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Meus queridos amigos: As crônicas de Dom Helder Camara
Meus queridos amigos: As crônicas de Dom Helder Camara
Meus queridos amigos: As crônicas de Dom Helder Camara
E-book492 páginas5 horas

Meus queridos amigos: As crônicas de Dom Helder Camara

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Sobre este e-book

"Meus queridos amigos". Era com essa frase que Dom Helder Camara abria o programa Um olhar sobre a Cidade, por ele apresentado de segunda-feira a sábado, entre os anos de 1974 e 1983, na Rádio Olinda, emissora católica sediada na antiga capital de Pernambuco. A frase agora foi utilizada para batizar um livro que reúne 200 das 2.549 crônicas lidas por Dom Helder durante os nove anos que durou o programa.
Dividido em seis capítulos, Meus queridos amigos – As crônicas de Dom Helder Camara, segundo a organizadora, busca contemplar a diversidade de temas abordados pelo arcebispo, conhecido, pelos admiradores, como "Dom da paz" e, pelos militares e os setores mais conservadores da sociedade e do próprio clero, como "Bispo vermelho.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento20 de jun. de 2016
ISBN9788578584177
Meus queridos amigos: As crônicas de Dom Helder Camara

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    Meus queridos amigos - Tereza Rozowykwiat

    Apresentação

    Um olhar sobre a cidade, programa veiculado pela Rádio Olinda, emissora católica sediada em Pernambuco, foi a forma encontrada por Dom Helder para se comunicar com a população nos tempos da ditadura militar, quando qualquer referência ao arcebispo de Olinda e Recife era proibida. Por meio do programa ele não externou todos os seus pensamentos e opiniões, temendo que esse pequeno espaço que lhe restava na mídia fosse também confiscado. Porém, de abril de 1974 a abril de 1983, todos os dias, exceto aos domingos, conseguiu repassar algumas convicções que fizeram dele o Dom da Paz.

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    Tereza Rozowykwiat entrevista Dom Helder

    Quem conheceu aquela figura magrinha, de voz suave, talvez não imaginasse quanta força havia por trás daquela aparente fragilidade. Mas, quem o ouvia pelas ondas da rádio, aos poucos compreendia quanta firmeza de princípios existia em suas crônicas. Dom Helder chegou ao fundo de questões que faziam parte do cotidiano, abrindo os olhos dos ouvintes para as injustiças sociais, as arbitrariedades dos governantes e os erros cometidos nas relações interpessoais.

    Em sua defesa intransigente dos pobres e oprimidos, não poupou nem mesmo a Igreja, não perdendo oportunidade de se referir ao papel social que cabia à instituição. Baseado na Teologia da Libertação ele foi o primeiro arcebispo de Olinda e Recife a colocar os pés na lama das favelas e compartilhar das angústias e dificuldades dos miseráveis. Muito longe de ser um assistencialista, lutava por soluções reais para a superação da pobreza, não só no Brasil como no mundo.

    Dom Helder abriu mão da suntuosa moradia destinada aos arcebispos e foi viver numa pequena casa, ao lado da Igreja das Fronteiras, onde cultivava um perfumado jardim. Lá, entre rosas e jasmins, gostava de meditar, às vezes até a madrugada, buscando explicações para fatos às vezes incompreensíveis da vida. Naquele minúsculo ambiente recebia as celebridades que iam visitá-lo, os pobres que precisavam de ajuda e os desesperados que procuravam uma palavra de esperança.

    Mas Dom Helder não era apenas isso. Contrastava a firmeza de suas ideias com um bom humor peculiar, transmitindo alegria, amor e serenidade. A luz dos olhos dele lembrava sempre o olhar de uma criança. Sua defesa da não-violência ativa não era uma teoria. Era uma prática da qual não se descuidava. Segundo afirmava, a luta pelos direitos sociais precisava ser levada adiante, pois era possível acabar com a submissão dos pobres diante dos opressores. Contudo, as armas a serem usadas eram a união e a persistência daqueles cujas vidas foram ou estavam esmagadas pelos poderosos.

    Minhas considerações sobre Dom Helder não são baseadas em livros nem em relatos. Convivi com ele durante três anos, de 1978 a 1981, como repórter do Diario de Pernambuco, responsável pela cobertura da Arquidiocese de Olinda e Recife, com ênfase especial no trabalho nas favelas, nas questões dos Direitos Humanos e da Comissão de Justiça e Paz. O que posso dizer sobre esta época é que representou um inestimável aprendizado pessoal e profissional.

    Este livro reúne 200 crônicas veiculadas em Um olhar sobre a cidade. No total são 2.549. A seleção foi feita de modo a contemplar a diversidade de temas abordados pelo arcebispo. Engloba sua opção prioritária pelos pobres; aspectos políticos; avanços que considerava necessários na Igreja, que hoje, estão sendo colocados em prática pelo Papa Francisco; conselhos aos ouvintes quanto a situações do dia a dia e a análise dos sentimentos que podem engrandecer ou amesquinhar os indivíduos. No entanto, o tema mais importante, constante do último capítulo do livro, mostra o seu jeito de ser, seus sonhos e sua interpretação da realidade e da natureza.

    Meus queridos amigos, o título deste livro, repete a frase com que iniciava todas as suas crônicas. É uma pequena contribuição para quem deseja conhecer um pouco mais da personalidade do Dom da Paz. Em tempos nublados como os que vivemos, as suas palavras podem ajudar a entender melhor o que se passa ao nosso redor e a repensar situações que às vezes parecem encruzilhadas ou caminhos sem saída. Como ele mesmo dizia: Quanto mais escura for a noite, mais clara será a madrugada.

    Tereza Rozowykwiat

    (Jornalista)

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    Aluta contra as injustiças sociais foi o aspecto mais marcante da vida de Dom Helder. Sua preocupação não se restringia ao Recife e Olinda, nem ao Brasil, mas assumia um caráter mundial, manifestando-se contra um sistema que mantinha dois terços da população global em cruéis condições de miséria. Entretanto, era no Nordeste que centrava sua atuação, enfrentando a oposição de grande parte da sociedade, da facção mais conservadora do clero e dos militares que o chamavam de bispo vermelho.

    Convicto de sua opção preferencial pelos pobres, não hesitou em colocar os pés na lama dos mangues ou na terra seca dos sertões. Não se debruçou apenas sobre teorias ou relatos, preferindo vivenciar de perto as condições de vida do povo, conclamando a população a engajar-se na difícil batalha de superar a fome, o desemprego e a falta de moradias. Para isso, estimulou a criação de Comunidades Eclesiais de Base e apoiou todas as formas de organização popular, colocando-se contra a submissão do povo às injustiças sociais. Os pobres tinham nele uma referência, porém, mais do que isso, um amigo.

    Mocambos: Cristo na lama

    Sexta-feira, 5.4.1974

    Meus queridos amigos

    É difícil encontrar, no Brasil e em toda a América Latina, igreja ou capela antiga sem imagem da Paixão: o esquife com a imagem do Senhor morto; a imagem de Nossa Senhora das Dores; a imagem do Bom Jesus, com a cruz aos ombros.

    E em vários lugares, ainda se faz a Procissão dos Passos: a imagem do Cristo, acompanhada por multidão imensa, lembrando as passagens principais do caminho para o Calvário.

    No Recife, a Procissão dos Passos foi na sexta-feira passada. Em Olinda, será na tarde de hoje.

    Permitam que eu deixe aqui duas lembranças fraternas para quem vir imagens assim ou participar dessas procissões.

    A primeira lembrança é a de que só adianta nos comovermos diante da imagem de Cristo coroado de espinhos, coberto de suor e de sangue, se nos lembrarmos de que muito mais do que imagem, encontramos o Cristo assim, em nosso caminho, todos os dias.

    No ano passado, em nossa cidade, um ladrão entrou numa igreja, abriu o Sacrário, levou as âmbulas em que estavam hóstias consagradas. Mas o que interessava a ele eram as âmbulas, com o interior banhado a prata ou ouro... As hóstias consagradas, ele as jogou na lama. Quando, horas depois as hóstias foram encontradas, mergulhadas na lama, houve um arrepio na cidade.

    Que horror! Cristo na lama!

    Houve quem lembrasse uma procissão de desagravo. Foi quando sementei: Como somos cegos! Nós temos Cristo na lama, de modo permanente, em volta de nós! Quanto mocambo, quanto barraco que não merece o nome de casa e não raros mocambos, barracos mergulhados na lama!

    Aqui está a primeira ideia que nos deve acompanhar sempre, mas, sobretudo durante a Semana Santa: ótimo contemplar a imagem do Bom Jesus dos Passos. Ótimo fazer a Via Sacra, e fazendo a Via Sacra e contemplando o Bom Jesus dos Passos nossos olhos se abrem para descobrir o Cristo vivo em quem está sofrendo, humilhado, oprimido...

    Outra ideia importantíssima é não parar na Sexta-feira Santa. É verdade: Cristo sofreu, morreu, foi enterrado. Mas ressuscitou! Venceu a morte! Não é um fracassado. Venceu nosso Libertador. E Ele quer que nós continuemos o seu trabalho para libertar o Mundo do pecado e das consequências do pecado, do egoísmo e das consequências do egoísmo. Gravemos esta verdade: se cada um de nós fosse um pouco menos egoísta, o mundo mudaria!

    O que os turistas não veem

    Sexta-feira, 17.5.1974

    Meus queridos amigos

    Quando chegam turistas à nossa cidade, se quem os recebe tem recursos, poderá, querendo, mostrar aos visitantes, dez, quinze, vinte recantos inesquecíveis. Mas não há cidade que não tenha seus lados tristes. Vou lembrar alguns no programa de hoje, não para que eles sejam mostrados aos turistas ou sirvam para alimentar críticas negativas. O importante é aprender a ter olhos de ver e disposição para não cruzar os braços.

    Já viram em sua cidade, crianças e até adultos mexendo nas latas de lixo? Não pensem que é apenas em busca de papel para vender. Por incrível que pareça, é, também, procurando comida para matar a fome.

    Quem não encontra todos os dias, à noite, pessoas dormindo ao relento, sobretudo debaixo das pontes, nas calçadas de grandes edifícios com cobertura, nas portas de igrejas?

    Não se habituem a pensar que são bêbados. Claro que um ou outro é. Mas a maior parte é de gente desabrigada, que não tem onde dormir...

    Já encontraram pessoas cansadas de ir de fábrica em fábrica e de bater de porta em porta, à procura de emprego?

    Já viram meninos abandonados, pendurados nas traseiras de ônibus, pedindo a quem passa, não raro se iniciando em bater carteiras?

    Se fôssemos ver o ambiente em que nasceram e cresceram, não digo que aprovaríamos o que eles fazem. Mas entenderíamos e veríamos que há uma parte de responsabilidade nossa no abandono em que vivem e nos maus hábitos a que leva este abandono...

    Têm olhos para descobrir a pobreza envergonhada? São pessoas que foram ricas. Tiveram conforto e até luxo. Perderam tudo. Andam carregadas de dívidas e sem meios de pagá-las. Não têm o que comer. Não têm mais idade para trabalhar. E o pior é que ainda são obrigados — por um compreensível amor-próprio, pelo acanhamento de revelarem a todos a própria derrocada — a salvaguardar uma certa aparência de grandeza...

    Tenham olhos de ver e ouvidos de ouvir. Se peço que descubram o lado triste e doloroso das cidades, não é de modo algum para que se encham de traves e caiam em críticas fáceis contra o governo ou contra os ricos.

    Interessa uma atitude positiva, construtiva. Sem dúvida, um dia, sem ódio, sem violência, mas com decisão e coragem, teremos que ir à raiz destes e de muitos males: estruturas injustas que levam os ricos a ficarem sempre mais ricos e os pobres a ficarem sempre mais pobres.

    Mas, desde já, podemos e devemos saber que todos nós temos nossa parte de responsabilidade diante da situação de pobreza e de miséria em que se acham muitos de nossos irmãos e irmãs em Cristo.

    Seria errado e injusto dizer que o governo falta em tudo. Claro que há uma parte grande de responsabilidade que cabe a ele, e devemos ter serenidade e coragem para emprestar voz aos sem voz, e a cobrar o que não é favor, mas obrigação do Poder Público.

    O dinheiro não compra tudo

    Segunda-feira, 3.6.1974

    Meus queridos amigos

    Vamos abrir a semana, meditando um instante sobre dinheiro. Tenho, diante de mim, uma cédula de um cruzeiro, outra de cinco, outra de dez, outra de cinquenta, outra de cem e uma de quinhentos cruzeiros. Por quantas mãos já passaram estas notas de um, de cinco, e de dez cruzeiros! A de um cruzeiro anda muito decadente: até os pobres já custam a conformar-se com um cruzeiro, porque sabem que quase nada se pode fazer com ele...

    Atrás de notas de cinquenta e de cem, quanta gente trabalha, se cansa, e luta! Nota de quinhentos, muitos nem sabem que existem. Muitos nunca puseram nem jamais irão pôr a mão em cédula de quinhentas pratas...

    E pensar que há pessoas que, com amigos, visitantes, namoradas, esposa, em uma noite alegre, por exemplo, de boate, gastam o que toda uma família não tem, muitas vezes, para gastar em um mês. Podem ler o capítulo 2 da carta que o Apóstolo escreveu e está no Novo Testamento, ao lado dos Evangelhos.

    Mas vejo, todos os dias, o dinheiro fracassar em dois pontos essenciais: diante da morte e para a conquista do verdadeiro amor.

    Adoece o pobre e adoece o rico. O pobre fica no desespero de achar que se tivesse dinheiro, e pudesse trazer médico e remédios, a filha não morreria ou a esposa haveria de salvar-se. O rico tem dinheiro, há juntas de médicos, pilhas de remédios, balões de oxigênio, mas quando chega a hora de partir, o rico vai, como o pobre. Não adianta encher o caixão de dinheiro, nem levar a carteira de cheques no bolso. No encontro com Deus, o único dinheiro que vale é o bem praticado aqui na terra...

    Quanto ao verdadeiro amor, quantas vezes tenho ouvido esposas ricas dizerem: Para que tanto conforto e tanto luxo, se eu não tenho o principal: a compreensão e o amor de meu marido, e a paz com os meus filhos?.

    Não vamos também pensar que o dinheiro é maldito e é criação do diabo. Quando o dinheiro não faz a pessoa perder a cabeça, quando não entontece, quando não embriaga, quando não transforma o dono em escravo, quando o dinheiro é bem usado, pode prestar serviços maravilhosos.

    Quantas vezes, segurando uma nota de cem cruzeiros, um rico pensa em quanta gente sua, se cansa, se mata, para levar para a casa o salário mínimo?

    A que conclusões chegar?

    Andam com dinheiro folgado? Atenção para não perderem a cabeça! Se distraírem-se, o dinheiro passa de servo a senhor... Cristo diz, com razão como sempre, que o nosso coração está onde está nosso tesouro...

    Andam sem dinheiro? Tem passado pelo esmagamento de ver a fome entrar de casa adentro? Não desanime, não se amargure, não se irrite. Há muita gente que sem ódio nem violência, sem sombra de terrorismo, está trabalhando no mundo inteiro às claras, lealmente, por um mundo mais justo e mais humano.

    Há quem ria desses sonhadores: eu os levo a sério. Não há país dentro do qual não surjam grupos decididos a quaisquer sacrifícios para que se tenha um mundo mais respirável e para todos. Claro que Deus está ajudando e ajudará.

    Meninos de rua

    Terça-feira, 30.7.1974

    Meus queridos amigos

    Quando Piu-Piu, com seus 11 anos, se envolveu no cobertor que acabara de ganhar, não precisava dizer que era a primeira vez que agasalho tão gostoso o abrigava... Encontrei-me com ele na manhã seguinte e ele foi gritando: Sabe, sonhei a noite toda que estava enrolado numa nuvem!

    Já viram crianças pobres tomar, pela primeira vez, chocolate? Já experimentaram a alegria de garotos de uma área pobre ganhar bola de futebol, de verdade, camisas e chuteiras? Já levaram ao circo um bando de crianças?

    O ideal, em todos estes casos, seria que os pais ganhassem o suficiente para sustentar a família e ainda sobrar algumas pratas para dar alegria à garotada...

    Já viram garotos pendurados na traseira de ônibus? Claro que acho errado e perigosíssimo. Mas há pessoas que se irritam não porque estejam aflitos com o perigo sofrido pelos jovens pingentes: têm horror ao ver meninos maltrapilhos, pendurados no ônibus, enfeiando a cidade.

    Não falta quem diga: Por que ao menos não andam de roupa limpa, de pés limpos? Por que não usam, ao menos, uns tamancos? Por que não entram no ônibus? Mesmo que não tivessem dinheiro para a passagem, não faltaria quem pagasse. Quantos equívocos!... Para andar limpo é preciso roupa para mudar, água para lavar a roupa suja, hábito de limpeza, casa onde morar...

    Há quem se revolte encontrando menores em pleno vício: roubando, jogando, fumando, bebendo... Quando não se tem casa ou quando a casa é um mocambo infecto, a casa natural, normal, é a rua. Quem vive na rua, encontra, uma vez na vida, um ou outro companheiro bom. O mais é gente viciada que tem gosto em viciar os outros...

    É triste a pelada para quem gazeia a escola, para quem foge do trabalho, para quem quer passar o dia inteiro jogando... Mas é uma delícia a pelada, para quem se inicia em uma equipe, obedece a um capitão do time, se obriga a ensaios, atende ao juiz...

    Há quem reclame porque os papagaios, as pipas, se engancham nos fios elétricos e ficam enfeitando a cidade... Não será fácil de perceber que o voo é uma escapada para o alto, para o azul, para os largos espaços, acima, muito acima da Vida Severina vivida no chão dos homens?

    Seria fácil continuar multiplicando exemplos. Importante é saber que os Piu-Piu estão por aí às centenas, quase aos milhares... Dependem em parte de nós, com pequenos gestos, ajudá-los a não caírem de vez na marginalidade, mas, ao contrário, começarem a difícil caminhada para chegarem um dia a serem homens de bem...

    Empregadas e patroas

    Quarta-feira, 2.10.1974

    Meus queridos amigos

    É delicado falar sobre as domésticas. Costuma ser assunto bastante explosivo. Domésticas e patroas costumam, quando muito, salvar uma paz armada. Só por exceção, domésticas e patroas se dão de verdade.

    Se escutarmos um grupo de domésticas, rara é a que não tem queixas a apontar. Se escutarmos um grupo de patroas, não esperamos muito que se derramem em elogios às domésticas.

    Sem esquecer que há falhas, de lado a lado, tentemos uma palavra serena nesse debate apaixonado. Que as patroas se lembrem que isto de ser patroa ou empregada é só aqui na terra: depois da morte não tem mais isto. Junto a Deus todos somos criaturas, todos somos filhos de Deus. Posição social e dinheiro não valem de nada na eternidade. A única riqueza que conta, na outra vida, é o bem praticado aqui, no chão dos homens.

    Nos países industrializados, praticamente, desapareceu a classe de domésticas: elas partiram para outras profissões, trabalhando no comércio ou na indústria. Doméstica é herança da escravidão.

    Há patroas, sobretudo em nosso Nordeste, com todo o ranço de antigas senhoras da Casa Grande. Não gostam de usar nem o nome de empregadas, nem o de domésticas. Só acertam falar em criadas, como nos tempos em que, vinda da Senzala, a Nêga Fulô chegava para cuidar da sinhazinha.

    Por que não tentar um entendimento humano e cristão enquanto durar a classe social de domésticas? Por que não ter a doméstica como uma pessoa da casa, da família? Não adianta dizer que há empregadas ladras, preguiçosas, sem saber fazer nada... Qual é a classe que não tem elementos que a envergonhem?

    Há muito preconceito social! Uma senhora que se considerava cristã e queria ser cristã descobriu que a empregada, quando terminava o serviço da casa, ficava espiando de longe a TV. Imediatamente, a própria patroa arrumou o aparelho de TV de tal maneira que a empregada ficou sem ver nada.

    Outra patroa, muito digna, mas, sem saber, muito embebida de preconceito social, quando as filhas saíam e ela ficava só com a empregada, sentia-se só. Empregada não era gente. E ela chamava, com urgência, uma amiga.

    Já viram, de perto, o que costuma ser os chamados quartos de empregada? Prefiro nem comentar o que costumam ser...

    Claro que desejo melhoria no trabalho das domésticas: que elas aprendam a fazer o que têm de fazer, que elas trabalhem de cara alegre, de coração aberto, dando o máximo do que podem dar.

    Mas que as patroas não esqueçam um instante: Sou patroa, sim, e ela, empregada, mas as duas somos filhas do mesmo Pai que está nos céus...

    Na eternidade, não haverá mais empregada, nem patroas. De lado a lado, haja esforço para uma comum vida humana cristã.

    Presentes de Natal

    Quinta-feira, 12.12.1974

    Meus queridos amigos

    Perguntam-me o que penso da distribuição de brinquedos, roupas e alimentos por ocasião do Natal. De saída, é bom lembrar que tudo o que se faz, de coração, por amor a Deus e amor ao próximo, Deus entende e abençoa. Quanto a saber o que seria melhor, tenho a confiança de dizer meu pensamento inteiro:

    O ideal é que cada chefe de família ganhasse o suficiente para que ele mesmo pudesse preparar o Natal de sua casa. O ideal é que para todos, o Natal, antes de tudo e acima de tudo, seja Festa ao Menino Deus, ao Filho de Deus que se faz homem para nos salvar e nasceu em Belém de Judá, e foi adorado por Maria e José, e pelos pastores...

    Mas o ideal, também, é que, ao recordar o nascimento de Cristo nossos olhos se abram para o Cristo vivo e presente, que está sendo esquecido, desprezado, oprimido... Mas o ideal, ainda, é que todos trabalhemos para que todo chefe de família ganhe o suficiente para que ele mesmo prepare o Natal de sua casa, com lembrança carinhosa para a esposa, para os filhos...

    Como sabemos que o ideal fica longe da realidade, aparecem numerosas instituições com brindes de Natal. Se fosse possível organizar, com tempo, a lista dos que vão ser atendidos, como seria cristão, antes de Natal, entregar o mais discretamente possível, a cada chefe de família pobre, as lembrancinhas que ele mesmo distribuiria, com os seus, na noite de Natal!

    Há quem pense que é desperdício pensar em brinquedos para crianças que estão sem alimento, sem roupa, sem saúde. Como esquecer que brincar para a criança é importante como comer?

    Verdade, também, que precisa ser mantida, é que não basta, para Cristo, festejar o Natal, ser generoso como preparativo para 25 de dezembro e o ano todo nem pensar em quantos, em volta de nossa casa, não têm casa, não têm o que comer, não têm como vestir. Claro que, muitas vezes, não está em nossas mãos resolver o problema, mas que ao menos nossos olhos, nossos ouvidos, nossos corações se abram.

    Todos juntos, poderemos repetir e fazer ouvir o clamor de nosso povo... Todos juntos, sem violência, dentro do Evangelho, podemos e devemos clamar por um mundo mais justo, como condição de paz.

    Guardemos este pensamento: mais importante do que pensar em Cristo na manjedoura de Belém, é saber descobrir Cristo que nasce em mocambos ou debaixo de pontes em volta de nossas casas.

    Vida aperreada

    Terça-feira, 9.9.1975

    Meus queridos amigos

    Quando a gente está no Sul do País e ouve um nordestino falar em aperreio, em vida aperreada, tem saudade. Não me aperreie menino! Aí se trata de menino que quer porque quer que a mãe lhe assegure que é dele o fundo da panela de canjica que ela está preparando. Cada vez que alguém fica insistente, querendo arrancar um sim, está aperreando.

    Mas, aperreio mesmo é o aperto de vida. É ver que o dinheiro do mês não vai dar para tudo: se pagar o aluguel não vai sobrar dinheiro para a feira. Se pagar as prestações, o aluguel vai ficar pendurado.

    Aperreio é sair para a feira com o dinheiro cuidadosamente separado e ver que os preços subiram e alguma coisa terá que ser cortada. O que cortar? Aperreio é ter a conta certa esticada para o mês e ver surgir um imprevisto: a doença de um filho, uma viagem inesperada para visitar o pai, nas últimas, uma dívida inesperada assumida pelo marido...

    Vida aperreada é uma vida de sofrimentos, de quem vê o marido chegar embriagado, gritando com todo mundo, acordando o quarteirão inteiro, querendo bater nos filhos e na própria mulher... Vida aperreada é a da mãe de família, abandonada pelo marido, já sem força sobre os filhos e a filha adolescentes, não tendo mais horário, sem juízo, a mãe vendo a hora que o filho volte ferido, ou o que é pior, que a filha volte grávida.

    Aperreio! Expressão gostosa de ouvir, difícil de viver! O mundo já seria diferente, seria mais respirável e mais fácil de viver se cada um fizesse tudo para não multiplicar os aperreios. O Papa João gostava de dizer: Não complicar as coisas simples...

    Mas parece que de aperreio ninguém se livra. A diferença não é entre pessoas aperreadas e pessoas sem aperreios. A diferença é entre aperreio gerando uma vida envenenada, cheia de revolta e de ódio, e aperreio enfrentado com paciência e espírito de fé.

    Como não recordar a Salve Rainha! Pedimos à Santa Mãe de Deus e Mãe dos Homens que olhe por nós e nos acuda junto a seu Filho, neste vale de lágrimas, neste chão de aperreios...

    A matança das crianças

    Sexta-feira, 26.12.1975

    Meus queridos amigos

    Quem já assistiu filmes sobre a vida, paixão e morte de Nosso Senhor Jesus Cristo, há de lembrar-se da cena horrível da crueldade de Herodes, mandando matar crianças com menos de dois anos, no propósito tremendo de eliminar o Filho de Deus, o Rei dos Reis.

    A matança de inocentes continua. Claro que não penso nos abortos provocados, embora reconheça que os maiores culpados são os que levam mães desesperadas à decisão absurda e louca de eliminar o fruto de suas próprias entranhas. É uma vergonha que ainda ande alta a mortalidade infantil. Mas, quem faz, em escala mundial, o papel de Herodes é a miséria.

    Vergonha maior é começar o benefício de salvar da morte, mas estragar completamente o bem começado, arrancando da morte para condenar a uma subvida. O remédio não é salvar da morte, não é deixar de trabalhar contra a mortalidade infantil. O certo, o seguro, o sério, é além de salvar da morte, assegurar a todas as crianças condições de vida e não de subvida.

    E o problema não se reduz a distribuir generosamente alimento, roupa, medicamentos, às mães mergulhadas na miséria. O certo, o seguro, o sério, é criar para todas as famílias condições de oferecer aos seus filhos um nível humano de vida...

    Não é preciso ir à Índia para ver as crianças deformadas pela fome. É só ter olhos de ver e olhar em volta para descobrir em crianças deformações que cortam o coração.

    Na Declaração Universal dos Direitos da Criança¹ nada é esquecido. Foram respeitados e atendidos esses direitos e, com isso, cessaria a matança de inocentes — matança e deformações físicas e morais. Há na Declaração Universal dos Direitos da Criança princípios deliciosos como este: Para o desenvolvimento completo e harmonioso de sua personalidade, a criança precisa de amor e compreensão.

    Quando os esposos se desentendem, radicalizam e exasperam os motivos de desencontro e de necessidade de separação, pensam em si mesmos. Mas quando há filhos, os inocentes não pesam, não contam. Os adultos se separam e os filhos ficam partidos ao meio. Não estou julgando ninguém. A verdade é que a vida é sempre mais complexa do que se pode imaginar.

    No clima de Natal, peçamos à Criança que nos foi dada para salvar o amor entre os homens e o Pai Celeste, que as crianças do mundo inteiro, longe de serem submetidas a matanças ou condenadas a uma vida mutilada, tenham a realidade do que estabelece no papel a Declaração Universal dos Direitos da Criança: desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social.

    1Declaração Universal dos Direitos da Criança — Da qual o Brasil é signatário, foi aprovada pela ONU em 20 de novembro de 1959.

    Inflação

    Quinta-feira, 15.7.1976

    Meus queridos amigos

    Quanto custa o feijão, a farinha e a charque? Quanto custa o café? E o açúcar e o pão? Por quanto, em nossa cidade, se aluga um quarto? Subiu o preço do ônibus? Quem fracassar neste teste se envergonhe: será sinal de que está muito longe do sofrimento do nosso povo.

    Tomei um táxi no dia exato do último aumento da gasolina. Gostei do motorista. Quando perguntei a ele como via a vida, disse: Estou preocupado. Mas o que me agonia não é o aumento da gasolina. Quem tem carro ou anda de táxi reclama do preço da gasolina, mas acaba se acostumando... E comentou o velho motorista: O que me dói é o aumento do fogão de gás. É o aumento que vai muito mais longe e deixa em situação impossível muita família pobre.

    Quando sobe o preço do uísque e o dos vinhos importados, quando sobe o preço dos perfumes ou dos charutos, ou mesmo o dos cigarros, não se compara com o aumento do preço do leite ou do pão. Leite é problema sério para as crianças. Pão é problema para todo mundo.

    Vi uma senhora irritadíssima com um pobre. Ela deu um cruzeiro a ele. O pobre, sem grosseria disse: Me dê dois. Um cruzeiro não dá mais nem pra um café. Ela tomou como afronta. Quis tomar o dinheiro que deu. Mas, salvo engano, ela não sabia que o cafezinho já passou de um cruzeiro.

    Permitam que eu deixe aqui, com espírito fraterno, outros testes de humanidade e de espírito cristão:

    — Se houve de sua parte o desejo de alugar um quarto para um pobre velho que esteja dormindo debaixo da igreja ou da marquise de algum edifício: Onde se encontra um quarto para alugar? Quanto precisa pagar de fiança?

    Está gostando da amostra?
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