Vito Grandam: Uma história de voos
De Ziraldo
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Vito Grandam - Ziraldo
Ziraldo
uma história de voos
Para
Maninho e
Ziralzi,
aqui
dois em um.
Para
Ruy Castro
Felipe Fortuna
e para
José Silveira.
sumário
A B C D E F
G H I J K L
M N O P Q R
S T U V W
X Y Z
A
Créditos
A
Por que esses ombros tão largos, por que essas pernas tão longas, por que esses braços tão compridos, se não quero comer a Chapeuzinho Vermelho? Tenho quase um metro e noventa de altura e dezessete anos exatos. Ter dezessete anos não é redondo como ter dezesseis ou dezoito; é pontudo, tem quinas e cotovelos (como uma navalha). Não é doce; aperta igual pitanga verde.
Neste momento, parecendo um boneco de marionete com as cordas todas trocadas, estou caído no fundo de um buraco escuro, perdido no meio da floresta. E agora, aqui, acabo de tomar uma decisão: eu vou ser escritor.
Não sei onde o meu pai foi arranjar um filho grande desse jeito. Sou a cara dele, nenhuma dúvida. Papai é um pouquinho mais baixo do que mamãe e ela não chega a ser exatamente uma mulher alta. Foi modelo no seu tempo de solteira, jogou vôlei, mas a praia, hoje, anda repleta de meninas muito mais altas do que ela.
Meus avós, conheci todos. Nenhum que fosse alto; médios. Tem gente que conta que na família da minha mãe, antigamente, havia homens enormes. Devo ter herdado este tamanho todo de um tataravô que não conheci. Ao contrário do pessoal da minha geração, não gosto de ser tão alto. Fica aquele negócio: todo mundo me perguntando por que é que não jogo basquete, que esporte pratico, olha que o vôlei dá futuro.
Vou ser escritor.
Leio desde pequeno e em ler tenho ocupado a maior parte do meu tempo e, principalmente, da minha atenção. Tanto que poderia dizer, por exemplo, Leio desde a mais tenra idade
, mas não tenho coragem de escrever uma frase como essa.
Já li quase tudo, incluindo aí os contos de fadas em todas as suas versões e análises — afinal, minha infância ainda está muito recente —, e tenho lido tanto que, de vez em quando, perguntam ao meu pai se não seria melhor me arranjarem uma terapia de apoio. Não será uma forma de loucura?
, ouvi um amigo seu, prático, objetivo, sensato, perguntar-lhe um dia.
Já pensei em ser engenheiro, médico, físico nuclear, arquiteto, decorador e, caso tivesse o que dizer, escritor. Agora me decidi finalmente, sem levar em conta tal ponderação.
Foi uma ordem que rolou junto comigo para o buraco onde estou agora, ainda que fosse recebendo a ordem e já achando que ela carecia de originalidade.
Eu me pergunto o que é que nos comanda por inteiro quando somos apanhados pelo susto, pelo imprevisto, pelo desastre. Sempre me ocorreu que a consciência desaparece no momento em que o desequilíbrio nos apanha de surpresa. Nossos comandos passam, então, a ser exercidos pelos sentidos: o gesto das mãos que guardam o rosto; os olhos que se fecham para evitar a visão trágica; os joelhos que se dobram para proteger o corpo; a voz que emerge de onde já nos esquecemos para dizer: Santa mãe de Deus!
.
Pois não me recordo de ter exercido qualquer dessas mecânicas decisões quando meus pés não encontraram a base que esperavam e me projetei no vácuo, a caminho de um buraco — até aquele momento — sem fundo. Fui caindo e, no espaço do tombo, enquanto meu corpo estava imponderável como o de um astronauta, fui indo para o abismo e ouvindo apenas uma voz que me ordenava: "Vai, meu filho, ser gauche na vida". Sem conseguir levantar-me daqui, ou pelo menos tentar isso, tenho vindo e estou indo.
Rimbaud, aos quinze anos, já havia escrito a melhor poesia da França. Acho que dá para chegar aos vinte com uma boa prosa brasileira e, aí, largar tudo e ir para a África, abrir um supermercado e ficar rico.
Tive sempre a impressão de que percebo tudo o que está ocorrendo à minha volta. Isso é importante para alguém ser escritor. Por exemplo: sou um adolescente e sei quanto é chato ser adolescente. Estou percebendo isso enquanto a adolescência me acontece. Sei exatamente por que sou tão desastrado, por que é que derrubo as coisas, por que bato em tudo quanto é quina de mesa.
Aqui estou eu, caído no fundo de um buraco úmido, cheio de espinhos e de vegetação agressiva, virado de barriga para cima, imóvel como um faquir em jejum. E ainda no meio do susto.
Achei uma picada na entrada da mata e decidi que devia seguir por ela.
A mata é muito fechada, quase não se vê o céu, e aqui embaixo é muito escuro, só vejo um ou outro raio de sol se filtrando por entre as copas das árvores.
Como é que vou me orientar? Tenho a impressão clara de que estou perdido. Tudo bem: vamos dar um jeito de sair deste buraco.
Como é que fui cair aqui dentro? Lembro-me de que havia percebido uma vala na minha frente de, mais ou menos, um metro de largura. Calculei a distância e pulei. Passei mais de dois metros além da vala, com essas pernas de salto triplo que não comando como quero. Além da vala, estava o buraco.
Passei alguns segundos no ar, ouvindo a voz mencionada, depois saí escorregando de costas pelas bordas do buraco, devo ter gasto todo o fundilho das calças, arranhei as costas, bati com a nuca pelo caminho.
Sei por que essas coisas me acontecem. Há pouco mais de três anos meus braços e minhas pernas eram duas vezes menores do que são hoje. Meu corpo ficou deste tamanho e nem dei pela coisa. Toda noite, nos meus sonhos, era aquela sensação de estar voando, e meu pai me explicando, sem que lhe perguntasse: Você está crescendo
.
Está bem. Só que não precisava ser tão depressa. Meu cérebro não registrou ainda os tamanhos novos dos meus braços e das minhas pernas. Vou pegar uma coisa com as pontas dos dedos, bato com o punho nela; vou me sentar num banco, caio de costas; vou pular uma vala de um metro de largura, voo dois metros a mais.
Acho que vou desistir de ser escritor.
Vou é ficar aqui neste buraco e morrer. Estou perdido mesmo, ninguém vai me achar. A única hipótese contrária é que, como estão procurando o Victor, acabam me descobrindo.
Acontece que não avisei para ninguém que tinha vindo ver o Victor voar.
B
Victor. Os sobrinhos o chamavam de Vito e todos na família se acostumaram a chamá-lo assim. Mesmo eu, só muito recentemente é que me dei conta de que ele se chama Victor, assim, com todas as consoantes bem pronunciadas, como vovó — sua mãe — queria, quando foi batizado. De longe deu para ver o nome que ele escolheu para ficar famoso, pintado em branco sobre as cores quentes do arco-íris (vermelho, laranja e amarelo): Vito Grandam.
Deve estar com vinte, vinte e um anos. Não o vejo há algum tempo. Quando meus pais se separaram fui morar com mamãe em Belo Horizonte, depois fui para a serra de Carajás com meu pai, rodei por este mundo, muito difícil voltar ao Rio de Janeiro, perdi o contato mais direto com ele.
A gente foi parando de ficar todo dia juntos assim que ele deixou de ser um menino (isto acontece, em geral, ali pelos catorze, quinze anos do amigo mais velho). Victor chegou aos quinze anos do mesmo tamanho que tinha aos onze. Já era um rapazinho, mas continuava com o tamanho de um menino. Foi quando a família começou a se preocupar. Minha mãe, então, era a que se preocupava mais. Sofria! Victor era seu irmão caçula, temporão. Minha avó tinha mais de quarenta anos quando ele nasceu e as duas irmãs mais velhas da mamãe, minhas tias, já estavam casadas. Mamãe, a única solteira, era uma moça feita. Morando os dois na casa dos meus avós, mamãe virou a babá do Victor e tinha o maior luxo com ele. Acho até que é sua madrinha. Ele era o homem da família e precisava ficar tão forte e tão alto quanto o avô dos