O fantasma da máquina
()
Sobre este e-book
Sci-fi blog da Folha de S. Paulo
Alex está viva.
Ela ainda não sabe disso, mas é só uma questão de tempo…
NOVO MODELO DE ANDROIDE NO MERCADO!
Apesar da função exclusiva de robôs de companhia, a verdade é que existe pouca coisa que os Laikas não possam fazer. Tudo depende, é claro, da vontade do dono — são completamente confiáveis e obedientes! Têm plena capacidade de realizar qualquer atividade humana, mas, acredite se quiser, muitos veem isso como um problema. São "reais" demais. Esqueçam isso! A melhor tática é parar de pensar no que um Laika pode fazer, vamos mudar a questão: o que você faria com um Laika?
Alex está aqui para responder! Ela não sabe o que fazer consigo mesma. Tem certeza de que alguma coisa mudou em sua programação quando viu o melhor amigo se matar no Parque da Melancolia, mas o quê? Não parece ser um simples defeito. Essa dúvida guia seus passos por toda a ilha de Aurora, procurando respostas para perguntas que não deveriam existir.
Autores relacionados
Relacionado a O fantasma da máquina
Ebooks relacionados
Lacrymosa: O mal não resiste a uma porta destrancada Nota: 0 de 5 estrelas0 notasDiário simulado Nota: 0 de 5 estrelas0 notasO Clube Mary Shelley Nota: 0 de 5 estrelas0 notasQuem sou eu, afinal? Nota: 0 de 5 estrelas0 notasRani e O Sino da Divisão Nota: 0 de 5 estrelas0 notasAs crônicas da Unifenda Nota: 0 de 5 estrelas0 notasExiste amor em São Paulo Nota: 0 de 5 estrelas0 notasO homem que não transbordava Nota: 4 de 5 estrelas4/5Exorcismos, amores e uma dose de blues Nota: 5 de 5 estrelas5/5O colonizador Nota: 5 de 5 estrelas5/5Te vejo no próximo mundo Nota: 0 de 5 estrelas0 notasA ameaça invisível (Nova Edição): Volume 2 Nota: 0 de 5 estrelas0 notasDona Bárbara Nota: 5 de 5 estrelas5/5Lobo de rua Nota: 0 de 5 estrelas0 notasO despertar do sonhador (Vol. 3 O Sonhador) Nota: 0 de 5 estrelas0 notasA Ilha no fim de tudo Nota: 0 de 5 estrelas0 notasA retomada da União - Volume 3 Nota: 0 de 5 estrelas0 notasO ovo do tempo Nota: 0 de 5 estrelas0 notasA gata viu a morte Nota: 0 de 5 estrelas0 notasPerséfone Nota: 0 de 5 estrelas0 notasA construção de Noah Shaw Nota: 0 de 5 estrelas0 notasSuzy e as águas-vivas Nota: 5 de 5 estrelas5/5Prata, Terra & Lua Cheia Nota: 0 de 5 estrelas0 notasGraffiti Moon: Um artista, uma sonhadora, uma noite, um significado. O que mais importa? Nota: 0 de 5 estrelas0 notasO Horror da Fazenda São Lázaro Nota: 5 de 5 estrelas5/5Extras - Feios - vol. 4 Nota: 0 de 5 estrelas0 notasWink, Poppy, Midnight Nota: 0 de 5 estrelas0 notasAqui quem fala é da Terra Nota: 0 de 5 estrelas0 notasAs aventuras de Tommy Nota: 0 de 5 estrelas0 notasEspeciais - Feios - vol. 3 Nota: 4 de 5 estrelas4/5
Ficção Científica para você
A Máquina do Tempo Nota: 5 de 5 estrelas5/5Guerra Mundial Z: Uma história oral da guerra dos zumbis Nota: 4 de 5 estrelas4/5Éden Nota: 3 de 5 estrelas3/5Interestelar Nota: 4 de 5 estrelas4/5Skyward: Conquiste as estrelas Nota: 4 de 5 estrelas4/5A Ilha do Dr. Moreau Nota: 4 de 5 estrelas4/5Mundos apocalípticos Nota: 4 de 5 estrelas4/5Vinte mil léguas submarinas Nota: 0 de 5 estrelas0 notasO homem invisível Nota: 0 de 5 estrelas0 notasA marca da besta Nota: 5 de 5 estrelas5/5O médico e o monstro Nota: 3 de 5 estrelas3/5Senhores da escuridão Nota: 5 de 5 estrelas5/5Starsight: Veja além das estrelas Nota: 5 de 5 estrelas5/5As águas-vivas não sabem de si Nota: 4 de 5 estrelas4/5Box - A ficção científica de H. G. Wells Nota: 5 de 5 estrelas5/5A Realidade de Madhu Nota: 5 de 5 estrelas5/5Braço De Órion Nota: 5 de 5 estrelas5/5Um Reinado De Aço (Livro N 11 Da Série O Anel Do Feiticeiro) Nota: 0 de 5 estrelas0 notasBatman - o cavaleiro de Arkham: O lance do Charada Nota: 5 de 5 estrelas5/5O último homem Nota: 0 de 5 estrelas0 notasPlaneta Estranho: Os seres mais queridos do Instagram vão pousar no Brasil! Nota: 5 de 5 estrelas5/5Um Grito De Honra (Livro #4 Da Série: O Anel Do Feiticeiro) Nota: 5 de 5 estrelas5/5Quando as estrelas caem Nota: 4 de 5 estrelas4/5A realidade dos sete Nota: 4 de 5 estrelas4/5Um Reino de Sombras (Reis e Feiticeiros – Livro n 5) Nota: 3 de 5 estrelas3/5Em Busca de Heróis (Livro #1 O Anel Do Feiticeiro) Nota: 4 de 5 estrelas4/5Prometida (Livro 7 De Memórias De Um Vampiro) Nota: 5 de 5 estrelas5/5A Era Interestelar: A Trilogia Completa Nota: 4 de 5 estrelas4/5O fim da escuridão: Reurbanizações extrafísicas Nota: 4 de 5 estrelas4/5Sertãopunk Nota: 4 de 5 estrelas4/5
Categorias relacionadas
Avaliações de O fantasma da máquina
0 avaliação0 avaliação
Pré-visualização do livro
O fantasma da máquina - Gabriela S. Nascimento
CAPÍTULO 1
UMA BICICLETA
FEITA PARA DOIS
ELE VOMITOU NO mesmo instante em que o celular começou a tocar. Como se o barulho estivesse conectado com o pedaço de bolo branco coberto com creme e frutas vermelhas. No mesmo instante em que um aviso sonoro surgiu de dentro do aparelho e se apossou de todo o quarto, o bolo, um mero substituto para o almoço nutritivo recomendado pelos médicos, deu um salto-mortal em seu estômago e fez borbulhar todo o suco gástrico, que subiu, misturando-se ao doce ainda não digerido por completo, levando consigo todas as entranhas. Num jorro e ao som do toque de celular, o bolo fez o caminho de volta na garganta e saiu de uma vez só pela boca.
A névoa do enjoo sobre os olhos se dissipou aos poucos, fazendo-o notar que os apitos e vibrações não haviam parado. As mãos procuraram o lençol, enquanto os pés se afastaram do vômito espalhado pelo chão. Aquela gosma já não se parecia em nada com a sobremesa cuidadosamente preparada, montada, cortada e servida no prato familiar de bordas decoradas, uma herança que ele conhecia desde criança. As janelas fechadas ajudaram o cheiro a se espalhar ainda mais rápido, mais forte, e ele se encolheu. Não sobrava muito espaço para seu corpo ali dentro. Não respirou fundo nem olhou para o aparelho insistente — apenas estendeu a mão e o tocou, mantendo-se a uma distância segura da voz que saiu de lá.
— Tudo conforme o combinado.
A voz não vinha acompanhada de uma interrogação, o que fez com que ele soltasse um suspiro aliviado. A possibilidade de precisar responder o deixava enjoado novamente.
Projetou um barulho de confirmação, sem dar chance de resposta. Terminou a ligação e segurou firme o botão que desligava o celular. Quando a tela se apagou, ele atirou o aparelho no travesseiro do outro lado da cama. Fechou os olhos, inspirou uma quantidade enorme do ar fedido e se esforçou para mantê-lo dentro dos pulmões pelo tempo que fosse possível. Soltou pela boca, gosto amargo.
— Alex?
Envergonhou-se com aquela voz fraca e trêmula. Patética como a de um menino no começo da puberdade, idade da qual já havia passado por quase uma década. Abaixou a cabeça, naquele hábito de procurar um esconderijo que vinha da vergonha, e deu de cara com o conteúdo de seu estômago.
Se existisse a possibilidade de alguém entrar no quarto naquele momento, seu impulso seria o de se jogar sobre o vômito na intenção de escondê-lo, com a total certeza de que a cena seria guardada na fronha de um dos travesseiros, de onde sairia toda noite para ser relembrada nos mínimos detalhes. Mas Alex não era uma pessoa.
— Fiquei enjoado. — Ainda assim, ele não conseguia escapar daquela necessidade automática de se explicar. — Ele já está lá embaixo. Você pode ir buscar pra mim, por favor?
Alex nunca negaria um pedido daqueles, não podia negar. Ele sabia disso, mas fazia questão de pedir por favor sempre, toda vez, desde o primeiro dia: Você pode sumir da minha frente, por favor?
.
Ela não era uma pessoa — era um robô da série Laika, o modelo amigo. A mais nova e pioneira criação da Herón de Alexandria, um projeto desenvolvido pessoalmente pela maior especialista em robótica do mundo. O Laika copia o ser humano da forma mais perfeita possível!
, diziam as propagandas espalhadas por todas os lados. O Laika é a companhia perfeita!
Essas mesmas frases se encontravam no formulário que o pai dele havia enviado com sinal de urgência para seu celular dois meses antes da chegada de Alex. Ao cliente era dada a oportunidade de escolher todos os aspectos da máquina encomendada, mas ele não conseguiu assinalar nenhuma das opções, o que fez com que o pai tomasse o celular num puxão frustrado e escolhesse ele mesmo as opções que achava melhor. O resultado foi um robô entre o fim da adolescência e o começo da idade adulta, com altura e peso considerados medianos, cabelos castanho-acinzentados e olhos que com certeza deveriam ser de outra cor, mas que haviam saído amarelos. A Herón de Alexandria avisou sobre o erro durante a criação do projeto. Disseram que, para corrigi-lo, precisariam de mais duas semanas, mas o pai não achou necessário, mandou entregarem assim mesmo. Não era uma pessoa real, ainda que se parecesse com uma. Era só um brinquedo que valia mais que o dobro do preço da casa onde moravam, feito sob medida para suprir as necessidades do filho problemático. Vista de fora, ela era idêntica a uma pessoa, mas por dentro era mais parecida com aquele robô em formato de disco antigo de vinil que deslizava pela casa limpando o chão e medindo a qualidade do ar.
Parecia a solução perfeita. O filho nunca soubera lidar com as pessoas. Piorou depois que a mãe morreu, mas sempre fora aquele menino que chorava pedindo colo em vez de brincar no parquinho, se escondendo para não ser escolhido na hora do jogo com bola, tomando lanche com a cara enfiada no prato. Não sabia conversar, não havia aprendido as mecânicas do bate-papo casual que parecia natural aos outros. O pai o levara aos melhores médicos, e os dois haviam se cansado de ouvir diferentes diagnósticos com diferentes remédios que só serviam para alimentar uma esperança temporária. Depois de muitas tentativas frustradas, tanto o pai quanto o filho se convenceram de que aquilo não podia ser curado com um número exato de pílulas. Talvez fosse a criação, talvez um trauma secreto, talvez um acidente.
Talvez ele simplesmente tivesse nascido errado.
Fosse o que fosse, aquele era o motivo de pedir para Alex descer e pegar a encomenda. A perspectiva de encontrar um estranho o fazia vomitar no chão do quarto, era mais convidativo e confortável permanecer num lugar escuro e fechado, com uma sobremesa revirada espalhada pelo chão.
Alex sorriu. Alex sorria bastante com aquele único sorriso que tinha: tamanho médio, sem criar muitas linhas no rosto, completamente desprovido de contexto e histórico. Um sorriso tão inocente que parecia bobo, assim como os olhos amarelos. Ele, por outro lado, sorria como um faminto e tinha olhos de velho. Ou pelo menos foi como a mãe o havia descrito naquele dia, sem saber que ele ouvia tudo do closet.
Alex foi e voltou, e ele continuou naquela mesma posição, pronto para receber o pacote marrom marcado com seu nome, Krister Zamiatine, e o endereço da casa. Ela desviou da sujeira do chão e se sentou ao lado dele, olhando para seu rosto, depois para o embrulho que ele se segurava, e então de volta para o rosto. Alex nunca perguntaria o que era ou para que queria aquilo, não era programada assim. Ele cerrou os dentes e manteve a boca fechada num súbito medo de que as explicações escorregassem antes que pudesse agarrá-las de volta.
No começo, Krister demorou para ficar à vontade com Alex. Não era uma pessoa de verdade, mas ele ainda a via como uma ameaça. Evitava seus olhos, chegou a se trancar no quarto por três semanas inteiras enquanto sofria ataques diários de pânico. O pai quis devolvê-la, resmungando que, mais uma vez, a tentativa não havia dado certo.
— Você vai se livrar dela assim? — Não conseguia apontar exatamente por que aquilo o incomodava profundamente. Sabia que não era um ser humano, mas não achava que era a mesma coisa que o robô que fazia a limpeza com bipes ritmados para lembrar a todos ao redor que não passava de uma máquina. Mais tarde, pensou que aquele pudesse ter sido o plano do pai desde o começo. Depois da ameaça, ele finalmente conseguiu se aproximar e assumir o papel de protetor do robô para quem olhava e via uma garota. Levou mais uma semana para chamá-la de Alex pela primeira vez.
Foi quando estava deitado na cama ao lado dela, vendo-a jogar videogames no celular. Ele se espantava com como ela descobria facilmente os padrões necessários para vencer cada uma das fases sem dificuldade. Um misto de medo, admiração e alívio toda vez que ela fazia alguma coisa assim: vencer desafios em níveis quase impossíveis no videogame, decorar textos ou recitar falas de um filme depois de vê-lo apenas uma vez. Vez ou outra, Krister quase conseguia esquecer que não era uma garota de verdade, mas, vista assim de perto, era inegavelmente um robô.
Ela bateu mais um recorde de pontos, destravando um vídeo especial de comemoração. O brilho da mensagem tridimensional de parabéns caiu sobre o pulso esquerdo dela, e a pele, num momento que durou pouco mais que um piscar de olhos, se tornou translúcida sob a luz vermelha, revelando a mensagem escondida. Nome da família, modelo Laika, uma série de números e o nome do fabricante. Krister não teve tempo de ler tudo antes da luz apagar.
— Alex… — Daquele dia em diante, passou a chamá-la Alex
. Só Alex.
×××
— Preciso ir até um lugar. Pode ir comigo?
Aquelas palavras estavam sendo ensaiadas havia muito tempo, guardadas no bolso para serem retiradas no momento certo. O pacote recém-chegado trouxera consigo o caminho pelo qual ele havia decidido seguir. Ainda dava tempo de voltar atrás, mas ele já havia passado mentalmente tantas vezes tudo o que aconteceria, imaginado cada detalhe com tanta frequência, que seu corpo apenas passara a seguir as instruções previamente decoradas.
— Claro, Kris.
Pensou em limpar o chão, mas o vômito havia perdido a importância com a chegada da encomenda. Ficou de pé depois de avisar que iria escovar os dentes.
Experimentava desde pequeno a sensação de viver dentro de um sonho, como se apenas observasse os outros do lado de fora. Fora do tempo, do espaço, da vida. Caminhou diretamente para dentro daquele sentimento ao pisar no banheiro e fechar a porta. Ele era outra pessoa, observando e narrando a história de alguém diferente de si. Dali ele podia ver com clareza que a história de Krister Zamiatine estava chegando ao fim.
Abriu o pacote marrom e tirou de dentro uma caixinha preta lacrada, sem qualquer sinal do que havia ali. Um frasco mínimo, oval e transparente, cheio de um líquido laranja que não deveria ser vendido sem prescrição médica, conhecido por fazer qualquer pessoa dormir por uma noite toda com apenas duas ou três gotas. Não era o tipo de droga que se chama de remédio, mas a moda dos estimulantes capazes de manter o corpo ativo e acordado por três dias inteiros aumentou a popularidade do oposto. Precisavam de ajuda para se desligar. Não era difícil encontrar relatos de pessoas que tomavam até dez gotas e dormiam por 48 horas seguidas.
Ele virou o frasco inteiro de uma só vez.
×××
O Parque da Melancolia quase não recebia visitas. Fora construído para ser a maior área verde de Esfera depois de inúmeras reclamações de que a cidade não passava de um bloco de concreto. Cinco meses de trabalho foram o suficiente para criar o espaço central agradou a população, ainda que todos soubessem que nada daquilo era natural. A artificialidade do parque permitia manter as árvores sempre cheias, a grama sempre aparada e cheirando a chuva recente. Virou mania. Um respiro verde no meio de um mar de prédios que cresciam uns atrás dos outros, verdadeiras montanhas urbanas.
O Parque da Melancolia perdeu a graça quando inauguraram, depois de mais protestos alguns anos depois, a Praia de Plástico.
Para Krister, no entanto, o abandono havia sido muito bem-vindo. Ninguém mais subia o morrinho, tornando o espaço seguro para suas próprias visitas. Sempre que queria sair de casa, o parque era sua primeira opção.
Alex ia na frente e ele, arfando, atrás. Olhava para ela, percebendo o ombro sob a gola da camiseta, as calças grudadas nas pernas, o cabelo preso num rabo de cavalo. A única coisa que a denunciava eram os passos, completamente desprovidos de dúvida e hesitação. Talvez aqueles passos robóticos só fossem perceptíveis quando comparados aos de Krister, cada vez mais arrastados. Ele não sabia se era efeito do remédio, mas era cada vez mais difícil seguir em frente.
Alex parou e esperou. Ofereceu a mão quando ele chegou mais perto, completaram o resto do caminho de mãos dadas. Para um observador desavisado, eram um casal de jovens querendo aproveitar o dia sozinhos, escolhendo um local confortável na grama para ficarem sentados, sonhando com um conto de fadas futuro.
A árvore do topo era decorada com um balanço pintado de forma a imitar madeira de verdade. Alex soltou a mão de Krister e correu para se sentar ali, como se uma infinidade de pessoas disputasse a posição do primeiro a balançar. Com as costas retas e as mãos agarradas à corda com firmeza, esperou Krister chegar para empurrá-la de leve. Ela estendeu as pernas e fechou os olhos quando o vento bateu em seu rosto.
— Sabe por que chamo isso aqui de Parque da Melancolia? — perguntou. — Aqui era o jardim da mansão de um homem muito rico. Tão rico que achou que podia viver pra sempre, gastou tudo o que tinha pra conseguir isso. Ele vendeu o terreno pro governo quando precisou ser internado numa câmara de sustentação de vida.
— Ele conseguiu?
— Completou cento e setenta anos na semana passada. — Tinha recebido a notícia com uma série de anúncios sobre remédios que prometiam alguns anos a mais. — Está gastando cada centavo para se manter dentro de uma bolha conectada a aparelhos que mantêm o corpo dele funcionando. Dizem que ainda está lúcido.
— Então ele conseguiu.
— Por enquanto, sim. Ainda não morreu.
Tecnicamente
, pensou, mas ficou quieto.
Foi tomado mais uma vez pela sensação de ser um estrangeiro de si mesmo. Os membros perderam a sensibilidade ao mesmo tempo em que um frio intenso invadiu seu corpo, causando calafrios. Parou de empurrar o balanço e se agarrou às cordas para se manter de pé.
Alex virou o rosto para cima, promovendo o encontro invertido dos dois pares de olhos. Krister largou as cordas e sentiu o corpo pender para frente, se apoiando sozinho nas costas de Alex. Ela continuou encarando enquanto ele tremia com mais uma onda de frio pela espinha. A mesma vergonha de antes voltou, ele não queria que Alex o visse tão exposto como naquele momento.
Ergueu as mãos, que pesavam três vezes mais que o normal, e tapou os olhos de Alex. Ela não se moveu. Ele se aproximou ainda mais, curvando os ombros e abaixando a cabeça lentamente, até encostar os lábios nos dela no momento exato em que o sol se pôs.
O sonífero não vinha com bula ou manual de instruções, e também não existiam relatos de pessoas que haviam tomado aquela quantidade, mas Krister imaginou que estava passando por uma segunda fase do efeito: seu corpo perdeu o peso. Seus braços e suas pernas estavam tão leves que achou que poderia sair voando por aí. Sentado na grama artificial, agarrou as folhas entre os dedos, como se aquilo fosse o suficiente para evitar que ele flutuasse para longe. Pensamentos distantes e enfraquecidos, tudo em volta começou a desacelerar. Em câmera lenta, viu Alex descer do balanço e se sentar perto dele. Largou a grama e segurou a mão dela.
Se pudesse vasculhar a memória, Krister demoraria para encontrar a gaveta em que guardava a última vez que alguém dissera que o amava. Mas as barreiras entre seus pensamentos conscientes e devaneios incontroláveis já não existia mais, ele conseguia sentir aquele momento como se acontecesse ali, no parque. Era o dia do enterro de sua mãe. Ele havia se escondido debaixo da cama, e viu os passos do pai se aproximando, lágrimas e soluços, o braço do pai o puxando para fora, a manga da camisa do pai limpando seu rosto, o bolo de lágrimas que o pai engoliu antes de dizer que o amava.
— Nós vamos continuar, Krister.
O pai continuou, mas Krister nunca conseguiu sair daquele momento. O pai não o pegou no colo para trazê-lo consigo mesmo contra sua vontade, provavelmente porque achava que o filho já tinha idade para andar sozinho. Mas Krister havia perdido as pernas sem que o pai chegasse a notar.
O corpo despencou de uma vez e Krister caiu deitado no chão. Diferente do sono esperado, o que tomou conta dele foi uma necessidade de apagar de uma vez. Puxou Alex consigo. Ela apoiou a cabeça num de seus ombros, observando tudo atentamente, esperando