memória dos viajantes portugueses do século XVI

    e especialmente à de Fernão Mendes Pinto,

    que tão bem descreveu o Japão do seu tempo.

    O. D. C.

    O Autor

    Ao

    Dr. Sebastião Peres Rodrigues

    Estas páginas, que hoje lhe ofereço, vão por certo recordar-lhe a sua rápida visita a este Extremo Oriente, no enlevo dos aspetos imprevistos, e, incidentemente, as nossas longas palestras e afetuosas confidências, sôfregas em aproveitar-se do tempo que fugia.

    Chamando-o assim ao meu convívio, fica compreendendo agora a ardileza da oferta, com a qual, de nós dois, sou eu a abarcar neste negócio a massa dos benesses.

    Macau, janeiro de 1896.

    Venceslau de Morais.

    Fora da Pátria

    (Prelúdio)

    Dai Nippon, o Grande Japão!... Eis-me, mais uma vez, rapazes da minha terra, tendo entre mãos o meu assunto favorito.

    E agora um parêntesis.

    Morreu há pouco da peste, em Macau, um assíduo frequentador do meu albergue, um íntimo, com quem eu me habituara, desde anos, às longas palestras, às mútuas confidências. A simpatia, como a antipatia, nasce espontânea e atinge intensidades estranhas, sobre o convés do navio ou no solo do desterro, cavando-se assim profundas diferenças entre a existência daquele que nunca abandonou o seu meio e participa da vida da turba indiferente, e a existência mais sentimental do expatriado, no campo exíguo para onde o destino o arrojou.

    Foram-se assim tornando, para nós dois, necessárias como o pão das refeições essas horas passadas em torno de uma mesa, fumando e tomando chá, subtraindo-nos à cena exótica e tristemente insípida que nos rodeava, e em que nos encontrávamos como comparsas do acaso. E assim íamos dando largas à corrente do pensamento, em recordações, em expansões, num quase doloroso divagar de quem já pouco se aventura, por conta própria, pelo oceano azul da ilusão; era ou um viver retrospetivo de dias decorridos, ou um viver alheado de nós mesmos, uma simples sentimentalidade artística, interessada nas coisas exteriores, nos belos aspetos da Criação.

    Dos meus lábios escapava-se a onda de palavras, em confidências, em quimeras, em miragens, em vagos sonhos; e muito poderia contar de mim o companheiro, se vivesse ainda, e se é que prestava ouvido atento ao que eu lhe ia dizendo. Dele, ser-me-ia fácil tarefa recompor agora a feição moral do seu pobre ser de boémio, e ressuscitar os transes em que o seu coração mais palpitou. Falava-me por vezes dos seus amores, — quem há aí que não teve amores? — uns pobres amores de tímido e de crente, sonhados no alvorecer inexperiente da juventude; depois, álgidos, mumificados, oferecendo o interesse único de velharias arqueológicas; e era com simples anelos de curiosidade, cómicos para o meu juízo de ouvinte, que ele desejaria colher uma informação qualquer, embora vaga, de uma ou duas matronas, que muito provavelmente iam vivendo regalados dias por este mundo, aproveitando sabiamente da experiência das coisas, dos segredos dos corações, talvez em concubinagem serôdia com pacatos e amáveis solteirões.

    Depois, um belo dia, atirou-o o destino para o mar, — sei eu lá se foi o destino! — O mar não é o Tejo, fiquem bem sabendo. Ele classificava em dois grupos os que seguem este rumo funesto. Uns, os mais numerosos por fortuna, passadas umas primeiras ilusões que haviam encastelado com os efémeros materiais da poesia das idades tenras, aborrecem-no; toleram-no, como ganha-pão, quando é já tarde para retroceder; mas é no cantinho pátrio que eles idealizam o seu paraíso, casto e sereno; ali, onde vão retemperar, sempre que podem, forças físicas e forças da alma, após a curta ausência sofrida a custo; primeiro, no convívio dos pais, depois — quando os velhinhos dizem adeus a este mundo — no da esposa e dos filhos. São estes os coxistas, na linguagem pitoresca da arte, os que se anicham, os que se coxam, como os cordões de um cabo; são estes os homens, os verdadeiros homens, ao que parece. Outros há, e o meu companheiro de exílio tivera a desgraça de ser um deles, que se identificam com o mar, que vivem com ele e para ele, adquirindo, não sei por que mistérios, íntimas afinidades com essa superfície revolta, com esse elemento de desolação e de morte, que grita, que urra, que ruge, nos paroxismos da sua cólera quase incessante. Se cuidam que seja uma feição inata de sentimentalismo piegas, que prende esta gente ao enlevo do luar prateando as ondinas preguiçosas, ou aos aromas capitosos emanando das costas exóticas, ou ao encanto das praias loiras de onde espigam os ramilhetes dos palmares, enganam-se. Detestam eles o mar, mais do que os primeiros; insultam-no, blasfemam dele; mas sentem a existência acorrentada ao seu fadário, vão vivendo do gozo de sofrer, o mais requintado, o mais sugestivo de todos os gozos. É um paradoxo. Comparam-se a tantos desgraçados, escravos de amantes que detestam, cujos beijos impudicos enojam, cujos turvos caprichos revoltam, mas a quem se veem jungidos por laços de uma indissolúvel fatalidade.

    §

    O meu companheiro ia revolver no passado uma página dos seus velhos amores. Houvera tempo em que encontrava diariamente, a certas horas, uma mulher, que imperou profundamente na sua juventude. Eu não lhes conto, nem saberia contar-lhes, por que gradações do espírito ele chegou a aborrecê-la, a amaldiçoá-la, amaldiçoando-se. Foram as coisas a ponto de ser-lhe tão intolerável esse convívio, que inventava covardemente pretextos, — que tinha de ir ver um amigo, de acompanhar um doente, — unicamente para furtar-se à dor de vê-la, de apertar entre as mãos as suas belas mãos. Corriam-lhe assim horas de satisfação indescritível, no antegozo de um dia inteiro de liberdade, de paz de solitário. Mas aproximava-se o momento fatal, vinham as horas que ele soubera resgatar da opressão; e, inquieto, palpitante, amoroso talvez, ia bater-lhe à porta, ia dizer-lhe que o tal amigo, que o tal doente, haviam prescindido dos seus cuidados...

    Pois fora assim também, confessava, que ele vivera com o mar, numa íntima camaradagem dolorosa. Chamava-lhe falsário. Contava um por um, e por centenas, todos os pesares que lhe devia. Atribuía-lhe a causa, quase única, da existência desolada em que mourejava, sem um norte, sem um rumo, esterilizado para tudo; e também essa irritabilidade mórbida que o alanceava, num anseio indefinível, num anelo do ignoto ou do impossível... Resgatar-se dele? Sim, tinha pensado nisso; houvera sonhado dias calmos numa casita feliz, além, na sua terra, num cantinho de paz. Mas, que querem? cada vez se sentia mais preso ao seu fado; e, francamente, era no seio do mar ululante, ungido pelo beijo frio das ondas, onde já agora, divorciado da pátria, ele desejaria cerrar para sempre os olhos à luz do mundo... Morreu num lazareto.

    §

    A sua vida de homem, houvera-a ele passado sempre aos baldões. Não imaginam como uma pobre individualidade assim se desnorteia; como assim se vive num mundo anómalo de sensações e de desejos, onde o espírito penosamente se enreda, se deprava, se vai gastando, até que vem, enfim, a apatia das coisas, o aborrecimento de si mesmo e dos outros, um tédio horrível. Saudades? bom fora que viessem; mas nem elas mesmas se definem nítidas no cérebro do desterrado, negando-lhe o único consolo dos que sofrem, que é a miragem dos dias serenos decorridos. A noção da pátria distante, a noção da família ausente, são coisas vagas, sombras flutuantes na nebulosidade do indeciso, como se fossem remotas reminiscências de uma outra existência já vivida. Era essa fuga do passado que sobretudo magoava profundamente o meu companheiro. E, como o traço cómico vem insinuar-se em tudo neste mundo, caricaturando ainda as mais mimosas delicadezas de alma, não imaginam como ele se ria às vezes, às gargalhadas, considerando no quadro anacrónico, grotesco, em que se lhe representavam na mente a pátria e o lar, uma pátria e uma família de há trinta anos. No jogo da cena, uns grupos animados de velhinhos calvos, que ele conhecera ou que ele amara, de há muito adormecidos à sombra dos ciprestes. Uma irmã — o seu enlevo, de quem ele falava constantemente, — continuava sendo para ele a garotita morena, que via saltitando pela casa e dando alegria a tudo; e mandava-lhe bonecos... Afirmavam, porém, os factos, que não estaria longe dos seus quarenta anos. Se casualmente percorria com a vista algum jornal da sua terra, tudo lhe era estranho: essas ruas, essas avenidas, esses palácios, nasceram das demolições e foram traçados durante a ausência dele; essas beldades sugestivas, em evidência, andavam certamente ao colo das amas no seu tempo; esses políticos, esses literatos, hoje em fama, estavam sendo reprovados em latim, quando ele deixou de ser lisboeta; até o vocabulário era outro, a frase, a grande mundana, vestiu-se à moda, tornando-se incompreensível nos seus últimos rendilhados de retórica. Ei-lo arremessado um belo dia, pelo sopro da boémia, aos confins do mundo, a este Extremo Oriente. Macau, o meu asilo habitual, foi também o seu, triste, triste, triste Vinde para cá, se quereis conhecê-lo. Por aqui foi vegetando, como eu, como um pobre cardo inútil sumido entre os algares. Ninguém o via, não se encontrava onde toda a gente se encontra, nos clubes, nos passeios, nas igrejas. Dizia-me ele que alguns de entre os vizinhos, — e aqui vizinhos somos todos, — lhe iam formando uma reputação de plácida sisudez, que tinha graça. É claro que ninguém se apercebia das pungentes revoltas do seu espírito, das longas insónias febricitantes, dos desesperos de uma pobre alma vagabunda. Julgavam-no, parece, embrenhado em portentosas lucubrações de pensador, compulsando eruditos alfarrábios, desenvolvendo teses. Faziam bem. Já em letra redonda, uma ou outra vez, o haviam chamado «ilustre»; os comendadores, os conselheiros, tratavam-no fraternalmente por «meu nobre amigo», se o avistavam. Bravo! Mas tantas honrarias, como bem se pode presumir, iam ressaltando da couraça de indiferença, de que há muito ele se revestira, para mal dos seus pecados. Vinha tarde o incenso, nessa quadra da existência em que se julga friamente, desinteressadamente, o mundo, os homens e a si próprio, na passiva esterilidade de uma alma gasta, em que as vicissitudes da vida já têm apagado a última esperança, a última ilusão, a última quimera. E o meu companheiro pensava então com mágoa na juventude desaparecida, inquieta, vibrátil, palpitante de crenças e de anelos; pobre e obscura juventude, mas não tão inútil, mas não tão estulta, como fora julgada, mercê do melancólico retraimento em que se lançara, em tímidos sobressaltos de quem encetava uma dura labuta sobre as quatro tábuas de um convés de navio, sem sombra de afetos em torno...

    §

    A paisagem completa um carácter.

    Todas essas regiões exóticas, por onde os anos lhe correram, choram; choram a miséria do mundo, a desoladora condição dos povos.

    África, o seu primeiro poiso, depois de haver deixado o torrão pátrio... Areais, costas ressequidas, estepes selváticas e desertas; ou densas matas de arvoredo estranho, a cuja sombra se acolhem as senzalas, os grupos de palhotas onde vivem tribos na infância, próximos parentes do chimpanzé e do gorila, que do alto das ramadas lhes vão talvez fazendo surriada, acoimando os bisnetos de pedantes e de renegados; e um calor que escalda, e um ar que pesa e que envenena, turvo de vapores e de emanações. Estado social: ou escravo ou régulo. Lar: covil. Família: as mulheres, que labutam como bestas de carga; a ninhada lãzuda que estrebucha sobre a lama; e sobre a esteira o dono, o senhor, estirado indolentemente durante as suas longas horas de ócio, bêbedo e fétido. Ocupações: a guerra, a razia, a luta com as feras, a adoração do manipanso. Quando não é esta África, é então outra África, que bafejou o sopro do islamismo, que vive por Alá; é a África que se relanceia pelos bazares do Cairo, pelo campo das Pirâmides, pelas encruzilhadas da Casbá de Argel, pelos bairros de Alexandria, pelas vielas de Zanzibar; imponente, austera, triste, com não sei que cunho de sinistra fatalidade, pela paisagem, pelos monumentos, pelos templos, pela casaria, pela feição da gente.

    Na Ásia, lá para oeste, ainda o estigma da lei de Maomé, e a sordidez e a abjeção da raça; e essa esterilidade pavorosa de acastelamentos de penedias requeimadas, nuas como ossos de gigantes, sem uma árvore, sem uma folha, sem um musgo sequer, e que é Áden, e que é todo o contorno convulso do país maldito, que se chamou, certamente por supremo sarcasmo, a Arábia Feliz! Ou é a Índia, com os seus palmares, e Ceilão, com os seus jardins, um cachos de vegetação doida, informe, desesperada, o reino da árvore; e por onde formiga um povo humilde e depravado, que olvidou o que foi, que rasteja passivamente ao grado do senhor, zeloso apenas do seu mito, das suas castas, que são, afinal, a sua condenação irremediável.

    Sião... águas lodosas, árvores, pauis, pagodes, um sol de fornalha imensa, um povo desprezível. E ainda a vizinha Singapura, e as cidades dos Estreitos, e ali as Filipinas, e além Java e Sumatra, e o nosso Timor, e acolá Hong-Kong, e mais ainda: países de ganho, bazares de mil indústrias e de mil produções; mas dura a natureza, desarmónicos os laços sociais, e o quadro da vida, passando além da feitoria ou da habitação faustosa do colono, sórdido e misérrimo.

    E eis-nos finalmente na China, o meu habitual poiso. Ah! esta China, com os seus quatrocentos milhões de habitantes, com o seu vastíssimo domínio, com a sua labuta infatigável de cultura e de indústria, é embora, mais do que todos, o país da desolação e da angústia. E que estímulo é este afinal que aguilhoa o imenso formigueiro, se não é o amor da pátria, se não é o amor da família, se não é o amor de si mesmo, se não é o amor do progresso, um vício ou uma virtude, um ideal qualquer? Porque esta gente não tem ideal. Ama os mortos; é, se quiserem, um ideal retrospetivo. Com respeito aos vivos, medra na lei de espoliá-los, de roubá-los, de vendê-los, de escravizá-los, de torturá-los, de matá-los; escraviza-se a si própria, vende-se a si própria, mata-se a si própria, com um desamor pelo conforto e pela existência, que já não é coragem. Ama os mortos, o pó dos avós; de resto, fria, cética, ei-la grupando-se em imensos cardumes, num afã inconsciente de vermes que procuram carne podre, labutando, labutando, proliferando, proliferando, sem intuito, simplesmente para eternizar o fadário.

    Vejam o que se chama uma aldeia chinesa, o que se chama uma cidade chinesa. É um charco de imundícies, de onde emerge a casaria negra, húmida de bolores pestíferos. Lá dentro, em cada albergue, é o antro onde se amontoam de mistura as coisas mais estranhas. Como a grande preocupação é comer, eis os bazares intermináveis: as seiras com arroz, as hortaliças e os legumes nadando em salmoiras, os peixes vivos em celhas, os peixes salgados em montes, as enfiadas de patos e de ratos secos, os ovos salgados, os ovos intencionalmente apodrecidos, os pedaços de toicinho, a carniça tostada chorando gorduras; ao fundo da baiuca o vendilhão em gestos, passando à clientela os seus artigos, asqueroso, horrível, indecente, com o busto nu, com o grande ventre à vista, como uma imensa abóbora... de sorte que a mesma abundância reveste aqui um aspeto de coisa vil, que tenta a moscaria, que tenta o indígena, mas que dá náuseas à gente, como se fora um montão de esterco. Se é o lar e não a venda, o lôbrego lar sem sombra de aninho, é então o grupo de crianças em andrajos, cheias de parasitas, negras de imundície, com os olhos avermelhados pingando humores, de mistura com as galinhas e com os porcos; é a mãe que lhes ralha, a face sinistra em cólera, a mão estendida para bater, a sua mão medonha de cadáver, terrosa, de dedos nodosos e afilados, terminando em longas unhas em garra, onde se acumula durante uma existência inteira o pó do acaso; é o pai, o vulto ossudo curvado sobre o trabalho, incansável como um autómato, como um engenho, distraindo-se apenas para levar aos beiços a taça com chá, ou para rouquejar uma blasfémia.

    Agora a natureza: o quadro alterna, ora em gelos, ora em longas nebulosidades pasmadas, ora em irradiações de um sol abrasador, tórrido, que nem as lufadas exterminadoras dos tufões suavizam. E sempre um cenário de agonia, de costas safaras, de largos rios lodosos, de charcos pestilentes, de arvoredo esguio açoitado das ventanias, a que vem juntar-se, sem conseguir dar realce, a verde aguarela dos arrozais, dos arrozais, dos intermináveis arrozais.

    §

    Contava-me o meu companheiro, que um belo dia, longos meses depois da sua chegada à China, seguiu para o Japão. É sair de uma caverna e entrar num jardim. O que nele se passou, neste salto sem transição, do quadro desolador que vos pintei, para este país de luz — do Sol Nascente lhes charlam, — país de alegria, palpitante de todos os encantos, de todas as harmonias, abençoado por Deus (dizem os japoneses que pelo Buda), mal o compreendia eu; depois senti-o, quando também abordei às mesmas costas, e é o feitiço desse deslumbramento que eu agora invoco. As energias da vida, adormecidas pela nostalgia dos tristes anos decorridos, acordam em tropel, como um bando de pássaros ao romper da manhã; o espírito emociona-se, subtiliza-se, vibra em sensações de surpresa; a existência revela-se-nos, enfim, como uma boa coisa, como um bom fruto maduro, em que apetece morder gulosamente.

    A terra japonesa não faz exceção das outras sociedades orientais, no que respeita ao aspeto particular da vida, deslizando calma, como as águas de um lago, numa despreocupação vagabunda do sentir, alheia às grandes febres, às grandes comoções, dos povos do Ocidente. O trabalho deixa de ser compreendido como uma luta incessante de interesses e de invejas; o estudo não atinge a feição mórbida, duplamente funesta, que definha o corpo e envenena a alma, e é preceito que, se é bom um dia inteiro de labuta na oficina, para recolher à tarde o farto ganho, melhor é o dia em que as ferramentas repousam inativas, e se vai, campos fora, gozar a luz do sol como qualquer lagarto, e fazer companhia aos insetos e aos pássaros, que mandriam sobre o verde em bandos descuidosos. Uma tal paz faz bem aos espíritos cansados. Mas o que aqui mais impressiona, mais cativa, mais consola, mais talvez do que em qualquer outro canto do mundo, é o prestígio ridente de tudo que nos rodeia, de tudo que os nossos olhos alcançam, como que numa festa perene da Criação. O Japão é um país feito de risos, ou antes de sorrisos; ao Criador, que tudo pode, não admira que bastasse esta subtil matéria prima para a elaboração das suas maravilhas. Tudo sorri. Sorri o céu, em doces cambiantes de azul nunca sonhados; sorri a vegetação, em doidas ramarias curvando ao peso de delicadas florescências; sorriem as colinas caprichosamente acavalgadas, com as suas bastas cabeleiras de garotos, feitas de musgos e de capilárias; sorri a paisagem fresca das ribeiras, serpeando pelas campinas verdes; sorriem as casinhas garridas das aldeias, surgindo dos campos de lótus cor de rosa; sorriem os pássaros em gorjeios e os insetos em palpitações de élitros; sorriem as crianças, mimosas de carinhos e de louçanias; sorri o aldeão, sorri o operário, em doces fisionomias de gente sem cuidados; e sorriem as musumés, as raparigas, frescas, deliciosas de perfis e adoráveis. Lágrimas, meus amigos, creio que só do orvalho aqui logram gotejar. A alegria, disfarçando-se num ambiente de encantos que envolve tudo e todos, assentou aqui decididamente poisada; e tão pródiga, a santa, que nem ao forasteiro regateia algumas horas de maravilhoso enlevo, quando ele vem, farto de si e do mundo, aquecer-se a este sol.

    O Japão possui o segredo de tornar-se querido de qualquer que venha da Europa, ainda impressionado pelo fausto das grandes capitais, e ainda saudoso do ninho pátrio que deixou. Quando a gente vem, nem mesmo sabe de onde, de uma longa vagabundagem em terras pestíferas, coalhadas de miséria, consequentemente mais lhe quer. Dissipam-se sonhos negros, langores de misantropo. Assim como os japoneses entram nos templos, largando à porta as sandálias poeirentas, e purificando em santas abluções as mãos e a boca, assim a gente, ao entrar no Japão, deixa à porta a poeira dos amargores passados, e sente em si a alma leve e o espírito impressionável a todas as seduções.

    §

    O meu companheiro, durante as palestras sonhadoras, tinha grandes ondulações de frase, tentando fazer-me viver no seu sentir, tentando explicar-me como se lhe aninhara na mente a noção doce, que guardava do país nipónico. Fora curta a visita. Volvendo à China, tivera

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