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Raça - trajetórias de um conceito: Histórias do discurso racial na América Latina
Raça - trajetórias de um conceito: Histórias do discurso racial na América Latina
Raça - trajetórias de um conceito: Histórias do discurso racial na América Latina
E-book401 páginas6 horas

Raça - trajetórias de um conceito: Histórias do discurso racial na América Latina

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Sobre este e-book

Há em todo o material que compõe Raça: trajetórias de um conceito – histórias do discurso racial na América Latina o interesse comum de se pensar o discurso racial tal como ele foi elaborado por diversos grupos da intelectualidade latino-americana. Esta é, portanto, uma coletânea de artigos que pretende discutir raça enquanto conceito dotado de força política e alvo de disputas identitárias, constantemente ressignificado em diversos momentos e lugares, inclusive nas obras dos vários autores que se utilizaram dele ao longo da história. O que quer dizer exatamente raça em cada uma dessas situações? Que território ela demarca? Quais os interesses em defender ou não a sua utilização?
Para tornar possível trabalhar tomando estas questões como pontos de fuga, foi fundamental o exercício da interdisciplinaridade. Partindo da História Intelectual, portanto, os artigos aqui presentes dialogam com a História dos Conceitos, a História da Ciência e a Ciência Política, sem esquecer a importantíssima discussão de base antropológica que permeia todo o projeto, em um esforço que abrange países da América do Sul, México e Caribe, e engloba também reflexões sobre a constituição racial da América Latina realizadas por setores da intelectualidade dos Estados Unidos.
Os autores deste livro são professores já consagrados nos seus campos e jovens pesquisadores das áreas de História e Ciências Sociais. A inquietação acerca das múltiplas dimensões do discurso racial na América Latina é o traço comum que une esses investigadores, vinculados a diferentes instituições de pesquisa.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento20 de abr. de 2016
ISBN9788564116504
Raça - trajetórias de um conceito: Histórias do discurso racial na América Latina
Autor

Monica Grin

Monica Grin: Professora Titular de História Contemporânea e do PPGHIS da UFRJ. Coordena desde 2009 o NIEJ da UFRJ. É autora, entre outros, de Raça: debate público no Brasil (2010) e, em co-autoria com Michel Gherman, de Identidades ambivalentes: desafios aos estudos judaicos no Brasil (2016).

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    Raça - trajetórias de um conceito - Monica Grin

    protagonismo.

    Enfermidade de um continente:

    a influência do racismo científico no pensamento político latino-americano (Alcides Arguedas e Francisco García Calderón)

    Regiane Gouveia*

    Introdução

    A ideia de raça, ao longo do século XIX, esteve presente em muitos projetos nacionais na América Latina. As elites políticas e intelectuais, ansiosas por alcançar os ideais de civilização e progresso europeus, inspiraram-se em teorias racistas, desenvolvidas na Europa, para pensar esses projetos. Nessa perspectiva, em muitos momentos, buscou-se definir os que estariam dentro e os que estariam fora deles. A América Latina, com uma conformação social biologicamente heterogênea, além de diversos problemas econômicos e políticos, foi alvo de críticas e condenações. Diante disso, sua intelectualidade procurou meios de mudar essa situação; surgiram diferentes propostas que tinham em vista reverter o quadro pessimista do continente.

    Em meados do século XIX, o desenvolvimento das ciências nos mais variados âmbitos proporcionou grande entusiasmo entre a intelectualidade europeia e americana. As descobertas que surgiam, sobretudo na biologia, na química e na medicina, não apenas propiciaram significativos êxitos nessas áreas, como também passaram a ser aplicadas para explicar o homem e a sociedade. O discurso científico foi acionado para respaldar velhas teorias, e justificar preconceitos que vinham de longa data. A partir daí, o racismo ganhou uma justificação biológica, que atribuía a determinados grupos humanos uma inferioridade inata e que, de acordo com algumas dessas ideias, jamais seria redimida (GOULD, 1999, p. 18). As ciências humanas, especialmente a antropologia e a sociologia e, posteriormente, a psicologia, ansiosas pelo status de ciências objetivas e de precisão incontestável, logo foram contaminadas por esse discurso.

    Com efeito, a fascinação pelos números foi comum, a crença nas medições rigorosas asseguraria a exatidão e estabeleceria os limites entre a especulação subjetiva e uma verdadeira ciência, tão digna quanto a física newtoniana (GOULD, 1999, p. 65-66). Conforme assinala o paleontólogo norte-americano Stephen Jay Gould, a teoria da evolução e a quantificação, juntas, formaram uma parceria com dramáticas consequências, que, de certa forma, foi capaz de forjar a primeira teoria racista científica de importância, sustentada por uma profusão de cifras, que lhe conferia uma aura de objetividade e imparcialidade.

    As teorias racistas estavam envoltas em um novo discurso, com a autoridade que a ciência lhe conferia. A literatura médica ganhou espaço nesse período e sua linguagem foi amplamente empregada por intelectuais preocupados com o futuro da América Latina. A instabilidade política;¹ a dependência do capital estrangeiro, em decorrência das novas relações econômicas; e os problemas sociais, comuns à maioria dos países latino-americanos na época, faziam com que proliferassem conjeturas acerca da incapacidade do continente de incorporar a modernização e alcançar o progresso.

    É importante ressaltar que, em fins do século XIX, a América Latina passou por um rápido processo de modernização;² as novas relações econômicas baseavam-se na exportação de matérias primas e na importação de manufaturas e máquinas, levando à dependência do capital estrangeiro e a crises e endividamentos. Ser moderno significava, em linhas gerais, fazer parte do novo ambiente: estradas de ferro, máquinas a vapor, fábricas, telégrafos, jornais, telefone, descobertas científicas, centros urbanos que mudavam a conformação da sociedade e a distribuição das tradicionais classes sociais. A dinâmica modernizadora gerava várias transformações, mais visíveis no litoral e nas principais regiões produtoras. A euforia, devido ao progresso material, evidenciava ainda mais as diferenças entre as áreas urbanas e as rurais, revelando um grande fosso entre um pequeno grupo privilegiado e grande parte da população do continente.

    Os intelectuais latino-americanos muitas vezes interpretaram essas diferenças como decorrentes da herança cultural ibérica, principalmente por ter permitido a mestiçagem entre grupos sociais considerados tão distintos como europeus, africanos e indígenas. Convém lembrar que o cerne das proposições racistas mais recorrentes foi organizado a partir do pensamento positivista do início do Novecentos (FUNES; ANSALDI, 1991). Com a definição do Estado em fins do século anterior, os intelectuais positivistas assumiram a função de determinar o contingente nacional. Índios, negros e mestiços estavam associados à ideia de crise e fracasso frente ao progresso. Diante disso, muitos deles culparam o povo pelo atraso do continente, acusando-o de incapaz de assimilar a ciência e a técnica.

    Nesse contexto, surgiu uma ensaística que procurou analisar a realidade latino-americana sob esse viés. Para tanto, recorreu-se ao paradigma das ciências naturais, tendo em vista que o seu desenvolvimento, desde meados do Oitocentos, permitiu que determinados critérios fossem empregados para explicar o homem e a sociedade. Surgiram proposições que, utilizando o vocabulário médico, comparavam a América a um corpo enfermo, com diagnósticos mórbidos e prognósticos condenatórios. Tal modo de interpretar a realidade latino-americana estava relacionado à autoridade que as ciências naturais adquiriram na época, uma vez que passaram a ser percebidas como uma forma de conhecimento neutro, empírico e confiável (STEPAN, 2005, p. 75).

    As obras Las democracias latinas de América e Pueblo enfermo, do peruano Francisco García Calderón (1863-1955) e do boliviano Alcides Arguedas (1879-1946), respectivamente, constituem exemplos dessa ensaística que surgiu no período. Estes autores influenciaram o pensamento político latino-americano no início do século XX e empregaram a retórica do diagnóstico para analisar a realidade continental. Ao adotarem o paradigma das ciências naturais, fortaleceram a ideia de que a América Latina era um continente enfermo.

    Nesse momento, proliferaram intensos debates intelectuais, muitas vezes oriundos de discussões de séculos anteriores e inspirados, em grande parte, nas teorias científicas do século XVIII. Com os avanços científicos permitindo que temas envolvendo a disputa de raças ganhassem amplo espaço nas esferas política e intelectual, tanto na Europa quanto na América, destacou-se, entre os vários debates que perpassaram esse período, a contenda entre os defensores da raça latina e os da raça anglo-saxônica, de influência significativa na produção de vários intelectuais da época.

    Outras questões impostas ao contexto latino-americano contribuíram para reforçar tais posições, como por exemplo, a Guerra Hispano--americana, em 1898, na qual a Espanha, vencida, foi obrigada a ceder suas últimas colônias na América, Cuba e Porto Rico, além de perder as Filipinas, no Pacífico. Os efeitos dessa guerra no continente foram ambivalentes. Se por um lado encorajavam as proposições de que os Estados Unidos eram os representantes da raça anglo-saxônica na América e modelo a ser seguido, por outro, abriam espaço para o fortalecimento de uma corrente que partia em defesa da latinidade/hispanidad,³ e convertia a Espanha em herdeira direta da cultura latina.

    A partir do debate intelectual que perpassou o século XIX e início do XX, e das implicações da Guerra Hispano-americana no desenrolar dessa discussão, este artigo examina as diferentes formas com que os escritores Francisco García Calderón e Alcides Arguedas perceberam os problemas pelos quais passava o continente e, ao mesmo tempo, com que construíram, a partir de pontos de vista distintos, a imagem de um continente enfermo para a América Latina.

    Debates raciais e os efeitos da guerra de 1898

    O debate travado entre os defensores da raça latina e os da raça anglo-saxônica, na virada para o século XX, teve uma influência significativa na produção de vários intelectuais da época. Naquele momento em que alguns países da Europa se encontravam em crise, em meio à luta pela emancipação do Caribe e ao receio da política expansionista norte-americana, intensificaram-se as conjeturas acerca da superioridade ou inferioridade dos povos latinos frente aos anglo-saxões.

    Havia muito se refletia acerca da diferenciação entre a raça latina e a raça anglo-saxônica. Michel Chevalier,⁴ em 1836, publicou seu livro de crônicas, no qual constava uma introdução que se configurou, conforme sublinhou Arturo Ardao, como um verdadeiro ensaio de filosofia da história (1986, p. 259-260). Com essa obra, as velhas noções étnico-culturais, removidas pelo historicismo romântico, receberam uma integração orgânica dentro de conceitos que desde então circulariam com abundância nos planos filosóficos, científicos, ideológicos e políticos.

    Na introdução, Chevalier destacou que os dois elementos, o latino e o germano, foram reproduzidos no continente americano, de modo que a América do Sul se assemelharia à Europa Meridional, de origem latina e voltada para o catolicismo, enquanto a América do Norte seria constituída de uma população anglo-saxônica e protestante (ARDAO, 1986, p. 160-161). O economista francês, ao distinguir as duas Américas, referia-se ao que chamou de competição entre duas raças antagônicas que tiveram suas origens na civilização ocidental (QUIJADA, 1997, p. 599).

    Em meados do século XIX, as teorias racistas apropriaram-se de um novo desenvolvimento técnico que trouxe novas consequências ideológicas: a medição do índice cefálico para examinar as diferenças entre as populações europeias, vistas até então como um conjunto unitário. Essa apropriação veio aliada ao movimento romântico — que destacava a superioridade das instituições anglo-saxônicas em relação às de outras partes da Europa — e, de acordo com Mónica Quijada, acabou contribuindo para que tanto a história europeia como as suas tensões políticas fossem aos poucos sendo identificadas como decorrentes das lutas entre diferentes raças europeias (1997 , p. 597). Essa situação se refletia de forma geral no pensamento europeu ocidental, e encontrou terreno fértil nos países que passavam por crises decorrentes de políticas desastrosas, como, por exemplo, a França, que após a guerra franco-prussiana (1870-1871), e a consequente perda dos territórios de Alsácia e Lorena, mergulhou em uma grave crise nacional (MARROYO, 2000, p. 133).

    Em 1883, o polonês Ludwig Gumplowicz (1838-1909) publicou A luta de raças. Nessa obra, a raça foi tomada como categoria explicativa primordial de todos os processos humanos. O autor percebia que o destino da humanidade era conduzido por um constante combate entre as raças, cujo resultado seguia uma regra clara: o elemento étnico mais poderoso sobressaía e logo impunha o seu domínio sobre os demais.

    Uma década depois, Gustave Le Bon (1841-1931) publicou a obra Leis psicológicas da evolução dos povos (1894), que exerceu uma grande influência no pensamento europeu e latino-americano. Neste livro, o escritor francês defendia que os caracteres psicológicos seriam determinantes nas raças e que, portanto, a história de um povo e sua civilização derivariam desses critérios (LE BON, 1910, p. 8).

    Nessa direção, o autor estabeleceu hierarquias entre os grupos sociais, que, em sua opinião, poderiam ser divididos em quatro raças, de acordo com as suas características psicológicas gerais: primitivas, inferiores, médias e superiores. Entre as raças primitivas, estariam as que não possuiriam cultura, como os habitantes da Terra do Fogo, no extremo-sul da América, e os australianos. Logo após, as raças inferiores estariam representadas pelos negros, que, embora capazes de noções de civilização, nunca teriam abandonado o estado de barbárie. Entre as raças médias se encontrariam os chineses, os mongóis e os semíticos, que teriam sido superados pelos indo-europeus, principais representantes das raças superiores, construtoras de civilizações capazes de desenvolver as artes, as ciências e as indústrias (LE BON, 1910, p. 32).

    Segundo Le Bon, entre esses quatro tipos raciais existiriam abismos intransponíveis, uma vez que o determinismo biológico fornecia a forma do pensamento, a lógica e o caráter. Para este autor, seria também impossível que a civilização fosse transmitida aos povos inferiores por meio da instrução. Nas palavras de Le Bon, com facilidade se faz um bacharel ou um advogado de um negro; mas apenas se lhe dá um simples verniz absolutamente superficial sem nenhuma ação sobre a constituição mental (LE BON, 1910, p. 39).

    Diversas obras publicadas no período, dialogando com essas ideias, procuraram assinalar a superioridade anglo-saxônica frente aos latinos. Em À quoi tient la supériorité des Anglo-Saxons? (1897), por exemplo, o francês Edmond Demolins (1852-1907) afirmou a inferioridade e decadência da raça latina e mestiça, em contraposição ao desenvolvimento material dos anglo-saxões (MARROYO, 2000, p. 133).

    Seguindo uma abordagem próxima à de Demolins, o francês Léon Bazalgette (1873-1928) publicou, em 1903, Le problème de l’avenir latin, no qual fazia reflexões por um viés organicista e procurava demonstrar a necessidade de se regenerar a essência latina, que, segundo ele, teria sido corrompida pela mistura de raças e impedida de alcançar a modernização. Para o autor, a situação na qual os povos latinos se encontravam só poderia ser resolvida a partir de um drástico processo de deslatinização (BIAGINI, 2001, p. 15).

    Na América, também encontramos algumas obras importantes produzidas nessa direção, que utilizaram categorias raciais para explicar os fracassos de seus países frente aos países europeus e aos Estados Unidos, e para fazer previsões sobre o futuro. Desde a segunda metade do século XIX, o desenvolvimento dos Estados Unidos tornara-os uma crescente potência. Intelectuais latino-americanos, como o argentino Domingo Faustino Sarmiento, entusiasmaram-se com tais desenvolvimentos. Sarmiento estimulou a adoção do modelo estadunidense em seu país, para que os argentinos pudessem ingressar na modernidade.

    Algumas décadas depois de escrever seu célebre ensaio Facundo (1845), Sarmiento em fins do século XIX foi um dos mais exaltados na defesa do modelo estadunidense. Quando presidente da Argentina (1868-1874), procurou implementá-lo, incentivando o desenvolvimento da educação primária laica e aceitando a conquista do deserto e o extermínio da população indígena.

    Para Sarmiento, os países da América do Sul seriam oriundos de uma raça que se encontraria na última linha entre os povos civilizados (VIANNA, 1991, p. 153). As ex-metrópoles ibéricas e os seus descendentes apareceriam no cenário do mundo moderno privados de todos os benefícios dos novos tempos. De acordo com o autor, eles não possuíam os mesmos meios de ação, por desconhecerem as ciências naturais ou físicas, que, nos países europeus, foram capazes de criar uma poderosa indústria que fornecia ocupação aos indivíduos da sociedade.

    O escritor argentino ainda ressaltou a absorção dos indígenas, ou seja, a miscigenação, como tendo sido a pior herança recebida pela Espanha e por Portugal. Tal herança, de acordo com Sarmiento, teria feito prevalecer na América Ibérica aquelas raças incapazes de serem civilizadas. Já na América do Norte, conforme sustentou em Conflicto y armonías de las razas en América (1883), a colonização inglesa não admitira a incorporação indígena. Desse modo, quando aquelas colônias se tornaram independentes, as raças europeias puras, que preservaram suas tradições de civilização cristã, teriam permanecido intocadas (PRADO, 2004, p. 176).

    Com a derrota da Espanha na guerra de independência cubana, frente à intervenção dos Estados Unidos (o que potencializou as proposições acerca da superioridade dos anglo-saxões), intensificaram-se, entre os intelectuais latino-americanos — que atribuíam o atraso de seus países à herança cultural ibérica —, as propostas de adoção do modelo norte-americano de desenvolvimento político, econômico, social e cultural (SOUZA, 2006, p. 79). Deve-se, portanto, salientar que, se por um lado o resultado da Guerra Hispano-americana fortaleceu a aproximação entre os intelectuais e, logo, uma percepção dos Estados Unidos como ameaça, por outro, estimulou o interesse pela potência do norte.

    Assim, conforme afirma Mónica Quijada (1997, p. 596), a Guerra Hispano-americana acentuou ainda mais a polaridade entre latinos e anglo-saxões, o que revelou uma grande capacidade convocatória. Um exemplo concreto disso pode ser observado na defesa da latinidade, que ocorreu inclusive por meio de atos públicos e mesmo levantamentos populares na América do Sul. O centro das discussões não girava em torno do direito de Cuba à independência, mas sim da oposição Espanha/Estados Unidos, latinos/anglo-saxões.

    No âmbito desses debates, as teorias sobre a inferioridade e a decadência da raça latina não ficaram sem respostas. Diversos intelectuais, adeptos do latinismo, empenharam-se em demonstrar o contrário do que era afirmado a respeito da raça latina, destacando suas virtudes. O uruguaio Victor Arreguine, por exemplo, publicou, em 1900, a obra En qué consiste la superioridad de los latinos sobre los anglosajones, na qual fazia um juízo depreciativo dos ingleses e exaltava a raça latina (BIAGINI, 2001, p. 17-18).

    Dentro do ramo latino, abriu-se espaço para a exaltação da raça ibérica, associada à nobreza, à honradez e à generosidade. No intuito de valorizar a tradição ibérica, surgiram obras como Ariel, de José Enrique Rodó (1900), enfatizando a sua importância na formação da identidade da América Latina e fortalecendo a rede de contatos entre os intelectuais hispano-americanos e espanhóis. Conforme afirmou Mónica Quijada (1997, p. 602), se, na Europa, a Guerra Hispano-americana fortaleceu a imagem de superioridade anglo-saxônica, na América do Sul, esse conflito predominantemente inverteu o signo da polêmica, colocando o latino/ibérico no ponto positivo.

    A polaridade criada entre as raças permitiu acirrados debates no cenário político e intelectual, tanto na América quanto na Europa. Esses debates influenciaram intelectuais em ambos os continentes a produzirem obras defendendo ou rechaçando a raça latina ou a anglo-saxônica, o que contribuiu para a criação e o fortalecimento de estereótipos relativos aos povos originados de uma ou outra raça.

    A ensaística latino-americana e a construção da ideia de um continente enfermo

    Na América Latina, esses debates inspiraram intelectuais que, fundamentados nas ideias raciais, procuraram diagnosticar a realidade latino--americana. Nota-se, contudo, entre eles, uma apropriação em grande parte original das teses raciais, visando adequá-las ao contexto do Novo Mundo, uma vez que elas não poderiam ser aplicadas nos mesmos termos no continente. Isso significaria a exclusão da maior parte de sua população, por ser biologicamente heterogênea.

    Entre as principais estratégias traçadas, na época, com o intuito de promover uma limpeza racial no continente, a médio e longo prazo, estava a importação de imigrantes europeus⁵ e o retorno dos descendentes de africanos à África. Procurou-se impedir, também, a vinda de imigrantes oriundos de lugares associados à barbárie e ao atraso, como, por exemplo, a China (SKIDMORE, 1976). O racismo, cada vez mais ratificado pela ciência, havia contaminado tão fortemente os discursos nacionalistas no início do século XX, que era difícil resistir à sua influência (GERSTLE, 2008, p. 440).

    Já vimos que, nessa época, tornara-se comum a ideia de que os conceitos e os termos das ciências naturais poderiam ser aplicados para a análise social. Isso guarda relação com o fato de que a sociedade era percebida como um organismo vivo, portanto propenso à enfermidade. Logo, os problemas sociopolíticos foram associados às enfermidades. Nesse sentido, identificar as suas causas e sintomas permitiria curar o organismo doente e, consequentemente, tirar a sociedade desse estado de enfermidade.

    A ensaística latino-americana adotou, assim, uma preocupação sociológica que procurou dar conta dessas sociedades enfermas (FUNES; ANSALDI, 1991, p. 4). Vários trabalhos, nessa mesma linha, buscaram, através de uma análise histórica, política e sociológica do continente, explicar a situação em que se encontravam os países latino-americanos:⁶ partindo de matrizes de pensamento comum, ligados às ideias racistas e à filosofia positivista, procuraram compreender a origem dos males do continente e as possibilidades de alcançar a civilização e o progresso.

    Para Leopoldo Zea, a adoção da filosofia positivista na América Latina estava ligada ao anseio de mudar a realidade do continente. Nessa perspectiva, os intelectuais teriam adotado a filosofia que era considerada a que tinha dado origem ao mundo que percebiam como civilizado, e do qual se tentava fazer parte. O positivismo foi, portanto, tomado como instrumento para enfrentar uma realidade que deveria ser transformada e, partindo de uma profunda análise do continente, os intelectuais procuraram meios de regenerá-lo (ZEA, 1979, p. 62).

    O darwinismo social,⁷ a sociobiologia e a literatura médica foram amplamente empregados para a constituição de diagnósticos sobre o continente, explicando que, se a América Latina encontrava-se alheia aos desenvolvimentos oriundos da modernização, uma das razões para isso era porque seu povo estava enfermo. Com efeito, a mestiçagem foi condenada em muitos trabalhos: a colonização ibérica teria permitido a assimilação dos índios e negros, reunindo os defeitos de cada uma dessas raças. O resultado teria sido, portanto, um povo degenerado.

    Teóricos como Arthur de Gobineau e Le Bon reforçavam essa ideia, pois consideravam que os mestiços herdavam as características mais negativas das raças em cruzamento. Encontramos tal perspectiva nas impressões que o naturalista Louis Agassiz registrou, em 1865, a respeito do Brasil. De acordo com o estudioso suíço, esse país era o maior exemplo da degeneração provocada pela mestiçagem:

    [...] basta ter-se estado no Brasil, para não se poder negar a decadência resultante dos cruzamentos efetuados neste país mais largamente que noutro. Estes cruzamentos apagam as melhores qualidades quer do branco, quer do negro, quer do índio, e produzem um tipo indescritível, cuja energia, tanto física como moral, se enfraqueceu. (AGASSIZ apud LE BON, 1910, p. 53)

    Apesar de essa ser uma das teses mais defendidas dentro da ensaística latino-americana, à época, surgiram particularidades que encontravam outras razões, que não a mistura de raças vistas como inferiores, para a situação da América Latina. Nesse sentido, conforme defende Nancy Stepan, se por um lado as ideias que circulavam na Europa foram apropriadas para pensar a realidade latino-americana, por outro, houve vários processos de seleção e remontagem de ideias e práticas de suas elaborações e alterações criativas por determinados grupos de pessoas em contextos institucionais, políticos e culturais específicos (STEPAN, 2005, p. 11). As proposições de Alcides Arguedas e Francisco García Calderón são interessantes para compreender como tais ideias contribuíram para o surgimento de obras que procuravam explicar a realidade latino-americana numa perspectiva sociobiológica.

    Alcides Arguedas⁸ publicou, em Barcelona, a obra Pueblo enfermo (1909), que lhe deu notoriedade entre os intelectuais hispano-americanos e espanhóis. Após sua viagem à Europa, quando entrou em contato mais estreito com as teorias raciais, iniciou a sua reflexão a respeito da Bolívia. A partir daí, procurou, através de uma profunda análise sociológica, os elementos essenciais da identidade boliviana. Na Espanha, estabeleceu relação com os intelectuais ligados à geração de 1898.

    A geração de 1898 foi marcada pelo pessimismo; sua origem, que remete à derrota na Guerra Hispano-americana, está relacionada ao aparecimento de um novo sentido para a palavra intelectual,⁹ sobretudo na Espanha e na França, em fins do século XIX, no momento em que homens de ciência e cultura começaram a intervir no debate público por meio de manifestos e da imprensa. Esta geração procurou, num primeiro momento, modernizar a Espanha — defendendo o uso da razão, a democracia e o progresso econômico —, afirmando, em seguida, a identidade espanhola através do resgate da hispanidad.

    Diante da crise na qual a Espanha se encontrava, após a derrubada dos últimos rincões coloniais na América e na Ásia, os intelectuais se uniram no anseio de regenerar seu país e promover sua entrada na modernidade, sem, contudo, perder sua identidade. A preocupação dos regeneracionistas (como eles ficaram conhecidos), mais do que voltada para as condições materiais, se direcionava para a regeneração espiritual da raça hispânica, entendida num viés cultural. Dentre os nomes associados a esta geração estão: Miguel de Unamuno, Ramiro de Maeztu, José Martínez Ruiz (conhecido como Azorín), Ángel Ganivet e José Ortega y Gasset (CAPELATO, 2003, p. 39-40).

    No prólogo que Ramiro de Maeztu escreveu para a primeira edição¹⁰ de Pueblo enfermo, comparou o esforço de Arguedas ao da geração de 1898. Segundo ele, os intelectuais dessa geração "[se apartaron] espiritualmente de [España] para ver[la] mejor desde fuera, no ya con lentes españoles, sino al través de vidrios europeos" (MAEZTU apud ARGUEDAS, 1937, p. 10). De acordo com Maeztu, o escritor boliviano, da mesma forma que os intelectuais espanhóis na década anterior, procurou analisar a realidade da Bolívia sob vários aspectos: econômicos, políticos, étnicos, geográficos, mentais, religiosos, morais, e assim chegar à raiz do mal que se abatera sobre o país andino.

    Dessa forma, Arguedas teria assumido a missão de identificar "los males que gangrenan el organismo de [su] país, y los cuales […] no son exclusivos de él y sí muy generalizados no sólo en nuestros países hispano--indígenas" (SOLDÁN apud ARGUEDAS, 2006, p. 14). Segundo Arguedas, a geografia constituía um elemento importante para o desenvolvimento de um povo, e uma nação desprovida de litoral, como a Bolívia, cercada pela Cordilheira dos Andes e impossibilitada do contato com outras raças (europeias), seria impedida de que o elemento étnico se renovasse — enquanto o Chile, a Argentina e o Uruguai constituiriam exemplos de nações que já demonstravam uma "homogeneidad envidiable", no tocante à sua população (2006, p. 14).

    Arguedas considerava que os mestiços trariam os defeitos das raças que os compunham. No capítulo "De la sangre y el lodo en nuestra historia", sublinhou que a preponderância do sangue mestiço em seu país teria feito com que predominassem os defeitos na ética social, o que impediria o aperfeiçoamento moral do homem boliviano. O autor percebia o fracasso da sociedade americana para alcançar o progresso como consequência do flagelo que a raça hispânica teria encontrado no Novo Mundo. Tal flagelo — os indígenas — seria o responsável pelo atraso do continente. O autor considerava que não haveria nada a fazer de imediato para resolver a situação de seu país, visto que

    es la sangre mestiza la que ha concluido por desalojar a la otra y ahora se revela en todas esas manifestaciones bajas y egoístas, que son el signo patente de la triste actualidad boliviana, y de este pueblo enfermo, hoy más enfermo que nunca. (ARGUEDAS, 2006, p. 14)

    Para Arguedas, somente a regeneração da Bolívia, a partir de uma revolução moral em sua população, permitiria o seu desenvolvimento; sem uma mudança nos costumes, o país jamais experimentaria a modernização. O autor não vislumbrava uma transformação da população que compunha o seu país por meio da imigração europeia, tal como foi defendida por muitos intelectuais da época. A condição geográfica e o fato de a maior parte da população boliviana ser de origem indígena, na concepção de Arguedas, impossibilitavam esse processo. Sendo assim, a transformação deveria ocorrer na moral e nos costumes do povo boliviano, que, naquele momento, se apresentava como a melhor alternativa de transformação da realidade.

    Francisco García Calderón,¹¹ na obra Las democracias latinas de América (1912), fez uma análise sociológica da América Latina, preocupando-se em estudar a formação das sociedades americanas. Para ele, os Estados Unidos alcançaram o poder e o progresso em que se encontravam por meio da união entre as regiões, e somente a união entre as repúblicas latino-americanas permitiria que estas se desenvolvessem e resistissem à intervenção do colosso do norte. Este país, segundo o autor, oferecia paz à anarquia em que viveriam muitas das repúblicas, mas o preço a pagar seria a liberdade (GARCÍA CALDERÓN, 1979, p. 176). Uma alternativa dolorosa que colocaria por terra a independência conquistada a duras penas.

    Para García Calderón, a questão racial no continente explicaria "el progreso de algunos pueblos y la decadencia de otros" (GARCÍA CALDERÓN, 1979, p. 193); o autor atribuía as dificuldades que cercavam a América Latina à complexidade das raças e à mestiçagem entre vários sangues. De acordo com ele, haveria uma relação entre o crescimento da riqueza e a consolidação da ordem interna em países como a Argentina, o Chile e o Uruguai, onde o número de negros era menor em função do intenso fluxo migratório europeu. Já em Cuba, Santo Domingo e alguns lugares do Brasil, países em que os descendentes de africanos eram os grupos numericamente mais expressivos, as desordens prevaleceriam. Ao discorrer sobre a situação cubana, o autor explicou que a ingerência norte-americana sobre a ilha poderia representar uma triste prova da incapacidade latino--americana de governar-se, e também da superioridade dos anglo-saxões sobre os latinos (GARCÍA CALDERÓN, 1979, p. 177).

    Para o escritor peruano, o Haiti constituía um exemplo de que a raça estava diretamente relacionada à possibilidade de desenvolvimento de um povo. A situação desse país comprovaria que a indolência da raça negra não permitia sua organização e autogoverno (GARCÍA CALDERÓN, 1979, p. 124). No entanto, García Calderón valorizava o fruto da mestiçagem entre branco e índio, que concebia como sendo o verdadeiro americano (GARCÍA CALDERÓN, 1979, p. 196).

    Partindo das considerações racistas europeias sobre o Novo Mundo, principalmente as concepções de Le Bon, García Calderón traçava um difícil diagnóstico das possibilidades de desenvolvimento latino-americano. Nessa época, o Peru recebia grande contingente de

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