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Diário simulado
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E-book289 páginas5 horas

Diário simulado

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Sobre este e-book

VENCEDOR DO PRÊMIO THE WATTYS 2018 NA CATEGORIA "CRIADOR DE MUDANÇAS"
O limiar entre o real e o virtual pode ser tão perigoso quanto a travessia da juventude para a vida adulta. Os caminhos são diferentes, mas as escolhas que apresentam são mais parecidas do que alguém pode pensar.
Shura sabe que não tem a vida perfeita. Ela não precisa que lhe digam que sua família é disfuncional ou que ela não tem perspectiva de futuro. O que ela precisa é de um plano — e isso, felizmente, ela tem. As luzes da cidade não a impedem de imaginar um futuro, mas a cegam o suficiente para que ela deseje nunca ter olhado para trás.
Prepare-se para uma odisseia por diversas referências da cultura pop. Depois de mais de sete mil leituras no Wattpad, o premiado Diário simulado chega em uma nova edição, com novo visual e um conto inédito.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento31 de jul. de 2019
ISBN9788554350048
Diário simulado

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    Diário simulado - Delson Neto

    SUMÁRIO

    Iní­cio

    Su­má­rio

    STAR­GIRL

    En­tra­da 1

    SG: I

    En­tra­da 2

    SG: II

    En­tra­da 3

    SG: III

    En­tra­da 4

    SG: IV

    En­tra­da 5

    SG: V

    En­tra­da 6

    SG: VI

    GO­NE­GIRL

    En­tra­da 1

    GG: I

    En­tra­da 2

    GG: II

    En­tra­da 3

    GG: III

    En­tra­da 4

    GG: IV

    En­tra­da 5

    GG: V

    En­tra­da 6

    GG: VI

    En­tra­da fi­nal

    A ga­ro­ta na pon­te

    Agra­de­ci­men­tos

    Au­tor

    Cré­di­tos

    Co­lo­fão

    STARGIRL

    Nun­ca es­ti­ve em um re­la­ci­o­na­men­to fe­liz. Nem de amor, nem de ami­za­de, nem de nada. Olhar para trás e me ver dei­xar cada vez mais pe­ga­das so­li­tá­rias na areia do tem­po me can­sa, me ma­chu­ca, me dei­xa sem pers­pec­ti­vas a res­pei­to do que pos­so en­con­trar no dia em que tudo vi­rar cin­zas, pre­to no bran­co, e eu es­ti­ver em uma cama ne­ces­si­tan­do de um trans­plan­te de fí­ga­do. Isso soou si­nis­tro, des­cul­pa. Acho que es­tou sen­do in­jus­ta com a gar­ra­fa de te­qui­la ao di­zer que não te­nho nem vivi fe­li­ci­da­de ne­nhu­ma em um re­la­ci­o­na­men­to — afi­nal das con­tas, ela nun­ca me dei­xou na mão. Vi­o­let tam­bém não, mas aque­la lá já me fez de trou­xa tan­tas ve­zes que pre­fi­ro pen­sar nela como al­guém que está aqui por mim, o que, não se en­ga­ne, é bem di­fe­ren­te de es­tar aqui co­mi­go. É ri­di­cu­la­men­te con­tra­di­tó­rio, sabe? Pois eu a amo, mas te­nho medo de ser mais por pre­gui­ça de es­tar lon­ge de al­guém que se­gu­rou mi­nha bar­ra por tan­to tem­po. Tal­vez as coi­sas mu­dem ama­nhã. Ela cos­tu­ma di­zer que eu sou mui­to de­pen­den­te, mas não me vejo as­sim. Sou tão so­li­tá­ria! Mas quem sabe…? Es­tar so­zi­nha pode sig­ni­fi­car ter as ré­deas de si mes­ma…

    Quem sabe?

    A luz da ge­la­dei­ra se es­guei­ra­va jun­to da fina né­voa de gelo vin­da do in­te­ri­or do free­zer, en­vol­ven­do a co­zi­nha em um azul trê­mu­lo. Atrás da pia ha­via uma úni­ca ja­ne­la, res­pon­sá­vel por tra­zer toda a cla­ri­da­de do le­trei­ro quei­ma­do do Kar­pas, o res­tau­ran­te ori­en­tal de pro­ce­dên­cia du­vi­do­sa que se alo­ja­va de­bai­xo do pri­mei­ro an­dar do cor­ti­ço. Shu­ra gos­ta­va de pen­sar no apar­ta­men­to como um pré­dio pro­pri­a­men­te dito, mas às ve­zes, por inú­me­ros mo­ti­vos, su­cum­bia ao en­ten­di­men­to cla­ro de que aque­la não era a mo­ra­dia dos seus so­nhos. O chei­ro in­su­por­tá­vel de sushi es­tra­ga­do àque­la hora da noi­te era ape­nas mais uma boa ra­zão para ar­re­dar o pé dali.

    — Ca­ce­te, Ryan! — Com a jar­ra de vi­dro fir­me en­tre os de­dos, a jo­vem en­go­liu o pró­prio sus­to. — Dá pra não fi­car atrás da por­ca­ria da por­ta?

    — Ô, ma­lu­ca, fica de boa. Não quer acor­dar a d. John­son. São cin­co e pou­co da ma­ti­na! — O ir­mão, de sam­ba-can­ção e pe­los rui­vos mal apa­ra­dos no pei­to, a fi­ta­va com os olhos ar­re­ga­la­dos.

    — Da noi­te — ela cor­ri­giu, fin­gin­do para si mes­ma que não ti­nha che­ga­do tar­de da­que­le jei­to em casa. Fe­chan­do a ge­la­dei­ra, deu meia-vol­ta ao mes­mo tem­po em que a por­ta me­tá­li­ca se fe­cha­va com um cli­que.

    Era ruim man­ter o equi­lí­brio do copo de suco de la­ran­ja e rir das bes­tei­ras vi­vi­das em ple­na ma­dru­ga­da de ter­ça-fei­ra. O ar­dor das dú­zias de vod­ca com ener­gé­ti­co be­bi­das às pres­sas no open bar ain­da lhe cau­sa­va có­ce­gas na gar­gan­ta, e a fe­den­ti­na do ci­gar­ro pas­sa­va des­per­ce­bi­da por ela, mas Ryan tos­siu ao se des­vi­ar no cor­re­dor en­tre os quar­tos. Fos­se um aler­ta de que pre­ci­sa­va cui­dar dos pulmões ou de que gas­ta­va de­mais com os ma­ços, ela não se im­por­tou mui­to, e se fe­chou em seu mun­di­nho se­gu­ro en­tre qua­tro pa­re­des.

    Cha­ve pas­sa­da na por­ta, sal­tos ti­ra­dos com su­ces­so. Ten­ta­va en­ten­der por que rai­os in­sis­tia em usar sal­to na ba­la­da — Vi­o­let acha­va bo­ni­to, e elas pas­sa­vam por uma fase em que era ne­ces­sá­rio tro­car cer­tos ca­ri­nhos an­tes que uma de­las ama­nhe­ces­se mor­ta no dia se­guin­te. Cau­sa do as­sas­si­na­to: bri­gas in­con­tro­lá­veis. Es­co­lhas, es­co­lhas. Shu­ra nem sem­pre fa­zia as mais cor­re­tas. Acen­der mais um ci­gar­ro e fumá-lo com a ja­ne­la fe­cha­da, só para ou­vir a mãe re­cla­mar logo mais, às sete da ma­nhã, era mais uma para a co­le­ção.

    Oi, baby, o áu­dio rou­co da na­mo­ra­da eco­ou pelo quar­to, obri­gan­do a ga­ro­ta a ser rá­pi­da para abai­xar o vo­lu­me do ce­lu­lar. Che­guei em casa ago­ra… Uma tos­se evi­den­ci­ou a exaus­tão e fez Shu­ra sor­rir, bê­ba­da. Mano… nun­ca mais me dei­xa vi­rar um dou­ble

    Com o fim do áu­dio, ela pôs o ce­lu­lar so­bre a es­cri­va­ni­nha, tra­gan­do o ci­gar­ro an­tes de res­pon­der com um sus­sur­ro:

    — Como se des­se pra te con­tro­lar, né, bo­ni­to­na? Já bati de fren­te com o Ryan no cor­re­dor, vou apa­gar aqui. Ama­nhã a gen­te con­ver­sa. Vê se dor­me bem e re­la­xa, à noi­te dou um pulo aí. Te amo! — O ba­ru­lho do apli­ca­ti­vo de men­sa­gens cer­ti­fi­cou o en­vio, e a tela do ce­lu­lar se apa­gou, dei­xan­do-a li­vre para tro­car de rou­pa e se jo­gar na cama.

    O ves­ti­do saiu fá­cil, o pro­ble­ma foi a cin­ta liga en­ga­tan­do na cal­ci­nha, en­tão ela aca­bou pu­xan­do tudo de uma vez só. Que­ria as ja­que­tas de novo, os co­tur­nos e nada que aper­tas­se a vi­ri­lha. Ain­da as­sim, fora di­ver­ti­do se em­bre­nhar em uma fes­ta com tema de ca­ba­ré. Não ve­ria tão cedo as lu­zes de néon ver­me­lho da pis­ta de dan­ça da Noc­tis Club — a não ser que o pró­xi­mo tema tra­tas­se de coi­sas mais ca­su­ais, como pi­ja­ma e pan­tu­fas.

    Fa­zia frio, e os co­ber­to­res pe­sa­dos abas­te­ci­am o cor­po nu de Shu­ra so­bre a cama. Com o pas­sar das ho­ras e o ca­mi­nhar do sol, que tei­ma­va em en­trar pe­las per­si­a­nas, os pés dela co­me­ça­ram a suar, mas o peso en­tre as têm­po­ras lhe dava ân­sia só de pen­sar em em­pur­rar as co­ber­tas para fora. O suco so­bre o por­ta-co­pos do cri­a­do-mudo aco­lhia mos­cas no ama­re­lo ar­ti­fi­ci­al, e o ci­gar­ro, lar­ga­do ao lado do ce­lu­lar, apa­ga­ra-se so­zi­nho, dei­xan­do uma mar­ca pre­ta no mó­vel de ma­dei­ra. Ba­te­ram à por­ta e ela não se deu ao tra­ba­lho de aten­der. Xin­ga­men­tos aba­fa­dos per­cor­re­ram a sala do ou­tro lado da pa­re­de, mas tam­bém não fez mui­ta ques­tão de se le­van­tar.

    O odor de quar­ta-fei­ra e pei­xes quei­mou as fa­gu­lhas de oxi­gê­nio do ar, ras­te­jan­do para den­tro do quar­to es­cu­ro. Pra que des­per­ta­dor quan­do se é vi­zi­nha do res­tau­ran­te mais as­que­ro­so da vi­zi­nhan­ça? O bolo de subs­tân­cias ba­nha­das a bile e ál­co­ol foi ex­pe­li­do pela boca de Shu­ra, di­re­to so­bre o car­pe­te ave­lu­da­do. Um tris­te fim de noi­ta­da — e o co­me­ço de um novo dia.

    — Sé­rio isso? — per­gun­tou a si mes­ma, vi­ran­do-se para o ou­tro lado, pre­fe­rin­do en­ca­rar a pa­re­de do que os pe­ca­dos no chão.

    O ce­lu­lar api­tou. Ba­te­ria aca­ban­do ou Vi­o­let atrás dela. Quan­tas ho­ras ti­nha dor­mi­do? Aque­la ro­ti­na ia aca­bar logo. Não po­dia pas­sar a se­ma­na em uma luta cons­tan­te con­tra o pró­prio or­ga­nis­mo, que, de­pois de anos, ain­da tei­ma­va em de­sa­pro­var o rit­mo das noi­tes de­sen­fre­a­das. Vi­a­ja­ria logo mais, es­ta­va pres­tes a par­ti­ci­par do pro­ces­so se­le­ti­vo que de­fi­ni­ria o seu fu­tu­ro — ou ape­nas a dei­xa­ria ain­da mais frus­tra­da, caso não con­se­guis­se agar­rar aque­la opor­tu­ni­da­de. In­de­pen­den­te dos prós e con­tras, era uma pro­va de que no­vos dias se apro­xi­ma­vam.

    Ins­pi­ran­do fun­do, a ga­ro­ta se sen­tou na cama e se es­pre­gui­çou, qua­se ba­ten­do as mãos na pra­te­lei­ra de CDs. O vô­mi­to es­ta­va es­cro­to ali ao lado, como um fan­tas­ma à es­prei­ta. Sor­te a dela não ter von­ta­de de sol­tar ain­da mais lí­qui­do; tudo o que sen­tia era re­pul­sa pela be­bi­da da noi­te e pelo chei­ro do Kar­pas. Ha­bi­li­do­sa, des­vi­ou da poça de res­tos gos­men­tos e abriu o guar­da-rou­pa, pu­xan­do a pri­mei­ra ca­mi­so­la que viu para fu­gir des­cal­ça por uma casa ge­la­da cheia de pes­so­as nada ba­ru­lhen­tas.

    Doce iro­nia.

    Ryan es­ta­va em um sofá com uma das pe­gue­tes se­ma­nais. Ela era bo­ni­ta. Shu­ra não po­dia ne­gar que os ca­be­los co­lo­ri­dos a atra­í­am, ain­da que fos­se mui­to ma­gra para seu gos­to. Uma per­na bran­ca ro­ça­va nas co­xas do ra­paz, e ele pa­re­cia não ter cal­ças no ar­má­rio, pelo vis­to, já que fa­zia se­ma­nas que pe­ram­bu­la­va pela casa com tudo de fora. Bem, qua­se tudo. Os dro­nes de es­ti­ma­ção dor­mi­am per­to da te­le­vi­são pla­na de qua­ren­ta e tan­tas po­le­ga­das, o item mais caro da casa e para o qual Ryan e a zé nin­guém vol­ta­vam toda a aten­ção. Ri­sa­das exa­ge­ra­das em res­pos­ta às ce­nas pa­té­ti­cas do pro­gra­ma de co­mé­dia. Não era pre­ci­so uma res­sa­ca para Shu­ra se ir­ri­tar com aqui­lo.

    — Bom dia, flor­zi­nha! — No ou­tro sofá, um ser ain­da mais es­pa­lha­fa­to­so se sen­ta­va de per­nas cru­za­das e um bal­de de pi­po­ca ao lado. Lou­ra, com rou­pas lon­gas e sol­tas, tia Isol­da lhe dava os cum­pri­men­tos.

    Um dro­ne la­tiu, pe­din­do ca­ri­nho, e Shu­ra o ig­no­rou.

    — Você não ti­nha uma en­tre­vis­ta de em­pre­go ou qual­quer coi­sa que ia te fa­zer vol­tar a mo­rar so­zi­nha? — res­pon­deu, evi­tan­do a vi­são do ca­sal tro­can­do ca­rí­cias no can­to do cô­mo­do.

    — Não seja as­sim, Shu­ri­nha… — Ryan pe­diu, re­ce­ben­do um es­ta­lo de lín­gua como ré­pli­ca. — Eu, hein? Que bi­cho te mor­deu…?

    — O bi­cho da no­ção, tal­vez. — Ela pas­sou pelo can­to ale­mão en­tre a sala e a co­zi­nha, indo pe­gar um copo de lei­te frio. — Foi mal, tia, só que, né…

    Mais vaga, im­pos­sí­vel, ela pen­sou, evi­tan­do os es­for­ços des­ne­ces­sá­rios para ar­ti­cu­lar quão ab­sur­da era a si­tu­a­ção da­que­la casa. Dois tras­tes es­co­ra­dos nas cos­tas do sa­lá­rio e teto de sua mãe; um di­zen­do ser bom de­mais para es­tu­dar, ou­tra, na es­pe­ra de um — re­za­va a len­da — ca­sa­men­to que lhe ren­de­ria for­tu­nas. Sem con­tar ela mes­ma, mais per­di­da que qual­quer um de­les, e a coi­ta­da da sra. John­son, que saía às sete e vol­ta­va doze ho­ras de­pois, sem nem achar co­mi­da nos ar­má­rios.

    No pai­nel di­gi­tal pen­du­ra­do en­tre os pa­nos de pra­to, Shu­ra viu o ho­rá­rio de sa­í­da dos ôni­bus da po­lí­cia fe­de­ral de Nova Ava­lon. O que a sal­va­va das gar­ras do ócio era aque­le con­cur­so e os dois anos de au­las pre­pa­ra­tó­rias pa­gas com o suor de sua in­te­li­gên­cia, além de uma mão­zi­nha da pen­são de­po­si­ta­da pelo pai re­lap­so. Para não pen­sar de­mais, fe­chou os olhos e to­mou o lei­te como quem vira um shot de te­qui­la. For­ça do há­bi­to, como di­ria Vi­o­let.

    — Que­ri­da, eu não vou me ma­tar atrás de um bal­cão de pa­da­ria — a tia se quei­xou, as­so­pran­do o ci­gar­ro de pa­lha por cima da pi­lha de lou­ça suja. Shu­ra se­quer per­ce­be­ra em que mo­men­to ela ti­nha se le­van­ta­do do sofá ve­lho. — Não es­ta­mos mor­ren­do de fome!

    Shu­ra fun­gou, uma ri­sa­da ma­li­ci­o­sa sain­do pe­los lá­bios.

    — Ain­da bem.

    — É sé­rio, flor­zi­nha. Logo pago a dí­vi­da com sua mãe, vai fi­car tudo cer­to. Como é que diz? Tudo de boa!

    — Aham. Vai, sim. — Exaus­ta e com bafo de man­gua­ça, Shu­ra fa­lou bai­xi­nho, para evi­tar mais dis­cór­dia: — Ryan, le­van­ta essa bun­da e vai aten­der o in­ter­fo­ne. Deve ser o sr. Kwan.

    O apa­re­lho fi­ca­va em cima da mesa de cen­tro, já que a fi­a­ção es­ta­va pés­si­ma e os ca­bos pre­ci­sa­vam ser es­ti­ca­dos para fun­ci­o­na­rem di­rei­to. A pa­re­de mo­fa­da era um ter­ri­tó­rio proi­bi­do para ele­trô­ni­cos.

    Ain­da que es­ti­ves­se a cin­co cen­tí­me­tros do in­ter­fo­ne, o ra­paz deu de om­bros, apro­vei­tan­do-se para ator­men­tar a irmã um pou­co mais en­quan­to co­ça­va o dedo do pé no ema­ra­nha­do de fios. Nos bra­ços dele, a com­pa­nhei­ra ria, o ba­tom pre­to cla­re­an­do os den­tes ali­nha­dos.

    — Não dá ri­sa­da, ami­ga, vai por mim. Um dia pode ser você en­quan­to ele bebe cer­ve­ja. Ou en­tão a gen­te pode es­ca­par jun­tas an­tes que esse dia che­gue. — Ela pis­cou para a me­ni­na e pu­xou o in­ter­fo­ne do gan­cho. — Olá? Ah, sim. Sim, é a fi­lha da sra. John­son. Três me­ses?! Putz… Eu… — Olhan­do para os la­dos, como se pro­cu­ras­se al­gu­ma so­lu­ção, tudo o que Shu­ra avis­tou foi in­se­gu­ran­ça e pes­so­as des­pre­o­cu­pa­das com a sua afli­ção. — Já des­ço. Cin­co mi­nu­ti­nhos.

    Lar­gan­do o copo de lei­te na mesa e ig­no­ran­do o olhar as­que­ro­so de tia Isol­da por cima de seus om­bros, ela cor­reu para o quar­to e apa­gou o vô­mi­to da me­mó­ria, en­vol­ven­do-se em um so­bre­tu­do de lá­tex que guar­da­va no ca­bi­dei­ro ao lado da cama. Uma pas­sa­da bre­ve no ba­nhei­ro foi o su­fi­ci­en­te para es­co­var os den­tes e es­con­der a ca­be­lei­ra pre­to-azu­la­da em uma boi­na. Pas­sou fan­tas­ma­gó­ri­ca pela sala — re­al­men­te não que­ria ser no­ta­da. Não que fi­zes­se al­gu­ma di­fe­ren­ça. Não que al­gum da­que­les se­res vam­pí­ri­cos que ha­bi­ta­vam a ca­ver­na fos­se li­vrá-la de mais uma res­pon­sa­bi­li­da­de.

    A por­ta se fe­chou au­to­ma­ti­ca­men­te ao de­tec­tar a sa­í­da de Shu­ra, e as lâm­pa­das fri­as da es­ca­da­ria se acen­de­ram. Des­cen­do os de­graus até o apar­ta­men­to do sr. Kwan, ela apal­pou os bol­sos para ver se o car­tão do ban­co per­ma­ne­cia bem guar­da­do ali. Ou ela es­con­di­da as eco­no­mi­as, ou cada cen­ta­vo se­ria su­ga­do para dar con­ta das dí­vi­das acu­mu­la­das — o que de nada ser­via, já que, de uma ma­nei­ra ou de ou­tra, o in­ter­fo­ne lhe re­cor­da­ra de que na­que­le mês não po­de­ria ir a um show que que­ria. Sen­tia-se ego­ís­ta por guar­dar cada mo­e­da que so­bra­va en­quan­to, mui­tas ve­zes, a ge­la­dei­ra es­ta­va va­zia, mas será que era tão in­jus­to que qui­ses­se ter as pró­prias coi­sas em meio à es­cas­sez?

    Os mos­qui­tos en­tre as li­xei­ras do pré­dio todo zu­ni­am como ho­lo­fo­tes quei­ma­dos e or­ques­tra­vam o som elé­tri­co da cam­pai­nha. An­gus­ti­a­da, a ga­ro­ta aper­tou os de­dos, que trans­pi­ra­vam den­tro da rou­pa, e amas­sou um pa­pel de bala qual­quer que de­via es­tar ali há me­ses. Al­guém pas­sou o car­tão de iden­ti­da­de do lado de den­tro do apar­ta­men­to. Ela ou­viu o trin­co se mo­ver para que a por­ta des­se lu­gar a uma fi­gu­ra bai­xi­nha e ir­ri­ta­da de olhos pu­xa­dos como os dela. Re­co­nhe­cia-se nos tons es­cu­ros das íris do sín­di­co e dono da­que­la do Kar­pas.

    — Oi — cum­pri­men­tou, sem jei­to, pe­din­do com o quei­xo para que o sr. Kwan a dei­xas­se en­trar.

    — Ah, des­cul­pa. En­tra, me­ni­na. — Ele não de­mo­rou a tran­ca­fiá-los em uma an­tes­sa­la re­ple­ta de com­po­tas de tem­pe­ros e con­di­men­tos em­pi­lha­das aos mon­tes nas pa­re­des. Ela po­dia apos­tar que vá­rias de­las ti­nham a data de va­li­da­de ex­pi­ra­da.

    Shu­ra olhou para aque­les mo­lhos de con­sis­tên­cia es­qui­si­ta e de­ci­diu se sen­tar em uma pol­tro­na es­to­fa­da per­to da ja­ne­la. Es­pi­an­do pela cor­ti­na de seda, avis­tou a ci­da­de ru­gin­do, o ca­lor dos car­ros lhe bei­jan­do a face.

    — Eu não sa­bia so­bre o con­do­mí­nio. Te­ria dado um jei­to an­tes, per­dão — dis­se, ven­do o ho­mem abrir uma ga­ve­ta di­gi­tal para apa­nhar os re­ci­bos. — Es­pe­ro que te­nha fi­ca­do tudo bem sem nos­so di­nhei­ro.

    O sr. Kwan mal pu­se­ra os ócu­los, mas os ti­rou, dei­xan­do-os so­bre a mesa ao ex­pi­rar ir­ri­ta­do.

    — Re­gras são re­gras, mi­nha fi­lha. — Um des­vio do olhar de Shu­ra foi o su­fi­ci­en­te para sa­ber o quan­to ela de­sa­pro­va­va sua fala. — Vo­cês não po­dem mo­rar aqui de gra­ça. Há gás, água, se­gu­ran­ça. Pra tudo há um pre­ço. Se dei­xo a dona sua mãe­mon­tar nas mi­nhas cos­tas, ah! Te­nho que ou­vir do apar­ta­men­to 1 ao 10.

    Shu­ra mor­deu o lá­bio in­fe­ri­or, in­qui­e­ta.

    — Dá a ma­qui­ne­ta, por fa­vor. — Sem re­lu­tar, le­van­tou-se, se ar­man­do com o car­tão para que en­fi­ar o mon­tan­te de di­nhei­ro da dí­vi­da go­e­la abai­xo do sín­di­co.

    Ele pas­sou a má­qui­na li­ga­da ao com­pu­ta­dor qua­dra­do, e Shu­ra di­gi­tou a se­nha o mais rá­pi­do que con­se­guiu. Os três ze­ros de­pois do va­lor eram o que a pre­o­cu­pa­va. Ju­ros a le­va­vam para um bu­ra­co sem fim cha­ma­do che­que es­pe­ci­al, mas eram tan­tos os bu­ra­cos sem fim nos quais se en­fi­a­va — mais um só a fa­ria be­ber mais um pou­qui­nho as­sim que o en­joo pas­sas­se. Ou as­sim que sa­ís­se para a rua, que a cha­ma­va em um cân­ti­co ir­re­sis­tí­vel.

    — Gra­ta. Se acon­te­cer de novo, me avi­se. — Vi­ran­do o mo­ni­tor do com­pu­ta­dor para si, Shu­ra tra­çou o e-mail pes­so­al na tela tou­ch­s­creen. — Não é como se você fos­se man­dar car­tas ou qual­quer coi­sa mais pes­so­al. En­tão, sin­ta-se à von­ta­de.

    Ela se vi­rou para par­tir, quan­do se de­pa­rou com um par de mãos trê­mu­las pe­gan­do-a pe­los co­to­ve­los.

    — Lar­gue de mim! — fu­ri­o­sa, gri­tou.

    — Você não en­ten­de! — O sr. Kwan amo­le­ceu os pul­sos em tor­no do bra­ço da ga­ro­ta. — Sua mãe… Ela não dei­xa…

    An­tes que ele per­ce­bes­se, Shu­ra pe­gou a iden­ti­fi­ca­ção den­tro do pa­le­tó em­po­ei­ra­do e a pas­sou na por­ta ele­trô­ni­ca. O ven­to e o chei­ro das li­xei­ras não de­mo­ra­ram a ins­ti­gá-la a fu­gir da­que­la si­tu­a­ção o quan­to an­tes.

    — Che­ga. — Em­pur­ran­do-o com cau­te­la, ain­da que de­se­jas­se in­ves­tir de ma­nei­ra mais abrup­ta, jo­gou a iden­ti­da­de no chão e se apres­sou. — Vai se ocu­par no res­tau­ran­te.

    A sa­í­da pe­los fun­dos do Kar­pas se de­se­nha­va em um con­jun­to es­trei­to de pa­re­des en­fer­ru­ja­das, vez ou ou­tra re­ple­to de fu­ma­ça do exaus­tor das co­zi­nhas, e ter­mi­na­va em uma por­ti­nho­la que dava aces­so à rua das Ma­ci­ei­ras sem a se­gu­ran­ça ne­ces­sá­ria. Shu­ra pu­xou o ca­de­a­do des­tran­ca­do e fu­giu para lon­ge do pré­dio e do chei­ro de sushi que se agar­ra­va às suas ves­tes. Se­quer re­pa­rou que es­ta­va des­cal­ça à som­bra do tol­do e con­ti­nuou a tri­lha si­len­ci­o­sa pela cal­ça­da suja de fo­lhas de ou­to­no.

    Es­ta­va sem o ce­lu­lar que nem ti­nha pos­to para car­re­gar. De­sar­ma­da de fo­nes de ou­vi­do ou ci­gar­ros, as vál­vu­las de es­ca­pe au­to­má­ti­cas, en­con­tra­va-se na com­pa­nhia an­si­o­sa de seus pro­ble­mas. Ti­nha di­nhei­ro no car­tão, ou me­lhor, não ti­nha — mas o que era mais uma dí­vi­da quan­do tudo já ha­via se de­sin­te­gra­do? Re­sol­ve­ria aque­le co­me­ço de dia gro­tes­co pe­din­do um mo­tor até Vi­o­let, em pri­mei­ro lu­gar, es­ti­ves­se ela dor­min­do ou não. De­pois dis­so, pen­sa­ria no que cal­çar e em como ex­pli­car à na­mo­ra­da que va­ga­ra so­zi­nha pela rua, só de ca­mi­so­la, so­bre­tu­do e sem cal­ci­nha.

    Na ou­tra es­qui­na, ha­via um ci­ber­ca­fé ilu­mi­na­do por um gran­de out­do­or de luz roxa. A ga­ro­ta co­nhe­cia bem a aten­den­te que tra­ba­lha­va atrás do bal­cão, ser­vin­do be­bi­das quen­tes e um papo in­te­li­gen­te. Era uma ver­go­nha en­trar des­cal­ça e afli­ta da­que­le jei­to em um lu­gar como aque­le, os ado­les­cen­tes ba­ba­cas a olha­ram de cima a bai­xo, mas emer­gên­cias de­man­da­vam pe­di­dos de res­ga­te de­ses­pe­ra­dos.

    — Trisha! — Shu­ra lim­pou as mar­cas de­bai­xo dos olhos amen­do­a­dos. — Pre­ci­so de um fa­vor enor­me. Con­se­gue pe­dir um mo­tor pra mim?

    Dei­xan­do a ca­ne­ca em for­ma de ros­qui­nha ao lado do no­te­bo­ok, a re­cep­ci­o­nis­ta de ca­be­los on­du­la­dos e ver­me­lhos pu­lou do ban­qui­nho em que es­ta­va sen­ta­da, sain­do de trás do bal­cão para en­vol­ver a co­le­ga em um abra­ço. Não de­mo­rou para que Shu­ra de­sa­bas­se em um cho­ro cons­tan­te.

    — Cal­ma, ami­ga, cal­ma. Vem co­mi­go. — A jo­vem as­so­vi­ou, cha­man­do a aten­ção de um mo­le­que ocu­pa­do com um jogo em um dos com­pu­ta­do­res. — Ben, dá uma olha­da aqui pra mim? Eu já vol­to.

    O ga­ro­to as­sen­tiu e to­mou o lu­gar no bal­cão pra­te­a­do. As duas jo­vens se­gui­ram se apoi­an­do uma na ou­tra até pas­sa­rem por uma cor­ti­na ba­ru­lhen­ta de con­tas que le­va­va a uma sa­li­nha mar­ca­da como ex­clu­si­va para fun­ci­o­ná­rios. Shu­ra res­pi­rou fun­do e evi­tou os es­pe­lhos mul­ti­co­lo­ri­dos atrás do sofá, en­ca­ran­do a ami­ga, de­so­ri­en­ta­da. Trisha er­gueu as mãos, emol­du­ran­do a face da ga­ro­ta, pron­ta para acu­di-la a qual­quer ins­tan­te.

    — Tá tudo tão, mas tão ruim. — Shu­ra fun­gou, exas­pe­ra­da. — Aque­le mons­tro do sr. Kwan… Mi­nha mãe não aguen­ta mais a tia Isol­da em casa, e o Ryan… Eu… Ah, mer­da. Eu só que­ro mor­rer.

    — Ami­ga, eu sei que tá di­fí­cil — dis­se Trisha, afa­gan­do as cos­tas de Shu­ra —, mas não tem o que você faça.

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