Aspectos socioculturais relacionados à saúde do homem
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Aspectos socioculturais relacionados à saúde do homem - Ali Momade Ali Atumane
CAPÍTULO I Abordagem teórica: saúde, direitos e homem
O conceito de saúde em debate
Na contemporaneidade, as discussões teórico-conceituais elaboradas a respeito da definição de saúde¹ apontam diversos paradigmas paradoxais que contrapõem as concepções clássicas (FOUCAULT, 1966, 2014; SCLIAR, 2007). Se a saúde, nos tempos imemoriais, era concebida nos moldes mais simplificados e interpretada através de métodos empíricos clássicos, místicos e religiosos, o que permitia uma abordagem menos complexa
, na contemporaneidade ela se tornou um fenômeno que desafia os atores sociais, pesquisadores e a ciência em geral. Mas tal complexidade não impede sua mensuração e nem pressupõe a impossibilidade de ser interpretada e conceituada de acordo com a visão racional, na qual, cada sociedade entende e vive a saúde.
O desenvolvimento das ciências sociais, no final do século XVIII, permitiu a elaboração da teoria social da medicina (BATISTELLA, 2007). O meio ambiente - origem das causas de doença - deixa de ser o único componente capaz de interpretar a gênese de vetores e a evolução de doenças, por isso, é preciso também entender a saúde nas condições de vida e trabalho do homem onde as causas das doenças podem também ocorrer (SANTOS E FAGUNDES, 2010). Na modernidade, a saúde é concebida como um direito humano fundamental e, o Estado de bem-estar social tem o dever de garanti-la, sendo uma das mais importantes metas dos Objetivos do Desenvolvimento do Milênio (ODM).
No decurso do século XX, observa-se uma mobilização política e econômica em busca de garantia de condições básicas da vida e do bem-estar da população e em defesa dos direitos humanos, onde a saúde e a educação se configuram no cúmulo dos objetivos do chamado Estado do bem-estar social
, diante dessa realidade, nasce a necessidade de se estabelecer as estruturas e fronteiras conceituais de saúde. Nessa linha de pesquisa, em nível da abordagem institucional, a Organização Mundial da Saúde (OMS, 1948) definiu a saúde como um estado de completo bem-estar físico, mental e social
. Neste sentido, a definição é vinculada a certo estado implícito de estilo de vida determinado por condições adversas de cada indivíduo e da sociedade.
O conceito de saúde elaborado pela OMS foi largamente criticado, conforme veremos, por engendrar objetivos ambíguos e natureza utópica a respeito da sua praticidade e da sua concretização plena, concebidas como paradoxais à práxis. Diante de diversas críticas, Batistela postulou o seguinte:
A expressão ‘completo estado’, além de indicar uma concepção pouco dinâmica do processo – uma vez que as pessoas não permanecem constantemente em estado de bem-estar – revela uma idealização do conceito que, tornado inatingível, não pode ser usado como meta pelos serviços de saúde (BATISTELLA, 2007, p. 57).
Essa observação crítica demonstra que o conceito de saúde deve ser ajustado entre o ideal e o real, em busca de um equilíbrio lógico baseado na conjugação de realidades minuciosas capazes de relacionar evidências empíricas com formulações racionalistas e buscar sua gênese na fundamentação do paradigma biomédico
(BATISTELLA, 2007, p. 52). Essa relação deve servir, a priori, como técnica de amostragem que busque examinar a natureza ontológica do corpo, da sua relação com as condições ambientais, sociais e com o seu processo evolutivo. Dessa forma, reduziremos os níveis do desconhecimento intrínseco sobre as realidades tácitas, embutidas nas mais complexas máquinas da natureza (corpo), que continuam desafiando pesquisadores e cientistas sociais, mas que obedece a certa lógica funcional e a estrutura dinâmica irredutível à perspectiva positivista do conceito de saúde, no sentido formulado pela OMS.
Ainda na mesma linha crítica, Almeida Filho sustenta que:
Na prática clínica e na vida cotidiana, identificamos com frequência indivíduos ativos, social e profissionalmente produtivos, sem sinais de comprometimento, limitação funcional ou sofrimento, auto e hétero-reconhecidos como sadios, que, no entanto, são portadores de doenças ou sofrem de agravos, sequelas e incapacidades parciais, mostrando-se muitas vezes profusamente sintomáticos. [...] Em uma perspectiva rigorosamente clínica, portanto, a saúde não é o oposto lógico da doença e, por isso, não poderá de modo algum ser definida como ausência de doença
(ALMEIDA FILHO, 2000, p. 7-8).
Não obstante, o diagnóstico do estado de saúde-doença de um indivíduo não depende exclusivamente de sua submissão aos exames médicos ou clínicos. Porém, as evidências empíricas da relação saúde-doença nos podem revelar que a continuidade da prestação de serviços de saúde – em alguns casos – é determinada pelos resultados clínicos e laboratoriais relativos à condição sadia ou patológica do indivíduo, sendo que, há casos em que o sujeito é declarado clinicamente em ótimo
estado funcional físico e mental, limitando-se e/ou interrompendo-se todo o processo terapêutico, enquanto o próprio sujeito se queixa por uma série de dores ou incapacidades. A avalição de riscos e a mensuração da saúde de um sujeito se deparam com um dilema central, que busca combinar, paralelamente, entre a saúde objetiva e a saúde subjetiva. Por isso, face a um contexto paradoxal, onde se coloca em xeque a confiabilidade dos resultados clínicos em relação à própria capacidade interventiva e diagnóstica do estado de saúde real de um indivíduo que não se declara, por si só, estar em condições de funcionamento normativo, faz-se necessário interpretar a saúde por meio de outros campos de conhecimento científico, hermenêutico, cultural e das mais variadas fórmulas abstratas.
Por isso, Canguilhem (2009) contrapõe à teoria da doença
, na qual elimina as possibilidades de o doente ter opiniões que influenciem no resultado clínico em relação à realidade de sua própria doença. O autor recupera as proposições de Leriche (1973) que vê a saúde como a vida no silêncio dos órgãos e a doença sendo o estado de perturbação na execução normal das funções. Com efeito, Leriche percebe ainda, que o silêncio dos órgãos não significa ausência de doença, visto que no organismo existem lesões ou perturbações latentes funcionais que podem perdurar um tempo bastante considerável, sem que sejam perceptíveis. E é a partir desta fundamentação teórica que leva Canguilhem a apontar que:
O estado de saúde, para o indivíduo, é a inconsciência de seu próprio corpo. Inversamente, tem-se a consciência do corpo pela sensação dos limites, das ameaças, dos obstáculos à saúde. Tomando essas afirmações em seu sentido pleno, elas significam que a noção de normal que se tem depende da possibilidade de infrações à norma. Estamos, enfim, diante de definições que não são absolutamente verbais, em que a relatividade dos termos opostos é correta. O termo primitivo nem por isso é positivo, e o termo negativo nem por isso é nulo. A saúde é positiva, mas não é primitiva; a doença é negativa, mas sob a forma de oposição (perturbação), e não de privação (CANGUILHEM, 2009, p. 30).
Outros autores (MACHADO, 2006; ALMEIDA FILHO, 2011; GAUDÊNCIO, 2011), partindo de uma perspectiva sanitarista, apontam a polissemia do conceito de saúde e defendem que o fenômeno saúde-doença deve ser problematizado e abordado, não apenas pelo referencial biomédico, clínico e epidemiológico, mas, também, pela sua complexidade integral constituída por influências sociais, políticas, institucionais, ideológicas e culturais. Discutir o conceito de saúde, a partir do viés pluralista, implica integrar, analiticamente, todos os consideráveis elementos determinantes e condicionantes, entre eles, enfermidade, normalidade, anormalidade, corpo, medicina, infinitos conceitos que se bifurcam nos mais diversos discursos e práticas discursivas, toda a vez que proferimos a palavra saúde
(GAUDÊNCIO, 2011, p. 129). Para enfatizar, de acordo com Almeida Filho, Coelho e Peres (1999, p. 103) é preciso considerar modelos capazes de conceber a saúde e a enfermidade como resultados da interação complexa de múltiplos fatores, nos níveis biológico, psicológico e sociológico, com uma terminologia não limitada à biomedicina
.
O relatório da 8ª Conferência Nacional de Saúde, realizada em Brasília – Brasil -de 17 a 21 de março de 1986² (BRASÍLIA), estabelece um conceito de saúde num cômputo mais amplo, ao integrar um conjunto de determinantes e condicionantes multidimensionais à noção de saúde. Segundo o relatório, a saúde é a resultante das condições de alimentação, habitação, educação, renda, meio ambiente, trabalho, emprego, lazer, liberdade, acesso e posse da terra e acessos aos serviços de saúde, é assim, antes de tudo, o resultado das formas de organização social³
. O relatório, ao vincular saúde a um conjunto de direitos, a políticas públicas, a economia e a condições socioculturais, estabeleceu uma abordagem dedutiva, na qual, integra estruturas multidimensionais, recupera a relevância indispensável da contribuição multidisciplinar e dissocia à saúde de uma perspectiva reducionista da biomedicina, que privilegia a tríade diagnóstico-intervenção-cura
como processo normativo dos objetivos de saúde.
Nessa ordem de ideias, a abordagem teórica de saúde tende a se emancipar parcialmente da perspectiva monopolista da biomedicina e a se tornar expressamente presente na pauta do debate multidisciplinar. O que significa uma profunda mudança no paradigma epistemológico e na ordem das demandas sociais. A abordagem de saúde implica atualmente, articular agendas política e econômica, demandas socioculturais, valores simbólicos institucionalizados e princípios ideológicos.
Conforme Boorse (1997), professor de filosofia da medicina e da biologia na Universidade de Delaware, nos EUA, como a saúde não é um conceito valorativo, o naturalismo na saúde não pode ser um tipo de descritivismo. Este autor formulou o seguinte conceito: Saúde teórica é a ausência de doença [...] então a classificação de estados humanos como saudáveis ou doentes é uma questão objetiva, a ser extraída dos fatos biológicos da natureza sem necessidade de juízos de valor
.
A OMS e Boorse apresentam dois conceitos antagônicos que propiciaram a emergência de outras vertentes que buscam somar ambas as oposições, porque engendram contribuições plausíveis, dado o caráter dialético e multidimensional da díade saúde-doença. São vertentes que mobilizam percepções conjunturais e sociais em busca de uma noção de saúde que seja ideal e atingível. Refutar a interpretação unívoca para evitar o privilégio de uma das dimensões, negativa ou positiva de saúde, constitui o trilho ideal da concepção de saúde como um fenômeno dinâmico. Por isso, Berlinguer (2004) tece uma concepção equilibrada
, na qual, saúde não é um estado pleno de funcionamento de um organismo ou de seu livramento total de doença e enfermidade, mas sim, o estado de equilíbrio variável.
Portanto, analisando epistemologicamente o conceito de saúde, é possível observar que permanecemos numa definição fluida, polissêmica, multidimensional e aberta a outros campos de saber. E diante de uma realidade que permanece impregnada numa opacidade conjuntural, o conceito de saúde transcende os limites da concepção tradicional
e do senso comum
que tendem a reduzi-lo à simples oposição entre a presença de doença e a possível perfeição. Almeida Filho, et al., evidenciam essa realidade:
Em consequência, o conceito não necessariamente se limita ao interior de uma única ciência, mas em geral segue distintas filiações conceituais em ciências diferentes. Além disso, pode nesse percurso ampliar suas relações com saberes não-científicos e com práticas sociais, políticas e ideológicas. A concepção da saúde enquanto ausência de doença continua a ser reafirmada pela prática da medicina contemporânea e pela antropologia médica. Ademais, como vimos, ela foi ampliada pela perspectiva da normalidade com doença defendida pela epistemologia canguilhemiana. Os modelos de doença e os modos de adoecer são relativamente pautados pela patologia e pelos processos sociais de normalização, contrastando com as inumeráveis e criativas maneiras de estar sadio. Conclusão provisória: a saúde deve ser tomada como um conceito aberto, no sentido de que os signos, significados e práticas mostram grande variação, pois não é possível um padrão unificado de normalidade para a saúde. A saúde não se reduz a um único modelo explanatório na medida em que diversas formas de viver, sejam histórica, cultural ou individualmente determinadas, apresentam-se como possibilidades distintas de normalidade. (ALMEIDA FILHO; COELHO; PERES, 1999, p. 119).
Em síntese, as assimetrias teóricas que rodeiam os conceitos de saúde, abordadas até então, reiteram que se trata de uma realidade irredutível a uma determinada perspectiva cultural ou científica. Por isso, as classificações do que é saúde-doença dependem do processo dinâmico de cada sociedade e indivíduo, justificado pela diversidade cultural e condições sociais desiguais entre sociedades contemporâneas. Com base nisso, o debate sobre o conceito de saúde permanece aberto, complexo e fluido.
Traçando as fronteiras teóricas do objeto: o ser homem e a masculinidade
As categorias homem
e masculinidade
representam múltiplas significações. Por isso, faz-se necessário, delimitá-las e tipificá-las de acordo com os objetivos da pesquisa. O recorte dessas categorias nos permitirá apreender melhor o tipo de homem e masculinidade que está em foco neste estudo. Para tal, prossigo, primeiramente, delineando as fronteiras e as abordagens teóricas do que se entende como o ser homem
e por último, discutirei a categoria masculinidade
.
Para Silva (2006), o ser homem
continua sendo construído numa concepção polarizada de (1) negatividade: não chorar, não demonstrar seus sentimentos, não ser mulher ou homossexual, não amar as mulheres como elas amam os homens, não ser fraco, covarde, perdedor, passivo nas relações sexuais etc. e; (2) afirmativa: ser forte, corajoso, pai, heterossexual, macho, viril, provedor da família, dominador, destemido, determinado, autoconfiante, independente, agressivo, líder, etc. E a própria nomenclatura – homem - continua sendo usada, segundo Fernandéz (2001), para nomear a pessoa que possui determinadas características sexuais e se comporta de acordo com os padrões culturais que o fazem ser reconhecido como homem.
Nessa direção, autores como Nascimento, Segundo e Barker (2011), afirmam que a concepção patriarcal de uma masculinidade atrelada a valores tradicionais não é a única possível e não representa os homens em sua totalidade
e existem corpos sexualmente masculinos que não se reconhecem como tal e se identificam avesso a adoção de uma performance de gênero convencional, da mesma forma que todo o ser humano feminino não é, portanto, necessariamente mulher
(BEAUVOIR, 1970, p. 7), e estas concepções assimétricas geram complexidade quanto a delimitação das fronteiras do que é ser homem
social e culturalmente falando, porque, segundo uma pesquisa desenvolvida por Porcino (2017), é possível observar que há homens transexuais que se declaram como heterossexuais, bissexuais, homossexuais e/ou assexuados. Por isso, as teorias contemporâneas demonstram a complexidade conceitual do que é ser homem
, tanto para se aceitar a única forma de ser, como para se conceber as dimensões da pluralidade e múltipla diversidade de sua performance.
Todavia, essa complexidade conceitual não implica a impossibilidade e nem impede o estabelecimento de fronteiras teóricas que vão ao encontro com os objetivos do objeto em questão. E nessa ordem de ideias, as postulações teóricas apresentadas acima, por Silva (2006), descrevem teoricamente as dimensões conceituais do que é ser homem
de acordo com os objetivos desta pesquisa. A autora concebe o ser homem
a partir de duas polarizações essenciais: negativa e afirmativa. Sendo que a primeira engendra dimensões estruturais do patriarcado, tais como, não ser mulher ou homossexual e nem demonstrar o choro
e, a segunda incorpora àquelas qualidades subscritas na ordem dos padrões convencionais e socioculturais, tais como, ser heterossexual, macho, viril, provedor e agressor
.
Essa diferenciação entre o ser homem
hetero, dominador, líder, arrimo da família e o ser homem
homo, produz um discurso que governa as relações de poder e hierarquia, e sustenta a ideia da desconstrução do modelo hegemônico da masculinidade, cujas relações afetivas são estabelecidas de acordo com os padrões de heteronormatividade, o que difere com o discurso produzido quando as relações afetivas ocorrem entre dois homens. Em outras palavras, o ser homem
heterossexual significa possuir comportamentos típicos que o fazem ser reconhecido como tal, e essa identidade se torna uma categoria útil para produzir discursivamente o sexo, para definir políticas sociais de saúde e educar os profissionais da área em matéria de provisão de cuidados as diferentes formas de ser homem.
Portanto, ao falarmos de ser homem
, dentro das relações de gênero, há que definirmos sua identidade, porque ela é relevante para a produção de políticas públicas de saúde. Por exemplo, o Brasil não aprovou somente a PNAISH, mas formulou a Política Nacional de Saúde Integral de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais (PNSILGBT), aprovada em 2011. Visando a garantia de direitos de prestação de serviços e cuidados em saúde a uma parcela da população estigmatizada
por não se identificar com os padrões convencionais hegemônicos do sexo biológico que determina a identidade de gênero⁴.
Os diferentes transtornos resultantes de estigma, de violência simbólica e de gênero por simplesmente assumir a identidade de ser homem
homossexual, podem ser apreendidos, sobretudo, nas relações socioculturais, na relação médico-paciente e na sujeição de prescrições patológicas. No âmbito das relações socioculturais, Roque de Barros Laraia, lembra em sua obra "Cultura: um conceito antropológico (2001), que no Brasil, até na década de 1980, o homossexual era alvo de agressões físicas quando usasse as vias públicas e até hoje é vítima de preconceito e expressões depreciativas. Culturalmente, os homossexuais foram concebidos, ao longo da história, como
subvertidos,
perversos, perturbados psiquicamente e vistos como sujeitos de comportamentos avessos a tradição judaico-cristã, cuja cultura ocidental tem fortes raízes em seus primados teológicos e eclesiásticos, tradição essa, que foi e continua influenciando largamente diversas concepções do mundo da vida afetiva em relação a outras orientações sexuais, tal como era descrito, até em 1973, pela psicanálise ortodoxa:
A homossexualidade é uma doença. Toda a pessoa do homossexual é neurótica. O homossexual é um masoquista psíquico (MULLER, 2000, p. 9). Como resultado, homens que não estabelecem relações heteronormativas passaram a ser categorizados, social e culturalmente, como anormais e associados à uma série de doenças sexualmente transmissíveis e a outros tipos de transtornos psicossociais, psicológicos e psiquiátricos. Não assumir a heteronormatividade e não se comportar de acordo com os padrões socioculturais determinantes do ser
homem" pode trazer consequências que vão desde a violência física e simbólica e a sujeição do estado