Encontre milhões de e-books, audiobooks e muito mais com um período de teste gratuito

Apenas $11.99/mês após o término do seu período de teste gratuito. Cancele a qualquer momento.

Hegemonia e jurisdição
Hegemonia e jurisdição
Hegemonia e jurisdição
E-book439 páginas9 horas

Hegemonia e jurisdição

Nota: 0 de 5 estrelas

()

Ler a amostra

Sobre este e-book

O Direito contemporânero esgota a referência a antigas figuras de linguagem que o caracterizavam, ou eram fundamentais à concretização do imaginário que lhe dava suporte. Essas figuras são a catacrese ("o juiz é a boca da lei") e a prosopopeia ("a lei diz que..."). Mas outras figuras de linguagem são capazes de emergir da teoria social de forma a contribuir para a inteligibilidade dos fenômenos jurídicos: a metonímia (metáfora baseada na contiguidade) e a sinédoque (substituição do todo pela parte), que irrompem da teoria do discurso de Ernesto Laclau e Chantal Mouffe, quando tratam de caracterizar a categoria Hegemonia, herdada de Antonio Gramsci. O plano sobre o qual se desenrola essa substituição de figuras de linguagem chaves na compreensão do Direito é, justamente, um romance: a caracterização dada por Ronald Dworkin ao exercício da jurisdição, a que rotula de um Romance em Cadeia. Com base nisso, o livro aposta na funcionalidade dessa substituição, tanto em termos analíticos – para a compreensão empírica de como a jurisdição é exercida – quanto em termos normativos, para, tendo em vista como tal atividade é exercida, imaginar padrões teóricos capazes de balizar sua crítica e aperfeiçoamento. E claro, como não poderia deixar de ser, a referência que subjaz o experimento como um todo é o exercício jurisdicional tal como, em certa medida, vem ocorrendo na democracia brasileira. Nesse exercício, são buscados casos emblemáticos para a análise, como a interferência do Judiciário na competição política ou na regulação de casos de forte conotação moral, exemplos do que já há algum tempo vem sendo caracterizado – para o bem, ou para o mal – como uma "judicialização da política e das relações sociais".
IdiomaPortuguês
Data de lançamento1 de jan. de 2016
ISBN9788547302146
Hegemonia e jurisdição

Relacionado a Hegemonia e jurisdição

Ebooks relacionados

Métodos e Materiais de Ensino para você

Visualizar mais

Artigos relacionados

Avaliações de Hegemonia e jurisdição

Nota: 0 de 5 estrelas
0 notas

0 avaliação0 avaliação

O que você achou?

Toque para dar uma nota

A avaliação deve ter pelo menos 10 palavras

    Pré-visualização do livro

    Hegemonia e jurisdição - IGOR SUZANO MACHADO

    Editora Appris Ltda.

    1ª Edição – Copyright© 2016 dos autores

    Direitos de Edição Reservados à Editora Appris Ltda.

    Nenhuma parte desta obra poderá ser utilizada indevidamente, sem estar de acordo com a Lei nº 9.610/98.

    Se incorreções forem encontradas, serão de exclusiva responsabilidade de seus organizadores.

    Foi feito o Depósito Legal na Fundação Biblioteca Nacional, de acordo com as Leis nºs 10.994, de 14/12/2004 e 12.192, de 14/01/2010.

    COMITÊ CIENTÍFICO DA COLEÇÃO CIÊNCIAS SOCIAIS - SEÇÃO ANTROPOLOGIA & SOCIOLOGIA

    AGRADECIMENTOS

    Agradeço à Capes pela bolsa concedida no início do doutorado, assim como a bolsa de doutorado sanduíche, que me permitiu passar seis meses na Universidade de Essex, no Reino Unido. Agradeço também à Faperj, que proveu minha bolsa na segunda metade do curso.

    Curiosamente, não apenas a instituição que financiava meus estudos mudou durante o curso do meu doutorado, como a própria instituição em que eu estudava se transformou em outra. A essa instituição, antes chamada Iuperj, transformada depois no Iesp, agradeço por toda a estrutura que proveu para o desenvolvimento dos meus estudos, em especial em termo de pessoas: professores e funcionários pelos quais guardarei sempre enorme carinho. Entre os professores, claro, tem lugar especial meu orientador, Luiz Werneck Vianna, uma referência, para além da bibliografia, na profissão e na vida.

    Nesse ponto, têm destaque especial também os demais professores que participaram da minha banca de defesa, cujas considerações são em boa parte responsáveis pelas mudanças pelas quais este texto vem passando desde então: as professoras Gisele Cittadino, da Puc-Rio e Gisele Araújo da UNIRIO, e os professores Frédéric Vandenberghe, do próprio Iesp, e José Eisenberg, da UERJ.

    Destaco também todo o apoio que recebi na Universidade de Essex e no seu departamento de Governo, especialmente, claro, do meu orientador estrangeiro, o professor Jason Glynos, com quem tive conversas importantes, que tornaram ainda mais frutífero meu estágio de doutorado no exterior, que tanto contribuiu para o aprofundamento de minhas referências teóricas.

    No Iuperj/Iesp, tive o privilégio também de fazer parte do laboratório de estudos Direito e Sociedade – o Cedes – hoje na PUC-Rio. Além de ter sido fundamental para minha formação enquanto pesquisador, a vivência do laboratório foi ainda mais importante ao me apresentar os amigos Paula Salles, Fernando Perlatto, Diogo Tourino, Gustavo Ribeiro, Carla Soares, Ana Paula Carvalho, Daniela Tranches e Marcelo Diana.

    Além desses, as aulas do Iuperj/Iesp e demais eventos envolvendo o instituto também me concederam o privilégio de conhecer gente como a Lilian Oliveira, o Guilherme Simões Reis, o Marcelo Vieira, o Diogo Lyra, o Rafael Abreu, a Helga Gahyva, o Gabriel Peters, a Priscila Coutinho, a Soraia Marcelino, o André Coelho, o Clayton, o Jorge, o Tomás, a Regina... grandes companheiros de estudos, viagens e diversão.

    Além dos amigos de dentro do instituto, o Rio também me brindou com outras amizades importantes, especialmente da Carolina Saisse, antes minha vizinha que virou minha amiga, mas agora muito mais minha amiga que também foi minha vizinha. E, claro, das minhas companheiras de pesquisa que viraram grandes amigas: a Klarissa Silva e a Ludmila Ribeiro, que já conhecia do Iuperj, assim como sua amiga Helena Colodetti, que conheci na PUC-Rio.

    Isso sem contar com os amigos de sempre em Vitória: o João e a Amanda, o Dermeval, o Kadu, o Lontra, o Vinícius, o Michel, além, claro da minha família sempre presente, no carinho e no apoio dos meus pais, meu irmão, minhas avós, meus tios e meus primos – com destaque para o Antônio Márcio e a ajuda no Rio de Janeiro.

    Gostaria de deixar registrado também minha gratidão aos colegas que me acolheram na UFV – Danielas, Marcelos, Fabrício, Nádia, Rogéria, Douglas, Fatinha, Guillermo e companhia – e depois na Ufes – colegas aprovados junto comigo, como o Marcelo e a Lívia e antigos professores que tive o prazer de reencontrar, como a Patrícia, a Antônia, a Márcia, o João Saldanha, a Marta etc.

    A todos vocês, que, de alguma forma, tocam o produto final deste estudo, deixo aqui meu muitíssimo obrigado, pois o longo percurso que aqui se encerra não teria sido o mesmo sem vocês.

    APRESENTAÇÃO

    Com a promulgação da Constituição Federal de 1988, o Poder Judiciário brasileiro teve seu papel republicano redefinido. Na transição para a democracia, sob uma circunstância mundialmente generalizada de reestruturação da relação entre o Estado e a sociedade, em consequência das grandes transformações produzidas por mais um surto de modernização do capitalismo, tal poder foi alçado ao primeiro plano da vida pública ao ser demandado por nova clientela a atuar como esfera de ampliação de direitos (VIANNA et al. 1997, p. 11-12).

    Chamado a dirimir os impasses institucionais entre o Executivo e o Legislativo e a garantir direitos de cidadãos e empresas em face do intervencionismo estatal, além de exercer novo papel de garantir a integridade do tecido social em pontos-chave, como a desintegração familiar, por meio do direito de família e do menor, o Judiciário se vê inserido num forte contexto de ampliação de sua esfera de atuação, permitindo se falar em uma judicialização da política e das relações sociais (VIANNA, 1999). Como consequência, observa-se que, seguindo a clássica conceituação de Montesquieu, os três poderes da República têm se sucedido na preferência da bibliografia e da opinião pública. Assim,

    [...] à prevalência do tema do Executivo, instância da qual dependia a reconstrução de um mundo arrasado pela guerra, e que trouxe centralidade aos estudos sobre a burocracia, as elites políticas e a máquina governamental, seguiu-se a do Legislativo, quando uma sociedade civil transformada pelas novas condições da democracia política impôs a agenda de questões que diziam respeito à sua representação, para se inclinar, agora, pelo chamado terceiro Poder e a questão substantiva nele contida – Justiça (VIANNA. 1997, p. 24).

    Disso resultam fundamentais análises como a empreendida por Luiz Werneck Vianna, Manuel Palácios Cunha Melo, Maria Alice Rezende de Carvalho e Marcelo Baumann Burgos em Corpo e alma da magistratura brasileira, a respeito da origem social dos magistrados do Brasil e suas posições em face de assuntos como a autonomia do Poder Judiciário e o associativismo da magistratura. Contudo, conforme salientam os próprios autores do estudo, em que pese sua envergadura, tal pesquisa participava ainda da fase pioneira da descoberta desse novo território para a reflexão das ciências sociais brasileiras. Segundo eles,

    [...] nenhuma incursão deste tipo poderá ser completa sem a incorporação de análises qualitativas que, tendo como objeto a sentença e a natureza do feito sob julgamento, venham a demonstrar ‘para que’ e ‘a quem’ vem servindo todo o imenso aparelho do Judiciário" (VIANNA, 1997, p. 16).

    Isto é, demandava-se às ciências sociais brasileiras especial atenção à chamada jurisdição: a atividade concernente ao Poder Judiciário de dizer o direito.

    Tendo isso em vista, a presente pesquisa pretende colaborar com o atual quadro de compreensão da tarefa jurisdicional no campo teórico, com implicações para análises empíricas, avaliadas em alguns estudos de caso, sobre importantes decisões do Poder Judiciário brasileiro, como as decisões do STF que regulamentaram o direito de greve dos servidores públicos, a pesquisa com células-tronco embrionárias e a fidelidade partidária de candidatos eleitos. Para tanto, buscar-se-á a construção de um viés sociológico de interpretação do fenômeno, que encare a jurisdição como vinculada não à necessidade, mas à contingência, e que a situe, tanto no campo de sua alimentação quanto no campo de suas consequências, em relação direta com fenômenos sociais outros.

    Não obstante o Direito ser um tema clássico das Ciências Sociais – haja vista o lugar que ocupa nas teorias de Karl Marx (2005 [1843]), ¹ de Max Weber (2004 [1921]) e de Émile Durkheim (2008 [1893]; 2002 [1912]) – o insulamento do conhecimento do Direito em uma ciência própria, pretendido por teorias jurídicas positivistas de inspiração kelseniana, fez com que o tema se tornasse menos central na reflexão da disciplina durante parte do século passado. Contudo, a importância que ganhou o Poder Judiciário nas últimas décadas desse mesmo século fez o tema retornar ao centro do debate sociológico e se tornar fundamental nas teorizações de alguns de seus mais renomados representantes, como Niklas Luhmann (2004 [1993]) e Jürgen Habermas (1999a [1986]; 1999b [1992]).

    Se essas reflexões tampouco se limitam à influência desses dois teóricos, nem por isso elas têm sido desenvolvidas na direção que este trabalho propõe, partindo da teoria sociológica de Ernesto Laclau e Chantal Mouffe. Tais autores têm tido destaque nas ciências sociais contemporâneas, mas os próprios não têm se manifestado a respeito do Direito. Da mesma forma, são poucos, especialmente no caso brasileiro, que mobilizam o referencial para tratar do tema. Todavia, acredito que, igualmente, não seriam poucos os analistas desconfortáveis em lidar com o tema fazendo uso de referenciais mais corriqueiros na sociologia do direito atual, como as aludidas teorias habermasianas e luhmannianas, aceitando, por exemplo, as conclusões dos estudos de inspiração luhmanniana de Marcelo Neves (2007 [1994]), a serem conhecidas mais à frente.

    Nesse sentido, repensar as relações entre direito e sociedade com base nas ideias pós-estruturalistas e antifundacionistas de Laclau e Mouffe apareceria como uma alternativa pouco explorada enquanto referencial teórico da sociologia jurídica, que, nem por isso, conforme se buscará mostrar, seria de pouca utilidade para ela. Logo, a contribuição da pesquisa é aproximar um influente referencial teórico e um corrente tema da Sociologia, que não têm sido relacionados, mas cuja relação poderia trazer benesses não só à disciplina, mas mesmo à reflexão sobre o lugar do Judiciário num governo democrático. Dentro do quadro global de expansão do poder dos juízes nos regimes democráticos, no qual se encontra, certamente, o caso brasileiro, o estudo traria à tona novo viés de enfrentamento de tais questões, contribuindo, dessa maneira, como uma nova peça, em nova posição, no mosaico da compreensão da democracia constitucional contemporânea.

    PREFÁCIO

    A expansão da presença do direito, de suas instituições e procedimentos tanto na sociedade como na política brasileira é um fato incontroverso, cuja relevância somente tende a crescer. Estão aí as assustadoras estatísticas sobre a expansão exponencial das litigações, o gigantismo monumental de suas sedes, o aumento do número de quadros das carreiras jurídicas de Estado a que tem correspondido uma multiplicação de centros de aperfeiçoamento criados e mantidos pela vida associativa de suas corporações, e, como tais, insulados do seu entorno.

    Nada mais escapa, para o bem e para o mal, dessa malha com que o Judiciário, diante de uma sociedade desatenta para o significado desse processo, tem recoberto todos os aspectos da nossa vida social, como nos casos exemplares estudados por Igor Suzano Machado neste belo trabalho que o leitor tem em mãos. A abertura do direito às novas agendas democráticas e às demandas sociais que não encontrem canais nas instituições de representação é, em si, um processo benfazejo. No entanto, tal como sugere o nosso autor, ancorado nas obras clássicas de Philippe Nonet e Philip Selznick e de Ronald Dworkin, sobretudo neste, uma abertura indiscriminada do direito põe sob risco a sua integridade que, se perdida, pode apontar para uma regressão ao autoritarismo.

    O tema difícil da preservação da integridade do direito, na circunstância da vida contemporânea, é o tema de fundo desta ousada e criativa empresa do nosso autor, que sabe caminhar sobre o fio da navalha. Em suas palavras:

    [...] como conciliar a manifestação genuína da vontade do povo com a delegação de poderes a atores políticos não eleitos e como articular direitos individuais e sociais e coletivos sem eclipsar os primeiros, nem mitigar os segundos.

    Levar o direito a sério, assim com o trabalho dos juízes em suas jurisdições, importa, para nosso autor, uma leitura do tema da integridade do direito na chave da hegemonia, na interpretação desse conceito gramsciano por Chantal Mouffe e Ernesto Laclau, uma narrativa a ser construída pela cidadania de forma a identificar, em meio a manifestações divergentes e sob o primado de uma gramática da igual-liberdade, o substrato imutável que legitima o caráter mutante do direito positivo.

    Assim como a guerra é um assunto sério demais para ficar restrito aos generais, o direito, na forma como hoje o conhecemos, não pode mais ficar confinado aos juristas, porque seu futuro é incerto e de alto risco, especialmente em repúblicas como a nossa, que tem feito da judicialização das relações sociais e da política a sua segunda pele. Uma cultura democrática não pode admitir ter seu curso tramado por cima da vontade da cidadania a partir de intervenções erráticas que nos venham a erodir o ideal da integridade do direito, sem o qual cedem as defesas que nos protegem do casuísmo e do arbítrio. O complexo e original esforço deste trabalho de Igor Suzano Machado é uma importante e responsável contribuição nesse sentido, precisamente por se posicionar com vigor em favor da abertura do direito sem perder de vista, como em Habermas, seu incontornável caráter universalista.

    Luiz Werneck Vianna²

    SUMÁRIO

    CAPÍTULO 1

    A catacrese em crise: conseqUências epistemológicas, sociais e polÍticas dA Derrocada do FORMALISMO no Direito

    1.1. A prostração da prosopopeia e a catacrese em crise

    1.2. O positivismo na berlinda

    1.3. Consequências de uma guinada pós-positivista no Direito

    1.4. Plano de trabalho

    CAPÍTULO 2

    Ferimentos de morte e incisões cirúrgicas: A resposta DE DWORKIN ao dilema responsividade-independÊncia

    2.1. Nonet e Selznick: responsividade x independência em três tipos diferentes de sistemas jurídicos

    2.2. A Integridade do Direito para Dworkin: prólogo

    2.3. A Integridade do Direito para Dworkin: desenvolvimento

    2.4. A Integridade do Direito para Dworkin: epílogo

    2.5. Primeiras conclusões

    CAPÍTULO 3

    Rasuras num romance liberal: o pós-estruturalismo de Laclau e Mouffe E a integridade de Dworkin

    3.1. Mouffe e uma política para o político 1ª parte: uma democracia liberal livre do racionalismo e universalismo

    3.2. Mouffe e uma política para o político 2ª parte: o quão distante do liberalismo está, de fato, a política agonista?

    3.3. Laclau e uma sociologia para uma sociedade impossível 1ª parte: discurso, articulação e sujeito

    3.4. Laclau e uma sociologia para uma sociedade impossível 2ª parte: pós-marxismo, desconstrução e hegemonia

    3.5. Laclau e uma sociologia para uma sociedade impossível 3ª parte: antagonismos, contingência e significantes de tendencial vacuidade

    3.6. Hegemonia e jurisdição: uma aproximação pela integridade

    CAPÍTULO 4

    Novas figuras de linguagem no romance do Direito brasileiro? Estudos de casos

    4.1. Aproximações entre os níveis ontológico e ôntico 1ª parte: a morte de Deus no Direito, a busca de uma abordagem alternativa e a proposta de um quadro tridimensional a ser preenchido em seus níveis macro, meso e micro

    4.2. Aproximações entre os níveis ontológico e ôntico 2ª parte: a morte de Deus no Direito e seu inventário para uma sociologia das instituições judiciais no nível macro

    4.3. Aproximações entre os níveis ontológico e ôntico 3ª parte: a morte de Deus no Direito e as dimensões de convergência e divergência da comunidade política plural e seus desafios para uma sociologia da jurisdição no nível meso

    4.4. Aproximações entre os níveis ontológico e ôntico 4ª parte: judicialização da política e estudos de caso no nível micro

    4.4.1 Controle concentrado de constitucionalidade 1º caso: direito de greve e ativismo judicial

    4.4.2 Controle concentrado de constitucionalidade 2º caso: pesquisas com células-tronco e judicialização da moralidade

    4.4.3 Controle concentrado de constitucionalidade 3º caso: competição eleitoral e regulação judicial da política

    4.4.4 Atravessando as instâncias 1º caso: judicialização das relações trabalhistas

    4.4.5 Atravessando as instâncias 2º caso: judicialização das políticas raciais

    4.5. Hegemonia e jurisdição nos tribunais brasileiros

    capítulo 5

    Entre a integridade e a hegemonia: repensando a relação entre Direito e sociedade sob a luz do referencial teórico, com base nos dados empíricos

    5.1. A decisão judicial como decisão política

    5.2. A decisão judicial como decisão democrática

    5.3. A busca da hegemonia no direito responsivo

    5.4. O juiz Hércules, a juíza Penélope e a promessa de uma justiça por vir

    5.5. Adendo: nota sobre a juíza Penélope e as linguagens do interesse, da razão e do afeto

    5.6. Considerações finais

    Conclusão

    Referências

    CAPÍTULO 1

    A catacrese em crise: conseqUências epistemológicas, sociais e polÍticas dA Derrocada do FORMALISMO no Direito

    Mas os juízes da nação são apenas, como já dissemos, a boca que pronuncia as palavras da lei; são seres inanimados que não podem moderar nem sua força, nem seu rigor.

    (Montesquieu, Do Espírito das Leis)

    1.1. A prostração da prosopopeia e a catacrese em crise

    Este é um trabalho sobre a jurisdição, isto é, sobre o dever e a prerrogativa de declarar o direito. Conforme salienta Antoine Garapon (2001 [1996], p. 164),

    [...] quão longe vai nossa memória sobre o direito, a justiça é associada a uma palavra pública, conforme sua etimologia indica: ‘juris-dição’, dizer o direito. O dever primeiro da justiça, enquanto instituição, continua sendo o de dizer o justo.

    Para que a justiça, enquanto instituição, melhor realizasse seu dever de dizer o justo, Montesquieu teorizou que ela deveria se ater estritamente à legislação produzida por outro corpo político, que não aquele responsável pelos julgamentos. Daí a necessária distinção entre os poderes Legislativo e Judiciário, que não poderiam ser concentrados nas mesmas pessoas. Segundo o pensamento desenvolvido pelo autor, até hoje profundamente influente no imaginário político, dar a uma parcela do corpo político o direito a formular leis e a outra, a obrigação de aplicá-las, garantiria à primeira a expectativa de uma atividade legiferante de cunho universalista e, à segunda, imparcialidade nos julgamentos.

    Logo, como descrito na citação que inicia o texto, os responsáveis pela função judiciária seriam, para Montesquieu, seres inanimados, nada além da boca que pronuncia as palavras da lei. O conteúdo da decisão jurisdicional estaria assim adstrito às previsões do Poder Legislativo, necessitando apenas de uma boca inanimada por meio da qual pudesse se fazer ouvir. Essa é, portanto, a metáfora fundamental da definição clássica do Poder Judiciário enquanto poder responsável pela jurisdição: o Poder Judiciário é a boca da lei.

    Dado o status de sua origem clássica dentro das ciências sociais, a metáfora utilizada por Montesquieu será considerada aqui suficientemente desgastada e usual, para ser classificada como uma catacrese. Isso porque a catacrese é uma metáfora desgastada, que sequer é ainda percebida como tal, utilizada para nomear, por referência a alguma similitude, aquilo para cujo nome a língua não estabelece palavra exata. São exemplos de catacreses a asa da xícara, o pé da página, o braço do sofá, e, de acordo com o proposto no presente trabalho, a boca da lei.

    No entanto, o que se observa nesse caso é que o funcionamento da catacrese de Montesquieu depende diretamente de outra figura de linguagem: a prosopopeia, que nada mais é do que dar a seres não vivos características específicas de seres vivos, ou, a animais, características específicas de seres humanos. São exemplos de prosopopeias, dentre outras, o galo cantar, o peito soluçar ou o vento uivar. No caso da catacrese de Montesquieu, temos que ela depende fundamentalmente da prosopopeia de a lei falar, faltando-lhe apenas uma boca inanimada por meio da qual sua voz possa ser ouvida. A questão é: quando a lei não fala, o que resta de sua boca? A aporia de insistir numa figura de linguagem quando outra que lhe dá sustentação sucumbe, nos leva à resposta de que, nesse caso, com o perdão das aliterações, na prostração da prosopopeia, a catacrese entra em crise.

    Claro que o raciocínio acima depende do argumento pressuposto de que a lei não fala mais, ou nunca falou, ou não fala mais ou nunca falou da forma como esperava Montesquieu. Esse argumento é a conclusão a que chegam muitos dos analistas do Direito contemporâneo, como Garapon, a quem aqui faço novamente referência, a título de ilustração.

    Na trilha da argumentação do autor, pode-se dizer que a lei constituía o elo principal do positivismo jurídico, uma vez que supostamente deveria assegurar a ligação entre o ofício do juiz e a soberania popular. Por isso o juiz deveria ser apenas a boca da lei. No entanto, esta lei, segundo o autor, não é mais suficiente para guiar o juiz em suas decisões, devendo ele apelar para fontes externas a ela antes de proferir sua sentença. De acordo com Garapon, portanto, a lei não se confunde mais com o direito: guarda ainda uma importância essencial, mas não é mais capaz de fundamentar, sozinha, todo o sistema jurídico. Dessa forma, alerta o autor, faz-se necessário conceber o direito como um conjunto não só de regras, mas também de princípios, e tomar a lei como um produto semi-acabado que deve ser terminado pelo juiz (GARAPON, 2001, p. 40-41).

    É importante, neste ponto, fazer uma ressalva, já que alguns trechos do raciocínio anterior – esta lei não é mais suficiente, a lei não se confunde mais com o direito – podem dar a entender que a interpretação positivista do direito encontrava perfeita sintonia com a realidade durante dado período, sendo apenas atualmente posta em xeque. De fato, transformações sociais importantes e relativamente recentes têm desafiado frontalmente a concepção positivista do Direito. Mesmo assim, cumpre destacar que a concepção positivista do Direito sempre sobreviveu em conflito com outras concepções de Direito concorrentes e que, dentro das concepções positivistas, nem sempre outros aspectos da jurisdição, para além da lei escrita, foram completamente ignorados.

    Quanto ao primeiro ponto, cumpre destacar que o positivismo jurídico surge em contraponto à doutrina do Direito natural e com ela se mantém em conflito permanente, destacando as vantagens de se compreender o Direito enquanto fenômeno absolutamente distinguido de questões morais. Já em relação ao segundo ponto, por exemplo, tanto Hans Kelsen quanto H. L. A. Hart, expoentes maiores da teoria juspositivista, admitem que, quando da aplicação do direito por seus operadores, entram em cena elementos volitivos, baseados em princípios morais e preferências pessoais que não estão previstos na letra da lei. ³ Como destaca Karl Larenz, segundo o próprio Kelsen,

    [...] a norma superior não pode nunca determinar completamente e em todas as direções o ato pelo qual é executada (ou seja, o estabelecimento da norma inferior). Fica sempre uma margem de discricionariedade para o órgão chamado a estabelecer a norma inferior, de tal sorte que a norma superior relativamente ao ato de produção normativa ou de execução, tem sempre e só o caráter de um quadro a preencher através desse ato. A interpretação, enquanto por ela se entenda uma atividade de conhecimento, apenas logra mostrar-nos esse quadro, mas nunca preenchê-lo. Se o sentido literal da norma não é unívoco, quem tem de aplicá-la encontra-se perante várias significações possíveis. [...] Cabe a quem aplica a norma decidir-se, através de um ato voluntário, por uma dessas possibilidades, que depois, por ato do órgão aplicador, particularmente o tribunal, se torna em direito positivo (LARENZ, 2009 [1991], p. 106-107).

    Já no que tange ao positivismo de Hart (2009 [1961/1994], p. 166), esse mesmo aspecto construtivo da norma jurídica por parte da vontade do órgão aplicador da lei tem destaque naquilo que ele chama de textura aberta das normas jurídicas.

    De qualquer forma, cumpre ressaltar que Kelsen e Hart ainda consideram que esse ato de vontade se dá como interferência de um elemento externo e independente no campo do Direito, que, dessa forma, pode, enquanto campo específico, ser compreendido de maneira autônoma, considerando-se apenas seus elementos formais, e não seu conteúdo substantivo, moral ou político. Ou seja, se se compreende que a vontade do aplicador da lei faz direito, isto é, cria nova norma, é possível afirmar que se trata da influência de um elemento externo e independente, já que, para criar conjunto novo, é necessário assimilar elemento novo, que, por conseguinte, não estava contido no conjunto original. ⁴ Disso decorre que, mesmo aceitando a dimensão fática da interferência desses valores materiais na aplicação da lei, o positivismo se agarre, em sua dimensão analítica, ao porto seguro da forma, como característica em que é possível encontrar algo de universalizável na norma jurídica. Como consequência, a compreensão positivista do direito, a visão formalista da norma jurídica, e a conclusão de que a aplicação do direito é, ao menos em princípio, um exercício silogístico de aplicação de uma regra estipulada em lei sobre um caso concreto, tendem a andar juntas.

    Pois, como destaca Luigi Ferrajoli (2009 [2006], p. 12), o positivismo jurídico – de que é signatário – permanece tendo como corolário, que é seu próprio significado, a separação entre Direito e Moral, isto é, entre forma e conteúdo. Esse é o ponto-chave para a compreensão positivista do Direito, como também salienta Robert Alexy (2009 [2005], p. 24). Um dos maiores expoentes do positivismo jurídico contemporâneo, Jospeh Raz faz coro ao ponto destacando que as razões jurídicas são tais que sua existência e seu conteúdo podem ser estabelecidos com fundamento nos fatos sociais, sem que seja necessário recorrer a argumentos morais (RAZ, 2012, p. 283-284). Essa separação é negada, por seu turno, pelas teorias jusnaturalistas, que pregam que existem prescrições morais superiores às leis dos homens – de origem divina ou racional – que devem prevalecer sobre elas na aplicação do verdadeiro Direito. Essas prescrições devem conformar o conteúdo substantivo das normas jurídicas, sob a premissa de que normas que não contenham esse conteúdo não fazem, portanto, parte do Direito.

    Tendo isso vem vista, pode-se dizer que o positivismo jurídico enxerga o direito por uma ótica profundamente formal, interessada na estrutura das normas, em detrimento de uma ótica substantiva, preocupada, sobretudo, com o seu conteúdo, como é o caso das doutrinas jusnaturalistas, isto é, baseadas num Direito natural. Como explica Larenz, no positivismo kelseniano, por exemplo,

    O conteúdo das normas jurídicas não está para elas, por qualquer modo, pré-determinado pela razão, pela lei moral ou por qualquer teleologia imanente, mas pode ser aquele que se queira. Uma norma jurídica, acentua Kelsen, não vale porque tem um determinado conteúdo, mas sim porque foi produzida de determinada maneira, de uma maneira legitimada, em último termo, por uma norma que se pressupõe. Por isso continua ele, pode qualquer conteúdo que se deseje ser Direito. Não existe comportamento humano que, em si mesmo, graças a aquilo em que consiste, possa ser excluído como conteúdo de uma norma jurídica (LARENZ, 2009, p. 97).

    Dessa forma, enquanto para o positivismo o que faz uma norma ser reconhecida como jurídica reside na sua obediência a uma estrutura específica de promulgação por subsunção hierárquica,⁵ em interpretações concorrentes o caráter jurídico da norma é dado por seu conteúdo, vinculado, por sua vez, a questões de justiça substantiva.

    A autonomia entre direito e moral pregada pelo positivismo se destaca por não permitir o jugo nem da moralidade sobre o direito positivo, nem do direito positivo sobre a moralidade. Dessa forma, tanto o direito positivo poderia ser criticado por meio de um embasamento moral – já que ele próprio não é a última palavra sobre a moralidade – quanto uma concepção moral particular não conseguiria se eternizar nas leis positivadas – posto que elas não são estritamente vinculadas a uma moralidade específica. Esse argumento moralmente relativista é atento a uma sociedade plural e democrática, daí derivando grande parte da força das teses positivistas.

    Esse relativismo axiológico colocaria o positivismo em destaque no que concerne ao conhecimento do Direito. Afinal, por meio de uma, como diria Kelsen, teoria pura do Direito, na qual o Direito se mostra desvinculável da política e da moral, poderia o cientista do direito – observador externo – analisar imparcialmente as possibilidades de aplicação da lei dadas por determinado ordenamento jurídico, sem se posicionar a respeito da justiça desse ordenamento. Assim, ele poderia oferecer ao operador do direito (juiz, advogado etc.) as opções de aplicação corretas e coerentes do ordenamento jurídico com que trabalha, independentemente e sem a contaminação de questões morais e políticas.

    Mesmo assim, não obstante sua força, as teses positivistas apresentam problemas que têm se tornado cada vez mais dramáticos na compreensão da aplicação contemporânea do direito. Por exemplo, se é aceito que princípios morais podem atuar na aplicação do direito – fato reconhecido pelo próprio positivismo – por que considerar que, no que tange à sua compreensão, tratam-se tais princípios de elementos externos ao direito?

    1.2. O positivismo na berlinda

    Um bom ponto de partida para a crítica do positivismo jurídico, levando em conta a pergunta que encerra o tópico anterior, reside no texto introdutório ao ensaio de Kelsen O Problema da Justiça, feito por Mario G. Losano. Nesse texto, ao criticar o formalismo positivista de Kelsen, Losano destaca que:

    Todas as teorias são explicações apenas parciais, mas algumas são mais limitadas que outras. Estaremos mesmo seguros de que a forma é o elemento fundamental para compreender o direito? Excluindo qualquer exame do interior (ou seja, a realidade) e qualquer exame do exterior (ou seja, o valor, a justiça), Kelsen encontra-se na posição de quem quer falar do ovo propondo-se calar tanto sobre a galinha quanto sobre a gema e a clara. Estaremos mesmo seguros de que a casca é o elemento fundamental para se compreender o ovo? Se não falarmos da galinha, não compreenderemos nem a origem do ovo, nem sua estrutura, nem (peço vênia) sua forma; se não falarmos de gema e clara, não explicaremos sua finalidade, nem seus possíveis usos. (LOSANO in KELSEN, 2003 [1960], p. XXI).

    Losano prossegue recorrendo a Norberto Bobbio e compara as normas jurídicas formais do positivismo jurídico agora não com ovos, mas com caixas. Segundo Bobbio (apud Losano):

    Certamente, o mesmo tipo de caixa pode ser enchido com flores e com explosivos. E, visto que o ofício de fazer caixas é diferente do ofício de enchê-las, não existe nenhuma razão para atribuir ao fabricante de caixas o propósito de que estas sejam enchidas sempre com os mesmo objetos (jusnaturalismo impenitente), mas não se lhes pode fazer a admoestação de quererem que fiquem sempre vazias (formalismo árido) (LOSANO in KELSEN, 2003 [1960], p. XXI-XXII).

    No entanto, destaca Losano, "a fábrica de caixas da comparação de Bobbio é tão irreal quanto o jurista

    Está gostando da amostra?
    Página 1 de 1