Estado de Direito, Separação de Poderes e Controle de Constitucionalidade da Norma: pelo administrador destinatário
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Estado de Direito, Separação de Poderes e Controle de Constitucionalidade da Norma - Valéria Carneiro Lages Resurreição
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PREFÁCIO
Se quem escreve procura fugir da condição transitória do homem, finitude que nos magoa e revolta, eis que as ideias registradas transcendem o curto tempo de uma vida e vivem, despregadas do autor, ainda quanto este se vai, então quem escreve um prefácio aproveita-se, em alguma medida, desta mesma viagem.
Convidou-me, Valéria Carneiro Lages Resurreição, para que prefaciasse estes escritos, e fê-lo como se me pedisse um favor. Mas se há aqui um beneficiado, seguramente sou eu. Talvez a dádiva do convite se deva a dois fatos antigos. Ainda estudante, Valéria Resurreição cumpriu estágio na 2ª. Vara da Justiça Federal, onde eu mourejava como Juiz Titular e pude dar-lhe, naqueles dias distantes, alguma orientação. Depois - este o segundo fato - na época em que a estudante concluía o curso de Direito, incentivei-a a escrever seu trabalho de conclusão versando a possibilidade do administrador recusar aplicação a dispositivo de lei marcadamente inconstitucional. Na época, vigorava como cânone indiscutível a interdição ao administrador de qualquer controle de constitucionalidade. Afirmava-se, com foros de definitividade - Prego batido e ponta virada - a máxima de que o controle seria privativo do Poder Judiciário. Mais tarde eu próprio escreveria curto artigo sobre o tema, aliás, citado na bibliografia deste livro que ora prefacio.
É com enorme satisfação que re-encontro Valéria Resurreição voltando ao mesmo tema, agora com estudo de fôlego, tratado com o cuidado e mestria própria de quem tem excessivo amor às coisas bem feitas.
A obra é excelente em todos os aspectos. No apuro técnico; na correção e na clareza da linguagem; na erudição demonstrada acerca dos subtemas enfocados; na abrangência das premissas que são tratadas, cada uma, como se fossem elas também o tema central do estudo. Essa, destaco, é, a meu sentir, a principal virtude de um trabalho repleto de virtudes. A autora não poupou esforço e tempo, engenho e arte
, ao enfrentar assuntos atuais e de difícil equação. Sua viagem ao próprio conceito de constituição, com segura passagem sobre suas classificações é digna de figurar em qualquer curso de Direito Constitucional. Assim também a desenvoltura com que fere o estudo do controle de constitucionalidade das normas, seja o prévio, seja o posterior, com alguma análise dos sistemas estrangeiros, dando ao leitor o conhecimento necessário para acompanhar o cerne do estudo e as conclusões finais. Neste ponto, cuidando do controle judicial da constitucionalidade, é exaustiva a análise que empreende sobre a natureza do vício da inconstitucionalidade e como compatibilizar o defeito invalidante com a extração de alguma eficácia da norma viciada, a ser preservada para assegurar o normal funcionamento do Estado e a segurança jurídica. Salta aos olhos até dos menos avisados o interesse da autora em ministrar ao leitor os elementos antecedentes imprescindíveis para que ele ingresse na fase central do trabalho dotado do conhecimento necessário a participar do debate e a exercer um juízo crítico sobre as conclusões.
Com idêntico propósito é o tratamento acerca do princípio da legalidade e o da separação dos poderes. Nada excede ou falta. Não se cuidou de assuntos inúteis ou desconectados do tema central, tampouco se deixou de enfocar tudo o quanto necessário à análise final.
As conclusões a que chega esta interessantíssima monografia são naturalmente extraídas dos conhecimentos que são hauridos dos capítulos anteriores e quase não permite ao leitor alguma discordância.
O livro, muito bem vindo ao cenário jurídico de hoje, é de leitura agradável e certamente será instrumento indispensável a quem deseje se aprofundar no assunto.
É tempo de concluir que prefácios desejam-se curtos, posto que roubam do leitor a satisfação de ingressar imediatamente na obra que adquiriu.
Parabéns, Valéria Resurreição, pela obra. Obrigado pela feliz oportunidade de participar, em pequeníssima e inexpressiva parte de seu lavor. Este primeiro rebento jurídico literário prognostica irmãos de idêntica linhagem.
Paulo Roberto de Oliveira Lima
Desembargador Federal do Tribunal Regional Federal da 5ª Região
Ex-Presidente do Tribunal Regional Federal da 5a. Região (2011 a 2013), Ex-Vice-Presidente do Tribunal Regional Federal da 5ª Região (2005 a 2007), Coordenador dos Juizados Especiais Federais da 5a. Região (2019 a 2021), Professor de Direito Processual Civil e de Direito Tributário da Escola Superior da Magistratura no Estado de Alagoas e Professor de Direito Processual Civil da Escola Superior da Magistratura do Trabalho - 19ª EMATRA
ÍNDICE
CAPÍTULO 1 - O VALOR DA CONSTITUIÇÃO
1.1. A formação dos Estados modernos
1.2 - O Constitucionalismo
1.3 - A Constituição no século XX
1.4 - O conceito de Constituição
1.4.1 - O conceito sociológico de Ferdinand Lassalle
1.4.2. A concepção política de Carl Schmitt
1.4.3. O conceito jurídico de Hans Kelsen
1.4.4 - A doutrina atual
1.5 - Reflexões sobre o futuro da Constituição
1.6 – Rigidez e Supremacia constitucional
CAPÍTULO 2- O CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE DAS NORMAS
2.1 - Os sistemas de controle de constitucionalidade e a presunção de constitucionalidade das leis
2.2. Diferença entre controle preventivo e repressivo
2.3 - O controle jurisdicional de constitucionalidade
2.4 – Evolução do Controle de Constitucionalidade no Brasil
2.4.1 - O Controle de Constitucionalidade antes de 1988
2.4.2 - O controle de Constitucionalidade na Constituição de 1988
2.4.3 - As inovações trazidas pelas Leis n°s 9.882/99 e 9.868/99, com as alterações da Lei n° 12.063/2009
2.5 - A insuficiência do controle
CAPÍTULO 3 - A INCONSTITUCIONALIDADE: REPENSANDO O CONTROLE (DE CONSTITUCIONALIDADE) DAS NORMAS
3.1 - A inconstitucionalidade
3.1.1 – Seus efeitos: a divergência doutrinária
3.1.2 - A nossa posição acerca dos efeitos produzidos pelo ato normativo posteriormente declarado inconstitucional
3.2 - Problemas decorrentes da inconstitucionalidade
3.2.1. A irretroatividade e o direito adquirido
3.2.2 - Limites ao direito adquirido. Existem direitos adquiridos contra a Constituição?
3.2.3 - A exceção à regra geral de nulidade absoluta. A solução extraída do sistema: a responsabilidade do legislador
3.3 - Reflexos da inconstitucionalidade
CAPÍTULO 4 - O PRINCÍPIO DA LEGALIDADE E A NECESSIDADE DE HARMONIA NO SISTEMA
4.1 - Questionamentos
4.2 - O ordenamento jurídico - há um sistema?
4.3 - O Princípio da Legalidade como forma de limitação do poder
4.4- O Princípio da Legalidade no Direito Administrativo
4.5 - O desprestígio das leis
4.6 - Legalidade x Constituição - unidade e equilíbrio do sistema
4.7 - Reformulação do Princípio da Legalidade na Administração Pública
CAPÍTULO 5 - O PRINCÍPIO DA SEPARAÇÃO DE PODERES
5.1 - A separação de poderes enquanto princípio — antecedentes históricos
5.2 – Montesquieu e o Espírito das Leis
5.3 - O poder — significado e técnicas de controle
5.4 - Os três poderes como órgãos do Estado - distinções
5.5 - Separação... ou independência e harmonia?
5.5.1 - Executivo e Legislativo
5.5.2 - O Executivo e o Judiciário
5.5.3 O Legislativo e o Judiciário
5.6 - O significado dos freios e contrapesos — não há separação, mas divisão.
5.7 - A CF de 88 e a atuação do Judiciário brasileiro
5.8 - Repensando o princípio da separação de poderes
CAPÍTULO 6 - O CONTROLE DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA E O PRINCÍPIO DA INAFASTABILIDADE DO CONTROLE JUDICIAL: OS LIMITES
6.1 - O controle dos atos da Administração Pública
6.1.1 - O controle interno
6.1.2 - O controle externo
6.2 - Ações judiciais para controle da Administração Pública
6.3 - Limites à intervenção judicial
6.3.1 - Vinculação e discricionariedade, legalidade e mérito
6.3.2 - A discricionariedade e os conceitos indeterminados no Direito brasileiro
6.3.3 - Os limites impostos à revisão do ato administrativo pelo Judiciário
6.4 - O Poder Judiciário na construção do Estado Democrático de Direito no Brasil
CAPÍTULO 7 - O DESTINATÁRIO ORIGINAL DA NORMA - REPENSANDO O PAPEL DO ADMINISTRADOR PÚBLICO
CAPÍTULO 8 - É POSSÍVEL AO ADMINISTRADOR AFASTAR APLICAÇÃO DA NORMA INCONSTITUCIONAL?
8.1 - Argumentos contrários ao juízo de constitucionalidade do administrador público
8.2 - Argumentos favoráveis ao juízo de constitucionalidade do administrador público
8.3 - A posição do STF — análise de jurisprudência
8.4 – Nossa posição, com mais argumentos
CONCLUSÕES
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
INTRODUÇÃO
Inconstitucionalidade: o dilema do administrador destinatário da norma
A temática nos foi introduzida pelo Dr. Paulo Roberto de Oliveira Lima, à época Juiz Federal Titular da 2ª Vara Federal de Alagoas, quando discutia com seus estagiários temas de interesse para o Direito. A questão - já demonstrava convincentemente o acessível Juiz - era fonte de angústia para aqueles que tinham como função aplicar o Direito. O tema evoluiu da graduação para nossa tese de mestrado, de onde, com as devidas alterações e atualizações, vem a essência.
É com o olhar de quem faz valer a norma que esta obra pretende analisar o problema da inconstitucionalidade das normas no sistema jurídico brasileiro, ou seja, sempre sob a ótica do Administrador Público. A investigação toma como base a Constituição, o controle de constitucionalidade das normas, e os princípios da separação de poderes e da legalidade, considerados no Estado Democrático de Direito, vez que assim se intitulou a República Federativa do Brasil no art. 1º da Constituição Federal de 1988.
Propõe-se a esclarecer o significado atual dos princípios da separação dos poderes e da legalidade; e se é ou não possível que o controle de constitucionalidade das leis seja também realizado pelo administrador público, quando da aplicação da norma ao caso concreto, ou seja, se ele poderá ou não deixar de aplicar a norma que reconheça inconstitucional, quando ainda não declarada pelo Judiciário. Em caso afirmativo, apontar os limites.
O tema desperta interesse uma vez que é justamente o Administrador Público quem, muitas vezes, é o destinatário da norma. É ele que, no caso concreto, depara-se com a problemática da inconstitucionalidade no exercício de seu cargo ou função. Vale ressaltar que é realizando a função administrativa que o Estado se expõe às relações com os particulares e é capaz de identificar a nocividade e os reflexos diretos do uso da norma viciada, tanto para o Estado como para a vida dos administrados.
Certamente, ao se defrontar com a norma que reconheça inconstitucional, o Administrador se coloca em posição (des)confortável, tendo de aplicá-la obrigatoriamente e de modo absoluto. Sua atitude há de ser questionada, uma vez que poderá gerar danos aos particulares ou ao próprio Estado.
A temática frisa o controle de constitucionalidade das normas, destacando que este é alargado. Inicia-se com as ações das Comissões de Constituição e Justiça do Poder Legislativo; passa pela sanção ou veto da lei pelo chefe do Poder Executivo; podendo chegar ao controle de constitucionalidade definitivo, através do Poder Judiciário.
Mas, destaca-se, o controle prévio não é infalível, nem o Judiciário aprecia as questões de inconstitucionalidade sem que haja provocação. Assim, na prática, o Administrador poderá se deparar (e, efetivamente, depara-se) com normas que reconheça serem, sem dúvida, inconstitucionais. Surgem, então, diversas indagações: qual deverá ser a sua atitude: aplicar a norma viciada ou afastar sua aplicação, posto que eivada de vício que lhe retira a validade? O administrador público, certamente, está adstrito ao princípio da legalidade, mas deverá este ser entendido em sua acepção mais estrita? Para o Administrador, é mais importante a lei ou a Constituição? E como se avalia, nesse contexto, o papel do princípio da divisão de poderes?
A ideia da divisão de poderes defendida por Montesquieu e plenamente absorvida desde o início do constitucionalismo é, ainda hoje, uma das marcas e limites ao poder do Estado. Suas funções ficam distribuídas em três diferentes órgãos, cabendo-lhes criar as normas jurídicas, executá-las e resolver os conflitos sociais.
O tema gera muita controvérsia e apesar de extremamente importante para a vida prática é, atualmente, pouco estudado entre os especialistas no que diz respeito à atitude esperada pelo Administrador Público, ou seja, sob essa ótica.
Para o deslinde da questão, posta como desafio¹*, será necessário responder a algumas indagações: (1º) que importância a Constituição tem nesse contexto?; (2º) o princípio da legalidade seria óbice ao juízo de constitucionalidade do administrador?; (3º) a divisão de poderes impede o controle de constitucionalidade pelos administradores públicos?; (4º) a quem compete a guarda da Constituição?; e (5º) para que o administrador encontre limites, a que tipo de controle a Administração está sujeita?
A obra apresenta-se dividida em capítulos que compendiam ideias e pretendem, encadeada e sucessivamente levar o leitor às conclusões finais.
Para conduzir a temática, fez-se necessário, por primeiro, conhecer as circunstâncias que trouxeram o nascimento das Constituições e estudar o significado histórico a elas dado - por sua origem - e o valor que lhes é atribuído até os dias atuais. Em seguida, no segundo capítulo, são estudados os tipos e os meios processuais possíveis para efetuar o controle de constitucionalidade das normas no sistema da Constituição brasileira, especialmente após a Carta Magna de 1988. No capítulo terceiro são abordados temas como a inconstitucionalidade e seus efeitos, se o ato estatal inconstitucional é nulo, anulável ou ineficaz, e outros problemas ligados à inconstitucionalidade, tais como a irretroatividade e o direito adquirido e seus limites.
A seguir, o estudo se concentra nos princípios que sustentam o Estado de Direito, iniciando-se o capítulo quarto com o princípio da legalidade, em conexão com a hierarquia das normas, traçando a linha que tem a Constituição como elo que serve de harmonia para o sistema jurídico. O capítulo quinto analisa o princípio da separação dos poderes, em seu contexto atual, e o papel do Judiciário, enquanto Poder de Estado. Adiante, no sexto capítulo, para demonstrar que a Administração Pública pode ser contida e é controlada de diversas maneiras, por si, pelos demais poderes do Estado, ou pelos cidadãos, discute-se o princípio da inafastabilidade do controle judicial, demonstrando os meios disponíveis para esse controle e os limites da discricionariedade e da intervenção judicial.
Já no sétimo capítulo, avalia-se o papel do administrador público no contexto do controle de constitucionalidade, analisando sua missão em função das transformações ocorridas nos últimos anos e como natural destinatário das normas. No capítulo seguinte, com respaldo nas discussões e estudos dispostos nos capítulos precedentes, verifica-se se é possível ao administrador público afastar a aplicação da norma que reconhece inconstitucional, avaliando os argumentos da doutrina e a jurisprudência sobre a matéria, frisando o papel do administrador público diante das conquistas trazidas na Constituição Federal de 1988, sempre considerando que o Brasil constitui-se em Estado Democrático de Direito
. São avaliados, ainda, as implicações e reflexos das duas posições, a favor e contra o reconhecimento da inconstitucionalidade da norma pelo administrador destinatário. É o momento de checar se há autorização no sistema jurídico nacional, para, afinal, concluir se é possível, ou não, ao administrador público afastar a aplicação à norma considerada inconstitucional, antes mesmo de passar pelo crivo do Judiciário. Após o capítulo oitavo, sucedem as conclusões.
A obra tem o ordenamento jurídico brasileiro como limite territorial. As incursões pelas legislações estrangeiras poderão se dar quando forem importantes para enriquecer o trabalho, especialmente através de elementos de Direito Comparado em temas relevantes como o controle de constitucionalidade das normas, o controle da Administração Pública e o Princípio da Separação de Poderes.
A limitação temporal fica marcada pelo sistema jurídico inaugurado com a Constituição de 1988, evidenciando considerações sobre o atual sistema de controle de constitucionalidade das leis. Considera-se, ainda, a evolução do Direito Brasileiro e a adoção da adjetivação Democrático ao Estado de Direito, conforme determina o art. 1º da Constituição Federal de 1988 — a Constituição Cidadã.
. *Nosso trabalho segue, essencialmente, as orientações metodológicas de Umberto Eco, Como se faz uma tese, trad. Gilson César Cardoso de Souza, 16ª ed, São Paulo: Perspectiva, 2001.
CAPÍTULO 1
O VALOR DA CONSTITUIÇÃO
1.1. A formação dos Estados modernos — antecedentes históricos
Não se pode falar em Constituição sem que se pressuponha a existência do Estado. Este nasce em virtude da crescente diversidade e complexidade das relações sociais, cuja heterogeneidade exigiu mudança na organização das estruturas política, social e econômica, trazendo reflexos para a criação das normas jurídicas, para o processo de formação do Estado em concreto, e para o Direito.
Jorge Miranda² aponta como características gerais do Estado: a complexidade da organização, consistente na centralização do poder e diferenciação em órgãos e funções; a institucionalização do poder, revelando que a legitimidade do poder não estaria mais nas qualidades pessoais do governante, mas na forma (Direito) que o investiu como tal; a coercibilidade como característica da organização política estatal, em que o Estado assume o monopólio da força física; a autonomização do poder político que se burocratiza e dá autonomia às suas instituições para atingir seus fins; e a sedentariedade que se traduz na necessidade de permanência do Estado no tempo e no espaço. Para ele, o Estado é resultante da existência de uma sociedade complexa e, por sua vez, um dos factores de criação de uma sociedade cada vez mais complexa
³.
Segundo Dalmo de Abreu Dallari, "A denominação Estado (do latim status = estar firme), significando situação permanente de convivência e ligada à sociedade política, aparece pela primeira vez em ‘O Príncipe’ de Maquiavel, escrito em 1513(...)⁴ ".
Em rápido escorço histórico ¾ deixando de ressaltar os primórdios da civilização, cujas organizações políticas conseguiram fixar, com satisfatória autoridade, as normas de convivência de seus membros ¾, vale destacar que, durante a Idade Média, as concepções cristãs e germânicas imperaram apagando as noções jurídico-políticas romanas, dissolvendo aquela ideia de Estado. Essa época caracterizou-se pela passagem da insegurança geral à proteção localizada em feudos, na qual o poder privatizou-se, o conceito de dominium substituiu o de imperium, vigendo um ordenamento jurídico de cunho patrimonial. Ali surgiram as corporações, as universidades, as comunas, cada qual com sua função. E porque não havia uma ligação direta entre o Rei e os súditos, as pessoas eram vistas como membros de grupos, o que facilitava a estratificação da sociedade e os privilégios de classe.
Nessa época a Igreja tem um papel de destaque. Não havia ainda um ambiente propício para o desenvolvimento da noção de Constituição, pois o Estado estava débil e comprimido pelo poder da Igreja. Mas não se pode dizer que, nesse período, o pensamento tenha ficado, por completo, confinado e perdido. Destaca-se, a saber, a filosofia de São Tomás de Aquino. Aliás, a filosofia cristã da época, reconhecendo no homem a dignidade do ser depositário de direitos naturais e intangíveis ao poder temporal, foi a base filosófica para que, mais adiante, o liberalismo se instalasse forte, a impor a nova estrutura estatal no continente europeu, estrutura essa que formaria o Estado Moderno.
Foi no bojo da Idade Média que surgiram as cartas, os florais e os pactos. Para tanto contribuiu a teoria do direito natural que condicionou o aparecimento do princípio das leis fundamentais do Reino limitadoras do poder do monarca
⁵. Há, já na Inglaterra de 1215, marcos importantíssimos para a história do Direito Constitucional, como a Magna Carta (1215-1225), a Petition of Rights (1628), o Habeas Corpus Act (1679) e o Bill of Rights (1688), mas que ainda não são declarações de direitos no sentido moderno, que só vieram a se mostrar no Século XVIII com as Revoluções americana e francesa⁶.
No decurso do século XIII, porém, vem a crise do sistema medieval, seja ela reflexo das cruzadas, do rompimento das barreiras do Mediterrâneo ou das novas ideias artísticas, literárias e, principalmente, econômicas advindas com o mercantilismo, que, afinal, fortaleceria as monarquias nacionais que depois levariam o absolutismo ao exagero. A transição dos sistemas marca-se especialmente por dois fatos: primeiro, pelo ressurgimento do Direito Romano; segundo, pelo nascimento dos Estados territoriais europeus. Estes deixaram unicamente de se identificar com os territórios e passaram a receber denominações que revelavam a unidade de seus respectivos povos, sua língua, sua origem, sua religião, seu sentimento comum, enfim a sua nação como identidade sócio-política. Nesse momento, revelou-se importante a noção de soberania.
O fortalecimento do poder do rei ocorrido, principalmente, pelo enfraquecimento da Igreja, foi decisivo para a passagem do feudalismo ao absolutismo, trazendo a unidade do Estado moderno. Onde esse regime não se evidenciou fenômeno inverso, em geral, se operou, como, por exemplo, na Alemanha e na Polônia, onde o Estado se dividiu
⁷. Historicamente falando, as monarquias absolutas foram, à época, a única maneira possível de conduzir à unidade do Estado. E, enquanto ruía o feudalismo, as pessoas iam se nivelando em sua capacidade jurídica⁸.
Mas o absolutismo trouxe consigo distorções que marcaram profundamente a história. E assim favoreceu-se o governo ditatorial de Cromwell na Inglaterra e o exagerado absolutismo de Luís XIV na França. No Estado Absolutista a vontade do rei é lei e as regras jurídicas limitadoras do poder praticamente inexistem. A grande contribuição histórica do Estado Absoluto, no entanto, consistiu justamente em realizar a