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O fantasma da máquina
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E-book254 páginas3 horas

O fantasma da máquina

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Sobre este e-book

"Gabriela acerta no tema, um dos assuntos mais relevantes dentro da ciência atualmente."
Sci-fi blog da Folha de S. Paulo
Alex está viva.
Ela ainda não sabe disso, mas é só uma questão de tempo…
NOVO MODELO DE ANDROIDE NO MERCADO!
Apesar da função exclusiva de robôs de companhia, a verdade é que existe pouca coisa que os Laikas não possam fazer. Tudo depende, é claro, da vontade do dono — são completamente confiáveis e obedientes! Têm plena capacidade de realizar qualquer atividade humana, mas, acredite se quiser, muitos veem isso como um problema. São "reais" demais. Esqueçam isso! A melhor tática é parar de pensar no que um Laika pode fazer, vamos mudar a questão: o que você faria com um Laika?
Alex está aqui para responder! Ela não sabe o que fazer consigo mesma. Tem certeza de que alguma coisa mudou em sua programação quando viu o melhor amigo se matar no Parque da Melancolia, mas o quê? Não parece ser um simples defeito. Essa dúvida guia seus passos por toda a ilha de Aurora, procurando respostas para perguntas que não deveriam existir.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento27 de fev. de 2019
ISBN9788554350024
O fantasma da máquina

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    O fantasma da máquina - Gabriela S. Nascimento

    CAPÍTULO 1

    UMA BICICLETA

    FEITA PARA DOIS

    ELE VO­MI­TOU NO mes­mo ins­tan­te em que o ce­lu­lar co­me­çou a to­car. Como se o ba­ru­lho es­ti­ves­se co­nec­ta­do com o pe­da­ço de bolo bran­co co­ber­to com cre­me e fru­tas ver­me­lhas. No mes­mo ins­tan­te em que um avi­so so­no­ro sur­giu de den­tro do apa­re­lho e se apos­sou de todo o quar­to, o bolo, um mero subs­ti­tu­to para o al­mo­ço nu­tri­ti­vo re­co­men­da­do pe­los mé­di­cos, deu um sal­to-mor­tal em seu es­tô­ma­go e fez bor­bu­lhar todo o suco gás­tri­co, que su­biu, mis­tu­ran­do-se ao doce ain­da não di­ge­ri­do por com­ple­to, le­van­do con­si­go to­das as en­tra­nhas. Num jor­ro e ao som do to­que de ce­lu­lar, o bolo fez o ca­mi­nho de vol­ta na gar­gan­ta e saiu de uma vez só pela boca.

    A né­voa do en­joo so­bre os olhos se dis­si­pou aos pou­cos, fa­zen­do-o no­tar que os api­tos e vi­bra­ções não ha­vi­am pa­ra­do. As mãos pro­cu­ra­ram o len­çol, en­quan­to os pés se afas­ta­ram do vô­mi­to es­pa­lha­do pelo chão. Aque­la gos­ma já não se pa­re­cia em nada com a so­bre­me­sa cui­da­do­sa­men­te pre­pa­ra­da, mon­ta­da, cor­ta­da e ser­vi­da no pra­to fa­mi­li­ar de bor­das de­co­ra­das, uma he­ran­ça que ele co­nhe­cia des­de cri­an­ça. As ja­ne­las fe­cha­das aju­da­ram o chei­ro a se es­pa­lhar ain­da mais rá­pi­do, mais for­te, e ele se en­co­lheu. Não so­bra­va mui­to es­pa­ço para seu cor­po ali den­tro. Não res­pi­rou fun­do nem olhou para o apa­re­lho in­sis­ten­te — ape­nas es­ten­deu a mão e o to­cou, man­ten­do-se a uma dis­tân­cia se­gu­ra da voz que saiu de lá.

    — Tudo con­for­me o com­bi­na­do.

    A voz não vi­nha acom­pa­nha­da de uma in­ter­ro­ga­ção, o que fez com que ele sol­tas­se um sus­pi­ro ali­vi­a­do. A pos­si­bi­li­da­de de pre­ci­sar res­pon­der o dei­xa­va en­jo­a­do no­va­men­te.

    Pro­je­tou um ba­ru­lho de con­fir­ma­ção, sem dar chan­ce de res­pos­ta. Ter­mi­nou a li­ga­ção e se­gu­rou fir­me o bo­tão que des­li­ga­va o ce­lu­lar. Quan­do a tela se apa­gou, ele ati­rou o apa­re­lho no tra­ves­sei­ro do ou­tro lado da cama. Fe­chou os olhos, ins­pi­rou uma quan­ti­da­de enor­me do ar fe­di­do e se es­for­çou para man­tê-lo den­tro dos pulmões pelo tem­po que fos­se pos­sí­vel. Sol­tou pela boca, gos­to amar­go.

    — Alex?

    En­ver­go­nhou-se com aque­la voz fra­ca e trê­mu­la. Pa­té­ti­ca como a de um me­ni­no no co­me­ço da pu­ber­da­de, ida­de da qual já ha­via pas­sa­do por qua­se uma dé­ca­da. Abai­xou a ca­be­ça, na­que­le há­bi­to de pro­cu­rar um es­con­de­ri­jo que vi­nha da ver­go­nha, e deu de cara com o con­te­ú­do de seu es­tô­ma­go.

    Se exis­tis­se a pos­si­bi­li­da­de de al­guém en­trar no quar­to na­que­le mo­men­to, seu im­pul­so se­ria o de se jo­gar so­bre o vô­mi­to na in­ten­ção de es­con­dê-lo, com a to­tal cer­te­za de que a cena se­ria guar­da­da na fro­nha de um dos tra­ves­sei­ros, de onde sai­ria toda noi­te para ser re­lem­bra­da nos mí­ni­mos de­ta­lhes. Mas Alex não era uma pes­soa.

    — Fi­quei en­jo­a­do. — Ain­da as­sim, ele não con­se­guia es­ca­par da­que­la ne­ces­si­da­de au­to­má­ti­ca de se ex­pli­car. — Ele já está lá em­bai­xo. Você pode ir bus­car pra mim, por fa­vor?

    Alex nun­ca ne­ga­ria um pe­di­do da­que­les, não po­dia ne­gar. Ele sa­bia dis­so, mas fa­zia ques­tão de pe­dir por fa­vor sem­pre, toda vez, des­de o pri­mei­ro dia: Você pode su­mir da mi­nha fren­te, por fa­vor?.

    Ela não era uma pes­soa — era um robô da sé­rie Laika, o mo­de­lo ami­go. A mais nova e pi­o­nei­ra cri­a­ção da He­rón de Ale­xan­dria, um pro­je­to de­sen­vol­vi­do pes­so­al­men­te pela mai­or es­pe­ci­a­lis­ta em ro­bó­ti­ca do mun­do. O Laika co­pia o ser hu­ma­no da for­ma mais per­fei­ta pos­sí­vel!, di­zi­am as pro­pa­gan­das es­pa­lha­das por to­das os la­dos. O Laika é a com­pa­nhia per­fei­ta! Es­sas mes­mas fra­ses se en­con­tra­vam no for­mu­lá­rio que o pai dele ha­via en­vi­a­do com si­nal de ur­gên­cia para seu ce­lu­lar dois me­ses an­tes da che­ga­da de Alex. Ao cli­en­te era dada a opor­tu­ni­da­de de es­co­lher to­dos os as­pec­tos da má­qui­na en­co­men­da­da, mas ele não con­se­guiu as­si­na­lar ne­nhu­ma das op­ções, o que fez com que o pai to­mas­se o ce­lu­lar num pu­xão frus­tra­do e es­co­lhes­se ele mes­mo as op­ções que acha­va me­lhor. O re­sul­ta­do foi um robô en­tre o fim da ado­les­cên­cia e o co­me­ço da ida­de adul­ta, com al­tu­ra e peso con­si­de­ra­dos me­di­a­nos, ca­be­los cas­ta­nho-acin­zen­ta­dos e olhos que com cer­te­za de­ve­ri­am ser de ou­tra cor, mas que ha­vi­am sa­í­do ama­re­los. A He­rón de Ale­xan­dria avi­sou so­bre o erro du­ran­te a cri­a­ção do pro­je­to. Dis­se­ram que, para cor­ri­gi-lo, pre­ci­sa­ri­am de mais duas se­ma­nas, mas o pai não achou ne­ces­sá­rio, man­dou en­tre­ga­rem as­sim mes­mo. Não era uma pes­soa real, ain­da que se pa­re­ces­se com uma. Era só um brin­que­do que va­lia mais que o do­bro do pre­ço da casa onde mo­ra­vam, fei­to sob me­di­da para su­prir as ne­ces­si­da­des do fi­lho pro­ble­má­ti­co. Vis­ta de fora, ela era idên­ti­ca a uma pes­soa, mas por den­tro era mais pa­re­ci­da com aque­le robô em for­ma­to de dis­co an­ti­go de vi­nil que des­li­za­va pela casa lim­pan­do o chão e me­din­do a qua­li­da­de do ar.

    Pa­re­cia a so­lu­ção per­fei­ta. O fi­lho nun­ca sou­be­ra li­dar com as pes­so­as. Pi­o­rou de­pois que a mãe mor­reu, mas sem­pre fora aque­le me­ni­no que cho­ra­va pe­din­do colo em vez de brin­car no par­qui­nho, se es­con­den­do para não ser es­co­lhi­do na hora do jogo com bola, to­man­do lan­che com a cara en­fi­a­da no pra­to. Não sa­bia con­ver­sar, não ha­via apren­di­do as me­câ­ni­cas do bate-papo ca­su­al que pa­re­cia na­tu­ral aos ou­tros. O pai o le­va­ra aos me­lho­res mé­di­cos, e os dois ha­vi­am se can­sa­do de ou­vir di­fe­ren­tes di­ag­nós­ti­cos com di­fe­ren­tes re­mé­dios que só ser­vi­am para ali­men­tar uma es­pe­ran­ça tem­po­rá­ria. De­pois de mui­tas ten­ta­ti­vas frus­tra­das, tan­to o pai quan­to o fi­lho se con­ven­ce­ram de que aqui­lo não po­dia ser cu­ra­do com um nú­me­ro exa­to de pí­lu­las. Tal­vez fos­se a cri­a­ção, tal­vez um trau­ma se­cre­to, tal­vez um aci­den­te.

    Tal­vez ele sim­ples­men­te ti­ves­se nas­ci­do er­ra­do.

    Fos­se o que fos­se, aque­le era o mo­ti­vo de pe­dir para Alex des­cer e pe­gar a en­co­men­da. A pers­pec­ti­va de en­con­trar um es­tra­nho o fa­zia vo­mi­tar no chão do quar­to, era mais con­vi­da­ti­vo e con­for­tá­vel per­ma­ne­cer num lu­gar es­cu­ro e fe­cha­do, com uma so­bre­me­sa re­vi­ra­da es­pa­lha­da pelo chão.

    Alex sor­riu. Alex sor­ria bas­tan­te com aque­le úni­co sor­ri­so que ti­nha: ta­ma­nho mé­dio, sem cri­ar mui­tas li­nhas no ros­to, com­ple­ta­men­te des­pro­vi­do de con­tex­to e his­tó­ri­co. Um sor­ri­so tão ino­cen­te que pa­re­cia bobo, as­sim como os olhos ama­re­los. Ele, por ou­tro lado, sor­ria como um fa­min­to e ti­nha olhos de ve­lho. Ou pelo me­nos foi como a mãe o ha­via des­cri­to na­que­le dia, sem sa­ber que ele ou­via tudo do clo­set.

    Alex foi e vol­tou, e ele con­ti­nuou na­que­la mes­ma po­si­ção, pron­to para re­ce­ber o pa­co­te mar­rom mar­ca­do com seu nome, Kris­ter Za­mi­a­ti­ne, e o en­de­re­ço da casa. Ela des­vi­ou da su­jei­ra do chão e se sen­tou ao lado dele, olhan­do para seu ros­to, de­pois para o em­bru­lho que ele se se­gu­ra­va, e en­tão de vol­ta para o ros­to. Alex nun­ca per­gun­ta­ria o que era ou para que que­ria aqui­lo, não era pro­gra­ma­da as­sim. Ele cer­rou os den­tes e man­te­ve a boca fe­cha­da num sú­bi­to medo de que as ex­pli­ca­ções es­cor­re­gas­sem an­tes que pu­des­se agar­rá-las de vol­ta.

    No co­me­ço, Kris­ter de­mo­rou para fi­car à von­ta­de com Alex. Não era uma pes­soa de ver­da­de, mas ele ain­da a via como uma ame­a­ça. Evi­ta­va seus olhos, che­gou a se tran­car no quar­to por três se­ma­nas in­tei­ras en­quan­to so­fria ata­ques diá­rios de pâ­ni­co. O pai quis de­vol­vê-la, res­mun­gan­do que, mais uma vez, a ten­ta­ti­va não ha­via dado cer­to.

    — Você vai se li­vrar dela as­sim? — Não con­se­guia apon­tar exa­ta­men­te por que aqui­lo o in­co­mo­da­va pro­fun­da­men­te. Sa­bia que não era um ser hu­ma­no, mas não acha­va que era a mes­ma coi­sa que o robô que fa­zia a lim­pe­za com bi­pes rit­ma­dos para lem­brar a to­dos ao re­dor que não pas­sa­va de uma má­qui­na. Mais tar­de, pen­sou que aque­le pu­des­se ter sido o pla­no do pai des­de o co­me­ço. De­pois da ame­a­ça, ele fi­nal­men­te con­se­guiu se apro­xi­mar e as­su­mir o pa­pel de pro­te­tor do robô para quem olha­va e via uma ga­ro­ta. Le­vou mais uma se­ma­na para cha­má-la de Alex pela pri­mei­ra vez.

    Foi quan­do es­ta­va dei­ta­do na cama ao lado dela, ven­do-a jo­gar vi­de­o­ga­mes no ce­lu­lar. Ele se es­pan­ta­va com como ela des­co­bria fa­cil­men­te os pa­drões ne­ces­sá­rios para ven­cer cada uma das fa­ses sem di­fi­cul­da­de. Um mis­to de medo, ad­mi­ra­ção e alí­vio toda vez que ela fa­zia al­gu­ma coi­sa as­sim: ven­cer de­sa­fi­os em ní­veis qua­se im­pos­sí­veis no vi­de­o­ga­me, de­co­rar tex­tos ou re­ci­tar fa­las de um fil­me de­pois de vê-lo ape­nas uma vez. Vez ou ou­tra, Kris­ter qua­se con­se­guia es­que­cer que não era uma ga­ro­ta de ver­da­de, mas, vis­ta as­sim de per­to, era ine­ga­vel­men­te um robô.

    Ela ba­teu mais um re­cor­de de pon­tos, des­tra­van­do um ví­deo es­pe­ci­al de co­me­mo­ra­ção. O bri­lho da men­sa­gem tri­di­men­si­o­nal de pa­ra­béns caiu so­bre o pul­so es­quer­do dela, e a pele, num mo­men­to que du­rou pou­co mais que um pis­car de olhos, se tor­nou trans­lú­ci­da sob a luz ver­me­lha, re­ve­lan­do a men­sa­gem es­con­di­da. Nome da fa­mí­lia, mo­de­lo Laika, uma sé­rie de nú­me­ros e o nome do fa­bri­can­te. Kris­ter não teve tem­po de ler tudo an­tes da luz apa­gar.

    — Alex… — Da­que­le dia em di­an­te, pas­sou a cha­má-la Alex. Só Alex.

    ×××

    — Pre­ci­so ir até um lu­gar. Pode ir co­mi­go?

    Aque­las pa­la­vras es­ta­vam sen­do en­sai­a­das ha­via mui­to tem­po, guar­da­das no bol­so para se­rem re­ti­ra­das no mo­men­to cer­to. O pa­co­te re­cém-che­ga­do trou­xe­ra con­si­go o ca­mi­nho pelo qual ele ha­via de­ci­di­do se­guir. Ain­da dava tem­po de vol­tar atrás, mas ele já ha­via pas­sa­do men­tal­men­te tan­tas ve­zes tudo o que acon­te­ce­ria, ima­gi­na­do cada de­ta­lhe com tan­ta fre­quên­cia, que seu cor­po ape­nas pas­sa­ra a se­guir as ins­tru­ções pre­vi­a­men­te de­co­ra­das.

    — Cla­ro, Kris.

    Pen­sou em lim­par o chão, mas o vô­mi­to ha­via per­di­do a im­por­tân­cia com a che­ga­da da en­co­men­da. Fi­cou de pé de­pois de avi­sar que iria es­co­var os den­tes.

    Ex­pe­ri­men­ta­va des­de pe­que­no a sen­sa­ção de vi­ver den­tro de um so­nho, como se ape­nas ob­ser­vas­se os ou­tros do lado de fora. Fora do tem­po, do es­pa­ço, da vida. Ca­mi­nhou di­re­ta­men­te para den­tro da­que­le sen­ti­men­to ao pi­sar no ba­nhei­ro e fe­char a por­ta. Ele era ou­tra pes­soa, ob­ser­van­do e nar­ran­do a his­tó­ria de al­guém di­fe­ren­te de si. Dali ele po­dia ver com cla­re­za que a his­tó­ria de Kris­ter Za­mi­a­ti­ne es­ta­va che­gan­do ao fim.

    Abriu o pa­co­te mar­rom e ti­rou de den­tro uma cai­xi­nha pre­ta la­cra­da, sem qual­quer si­nal do que ha­via ali. Um fras­co mí­ni­mo, oval e trans­pa­ren­te, cheio de um lí­qui­do la­ran­ja que não de­ve­ria ser ven­di­do sem pres­cri­ção mé­di­ca, co­nhe­ci­do por fa­zer qual­quer pes­soa dor­mir por uma noi­te toda com ape­nas duas ou três go­tas. Não era o tipo de dro­ga que se cha­ma de re­mé­dio, mas a moda dos es­ti­mu­lan­tes ca­pa­zes de man­ter o cor­po ati­vo e acor­da­do por três dias in­tei­ros au­men­tou a po­pu­la­ri­da­de do opos­to. Pre­ci­sa­vam de aju­da para se des­li­gar. Não era di­fí­cil en­con­trar re­la­tos de pes­so­as que to­ma­vam até dez go­tas e dor­mi­am por 48 ho­ras se­gui­das.

    Ele vi­rou o fras­co in­tei­ro de uma só vez.

    ×××

    O Par­que da Me­lan­co­lia qua­se não re­ce­bia vi­si­tas. Fora cons­tru­í­do para ser a mai­or área ver­de de Es­fe­ra de­pois de inú­me­ras re­cla­ma­ções de que a ci­da­de não pas­sa­va de um blo­co de con­cre­to. Cin­co me­ses de tra­ba­lho fo­ram o su­fi­ci­en­te para cri­ar o es­pa­ço cen­tral agra­dou a po­pu­la­ção, ain­da que to­dos sou­bes­sem que nada da­qui­lo era na­tu­ral. A ar­ti­fi­ci­a­li­da­de do par­que per­mi­tia man­ter as ár­vo­res sem­pre chei­as, a gra­ma sem­pre apa­ra­da e chei­ran­do a chu­va re­cen­te. Vi­rou ma­nia. Um res­pi­ro ver­de no meio de um mar de pré­dios que cres­ci­am uns atrás dos ou­tros, ver­da­dei­ras mon­ta­nhas ur­ba­nas.

    O Par­que da Me­lan­co­lia per­deu a gra­ça quan­do inau­gu­ra­ram, de­pois de mais pro­tes­tos al­guns anos de­pois, a Praia de Plás­ti­co.

    Para Kris­ter, no en­tan­to, o aban­do­no ha­via sido mui­to bem-vin­do. Nin­guém mais su­bia o mor­ri­nho, tor­nan­do o es­pa­ço se­gu­ro para suas pró­prias vi­si­tas. Sem­pre que que­ria sair de casa, o par­que era sua pri­mei­ra op­ção.

    Alex ia na fren­te e ele, ar­fan­do, atrás. Olha­va para ela, per­ce­ben­do o om­bro sob a gola da ca­mi­se­ta, as cal­ças gru­da­das nas per­nas, o ca­be­lo pre­so num rabo de ca­va­lo. A úni­ca coi­sa que a de­nun­ci­a­va eram os pas­sos, com­ple­ta­men­te des­pro­vi­dos de dú­vi­da e he­si­ta­ção. Tal­vez aque­les pas­sos ro­bó­ti­cos só fos­sem per­cep­tí­veis quan­do com­pa­ra­dos aos de Kris­ter, cada vez mais ar­ras­ta­dos. Ele não sa­bia se era efei­to do re­mé­dio, mas era cada vez mais di­fí­cil se­guir em fren­te.

    Alex pa­rou e es­pe­rou. Ofe­re­ceu a mão quan­do ele che­gou mais per­to, com­ple­ta­ram o res­to do ca­mi­nho de mãos da­das. Para um ob­ser­va­dor de­sa­vi­sa­do, eram um ca­sal de jo­vens que­ren­do apro­vei­tar o dia so­zi­nhos, es­co­lhen­do um lo­cal con­for­tá­vel na gra­ma para fi­ca­rem sen­ta­dos, so­nhan­do com um con­to de fa­das fu­tu­ro.

    A ár­vo­re do topo era de­co­ra­da com um ba­lan­ço pin­ta­do de for­ma a imi­tar ma­dei­ra de ver­da­de. Alex sol­tou a mão de Kris­ter e cor­reu para se sen­tar ali, como se uma in­fi­ni­da­de de pes­so­as dis­pu­tas­se a po­si­ção do pri­mei­ro a ba­lan­çar. Com as cos­tas re­tas e as mãos agar­ra­das à cor­da com fir­me­za, es­pe­rou Kris­ter che­gar para em­pur­rá-la de leve. Ela es­ten­deu as per­nas e fe­chou os olhos quan­do o ven­to ba­teu em seu ros­to.

    — Sabe por que cha­mo isso aqui de Par­que da Me­lan­co­lia? — per­gun­tou. — Aqui era o jar­dim da man­são de um ho­mem mui­to rico. Tão rico que achou que po­dia vi­ver pra sem­pre, gas­tou tudo o que ti­nha pra con­se­guir isso. Ele ven­deu o ter­re­no pro go­ver­no quan­do pre­ci­sou ser in­ter­na­do numa câ­ma­ra de sus­ten­ta­ção de vida.

    — Ele con­se­guiu?

    — Com­ple­tou cen­to e se­ten­ta anos na se­ma­na pas­sa­da. — Ti­nha re­ce­bi­do a no­tí­cia com uma sé­rie de anún­ci­os so­bre re­mé­dios que pro­me­ti­am al­guns anos a mais. — Está gas­tan­do cada cen­ta­vo para se man­ter den­tro de uma bo­lha co­nec­ta­da a apa­re­lhos que man­têm o cor­po dele fun­ci­o­nan­do. Di­zem que ain­da está lú­ci­do.

    — En­tão ele con­se­guiu.

    — Por en­quan­to, sim. Ain­da não mor­reu.

    Tec­ni­ca­men­te, pen­sou, mas fi­cou qui­e­to.

    Foi to­ma­do mais uma vez pela sen­sa­ção de ser um es­tran­gei­ro de si mes­mo. Os mem­bros per­de­ram a sen­si­bi­li­da­de ao mes­mo tem­po em que um frio in­ten­so in­va­diu seu cor­po, cau­san­do ca­la­fri­os. Pa­rou de em­pur­rar o ba­lan­ço e se agar­rou às cor­das para se man­ter de pé.

    Alex vi­rou o ros­to para cima, pro­mo­ven­do o en­con­tro in­ver­ti­do dos dois pa­res de olhos. Kris­ter lar­gou as cor­das e sen­tiu o cor­po pen­der para fren­te, se apoi­an­do so­zi­nho nas cos­tas de Alex. Ela con­ti­nuou en­ca­ran­do en­quan­to ele tre­mia com mais uma onda de frio pela es­pi­nha. A mes­ma ver­go­nha de an­tes vol­tou, ele não que­ria que Alex o vis­se tão ex­pos­to como na­que­le mo­men­to.

    Er­gueu as mãos, que pe­sa­vam três ve­zes mais que o nor­mal, e ta­pou os olhos de Alex. Ela não se mo­veu. Ele se apro­xi­mou ain­da mais, cur­van­do os om­bros e abai­xan­do a ca­be­ça len­ta­men­te, até en­cos­tar os lá­bios nos dela no mo­men­to exa­to em que o sol se pôs.

    O so­ní­fe­ro não vi­nha com bula ou ma­nu­al de ins­tru­ções, e tam­bém não exis­ti­am re­la­tos de pes­so­as que ha­vi­am to­ma­do aque­la quan­ti­da­de, mas Kris­ter ima­gi­nou que es­ta­va pas­san­do por uma se­gun­da fase do efei­to: seu cor­po per­deu o peso. Seus bra­ços e suas per­nas es­ta­vam tão le­ves que achou que po­de­ria sair vo­an­do por aí. Sen­ta­do na gra­ma ar­ti­fi­ci­al, agar­rou as fo­lhas en­tre os de­dos, como se aqui­lo fos­se o su­fi­ci­en­te para evi­tar que ele flu­tu­as­se para lon­ge. Pen­sa­men­tos dis­tan­tes e en­fra­que­ci­dos, tudo em vol­ta co­me­çou a de­sa­ce­le­rar. Em câ­me­ra len­ta, viu Alex des­cer do ba­lan­ço e se sen­tar per­to dele. Lar­gou a gra­ma e se­gu­rou a mão dela.

    Se pu­des­se vas­cu­lhar a me­mó­ria, Kris­ter de­mo­ra­ria para en­con­trar a ga­ve­ta em que guar­da­va a úl­ti­ma vez que al­guém dis­se­ra que o ama­va. Mas as bar­rei­ras en­tre seus pen­sa­men­tos cons­ci­en­tes e de­va­nei­os in­con­tro­lá­veis já não exis­tia mais, ele con­se­guia sen­tir aque­le mo­men­to como se acon­te­ces­se ali, no par­que. Era o dia do en­ter­ro de sua mãe. Ele ha­via se es­con­di­do de­bai­xo da cama, e viu os pas­sos do pai se apro­xi­man­do, lá­gri­mas e so­lu­ços, o bra­ço do pai o pu­xan­do para fora, a man­ga da ca­mi­sa do pai lim­pan­do seu ros­to, o bolo de lá­gri­mas que o pai en­go­liu an­tes de di­zer que o ama­va.

    — Nós va­mos con­ti­nu­ar, Kris­ter.

    O pai con­ti­nuou, mas Kris­ter nun­ca con­se­guiu sair da­que­le mo­men­to. O pai não o pe­gou no colo para tra­zê-lo con­si­go mes­mo con­tra sua von­ta­de, pro­va­vel­men­te por­que acha­va que o fi­lho já ti­nha ida­de para an­dar so­zi­nho. Mas Kris­ter ha­via per­di­do as per­nas sem que o pai che­gas­se a no­tar.

    O cor­po des­pen­cou de uma vez e Kris­ter caiu dei­ta­do no chão. Di­fe­ren­te do sono es­pe­ra­do, o que to­mou con­ta dele foi uma ne­ces­si­da­de de apa­gar de uma vez. Pu­xou Alex con­si­go. Ela apoi­ou a ca­be­ça num de seus om­bros, ob­ser­van­do tudo aten­ta­men­te, es­pe­ran­do

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