Diário simulado
De Delson Neto e Paula Cruz
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Sobre este e-book
O limiar entre o real e o virtual pode ser tão perigoso quanto a travessia da juventude para a vida adulta. Os caminhos são diferentes, mas as escolhas que apresentam são mais parecidas do que alguém pode pensar.
Shura sabe que não tem a vida perfeita. Ela não precisa que lhe digam que sua família é disfuncional ou que ela não tem perspectiva de futuro. O que ela precisa é de um plano — e isso, felizmente, ela tem. As luzes da cidade não a impedem de imaginar um futuro, mas a cegam o suficiente para que ela deseje nunca ter olhado para trás.
Prepare-se para uma odisseia por diversas referências da cultura pop. Depois de mais de sete mil leituras no Wattpad, o premiado Diário simulado chega em uma nova edição, com novo visual e um conto inédito.
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Diário simulado - Delson Neto
SUMÁRIO
Início
Sumário
STARGIRL
Entrada 1
SG: I
Entrada 2
SG: II
Entrada 3
SG: III
Entrada 4
SG: IV
Entrada 5
SG: V
Entrada 6
SG: VI
GONEGIRL
Entrada 1
GG: I
Entrada 2
GG: II
Entrada 3
GG: III
Entrada 4
GG: IV
Entrada 5
GG: V
Entrada 6
GG: VI
Entrada final
A garota na ponte
Agradecimentos
Autor
Créditos
Colofão
STARGIRL
Nunca estive em um relacionamento feliz. Nem de amor, nem de amizade, nem de nada. Olhar para trás e me ver deixar cada vez mais pegadas solitárias na areia do tempo me cansa, me machuca, me deixa sem perspectivas a respeito do que posso encontrar no dia em que tudo virar cinzas, preto no branco, e eu estiver em uma cama necessitando de um transplante de fígado. Isso soou sinistro, desculpa. Acho que estou sendo injusta com a garrafa de tequila ao dizer que não tenho nem vivi felicidade nenhuma em um relacionamento — afinal das contas, ela nunca me deixou na mão. Violet também não, mas aquela lá já me fez de trouxa tantas vezes que prefiro pensar nela como alguém que está aqui por mim, o que, não se engane, é bem diferente de estar aqui comigo. É ridiculamente contraditório, sabe? Pois eu a amo, mas tenho medo de ser mais por preguiça de estar longe de alguém que segurou minha barra por tanto tempo. Talvez as coisas mudem amanhã. Ela costuma dizer que eu sou muito dependente, mas não me vejo assim. Sou tão solitária! Mas quem sabe…? Estar sozinha pode significar ter as rédeas de si mesma…
Quem sabe?
A luz da geladeira se esgueirava junto da fina névoa de gelo vinda do interior do freezer, envolvendo a cozinha em um azul trêmulo. Atrás da pia havia uma única janela, responsável por trazer toda a claridade do letreiro queimado do Karpas, o restaurante oriental de procedência duvidosa que se alojava debaixo do primeiro andar do cortiço. Shura gostava de pensar no apartamento como um prédio propriamente dito, mas às vezes, por inúmeros motivos, sucumbia ao entendimento claro de que aquela não era a moradia dos seus sonhos. O cheiro insuportável de sushi estragado àquela hora da noite era apenas mais uma boa razão para arredar o pé dali.
— Cacete, Ryan! — Com a jarra de vidro firme entre os dedos, a jovem engoliu o próprio susto. — Dá pra não ficar atrás da porcaria da porta?
— Ô, maluca, fica de boa. Não quer acordar a d. Johnson. São cinco e pouco da matina! — O irmão, de samba-canção e pelos ruivos mal aparados no peito, a fitava com os olhos arregalados.
— Da noite — ela corrigiu, fingindo para si mesma que não tinha chegado tarde daquele jeito em casa. Fechando a geladeira, deu meia-volta ao mesmo tempo em que a porta metálica se fechava com um clique.
Era ruim manter o equilíbrio do copo de suco de laranja e rir das besteiras vividas em plena madrugada de terça-feira. O ardor das dúzias de vodca com energético bebidas às pressas no open bar ainda lhe causava cócegas na garganta, e a fedentina do cigarro passava despercebida por ela, mas Ryan tossiu ao se desviar no corredor entre os quartos. Fosse um alerta de que precisava cuidar dos pulmões ou de que gastava demais com os maços, ela não se importou muito, e se fechou em seu mundinho seguro entre quatro paredes.
Chave passada na porta, saltos tirados com sucesso. Tentava entender por que raios insistia em usar salto na balada — Violet achava bonito, e elas passavam por uma fase em que era necessário trocar certos carinhos antes que uma delas amanhecesse morta no dia seguinte. Causa do assassinato: brigas incontroláveis. Escolhas, escolhas. Shura nem sempre fazia as mais corretas. Acender mais um cigarro e fumá-lo com a janela fechada, só para ouvir a mãe reclamar logo mais, às sete da manhã, era mais uma para a coleção.
Oi, baby, o áudio rouco da namorada ecoou pelo quarto, obrigando a garota a ser rápida para abaixar o volume do celular. Cheguei em casa agora… Uma tosse evidenciou a exaustão e fez Shura sorrir, bêbada. Mano… nunca mais me deixa virar um double…
Com o fim do áudio, ela pôs o celular sobre a escrivaninha, tragando o cigarro antes de responder com um sussurro:
— Como se desse pra te controlar, né, bonitona? Já bati de frente com o Ryan no corredor, vou apagar aqui. Amanhã a gente conversa. Vê se dorme bem e relaxa, à noite dou um pulo aí. Te amo! — O barulho do aplicativo de mensagens certificou o envio, e a tela do celular se apagou, deixando-a livre para trocar de roupa e se jogar na cama.
O vestido saiu fácil, o problema foi a cinta liga engatando na calcinha, então ela acabou puxando tudo de uma vez só. Queria as jaquetas de novo, os coturnos e nada que apertasse a virilha. Ainda assim, fora divertido se embrenhar em uma festa com tema de cabaré. Não veria tão cedo as luzes de néon vermelho da pista de dança da Noctis Club — a não ser que o próximo tema tratasse de coisas mais casuais, como pijama e pantufas.
Fazia frio, e os cobertores pesados abasteciam o corpo nu de Shura sobre a cama. Com o passar das horas e o caminhar do sol, que teimava em entrar pelas persianas, os pés dela começaram a suar, mas o peso entre as têmporas lhe dava ânsia só de pensar em empurrar as cobertas para fora. O suco sobre o porta-copos do criado-mudo acolhia moscas no amarelo artificial, e o cigarro, largado ao lado do celular, apagara-se sozinho, deixando uma marca preta no móvel de madeira. Bateram à porta e ela não se deu ao trabalho de atender. Xingamentos abafados percorreram a sala do outro lado da parede, mas também não fez muita questão de se levantar.
O odor de quarta-feira e peixes queimou as fagulhas de oxigênio do ar, rastejando para dentro do quarto escuro. Pra que despertador quando se é vizinha do restaurante mais asqueroso da vizinhança? O bolo de substâncias banhadas a bile e álcool foi expelido pela boca de Shura, direto sobre o carpete aveludado. Um triste fim de noitada — e o começo de um novo dia.
— Sério isso? — perguntou a si mesma, virando-se para o outro lado, preferindo encarar a parede do que os pecados no chão.
O celular apitou. Bateria acabando ou Violet atrás dela. Quantas horas tinha dormido? Aquela rotina ia acabar logo. Não podia passar a semana em uma luta constante contra o próprio organismo, que, depois de anos, ainda teimava em desaprovar o ritmo das noites desenfreadas. Viajaria logo mais, estava prestes a participar do processo seletivo que definiria o seu futuro — ou apenas a deixaria ainda mais frustrada, caso não conseguisse agarrar aquela oportunidade. Independente dos prós e contras, era uma prova de que novos dias se aproximavam.
Inspirando fundo, a garota se sentou na cama e se espreguiçou, quase batendo as mãos na prateleira de CDs. O vômito estava escroto ali ao lado, como um fantasma à espreita. Sorte a dela não ter vontade de soltar ainda mais líquido; tudo o que sentia era repulsa pela bebida da noite e pelo cheiro do Karpas. Habilidosa, desviou da poça de restos gosmentos e abriu o guarda-roupa, puxando a primeira camisola que viu para fugir descalça por uma casa gelada cheia de pessoas nada barulhentas.
Doce ironia.
Ryan estava em um sofá com uma das peguetes
semanais. Ela era bonita. Shura não podia negar que os cabelos coloridos a atraíam, ainda que fosse muito magra para seu gosto. Uma perna branca roçava nas coxas do rapaz, e ele parecia não ter calças no armário, pelo visto, já que fazia semanas que perambulava pela casa com tudo de fora. Bem, quase tudo. Os drones de estimação dormiam perto da televisão plana de quarenta e tantas polegadas, o item mais caro da casa e para o qual Ryan e a zé ninguém voltavam toda a atenção. Risadas exageradas em resposta às cenas patéticas do programa de comédia. Não era preciso uma ressaca para Shura se irritar com aquilo.
— Bom dia, florzinha! — No outro sofá, um ser ainda mais espalhafatoso se sentava de pernas cruzadas e um balde de pipoca ao lado. Loura, com roupas longas e soltas, tia Isolda lhe dava os cumprimentos.
Um drone latiu, pedindo carinho, e Shura o ignorou.
— Você não tinha uma entrevista de emprego ou qualquer coisa que ia te fazer voltar a morar sozinha? — respondeu, evitando a visão do casal trocando carícias no canto do cômodo.
— Não seja assim, Shurinha… — Ryan pediu, recebendo um estalo de língua como réplica. — Eu, hein? Que bicho te mordeu…?
— O bicho da noção, talvez. — Ela passou pelo canto alemão entre a sala e a cozinha, indo pegar um copo de leite frio. — Foi mal, tia, só que, né…
Mais vaga, impossível
, ela pensou, evitando os esforços desnecessários para articular quão absurda era a situação daquela casa. Dois trastes escorados nas costas do salário e teto de sua mãe; um dizendo ser bom demais para estudar, outra, na espera de um — rezava a lenda — casamento que lhe renderia fortunas. Sem contar ela mesma, mais perdida que qualquer um deles, e a coitada da sra. Johnson, que saía às sete e voltava doze horas depois, sem nem achar comida nos armários.
No painel digital pendurado entre os panos de prato, Shura viu o horário de saída dos ônibus da polícia federal de Nova Avalon. O que a salvava das garras do ócio era aquele concurso e os dois anos de aulas preparatórias pagas com o suor de sua inteligência, além de uma mãozinha da pensão depositada pelo pai relapso. Para não pensar demais, fechou os olhos e tomou o leite como quem vira um shot de tequila. Força do hábito, como diria Violet.
— Querida, eu não vou me matar atrás de um balcão de padaria — a tia se queixou, assoprando o cigarro de palha por cima da pilha de louça suja. Shura sequer percebera em que momento ela tinha se levantado do sofá velho. — Não estamos morrendo de fome!
Shura fungou, uma risada maliciosa saindo pelos lábios.
— Ainda bem.
— É sério, florzinha. Logo pago a dívida com sua mãe, vai ficar tudo certo. Como é que diz? Tudo de boa
!
— Aham. Vai, sim. — Exausta e com bafo de manguaça, Shura falou baixinho, para evitar mais discórdia: — Ryan, levanta essa bunda e vai atender o interfone. Deve ser o sr. Kwan.
O aparelho ficava em cima da mesa de centro, já que a fiação estava péssima e os cabos precisavam ser esticados para funcionarem direito. A parede mofada era um território proibido para eletrônicos.
Ainda que estivesse a cinco centímetros do interfone, o rapaz deu de ombros, aproveitando-se para atormentar a irmã um pouco mais enquanto coçava o dedo do pé no emaranhado de fios. Nos braços dele, a companheira ria, o batom preto clareando os dentes alinhados.
— Não dá risada, amiga, vai por mim. Um dia pode ser você enquanto ele bebe cerveja. Ou então a gente pode escapar juntas antes que esse dia chegue. — Ela piscou para a menina e puxou o interfone do gancho. — Olá? Ah, sim. Sim, é a filha da sra. Johnson. Três meses?! Putz… Eu… — Olhando para os lados, como se procurasse alguma solução, tudo o que Shura avistou foi insegurança e pessoas despreocupadas com a sua aflição. — Já desço. Cinco minutinhos.
Largando o copo de leite na mesa e ignorando o olhar asqueroso de tia Isolda por cima de seus ombros, ela correu para o quarto e apagou o vômito da memória, envolvendo-se em um sobretudo de látex que guardava no cabideiro ao lado da cama. Uma passada breve no banheiro foi o suficiente para escovar os dentes e esconder a cabeleira preto-azulada em uma boina. Passou fantasmagórica pela sala — realmente não queria ser notada. Não que fizesse alguma diferença. Não que algum daqueles seres vampíricos que habitavam a caverna fosse livrá-la de mais uma responsabilidade.
A porta se fechou automaticamente ao detectar a saída de Shura, e as lâmpadas frias da escadaria se acenderam. Descendo os degraus até o apartamento do sr. Kwan, ela apalpou os bolsos para ver se o cartão do banco permanecia bem guardado ali. Ou ela escondida as economias, ou cada centavo seria sugado para dar conta das dívidas acumuladas — o que de nada servia, já que, de uma maneira ou de outra, o interfone lhe recordara de que naquele mês não poderia ir a um show que queria. Sentia-se egoísta por guardar cada moeda que sobrava enquanto, muitas vezes, a geladeira estava vazia, mas será que era tão injusto que quisesse ter as próprias coisas em meio à escassez?
Os mosquitos entre as lixeiras do prédio todo zuniam como holofotes queimados e orquestravam o som elétrico da campainha. Angustiada, a garota apertou os dedos, que transpiravam dentro da roupa, e amassou um papel de bala qualquer que devia estar ali há meses. Alguém passou o cartão de identidade do lado de dentro do apartamento. Ela ouviu o trinco se mover para que a porta desse lugar a uma figura baixinha e irritada de olhos puxados como os dela. Reconhecia-se nos tons escuros das íris do síndico e dono daquela do Karpas.
— Oi — cumprimentou, sem jeito, pedindo com o queixo para que o sr. Kwan a deixasse entrar.
— Ah, desculpa. Entra, menina. — Ele não demorou a trancafiá-los em uma antessala repleta de compotas de temperos e condimentos empilhadas aos montes nas paredes. Ela podia apostar que várias delas tinham a data de validade expirada.
Shura olhou para aqueles molhos de consistência esquisita e decidiu se sentar em uma poltrona estofada perto da janela. Espiando pela cortina de seda, avistou a cidade rugindo, o calor dos carros lhe beijando a face.
— Eu não sabia sobre o condomínio. Teria dado um jeito antes, perdão — disse, vendo o homem abrir uma gaveta digital para apanhar os recibos. — Espero que tenha ficado tudo bem sem nosso dinheiro.
O sr. Kwan mal pusera os óculos, mas os tirou, deixando-os sobre a mesa ao expirar irritado.
— Regras são regras, minha filha. — Um desvio do olhar de Shura foi o suficiente para saber o quanto ela desaprovava sua fala. — Vocês não podem morar aqui de graça. Há gás, água, segurança. Pra tudo há um preço. Se deixo a dona sua mãemontar nas minhas costas, ah! Tenho que ouvir do apartamento 1 ao 10.
Shura mordeu o lábio inferior, inquieta.
— Dá a maquineta, por favor. — Sem relutar, levantou-se, se armando com o cartão para que enfiar o montante de dinheiro da dívida goela abaixo do síndico.
Ele passou a máquina ligada ao computador quadrado, e Shura digitou a senha o mais rápido que conseguiu. Os três zeros depois do valor eram o que a preocupava. Juros a levavam para um buraco sem fim chamado cheque especial, mas eram tantos os buracos sem fim nos quais se enfiava — mais um só a faria beber mais um pouquinho assim que o enjoo passasse. Ou assim que saísse para a rua, que a chamava em um cântico irresistível.
— Grata. Se acontecer de novo, me avise. — Virando o monitor do computador para si, Shura traçou o e-mail pessoal na tela touchscreen. — Não é como se você fosse mandar cartas ou qualquer coisa mais pessoal. Então, sinta-se à vontade.
Ela se virou para partir, quando se deparou com um par de mãos trêmulas pegando-a pelos cotovelos.
— Largue de mim! — furiosa, gritou.
— Você não entende! — O sr. Kwan amoleceu os pulsos em torno do braço da garota. — Sua mãe… Ela não deixa…
Antes que ele percebesse, Shura pegou a identificação dentro do paletó empoeirado e a passou na porta eletrônica. O vento e o cheiro das lixeiras não demoraram a instigá-la a fugir daquela situação o quanto antes.
— Chega. — Empurrando-o com cautela, ainda que desejasse investir de maneira mais abrupta, jogou a identidade no chão e se apressou. — Vai se ocupar no restaurante.
A saída pelos fundos do Karpas se desenhava em um conjunto estreito de paredes enferrujadas, vez ou outra repleto de fumaça do exaustor das cozinhas, e terminava em uma portinhola que dava acesso à rua das Macieiras sem a segurança necessária. Shura puxou o cadeado destrancado e fugiu para longe do prédio e do cheiro de sushi que se agarrava às suas vestes. Sequer reparou que estava descalça à sombra do toldo e continuou a trilha silenciosa pela calçada suja de folhas de outono.
Estava sem o celular que nem tinha posto para carregar. Desarmada de fones de ouvido ou cigarros, as válvulas de escape automáticas, encontrava-se na companhia ansiosa de seus problemas. Tinha dinheiro no cartão, ou melhor, não tinha — mas o que era mais uma dívida quando tudo já havia se desintegrado? Resolveria aquele começo de dia grotesco pedindo um motor até Violet, em primeiro lugar, estivesse ela dormindo ou não. Depois disso, pensaria no que calçar e em como explicar à namorada que vagara sozinha pela rua, só de camisola, sobretudo e sem calcinha.
Na outra esquina, havia um cibercafé iluminado por um grande outdoor de luz roxa. A garota conhecia bem a atendente que trabalhava atrás do balcão, servindo bebidas quentes e um papo inteligente. Era uma vergonha entrar descalça e aflita daquele jeito em um lugar como aquele, os adolescentes babacas a olharam de cima a baixo, mas emergências demandavam pedidos de resgate desesperados.
— Trisha! — Shura limpou as marcas debaixo dos olhos amendoados. — Preciso de um favor enorme. Consegue pedir um motor pra mim?
Deixando a caneca em forma de rosquinha ao lado do notebook, a recepcionista de cabelos ondulados e vermelhos pulou do banquinho em que estava sentada, saindo de trás do balcão para envolver a colega em um abraço. Não demorou para que Shura desabasse em um choro constante.
— Calma, amiga, calma. Vem comigo. — A jovem assoviou, chamando a atenção de um moleque ocupado com um jogo em um dos computadores. — Ben, dá uma olhada aqui pra mim? Eu já volto.
O garoto assentiu e tomou o lugar no balcão prateado. As duas jovens seguiram se apoiando uma na outra até passarem por uma cortina barulhenta de contas que levava a uma salinha marcada como exclusiva para funcionários
. Shura respirou fundo e evitou os espelhos multicoloridos atrás do sofá, encarando a amiga, desorientada. Trisha ergueu as mãos, emoldurando a face da garota, pronta para acudi-la a qualquer instante.
— Tá tudo tão, mas tão ruim. — Shura fungou, exasperada. — Aquele monstro do sr. Kwan… Minha mãe não aguenta mais a tia Isolda em casa, e o Ryan… Eu… Ah, merda. Eu só quero morrer.
— Amiga, eu sei que tá difícil — disse Trisha, afagando as costas de Shura —, mas não tem o que você faça.