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Orlando
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E-book287 páginas4 horas

Orlando

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Sobre este e-book

«Da magnífica residência dos Sackville‑West, o castelo de Knole, Virginia faz a moldura da sua biografia fantástica; de Vita, herdeira de uma das maiores famílias de Inglaterra, o modelo do seu herói. Homem e depois mulher, mas sobretudo homem e mulher, Orlando poderia ter saído com todas as suas armas do cérebro do Aristófanes do Banquete (…). Virginia Woolf não se sente apenas tentada pela originalidade antropológica de Orlando. O que a interessa no personagem é a inumerável variedade de combinações possíveis que permite a ausência das obrigações humanas habituais. (…) Tesoureiro ou embaixador, perseguidor de raparigas ou musa de espíritos apaixonados pela beleza, melancólico ou exaltado, trocando as calças pelas saias ou refugiando‑se na sua tebaida de campo para escrever o seu poema, a sua natureza dupla presenteia-o não com duas nem com dez, mas com cem vidas diferentes.» [Monique Nathan, em Virginia Woolf]
IdiomaPortuguês
Data de lançamento29 de mai. de 2020
ISBN9789897830501
Orlando
Autor

Virginia Woolf

Virginia Woolf was an English novelist, essayist, short story writer, publisher, critic and member of the Bloomsbury group, as well as being regarded as both a hugely significant modernist and feminist figure. Her most famous works include Mrs Dalloway, To the Lighthouse and A Room of One’s Own.

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    Pré-visualização do livro

    Orlando - Virginia Woolf

    Sackville­­-West

    Prefácio

    Muitos amigos me ajudaram a escrever este livro. Alguns estão mortos e são de tal maneira ilustres que mal me atrevo a nomeá­-los, e todavia ninguém pode ler nem escrever sem estar perpetuamente em dívida para com Defoe, Sir Thomas Browne, Sterne, Sir Walter Scott, Lord Macaulay, Emily Brontë, De Quincey e Walter Pater — para citar os primeiros que me vêm ao espírito. Outros estão vivos, e embora talvez a seu modo igualmente ilustres, são por essa mesma razão menos temíveis. Credor de uma dívida particularmente importante é Mr. C. P. Sanger, sem cujo conhecimento das leis que regem a propriedade fundiária não poderia o presente livro ter sido escrito. A vasta e singular erudição de Mr. Sydney­-Turner poupou­-me, espero, alguns erros lamentáveis. Pude usufruir — e só eu sei avaliar a magnitude do privilégio — dos conhecimentos de chinês de Mr. Arthur Waley. Madame Lopokova (Mrs. J. M. Keynes) colocou­-se ao meu dispor para corrigir o meu russo. À imaginação e à simpatia inigualáveis de Mr. Roger Fry devo o muito ou pouco que sei da arte da pintura. Num capítulo diferente, tirei proveito — assim o espero — das críticas singularmente perspicazes, e não menos severas, do meu sobrinho Mr. Julian Bell. As infatigáveis pesquisas de Miss M. K. Snowdon nos arquivos de Harrogate e Cheltenham, embora infrutíferas, não foram por isso menos árduas. Outros amigos me ajudaram ainda, de formas tão diversas que não posso aqui especificá­-las. Terei de me contentar com citar os nomes de Mr. Angus Davidson; Mrs. Cartwright; Miss Janet Case; Lord Berners (que me prestou, com o seu conhecimento da música isabelina, um auxílio inestimável); Mr. Francis Birrell; do meu irmão, o Dr. Adrian Stephen; de Mr. F. L. Lucas; Mr. e Mrs. Desmond Maccarthy; do mais inspirador dos críticos, o meu cunhado Mr. Clive Bell; de Mr. G. H. Ryland; Lady Colefax, Miss Nellie Boxall; Mr. J. M. Keynes; Mr. Hugh Walpole; Miss Violet Dickinson; do Honourable Edward Sackville­-West; Mr. e Mrs. St. John Hutchinson; Mr. Duncan Grant; Mr. e Mrs. Stephen Tomlin; Mr. e Lady Ottoline Morrell; da minha sogra, Mrs. Sidney Woolf; Mr. Osbert Sitwell; de Madame Jacques Raverat; do coronel Cory Bell; Miss Valerie Taylor; Mr. J. T. Sheppard; Mr. e Mrs. T. S. Eliot; Miss Ethel Sands; Miss Nan Hudson; do meu sobrinho Mr. Quentin Bell (antigo e prezado colaborador nos domínios da ficção); Mr. Raymond Mortimer; Lady Gerald Wellesley; Mr. Lytton Strachey; a viscondessa Cecil; Miss Hope Mirrlees; Mr. E. M. Forster; do Honourable Harold Nicolson; e da minha irmã, Vanessa Bell — mas a lista arrisca­-se a ficar demasiado longa, e é já por demais eminente. Com efeito, se estes nomes evocam para mim as mais agradáveis recordações, inevitavelmente despertarão no leitor expectativas que o livro em si não pode senão desiludir. Terminarei, portanto, agradecendo aos funcionários do Museu Britânico e dos Arquivos a cortesia a que me habituaram; à minha sobrinha Angelica Bell, um favor que só ela me poderia ter feito; e ao meu marido, a paciência com que invariavelmente me ajudou nas minhas pesquisas e os profundos conhecimentos históricos a que estas páginas ficam a dever toda a exatidão que eventualmente possam ter atingido. Por último, agradeceria, se não tivesse perdido o seu nome e morada, a um cavalheiro americano que generosa e gratuitamente corrigiu a pontuação, a botânica, a entomologia, a geografia e a cronologia de anteriores obras minhas e que, segundo espero, não irá privar­-me desta vez dos seus serviços.

    Capítulo I

    Ele — pois não poderia haver dúvidas quanto ao seu sexo, embora a moda da época contribuísse até certo ponto para o dissimular — estava a golpear uma cabeça de mouro suspensa das vigas do telhado. Esta era da cor de uma velha bola de futebol, e mais ou menos do mesmo feitio, tirando as faces encovadas e uma madeixa ou duas de cabelo crespo e ressequido, como os pelos de um coco. O pai de Orlando, ou talvez o avô, decepara­-a dos ombros de um enorme pagão que assomara de repente, ao luar, nos bárbaros campos de África; e agora balouçava, suavemente, perpetuamente, ao sabor da brisa que nunca parava de soprar nos sótãos da gigantesca casa do senhor que o matara.

    Os antepassados de Orlando haviam cavalgado por campos de asfódelos e campos pedregosos e campos regados por rios desconhecidos, e haviam decepado de muitos ombros muitas cabeças de muitas cores, trazendo­-as de volta para as pendurarem nas vigas. O mesmo faria Orlando — assim jurou. Mas como tinha apenas dezasseis anos, sendo ainda demasiado jovem para os acompanhar nas cavalgadas por Áfricas e Franças, fugia para longe da mãe e dos pavões do jardim e refugiava­-se no sótão, onde arremetia, investia e golpeava o ar com a sua espada. Às vezes cortava a corda, de forma que o crânio caía ao chão e ele se via obrigado a amarrá­-lo de novo, suspendendo­-o, não sem cavalheirismo, quase fora do seu alcance, de modo que o inimigo lhe sorria triunfantemente com lábios negros e mirrados. O crânio balouçava de um lado para o outro, pois a casa em cujos píncaros vivia era tão vasta que o próprio vento parecia ser dela prisioneiro, soprando para cá, soprando para lá, de verão como de inverno. O pano de arrás verde com figuras de caçadores ondulava perpetuamente. Os antepassados de Orlando eram nobres desde o alvor dos tempos. Tinham vindo das brumas do Norte já de coroa na cabeça. E não é verdade que as barras de sombra visíveis na sala do sótão, e os lagos amarelos que axadrezavam o soalho, os desenhava o sol filtrado pelos vitrais do enorme brasão da janela? Orlando estava agora no meio do corpo amarelo de um leopardo heráldico. A mão que apoiou no parapeito para abrir a janela coloriu­-se nesse mesmo instante de vermelho, azul e amarelo, como uma asa de borboleta. Assim, os apreciadores de símbolos e da sua decifração observariam talvez que embora as pernas bem torneadas, o formoso corpo e os ombros robustos se achassem por inteiro enfeitados com vários matizes de luz heráldica, o rosto de Orlando, ao empurrar os batentes da janela, só tinha a iluminá­-lo o próprio sol. Impossível seria achar rosto mais cândido e mais sisudo. Feliz a mãe que gera, mais feliz ainda o biógrafo que narra a vida de tal criatura! Nem ela terá de se atormentar, nem ele de invocar o auxílio de romancista ou poeta. Fatalmente avançará de feito em feito, de glória em glória, de cargo em cargo, seguido sempre pelo seu escriba, até alcançarem o posto, seja ele qual for, que represente o culminar dos seus desejos. Orlando — bastava olhá­-lo — era talhado a preceito para uma carreira assim. O vermelho das faces cobria­-se de uma penugem de pêssego; a penugem dos lábios era apenas um tudo­-nada mais espessa que a das faces. Os lábios em si eram breves e ligeiramente retraídos, dando a ver a delicada brancura de amêndoa dos dentes. Nada perturbava o nariz direito como uma seta no seu voo curto e tenso; o cabelo era escuro, as orelhas pequenas e coladas à cabeça. Mas, ai de nós!, estes catálogos de beleza juvenil não podem terminar sem uma referência aos olhos e à testa. Ai de nós!, raramente alguém nasce desprovido dessas três coisas; pois assim que avistamos Orlando de pé junto à janela, vemo­-nos obrigados a reconhecer que ele tinha uns olhos como violetas encharcadas, tão grandes que pareciam inundados e dilatados de água; e uma testa como a curva de uma cúpula de mármore, comprimida entre os dois brancos medalhões que eram as têmporas. Mal avistamos testa e olhos, deixamo­-nos assim arrebatar pelo entusiasmo. Mal avistamos testa e olhos, somos obrigados a admitir mil coisas desagradáveis que todo o bom biógrafo desejaria ignorar. Imagens havia que o perturbavam, como a de sua mãe, senhora muito bela, vestida de verde, que saía a dar de comer aos pavões com Twitchett, a criada, no encalço; outras que o exaltavam — as aves e as árvores; e as que o faziam amar a morte — o céu do entardecer, as gralhas de arribação; e assim, subindo a escada de caracol até ao cérebro — que era dos mais espaçosos — todas estas imagens, e também os sons do jardim, o bater do martelo, o rachar da lenha, desencadearam esse tumulto e essa confusão de paixões e emoções que todo o bom biógrafo abomina. Mas, para continuarmos — Orlando recolheu lentamente a cabeça, sentou­-se à mesa, e, com o ar meio absorto de quem se prepara para fazer o mesmo que todos os dias faz àquela hora, pegou num caderno em cuja capa se lia: «Aethelbert: Tragédia em Cinco Atos», e mergulhou no tinteiro uma velha e manchada pena de ganso.

    Em breve enchera dez e mais páginas de poesia. Era fluente, bem se via, mas abstrato. Vício, Crime e Miséria eram as personagens da sua peça; havia Reis e Rainhas de territórios impossíveis; enredados em pavorosas intrigas; impregnados de nobres sentimentos; nem uma palavra era dita como ele próprio a diria, antes torneadas todas com uma fluência e uma harmonia que, tendo em conta a sua pouca idade — ainda não completara dezassete anos — e o facto de o século xvi ter ainda alguns anos de caminho a percorrer, eram assaz notáveis. Acabou, no entanto, por poisar a pena. Estava a descrever, como eternamente fazem todos os jovens poetas, a Natureza, e para acertar no matiz exato de verde olhou (nisto dando mostras de mais audácia do que a maioria) para a coisa em si, que neste caso era um maciço de loureiros plantados mesmo por baixo da janela. A partir daí não conseguiu, é claro, escrever mais nada. O verde na Natureza é uma coisa, o verde na literatura outra bem diversa. Natureza e letras parecem nutrir uma pela outra uma natural antipatia; basta juntá­-las para mutuamente se esfacelarem. O matiz de verde que Orlando agora via estragava­-lhe a rima e desarranjava­-lhe a métrica. Além disso, a Natureza tem artimanhas muito suas. Espreitemos uma vez que seja, pela janela, as abelhas no meio das flores, o bocejo de um cão, o pôr­-do­-sol, pensemos uma vez que seja «quantos mais pores­-do­-sol verei ainda», etc., etc. (a ideia é demasiado conhecida para que valha a pena registá­-la por extenso) e largamos a pena, pegamos na nossa capa, deixamos o quarto, tropeçando ao sair numa cómoda pintada. Porque Orlando era um tanto ou quanto desastrado.

    Cuidou de não se encontrar com ninguém. Lá vinha Stubbs, o jardineiro, ao fundo da alameda. Escondeu­-se atrás de uma árvore até que ele passasse. Saiu por um pequeno portão no muro do jardim. Contornou todos os estábulos, canis, cervejarias, oficinas de carpinteiro, lavandarias, divisões onde se fabricavam velas de sebo, se forjavam ferraduras, se confecionavam gibões — pois a casa era uma cidade ressoante de homens a trabalhar nos seus diversos mesteres — e alcançou sem ser visto, atravessando o parque, o carreiro ladeado de fetos que conduzia ao cimo do monte. Talvez exista um parentesco entre qualidades, sendo que cada uma traz consigo outra afim; e o biógrafo deve aqui chamar a atenção para o facto de a falta de jeito se aliar muitas vezes ao gosto pela solidão. Tendo tropeçado numa cómoda, Orlando amava naturalmente os lugares solitários, os panoramas rasgados e a sensação de estar para todo o sempre sozinho.

    Por isso, ao cabo de um longo silêncio suspirou enfim «Estou só», abrindo pela primeira vez a boca desde o início deste relato. Subira muito depressa o declive, por entre fetos e pilriteiros, espantando veados e aves bravias, até chegar a um cume coroado por um único carvalho. Era muito alto — tão alto, na verdade, que de lá se avistavam dezanove condados ingleses; e nos dias limpos trinta ou até quarenta, se o tempo estivesse particularmente bom. Às vezes via­-se o Canal da Mancha, ondas reiterando outras ondas. Viam­-se rios e barcos de recreio deslizando nas suas águas; e galeões a fazer­-se ao mar; e armadas com baforadas de fumo de onde partia o troar surdo dos tiros de canhão; e fortificações costeiras; e castelos no meio dos prados; e aqui uma torre de vigia; acolá uma fortaleza; mais adiante uma imensa mansão como a do pai de Orlando, concentrada, como uma pequena urbe, num vale cercado de muralhas. A leste avistavam­-se os campanários de Londres e o fumo da cidade; e, mesmo na linha do horizonte, quando o vento soprava de feição, assomavam, montanhosos, entre nuvens, o cume alcantilado e as encostas íngremes do longínquo Snowdon. Orlando ficou por momentos a contar, a contemplar, a identificar. Aquela era a casa de seu pai; aqueloutra, a do tio. Pertenciam a sua tia aqueles três grandes torreões, no meio das árvores. Eram donos da charneca e da floresta; de faisões e veados, raposas, texugos e borboletas.

    Suspirou profundamente, e arremessou­-se — havia nos seus gestos uma paixão que justifica o termo — ao chão, junto do carvalho. Adorava sentir debaixo de si, por baixo de toda esta efemeridade estival, a espinha da terra; pois espinha se lhe afigurava ser a dura raiz do carvalho; ou então, e porque as imagens sucedem umas às outras, seria o dorso de um grande cavalo que ele cavalgasse; ou o convés de um navio sacudido pelas ondas — podia ser qualquer coisa, no fundo, contanto que fosse firme, pois Orlando precisava de algo a que pudesse prender o seu coração à deriva; o coração que lhe palpitava do lado esquerdo; o coração que todas as tardes, quando por esta hora saía de casa, parecia encher­-se de ventos fragrantes e arrebatados. Ao carvalho o amarrou, e ali deitado sentiu sossegar gradualmente a agitação dentro de si e à sua volta; as folhas tenras penderam inertes, os veados estacaram; as pálidas nuvens de verão pararam de correr; os seus membros assentes no chão entorpeceram­-se; e ficou tão imóvel que a pouco e pouco os veados se foram aproximando, as gralhas rodopiaram em seu redor, as andorinhas mergulharam no ar, voando em círculos, e as libélulas passaram como setas, como se toda a fertilidade e atividade amorosa da tarde de verão tecessem em volta do seu corpo uma espécie de teia.

    Passada cerca de uma hora — o Sol afundava­-se rapidamente, as nuvens brancas avermelhavam­-se, os montes tingiam­-se de violeta, os bosques de púrpura, os vales de negro — uma trombeta soou. Orlando ergueu­-se de um pulo. O som estridente vinha do vale. Vinha de um local sombrio, lá em baixo; um local compacto e desenhado como um mapa; um labirinto; uma cidade, porém cingida de muros; vinha do coração da sua grande casa no vale que, até aí às escuras, se desfez, no próprio instante em que a olhava e a solitária trombeta se duplicava e reduplicava noutros sons mais estridentes, da sua escuridão, cravejando­-se de luzes. Algumas eram pequenas luzes apressadas, como de criados correndo pelas galerias para atender quem os chamava; outras eram luzes altas e resplandecentes, como acesas em salões de banquete desertos, quase prontos para acolherem convivas ainda a caminho; e outras mergulhavam, vacilavam, subiam e desciam, como suspensas das mãos de exércitos de servidores, curvando­-se, ajoelhando, erguendo­-se, recebendo, guardando e escoltando com toda a dignidade até ao interior do edifício a grande princesa que se apeava da sua carruagem. O pátio enchia­-se de coches em movimento. Cavalos sacudiam os penachos de plumas. A rainha chegara.

    Orlando parou de olhar. Precipitou­-se para o vale. Entrou por um pequeno portão. Subiu a correr a escada de caracol. Chegou ao seu quarto. Atirou as meias para um canto, o gibão para o canto oposto. Passou a cabeça por água. Esfregou as mãos. Aparou as unhas. Socor­rendo­-se apenas de um minúsculo espelho e de um par de velas gastas, conseguiu em menos de dez minutos, contados pelo relógio do estábulo, enfiar um par de bragas carmesins, uma gola de renda, um colete de tafetá e uns sapatos guarnecidos de rosetas grandes como dálias dobradas. Estava pronto. Estava afogueado. Estava excitadíssimo. Mas estava terrivelmente atrasado.

    Por atalhos que só ele conhecia, encaminhou­-se então, atravessando a interminável sucessão de salas e escadarias, para a sala de banquetes, que ficava a uns cinco acres de distância, no outro extremo da casa. Mas a meio caminho, na ala das traseiras onde viviam os criados, estacou. A porta da saleta de Mrs. Stewkley estava aberta — ela fora certamente, com o seu grande molho de chaves, vestir a sua senhora. Mas estava lá sentado, à mesa de jantar da criada, tendo a seu lado um tinteiro e papel à sua frente, um homem bastante gordo, bastante enxovalhado, de gola engomada um tanto ou quanto suja e roupas de lã castanha. Tinha uma pena na mão, mas não estava a escrever. Parecia entregue à tarefa de revolver no espírito, para cima e para baixo, para trás e para diante, um pensamento qualquer, até que adquirisse forma ou ímpeto a seu agrado. Os seus olhos, redondos e anuviados como pedras verdes de singular textura, estavam imóveis. Não via Orlando. Mau grado toda a sua pressa, Orlando estacou de repente. Seria um poeta? Estaria a escrever poesia? «Diz­-me», apeteceu­-lhe pedir, «todas as coisas do mundo inteiro» — pois Orlando nutria as mais loucas, mais absurdas, as mais extravagantes ideias acerca dos poetas e da poesia — mas como falar com um homem que não nos vê? Que em nosso lugar vê ogres, sátiros, quem sabe até os abismos do mar? Por isso Orlando ficou parado a olhar enquanto o homem revirava a pena entre os dedos; e olhava o vazio e ruminava; para depois, muito depressa, escrever meia dúzia de versos e erguer os olhos. Ao que Orlando, intimidado, desatou a correr e chegou ao salão de banquete mesmo a tempo de cair de joelhos e, curvando de vergonha a cabeça, oferecer à grande rainha em pessoa uma taça de água de rosas.

    Tão grande era a sua timidez que não lhe viu mais que a mão guarnecida de anéis mergulhada na água; mas foi o bastante. Era uma mão memorável; uma mão magra, de longos dedos sempre encurvados, como em redor de orbe ou cetro; uma mão nervosa, irascível, enfermiça; mão autoritária, também; uma mão a que bastava erguer­-se para fazer rolar uma cabeça; uma mão — conjeturou ele — presa a um velho corpo com o cheiro dos armários onde se conservam peliças em cânfora; corpo todavia enfeitado com toda a sorte de brocados e pedrarias; e muito direito, embora talvez sofrendo de ciática; e não vacilando nunca, embora tolhido por mil receios; e a cor dos olhos era um amarelo­-claro. Tudo isto Orlando sentiu enquanto os grandes anéis cintilavam na água e depois alguma coisa lhe comprimia o cabelo — o que talvez explique por que razão nada mais viu que pudesse ser útil a um historiador. E, na verdade, o seu espírito era um tal tumulto de opostos — a noite e o clarão das velas, o poeta maltrapilho e a grande rainha, os campos silenciosos e o tropel dos criados — que nada viu; ou simplesmente uma mão.

    Pelas mesmas razões, a rainha, por seu turno, só poderá ter visto uma cabeça. Mas se é possível deduzir de uma mão um corpo, dotado de todos os atributos da grande rainha, a sua irascibilidade e coragem, a sua fragilidade e o seu terror, decerto pode uma cabeça revelar­-se igualmente fértil, contemplada do alto de um trono por uma senhora que tinha sempre, a crermos nas figuras de cera da Abadia, os olhos bem abertos. O cabelo comprido, encaracolado, a cabeça morena tão reverentemente, tão inocentemente inclinada a seus pés, subentendiam o mais belo par de pernas que alguma vez susteve um jovem aristocrata; e olhos cor de violeta; e um coração de ouro; e lealdade e encanto viril — tudo qualidades que a velha senhora tanto mais apreciava quanto mais lhes sentia a falta. Porque estava a ficar precocemente velha, gasta e curvada. Tinha a cada instante nos ouvidos o troar dos canhões. A cada instante via a luzidia gota de veneno e o longo estilete. Sentada à mesa, punha­-se à escuta; ouvia as peças de artilharia no Canal da Mancha; e receava — seria aquele som uma praga, aqueloutro um murmúrio? Contra tão negro pano de fundo, ainda mais caras se lhe tornavam a inocência e a simplicidade. E foi nessa mesma noite, segundo reza a tradição, enquanto Orlando dormia a sono solto, que ela outorgou formalmente, apondo ao pergaminho a marca irrevogável da sua assinatura e selo, a doação da grande casa monástica que fora do arcebispo e depois do rei ao pai de Orlando.

    Orlando dormiu toda a noite na ignorância. Fora beijado por uma rainha sem o saber. E foi talvez — intricados que são os corações femininos — essa ignorância e o sobressalto que o percorreu quando os seus lábios o tocaram que conservou a memória do jovem primo (pois eram do mesmo sangue) viva e fresca no espírito da soberana. Fosse como fosse, não eram ainda passados dois anos desta tranquila vida campestre, e Orlando não escrevera talvez mais de vinte tragédias, uma dúzia de histórias e uma vintena de sonetos, quando chegou o recado de que devia apre­sen­tar­-se à rainha em Whitehall.

    «Aí vem», disse ela, ao vê­-lo avançar ao seu encontro pela longa galeria, «o meu inocente!» (Havia nele, ainda e sempre, uma serenidade que aparentava inocência, quando em rigor o termo já não se lhe aplicava.)

    «Vem cá!», disse ela. Estava sentada, muito direita, à lareira. Agarrou­-lhe as mãos e deteve­-o à distância de um passo da sua pessoa, mirando­-o dos pés à cabeça. Estaria a confrontar as suas especulações dessa outra noite com a verdade agora visível? Acharia justificadas as suas conjeturas? Olhos, boca, nariz, peito, ancas, mãos — tudo percorreu; tremiam­-lhe visivelmente os lábios enquanto olhava; mas quando lhe viu as pernas soltou uma gargalhada. Orlando era a verdadeira imagem de um nobre fidalgo. Mas, e interiormente? Os olhos da rainha, os seus olhos amarelos, de falcão, dardejaram como se quisessem trespassar­-lhe a alma. O jovem sustentou o olhar, rosto tingido apenas de um leve rosa­-damasco que lhe assentava na perfeição. Força, graça, fantasia, loucura, poe­sia, juventude — a rainha leu­-o como um livro aberto. Nesse mesmo instante arrancou do dedo um anel (tinha a articulação um tanto inchada) e, enfiando­-o no dedo do jovem, nomeou­-o seu tesoureiro e camareiro; a seguir suspendeu­-lhe do pescoço as insígnias do cargo; e, convidando­-o a dobrar o joelho, cingiu­-o, na parte mais delgada, com a liga recamada de joias da Ordem da Jarreteira. Desde então, nada lhe foi negado. Nos cortejos de maior pompa, Orlando cavalgava à ilharga da real carruagem. Foi enviado à Escócia numa triste embaixada à infeliz rainha. Estava prestes a embarcar para as guerras da Polónia quando ela o chamou de volta. Pois como suportaria imaginar dilaceradas aquelas tenras carnes, e aquela cabeça frisada a rolar na poeira? Conservou­-o junto de si. No auge do seu triunfo, quando os canhões estrondeavam na Torre de Londres, quando o ar, de tão saturado de pólvora, punha toda a gente aos espirros, e quando os vivas do povo ressoavam debaixo das suas janelas, a rainha puxou­-o para o meio das almofadas onde a tinham deitado as aias (tão velha e cansada estava) e fê­-lo mergulhar a face nesse espantoso composto — não mudava de vestido havia um mês — que cheirava, sem tirar nem pôr, pensou ele, evocando as suas memórias de infância, como o velho armário onde, lá em casa, se guardavam as peliças da mãe. Orlando soergueu­-se, ainda meio sufocado pelo amplexo. «Isto, sim», murmurou ela, «é a minha vitória!» — no mesmo instante em que um foguete subia no ar com estrépito, tingindo­-lhe as faces de escarlate.

    Porque a velha senhora amava­-o. E a rainha, que sabia reconhecer um homem digno desse nome, embora, segundo se diz, não o fizesse da maneira habitual, arquitetou para ele uma carreira tão esplêndida como ambiciosa. Doou­-lhe terras, entregou­-lhe casas. Ele

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