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As aventuras de Huckleberry Finn
As aventuras de Huckleberry Finn
As aventuras de Huckleberry Finn
E-book461 páginas6 horas

As aventuras de Huckleberry Finn

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Sobre este e-book

Hucklerberry sofre com os maltratados do pai, um bêbado que somente tem interesse pelo dinheiro do rapaz. Para fugir de tal situação, Huck Finn decide fingir que foi assassinado. Então junto com Jim, o escravo fugitivo, embarca em uma jornada em direção a uma ilha. No caminho, vivem várias aventuras ao se envolver em golpes e lideram com famílias rivais, entre outras. Tudo isso em busca de tão sonhada liberdade.
IdiomaPortuguês
EditoraPrincipis
Data de lançamento27 de jul. de 2021
ISBN9786555526127
As aventuras de Huckleberry Finn
Autor

Mark Twain

Mark Twain, who was born Samuel L. Clemens in Missouri in 1835, wrote some of the most enduring works of literature in the English language, including The Adventures of Tom Sawyer and The Adventures of Huckleberry Finn. Personal Recollections of Joan of Arc was his last completed book—and, by his own estimate, his best. Its acquisition by Harper & Brothers allowed Twain to stave off bankruptcy. He died in 1910. 

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    As aventuras de Huckleberry Finn - Mark Twain

    CAPÍTULO I

    Você não me conhece se não leu um livro chamado As aventuras de Tom Sawyer, mas não faz mal. Aquele livro foi escrito pelo senhor Mark Twain, e ele falou a verdade, basicamente. Teve coisa que ele exagerou, mas basicamente falou a verdade. Isso não tem importância. Nunca vi alguém que não mente de vez em quando, talvez a tia Polly (a tia Polly do Tom), a viúva Douglas e a Mary, falam delas naquele livro, que é basicamente um livro verdadeiro, com alguns exageros, como eu já disse.

    Agora, o jeito como o livro acaba é assim: Tom e eu encontramos o dinheiro que os ladrões esconderam na gruta, e ficamos ricos. A gente ficou com seis mil dólares cada um, tudo em ouro. Olhar pra aquela montoeira de ouro dava até tontura. Bom, o juiz Thatcher pegou e pôs pra render a juro, e isso dava pra cada um de nós, um dólar por dia pelo ano todo; mais do que uma pessoa saberia como usar. A viúva Douglas me pegou como filho pra me criar e me sivilizar, mas era duro viver na casa o tempo todo, porque ela era tão rígida e certinha que dava vontade de chorar. Então, quando eu não aguentei mais, dei no pé. Peguei de volta meus trapos e meu barril de açúcar e fiquei livre e muito do contente. Mas o Tom Sawyer, ele me caçou e disse que começaria uma gangue de ladrão, e que eu podia fazer parte se eu voltasse pra viúva e fosse respeitável. Então eu voltei.

    A viúva chorou rios em cima de mim e me chamou de pobre ovelha desgarrada e de vários outros nomes, mas não foi com má intenção. Ela botou roupa nova em mim outra vez e eu não podia fazer mais nada, só suar e suar, e me sentia todo amarrado. Bom, daí a velha história começou tudo de novo. A viúva tocava um sino pra janta e tinha que ir na hora. Quando chegava na mesa, não podia ir logo comendo, tinha que esperar a viúva baixar a cabeça e resmungar umas coisas em cima da boia, apesar de não ter nada errado com a boia; quer dizer, só que tudo era cozinhado separado. Quando os restos de comida estão tudo junto, é diferente, as coisas misturadas dá um caldo melhor.

    Depois da janta, ela pegava o livro lá dela e me ensinava sobre Moisés e uns sujeitos dos Papiros, e eu dava duro pra aprender tudo dele, mas só que ela, sem querer, deixou escapar que o Moisés já tinha esticado as canelas muito tempo antes; então eu não quis mais saber dele, porque gente morta não me interessa.

    Daí eu quis fumar e pedi permissão pra viúva. Ela não deixou e disse que era uma prática prejudicial e nada higiênica, e que eu devia tentar não fazer mais. Tem gente assim, que fala mal de coisas que nem conhece direito. Ela se importava tanto com o Moisés, que não era parente dela nem tinha serventia nenhuma pra ninguém, pois tava morto, você vê só, mas me achava muito errado por eu fazer uma coisa boa. E ela cheirava rapé, também, mas claro que tudo bem, porque era ela.

    A irmã da viúva, a senhorita Watson, uma solteirona magrela e de óculos, tinha ido morar com ela pouco tempo antes, pegou uma cartilha, veio sentar comigo e ficou me infernizando por uma hora, até a viúva falar pra ela aliviar um pouco comigo. Eu também não ia aguentar mais muito tempo. Daí, por mais uma hora, tudo ficou um tédio de morrer, e eu fiquei nervoso. A senhorita Watson falava: Não ponha os pés aí em cima, Huckleberry, e Não se sente torto desta forma, Huckleberry, endireite-se, e em seguida Não boceje nem se espreguice deste modo, Huckleberry. Por que você não tenta se comportar?. Daí ela me contou tudo sobre o lugar ruim, e eu respondi que bem que queria estar lá. Isso deixou ela louca, mas eu não fiz por mal. Eu só queria ir pra algum lado, só queria mudar de ares, mas não precisava ser pros de lá. Ela disse que o que eu tinha dito era uma ruindade e que ela não diria aquilo por nada no mundo e que viveria a vida pra ir pro lugar bom; eu não via vantagem alguma em ir pra onde ela ia, então decidi nem tentar. Mas não falei nada, porque só ia dar confusão sem fazer bem nenhum.

    Mas já que ela já tinha começado, ela resolveu continuar e me contou tudo sobre o lugar bom. Falou que a única coisa que a pessoa precisava fazer lá era andar de um lado pro outro tocando harpa pra sempre. Não achei grande coisa, mas nem falei nada. Eu perguntei se ela pensava que o Tom Sawyer ia pra lá, e ela falou que não, de jeito nenhum. Fiquei contente com isso, porque queria que a gente ficasse junto.

    A senhorita Watson continuou me amolando e eu fiquei cansado e me sentindo sozinho. Depois juntaram os escravos em casa, todo mundo rezou e foi pra cama. Eu subi pro meu quarto com um toco de vela e botei ele na mesa. Depois sentei numa cadeira perto da janela e tentei pensar em uma coisa alegre, mas não funcionou. Eu tava tão sozinho que queria morrer. As estrelas brilhavam e as folhas roçavam na mata e tudo era triste feito um enterro; eu ouvi uma coruja piando como se alguém tivesse morrido e depois outro pássaro e um cachorro uivando como se alguém fosse morrer; e o vento tava tentando me cochichar alguma coisa também, mas eu não consegui entender o que era, então isso me deu uns arrepios.

    Depois, veio da mata um tipo de som que é o que um fantasma faz quando quer contar uma coisa e não consegue por pra fora, por isso não consegue descansar em paz na cova e fica zanzando a noite toda, gemendo. Fiquei triste, com medo e quis muito ter alguma companhia. Não demorou nada e uma aranha veio subindo pelo meu ombro, eu dei um peteleco nela e ela caiu na vela; daí, tão rápido que eu nem consegui fazer nada, ela ficou toda esgrouvinhada. Eu não precisava de ninguém pra me dizer que isso era um baita de um mau sinal e que me traria muito azar, fiquei tão assustado que quase arranquei as roupas. Fiquei de pé e andei de costas o caminho que tinha andado pra frente, e fiz o sinal da cruz a cada volta; amarrei um tufo de cacho do meu cabelo com linha pra afastar as bruxas. Mas não senti confiança. Você faz isso quando acha uma ferradura e em vez de pendurar em cima da porta, você acaba perdendo ela, mas eu nunca tinha ouvido falar que isso também servia pra manter o azar longe quando você mata uma aranha.

    Sentei de novo tremendo todo e peguei o cachimbo pra pitar, a casa tava calada feito a morte e a viúva não ficaria sabendo. Bom, depois de um tempão, eu escutei bater o relógio da cidade: bóim, bóim, bóim, 12 badaladas; e depois tudo calado de novo, até mais do que antes. Não demorou nada e escutei um galho estalar no escuro, no meio das árvores; tinha coisa se mexendo. Fiquei parado imóvel escutando. Aí ouvi muito baixinho um mi-au, mi-au lá fora. Eita, aquilo era bom! Respondi: mi-au, mi-au! também bem baixo, apaguei a vela e pulei da janela pro telhado do galpão. Depois escorreguei até o chão e me arrastei entre as árvores e, macacos me mordam, lá tava o Tom Sawyer me esperando.

    CAPÍTULO II

    A gente foi de ponta de pé por um caminho entre as árvores até chegar nos fundos do jardim da viúva, agachado pros galhos não arranhar nossas cabeças. Quando a gente passou pela cozinha, eu trupiquei numa raiz e fiz barulho. A gente se encolheu e parou imóvel. O escravo grandalhão da senhorita Watson, chamado Jim, tava sentado na porta da cozinha; dava pra ver muito bem, porque tinha uma luz atrás dele. Ele ficou de pé e esticou o pescoço pra fora por um minuto inteiro, ouvindo, e daí falou:

    – Quem taí?

    Ele ouviu mais um pouco; depois veio de ponta de pé e parou bem no meio de nós, quase dava pra encostar nele. Bom, pareceu que passaram vários minutos e não teve nenhum barulho, e nós três ali, colados. Um lugar do meu tornozelo começou a pinicar, mas eu nem arrisquei me mexer, depois começou a coçar minha orelha, depois minhas costas, bem no meio dos ombros. Parecia que eu ia morrer se não coçasse. Já vi muito disso. Se você tá com gente grã-fina ou num enterro ou tentando dormir e não tá com sono, se você tá num lugar onde não pode se coçar, daí é que as coceiras coçam mesmo em mil lugares no corpo todo. Dali a pouco o Jim diz:

    – Fala... Quem é ocê? O que é ocê? E que se lasque se num escuitei alguma coisa. Eu sei o que eu vou fazê, eu vou se sentá aqui e escuitá até escuitá de novo.

    Então, ele sentou no chão entre Tom e eu. Apoiou as costas numa árvore e esticou as pernas até que uma delas quase encostou na minha. Meu nariz começou a pinicar. Pinicou até meus olhos encher de lágrimas, mas eu não cocei. Daí começou a pinicar do lado de dentro. E depois pinicou na parte de baixo. Eu não sabia como conseguiria ficar parado imóvel. Essa agonia duma figa durou uns seis ou sete minutos, mas pareceu bem mais. Nessa altura eu tava com piniquera em 11 lugares diferentes. Eu achava que não aguentaria mais nem um segundo, mas mordi os dentes com força e me preparei pra tentar. Aí o Jim começou a respirar pesado, logo tava roncando, e eu não tinha mais coceira nenhuma.

    Tom fez um sinal pra mim, um tipo de um barulhinho com a boca, e a gente foi embora engatinhando. Quando a gente tava a uns três metros, Tom cochichou pra mim que de brincadeira queria amarrar o Jim numa árvore. Mas eu falei que não, que ele podia acordar e aprontar uma confusão e todo mundo descobriria que eu tinha saído, foi o que eu avisei. Daí o Tom falou que ele não tinha vela suficiente e que ele entraria na cozinha pra pegar um pouco. Eu não queria que ele tentasse. Eu falei que o Jim podia acordar, mas o Tom quis arriscar, então a gente deslizou pra lá e pegou três velas e Tom deixou cinco centavos na mesa como pagamento. Daí a gente saiu e eu tava aflito pra escapar, mas nada convencia o Tom que foi se arrastando de gatinhas até onde o Jim tava e pregou uma peça nele. Eu esperei e pareceu um tempo danado de comprido, tudo tava muito quieto e solitário.

    Assim que Tom voltou, a gente seguiu pela senda, contornou a cerca do jardim e logo chegou no alto do morro que fica do outro lado da casa. O Tom contou que ele tirou o chapéu do Jim e pendurou em um galho bem em cima dele, e que o Jim se mexeu um pouco, mas não acordou. Tempos depois, Jim falava que as bruxas tinham enfeitiçado e colocado ele num transe, levando ele pelo Estado todo, e depois colocado ele debaixo da árvore de novo, e pendurado o chapéu num galho pra mostrar quem tinha feito aquilo. E da vez seguinte que o Jim contou, as bruxas tinham levado ele pra Nova Orleans; e, depois disso, toda vez que ele contava, ele exagerava mais um tanto, até que chegou uma hora que ele falava que tinham levado ele pro mundo todo e deixado tão cansado que ele quase morreu, e o seu traseiro ficou que era só pereba, de tanto ficar na sela. O Jim tinha um orgulho desgramado disso, e ficou tão metido que mal dava atenção pros outros negros, que vinham das maiores lonjuras pra escutar o Jim contar o caso, e ele era mais admirado do que qualquer negro do país. Os negros que ninguém conhecia ficavam parados de boca aberta olhando o Jim de alto a baixo, como se ele fosse uma maravilha. Os negros sempre conversam sobre bruxa no meio do escuro, junto do fogo da cozinha; mas sempre que alguém abria a boca pra contar dessas coisas, o Jim se metia e falava: Hunf! Que que ocê sabe de bruxa?, e o negro que tava falando tinha que calar o bico e se encolher. O Jim sempre levava a moeda de cinco centavos num cordão no pescoço, e dizia que era um talismã que o diabo tinha dado pra ele com as próprias mãos; e com a moeda, o Jim podia curar qualquer um e chamar as bruxas qualquer hora que quisesse, era só falar a coisa certa pra moeda, mas ele nunca contou o que era que precisava falar. Vinha negros de todo lado e eles davam pro Jim o que tivesse, só pra poder espiar a moedinha; mas não botavam a mão nela, porque o diabo tinha botado a dele. O Jim não prestava mais como empregado, ficou metido demais, tinha visto o demo e passeado com as bruxas.

    Bom, o Tom e eu chegamos no topo do morro, a gente olhou pra baixo na vila e deu pra ver três ou quatro luzes piscando, pode ser que onde tinha gente doente; as estrelas em cima de nós brilhavam de um jeito lindo; e lá embaixo, do lado da aldeia, tinha um rio de mais de um quilômetro de largura, assombroso de tão parado e grande. A gente desceu o morro e encontrou o Jo Harper e o Ben Rogers e mais dois ou três meninos, tudo escondido no velho curtume. Então, a gente desamarrou uma canoa e desceu o rio por uns 4 quilômetros, até a falha no barranco, e foi pra margem.

    A gente foi até uns arbustos e o Tom fez todo mundo jurar que guardava segredo, e depois mostrou pra nós um buraco na encosta do morro, bem na parte mais grossa dos arbustos. Daí acendemos as velas e ficamos engatinados. A gente se arrastou uns duzentos metros e foi quando apareceu a gruta. O Tom tateou pelo meio da passagem e logo se enfiou debaixo duma parede, que ninguém notaria que tinha um buraco. A gente passou por um lugar bem apertado e saiu num tipo de sala toda molhada, peguenta e fria e daí a gente parou. O Tom disse:

    – Agora, vamos começar nossa gangue de salteadores, que vai chamar Gangue do Tom Sawyer. Todo mundo que quiser participar tem que fazer um juramento e escrever o nome com sangue.

    Todo mundo quis. Daí o Tom pegou uma folha de papel em que tinha anotado o juramento, e leu. O juramento dizia que todos os meninos tinham que continuar no bando e nunca revelar os segredos; que, se uma pessoa fizesse qualquer coisa contra um menino do bando, o menino que recebesse ordem de matar aquela pessoa e a família dela tinha que matar mesmo, e que não podia comer nem dormir até ter matado todos e também feito uma cruz no peito dos mortos, que a cruz era a marca da gangue. Ninguém que não fosse do bando podia usar a marca da cruz, e se alguém usasse devia ser processado; e se usasse de novo, deveria ser morto. E qualquer um do bando que revelasse os segredos teria a garganta cortada, o corpo queimado e as cinzas espalhadas pra todo lado, o nome seria riscado da lista com sangue e nunca mais mencionado de novo pela gangue, além de ser amaldiçoado e esquecido pra todo o sempre.

    Todo mundo achou que era um juramento lindo, e perguntou pro Tom se ele tinha inventado da cabeça dele mesmo. Ele disse que algumas partes sim, mas que o resto era de livro de pirata e de livro de salteador e que todo bando digno do nome tinha um juramento.

    Alguns acharam que era boa ideia matar a família do menino que contasse os segredos. Tom disse que a ideia era boa, então pegou o lápis e escreveu no papel. Mas daí o Ben Rogers falou:

    – Mas o Huck Finn não tem família; o que você vai fazer com ele?

    – Ué, ele não tem pai? – o Tom respondeu.

    – Tem pai, mas ninguém sabe por onde anda. Antes ele rolava de bêbado no meio dos porcos do curtume, mas agora faz um ano ou mais que ninguém dá com ele pra esses lados de cá.

    Eles conversaram e já iam me colocando pra fora, porque falaram que todo menino tem que ter uma família ou alguém que os outros possam matar, que se não fosse assim não seria justo com os outros meninos. Bom, ninguém conseguia pensar numa saída, todo mundo ficou embatucado e calado. Eu já tava quase chorando, quando tive uma ideia, ofereci pra eles a senhorita Watson; podiam matar ela. Todo mundo respondeu assim:

    – Tá bom, ela serve. Tudo certo, o Huck pode entrar.

    Eles furaram o dedo com um alfinete pra ter o sangue para as assinaturas, e eu fiz minha marca no papel também.

    – Agora – o Ben Rogers falou –, qual é a linha de ação desta Gangue?

    – Nada, só assalto e assassinato. – Tom respondeu.

    – Mas o que a gente vai roubar? Casa, gado, ou...

    – Asneira! Roubar gado e coisas assim não é assalto, é criminho de meia-tigela. – Tom Sawyer respondeu. – Não somos arrombadores. Esse não é nosso estilo. Somos salteadores de estrada. Vamos parar as carroças no caminho, usando máscara, matar as pessoas e pegar seus relógios e o dinheiro.

    – Temos sempre que matar as pessoas?

    – Ah, certeza. É melhor. As autoridades têm outra opinião, mas em geral a maioria concorda que o melhor é matar, mesmo. Menos as que você prender aqui na gruta, até elas serem resgatadas.

    – Resgatadas? O que é isso?

    – Não sei. Mas é o que eles fazem, eu vi nos livros; então é claro que é isso que a gente precisa fazer também.

    – Mas como a gente pode fazer uma coisa que não sabe o que é?

    – Com mil diabos, nós precisamos fazer isso. Não falei que é o que está nos livros? Você quer fazer diferente do que está nos livros, e estragar tudo?

    – Eita, falar é fácil, Tom Sawyer, mas como diachos esses sujeitos serão resgatados se não sabemos como fazer isso com eles? Isso é que eu quero saber, aí que eu quero chegar. Agora, o que você acha que é?

    – Sei lá. Talvez, prender as pessoas até elas serem resgatadas, signifique deixar essas pessoas presas até elas morrerem.

    – Bom, pelo menos já é alguma coisa. Agora dá pra entender. Por que você não falou antes? Vamos manter as pessoas presas até elas serem resgatadas pra morte. Mas também, elas serão uma chatice dura de aturar, comendo tudo e tentado fugir o tempo todo.

    – Mas quanta asneira você fala, Ben Rogers. Como que eles fugiriam, se vai ter um guarda vigiando, pronto pra atirar se eles se mexerem um tico que seja?

    – Um guarda! Uau, agora eu gostei! Então alguém tem que ficar vigiando a noite toda e nunca dormir só pra ficar de olho neles. Acho que isso, sim, é que é asneira. Por que a gente não pega um pedaço de pau e resgata eles assim que eles chegarem aqui?

    – Porque não é assim que está nos livros, por isso! Agora, Ben Rogers, você quer fazer isso do jeito certo ou não quer? A ideia é essa. Você não percebe que as pessoas que escrevem livros sabem qual é a coisa certa a fazer? Acha que você pode ensinar alguma coisa pra elas? Claro que não, de jeito nenhum. Não senhor, nós vamos em frente assaltando na estrada e resgatando as pessoas como manda o figurino.

    – Ah, tá bom. Eu não ligo, mas é uma bobagem, isso eu vou te falar. E conta, vamos matar as mulheres, também?

    – Minha nossa, Ben Rogers, se eu fosse ignorante como você, eu não abriria a boca. Matar as mulheres? Não. Ninguém nunca viu nada parecido com isso nos livros. Elas, você pega, traz pra gruta, e é sempre educado e trata bem; e aos poucos elas se apaixonam por você e depois nunca mais querem ir embora pra casa.

    – Bom, se é assim, tô de acordo, mas não boto muita fé. Porque logo a gruta vai ficar pelas tampas de mulher e de homem esperando ser resgatado, e não terá espaço pros assaltantes. Mas vai em frente, eu não vou dizer mais nada.

    O pequeno Tommy Barnes tinha caído no sono e quando foram acordar, ele se assustou e disse que queria ir pra casa de volta pra mãe, e que não queria mais ser assaltante.

    Daí todo mundo fez zombaria chamando ele de bebê chorão, ele ficou bravo e falou que ia direto contar todos os segredos. Mas o Tom deu cinco centavos pra comprar o silêncio dele. Disse que todo mundo tava indo pra casa e que na semana seguinte a gente se encontraria pra roubar alguém e matar umas pessoas.

    Ben Rogers falou que não podia sair a hora que queria, só de domingo, então queria começar no domingo da outra semana, mas todos os outros meninos falaram que dava mau agouro fazer crime em dia santo, e isso botou um ponto final na coisa. Todo mundo concordou de se encontrar e marcar uma data que todos pudessem, depois a gente elegeu Tom Sawyer primeiro capitão e Jo Harper segundo capitão da Gangue, e daí tomou o rumo de casa.

    Eu trepei no telhado do galpão e saltei pra dentro pela janela, um pouco antes do dia nascer. Minhas roupas novas estavam ensebada e empoeirada e eu tinha um cansaço que era o cão.

    CAPÍTULO III

    Bom, de manhã tive que ouvir um sermão da velha senhorita Watson pelo estado das minhas roupas; mas a viúva, ela não deu bronca, só tirou o sebo e a sujeira, e ficou tão tristonha que eu pensei que me comportaria por um tempo, se conseguisse. Daí a senhorita Watson me levou pro quarto e rezou, mas não aconteceu nada. Ela me falou pra rezar todo dia, e o que eu pedisse, eu conseguiria. Mas não foi bem assim. Eu tentei. Uma vez, consegui uma linha de pesca, mas sem anzol. A linha não tinha serventia nenhuma sem os anzóis. Eu rezei pelo anzol três ou quatro vezes, mas por algum motivo não funcionou. Depois, com jeitinho, pedi pra senhorita Watson rezar por mim, mas ela falou que eu era um tolo. Ela nunca me contou por quê, e eu sozinho não consegui atinar de jeito nenhum.

    Fui sentar na mata e fiquei matutando um bom tempo. Eu falei pra mim mesmo: se uma pessoa consegue o que pediu rezando, por que o diácono Winn não conseguiu de volta o dinheiro que ele perdeu fazendo negócios com porco? Por que a senhorita Watson não consegue engordar? Não, falei pra mim mesmo, isso daí é balela. Eu voltei e disse isso pra viúva, e ela respondeu que o que a pessoa consegue quando reza são dádivas espirituais. Essa daí foi complicada demais, mas ela me explicou: é que eu devo ajudar outras pessoas, fazer tudo que puder pelos outros e cuidar deles o tempo todo e nunca pensar em mim mesmo. Isso era incluindo a senhorita Watson, pelo que entendi. Saí pra mata de novo e matutei aquilo na cabeça um tempão, mas não vi vantagem nenhuma, só pros outros, então decidi que não mais me preocuparia com isso e deixaria passar. De vez em quando, a viúva me levava pra um canto e falava da Providência de um jeito que dava água na boca; mas só que no dia seguinte a senhorita Watson assumia e derrubava tudo outra vez. Então eu entendi que tinham duas Providências, e que um zé-ninguém tava bem se fosse pra Providência da viúva, mas que se fosse a Providência da senhorita Watson, não tinha saída pra ele. Pensei e ruminei as ideias tudo e quis ser da Providência da viúva, se a Providência da viúva me aceitasse, apesar que eu não conseguia entender como eu ficaria melhor lá do que estava aqui, já que eu era tão ignorante, chucro e ordinário.

    Meu pai não aparecia tinha mais de ano, e eu tava achando muito bom; eu nem queria mais ver ele. Ele sempre me batia, quando não estava de pileque e conseguia botar as mãos em mim, apesar que eu fugia pra floresta a maior parte do tempo que ele tava por perto. Nessa altura, tinham achado ele afogado no rio, quase vinte quilômetros pra cima da vila, foi o que falaram. Pelo menos acharam que era ele; falaram que o afogado era do tamanho dele, que tava todo esfarrapado e tinha cabelo comprido, como pouco homem usa, e todo desgrenhado igual o do meu pai; mas da cara ninguém falou nada, porque tinha ficado na água tanto tempo que já nem parecia uma cara. Pegaram o corpo e enterraram na margem. Mas eu não fiquei em paz muito tempo, porque pensei uma coisa. Eu sei muito bem que homem não se afoga de costas. Então eu sabia que aquele não era o meu pai, e sim uma mulher vestida com roupa de homem. Daí fiquei aflito de novo. Achei que o velho apareceria de novo sem demora, apesar que eu esperava que não.

    A gente brincou um pouco de ladrão durante um mês, e depois eu desisti. Todos os meninos desistiram. A gente não tinha roubado ninguém, matado nenhuma pessoa, só fingido, mesmo. A gente costumava sair correndo da mata e perseguia os motoristas que tavam carregando porcos e as mulheres que iam de carroça levar as flores pra feira, mas sem nunca atacar ninguém. Tom Sawyer chamava os porcos de ingote e os nabos e outras verduras de joia, daí a gente ia pra gruta e comemorava o que tinha feito e quantas pessoas a gente tinha matado e marcado. Mas eu não via vantagem nenhuma nisso. Uma vez, o Tom mandou um menino correr pela aldeia com uma vareta em chamas, que ele chamava de sinal (porque era o sinal pro bando de juntar), e depois falou que tinha conseguido com os espiões uma informação secreta, que no outro dia, montes de mercadores espanhóis e árabes ricos acampariam em Cave Hollow com duzentos elefantes, seiscentos camelos e mais de mil bestas de carga levando diamantes, e que eles só tinham quatrocentos guardas, então a gente montaria uma emboscada, como ele chamou, e matar todo mundo e pegar as coisas. Ele falou que a gente devia azeitar as espadas e armas, e se aprontar. Ele mesmo nunca que tinha conseguido perseguir nem um carrinho de nabo, mas cismou que as espadas e as armas tinham que tá brilhando, mesmo que elas só fossem uns pedaços de pau e umas vassouras, e você podia dar lustro o dia inteiro até morrer de cansaço, e eles não valeriam um centavo furado mais do que antes. Eu não acreditei nem um segundo que a gente conseguiria dar uma coça naquele mundaréu de espanhóis e nos árabes, mas queria ver os camelos e os elefantes, então no dia seguinte, eu fui pra emboscada e quando a gente recebeu o sinal saiu correndo da mata morro abaixo, só que não tinha espanhóis nem árabes nenhum, muito menos camelos ou elefantes. Não tinha nada lá, só um piquenique da escola dominical, e mesmo assim era a classe do primeiro ano. A gente invadiu e correu atrás das crianças pelo morro, mas nem conseguimos pegar nada, só bolinho e geleia, apesar que o Ben Rogers conseguiu uma boneca de pano e o Jo Harper pegou um livro de hino e um panfleto, e depois o professor apareceu e obrigou a gente a devolver tudo e dar no pé.

    Eu não vi nenhum diamante e falei isso pro Tom Sawyer. Ele falou que tinha montes de diamantes lá, árabes também, elefantes e outras coisas. Eu perguntei, então por que a gente não viu? E ele respondeu que se eu não fosse tão burro e que se tivesse lido um livro chamado Dom Quixote, eu ia saber sem nem precisar perguntar. Ele falou que era tudo feito por encantamento. Falou que tinha centenas de soldados lá, elefantes, tesouros e assim por diante, mas que a gente tinha inimigos, que ele chamou de mago, e que eles tinham virado as coisas em piquenique de criança da escola dominical só por despeito. Eu falei tá bom, e depois que a gente devia ir atrás dos magos. Tom Sawyer me chamou de mais burro do que uma cavalgadura.

    – Isso porque – Tom Sawyer disse – um mago poderia chamar uma porção de gênios, e eles dariam em você uma surra que você nunca esqueceria, e isso antes que você pudesse dizer Jack Robinson. Gênios são altos como uma árvore e largos como uma igreja.

    – Bom – eu respondi –, e se a gente chamasse os gênios pra nos ajudar? Daí a gente não dava uma coça naquele mundaréu?

    – Como você os chamaria?

    – Não sei. Como que chama eles?

    – Ué, eles esfregam uma lâmpada velha de latão ou um anel de ferro e daí os gênios aparecem com uma explosão de trovões, raios e sobe uma fumaça, e tudo que a gente fala pra eles fazerem eles fazem. Pra eles, não custa nada arrancar uma torre de pedra pela base e bater com ela na cabeça do diretor da escola dominical ou de qualquer outro homem.

    – Quem manda eles fazerem isso?

    – Eita, os gênios são de quem esfrega a lâmpada ou o anel, e têm que fazer o que a pessoa mandar. Se a pessoa mandar um gênio construir um palácio de diamantes de sessenta e cinco quilômetros de comprimento, encher de chiclete ou de qualquer outra coisa, e raptar a filha do imperador da China pra casar com ela, o gênio tem que fazer. E tem que fazer antes do nascer do dia seguinte, também. E mais: o gênio tem que levar o palácio valsando pra qualquer lugar do país que você quiser.

    – Bom – eu falei –, eu acho que os gênios são mais burros que cavalgaduras por não ficar eles mesmos com o palácio, em vez de ficar dançando com ele por aí. E tem outra coisa: se eu fosse eles, eu ia até onde Judas perdeu as botas pra não precisar largar o que eu tivesse fazendo só pra atender o esfregador de uma lâmpada velha de latão.

    – Quanta asneira você fala, Huck Finn. Você teria que vir quando alguém esfregasse, quisesse você ou não.

    – O quê? Sendo alto feito uma árvore e largo feito uma igreja? Bom, pode ser que eu viesse, mas eu faria esse homem trepar na árvore mais alta que tivesse no país.

    – Arre, não adianta falar com você, Huck Finn. Você parece que nunca consegue entender nada. Um perfeito panguá.

    Ruminei aquilo tudo por dois ou três dias, e depois decidi tirar a prova. Peguei uma lâmpada velha de latão, um anel de ferro e fui pra floresta, esfreguei e esfreguei até ficar suado feito um índio, pensando em construir um palácio e vender. Mas não adiantou de nada, não saiu foi gênio nenhum. Daí entendi que tudo aquilo lá era só mais uma das mentiras do Tom Sawyer. Entendi que ele acreditava nos árabes e nos elefantes, mas eu? Eu pensava diferente. Aquilo lá era direitinho a escola dominical cuspida e escarrada.

    CAPÍTULO IV

    Bom, três ou quatro meses passaram e já era inverno. Eu tinha ido na escola quase o tempo todo e conseguia soletrar, ler e escrever um pouco, e sabia a tabuada. Até seis vezes sete igual a trinta e cinco, e acho que não conseguiria ir muito mais adiante do que isso daí, mesmo se vivesse pra sempre. Também, eu nem ligo pra matemática mesmo.

    Primeiro, eu detestava a escola, mas depois, aos bocadinhos, consegui ir aguentando. Quando eu ficava muito cansado, fazia gazeta, e a sova que eu levava no dia seguinte me fazia bem e me animava. Então, quanto mais eu ia pra escola, mais fácil ia ficando. Eu também tava mais ou menos acostumando com o jeito da viúva, elas também não pegavam mais tanto no meu pé. Morar em casa e dormir em cama me botava nervoso a maior parte do tempo, mas antes do inverno eu fugia de vez em quando pra dormir na floresta, e aquilo era bom demais, uma folga e tanto pra mim. Eu gostava mais de como era antes, mas também estava gostando do jeito novo, um tico. A viúva falava que

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