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Gênero em Pauta: Desconstruindo Violências, Construindo Novos Caminhos
Gênero em Pauta: Desconstruindo Violências, Construindo Novos Caminhos
Gênero em Pauta: Desconstruindo Violências, Construindo Novos Caminhos
E-book450 páginas13 horas

Gênero em Pauta: Desconstruindo Violências, Construindo Novos Caminhos

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Sobre este e-book

Plural, diverso e espaço de construção de debate e reflexão a respeito de gênero: essa é a proposta do livro Gênero em pauta: desconstruindo violências, construindo novos caminhos. Nele, estão refletidas as preocupações de gênero presentes em pesquisas lideradas por professoras doutoras de universidades brasileiras e estrangeiras, também com participação de pesquisadoras e pesquisadores, graduandas, graduados, mestrandas, doutorandas, doutorandos e doutores. A obra articula diferentes redes de pesquisa nacionais e internacionais em torno dos estudos de gênero.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento8 de jul. de 2019
ISBN9788547320553
Gênero em Pauta: Desconstruindo Violências, Construindo Novos Caminhos

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    Gênero em Pauta - Katia Maria Belisário

    AUTORES

    PARTE I

    VIOLÊNCIAS, DESIGUALDADES E REPRESENTAÇÕES DE GÊNERO

    A VIOLÊNCIA CONTRA AS MULHERES: CRIMES DE FEMINICÍDIO E SEU ENQUADRAMENTO MIDIÁTICO

    Lourdes Maria Bandeira

    Ana Paula Antunes Martins

    Introdução

    O uso do conceito de ‘enquadramento’ vem sendo bastante empregado pelos estudos da área midiática desde a década de 1980, que utilizam essa categoria e definem que:

    [...] sua origem [está] ligada a diferentes teorias desenvolvidas na intersecção entre psicologia social e sociologia. O psicólogo social Gregory Bateson é frequentemente considerado o primeiro a empregar o termo com um conteúdo próximo ao que ele tem hoje nos estudos de mídia [...] Bateson ressalta a importância dos sinais metalinguísticos que trocaos quando interagimos e como eles são capazes de redefinir o conteúdo efetivamente comunicado entre duas ou mais pessoas (CAMPOS, 2014, p. 4/5).

    Embora não se trate aqui de uma pesquisa que enfatiza o campo dos estudos midiáticos, a tentativa de uso da categoria ‘enquadramento’ em uma perspectiva sociológica é apoiada na perspectiva metodológica do enquadramento a partir do pensamento de Erving Goffman que, por sua vez, recorre à ideia batesoniana de enquadramento para investigar em que circunstâncias os indivíduos tomam uma determinada situação como real. Mais do que definir filosoficamente como acessamos o real, Goffman retoma uma série de questionamentos sobre a maneira como os indivíduos definem a realidade, selecionando apenas alguns dos seus elementos e descartando outros (GOFFMAN, 2012 apud CAMPOS, 2014, p. 5). Para o autor, a subjetividade e o conjunto de significados empregados para decifrar e compreender a realidade constituem os alicerces daquilo que é considerado real para cada pessoa. Assim os enquadramentos são organizados e realizados sempre a partir de uma dada perspectiva intersubjetiva, pois os fatos e os eventos sobre os quais alguma consciência se dirige apenas são integrados à experiência de uma pessoa ou de uma instituição ou organização quando codificados e interpretados como objetos que devem provocar atenção. Goffman direciona suas reflexões para o enquadramento (frame), um amplo conceito que, ao se distanciar da realidade produzida por amplos sistemas sociais, aproxima-se do aspecto microscópico das interações interpessoais do cotidiano (HANGAI, 2012).

    Ainda segundo Campos (2012), a definição de uma situação é feita com base em princípios de organização que governam eventos, chamados aqui de enquadramentos (frames) (GOFFMAN, 1986, p. 10). O objetivo de uma análise de enquadramentos seria isolar alguns quadros de entendimentos básicos (basics frameworks of understandings) disponíveis na nossa sociedade para dar sentido a eventos e analisar vulnerabilidades especiais a que esses quadros de referência estão sujeitos (GOFFMAN, 1986, p. 10 apud CAMPOS, 2012, p. 5).

    Aqui nos interessa reter a ideia de que o enquadramento das notícias de mortes das mulheres pode remeter a fenômenos similares, isto é, quase sempre aponta para o modo como os indivíduos dotam de sentido uma situação, a partir de matrizes interpretativas previamente formadas, e como tais matizes podem engendrar mudanças comportamentais (CAMPOS, 2012, p. 7). Por fim ainda destaca Campos (2012) citando Entman (1993, p. 52) que: Enquadrar é selecionar alguns aspectos da realidade percebida e torná-los salientes em um texto comunicativo, de modo a promover uma definição particular de um problema, interpretação causal, avaliação moral ou recomendação de tratamento para o item descrito. No que diz respeito aos feminicídios, os enquadramentos realizados pela mídia representam interpretações e avaliações que muitas vezes reforçam estereótipos e produzem um movimento de culpabilização da vítima. Abordagens sensacionalistas geram desrespeito às vítimas, seja na condição de mortas ou de sobreviventes, assim como de seus familiares, expondo imagens de forma desnecessária e procurando ‘justificativas’ para a violência¹.

    Sobre a pesquisa realizada

    A pesquisa foi realizada pelas pesquisadoras do Grupo de Trabalho Femivida², vinculadas ao Núcleo de Estudos e de Pesquisas sobre a Mulher da Universidade de Brasília – Nepem/UnB, que coletou as notícias sobre a morte de mulheres publicadas pela mídia eletrônica³ a partir do momento da aprovação da Lei 13.104 – denominada Lei do Feminicídio.

    O período estabelecido compreendeu os três anos iniciais da aplicação da Lei, isto é, de 9/3/2015 até 9/3/2018, que marca a fixação da tipificação do crime de feminicídio na agenda do debate midiático e político. No total, foram compiladas/coletadas 1.946 notícias, o que equivale a quase duas mulheres assassinadas por dia (1,77) nesse cenário obtido a partir da análise da mídia eletrônica disponível/acessível em âmbito nacional. A coleta foi realizada nos 26 estados da Federação e mais o Distrito Federal, com o objetivo de levantar o número de notícias publicadas, no período referido, sobre morte, assassinato e feminicídio de mulheres. Vale destacar que essa coleta envolveu o universo de notícias disponibilizadas pelas mídias eletrônicas no recorte temporal mencionado e não necessariamente representa uma amostra regional das notícias, uma vez que os veículos são muito díspares em cada região do país. Tal situação acarreta quantitativos diferenciados de notícias sobre a morte de mulheres, a saber:

    TABELA 1: QUANTIDADE E PORCENTAGEM DE NOTÍCIAS DISTRIBUÍDAS POR REGIÕES BRASILEIRAS, CENTRO OESTE, NORDESTE, NORTE, SUDESTE E SUL: MARÇO DE 2015 A MARÇO DE 2018

    FONTE: Grupo Femivida. Brasília, 2018.

    Observa-se que são as regiões Centro-Oeste e Nordeste as que apresentam os mais elevados percentuais de assassinato de mulheres, embora, na realidade, os números podem ser mais elevados, sobretudo na região Sudeste. Deve-se considerar que as duas regiões são as de menor desenvolvimento socioeconômico, cujo IDH é de 753 e 659, respectivamente. Além disso, proporcionalmente, as mídias eletrônicas estão mais ostensivamente localizadas nessas duas regiões.

    Ao mesmo tempo, essas duas regiões são as que apresentam os menores percentuais de equipamentos públicos de controle e combate à violência, como Delegacias Especializadas de Atendimento às Mulheres, Centros de Referência de Atendimento às Mulheres, Varas e Juizados Especializados de Violência Doméstica e Familiar contra as Mulheres, entre outros.

    Outro fator histórico de relevância é lembrar que na região Nordeste se concentra um percentual expressivo da população negra feminina, ainda bastante vulnerável em relação aos escassos equipamentos públicos disponíveis, assim como apresenta índices significativos de baixa escolarização.

    Para a coleta das notícias foi considerada a perspectiva sociológica proposta por Erving Goffman (2012) baseada na teoria do ‘enquadramento midiático’ aplicada ao corpus das notícias. Segundo o autor, no geral, pode-se identificar os enquadramentos considerados pela mídia ao publicar uma dada notícia, episódio, fato ou informação, para a qual se utiliza de certas palavras, ideias, expressões, qualificativos, adjetivos que produzem determinados sentidos, significados, símbolos ou até mesmo mitos interpretativos sobre a notícia-acontecimento. A partir do enquadramento da notícia, algumas características, aspectos, pré-noções e até preconceitos são enfatizados e outros tantos podem ser omitidos. Com isso, produzem-se novas formas de leitura ou de entendimento sobre os fatos, seja pela sua exacerbação, seja pela sua omissão. Exemplo disso é a omissão significativa quanto à condição de raça/cor das mulheres assassinadas, muito embora as mulheres negras tenham chances muito mais elevadas de serem assassinadas do que as brancas. Tal ausência de informação está na contramão dos dados publicados pelo Mapa da Violência 2015: Homicídio de Mulheres no Brasil, que divulgou recentemente (9/10/2015), o aumento de aproximadamente 54% de assassinatos de mulheres negras em uma década (2003 a 2013), enquanto que em relação às mulheres brancas o percentual caiu em torno de 10%. Essas informações foram reafirmadas com a publicação do Relatório da Unesco no Brasil (2016), já mencionado (BANDEIRA; VIEIRA; CAMPOS, 2017, p. 11).

    No que diz respeito à dimensão visual do enquadramento, observa-se importantes distinções no modo como mulheres brancas e negras são caracterizadas. No geral, observa-se que nas notícias de feminicídios, as fotos de jovens, brancas e representantes de um padrão de beleza hegemônico são recorrentes, como se expressassem um lamento pela violência sofrida. No caso das mulheres com mais idade, assim como no das mulheres negras, as fotos são omitidas.

    Em relação aos homens, é destacada a brutalidade que caracteriza o crime, o que se dá, muitas vezes, por imagens das armas usadas no crime. Frases como deu dez facadas, cinco tiros na cabeça, tinha 12 boletins de ocorrência produzem a ideia/significado de que a violência seria constitutiva da própria natureza masculina, e não uma ‘prática’ aprendida desde sua socialização e que reduz as mulheres a objetos de prazer, de comando e de consumo. Paradoxalmente, ao enfatizar a ‘naturalização’ da violência masculina, deixa-se de caracterizar que a maioria dos crimes de gênero contra as mulheres vem sendo perpetrada por homens comuns, ordinários, que são pais de filhos, ou namorados e amantes, trabalhadores, filhos e cidadãos que, quando violentos, acabam cometendo o crime, muitos, diga-se de passagem, agravados pelo uso abusivo de álcool e outras substâncias psicoativas.

    O tipo de enquadramento que é feito da notícia pode produzir uma gama de emoções, pensamentos e de ideias, que segundo Kellner (2001) acabam potencializando uma audiência significativa, mas também pode incutir novos valores e preconceitos ao leitor. Para evidenciar a pertinência dessa perspectiva não se pode deixar de considerar que tanto o conteúdo como a forma da notícia veiculada podem ‘alterar’ substancialmente os juízos de valores e interpretativos do leitor.

    Nas notícias, são recortados ou enfatizados determinados aspectos do/sobre o fato, episódio ou do problema tornando-o mais enfático, e, portanto, mais real, o que acaba por ‘condicionar’ a leitura ou atitude dos leitores em relação ao noticiado; por fim, interfere-se seja na imagem das pessoas envolvidas, seja no fato em si, seja nas instituições e mesmo nos processos de mudanças sociais. Por exemplo, em aproximadamente 20% das notícias coletadas, ainda tem sido usada na publicação da notícia a nominação crime passional, o que poderá induzir o leitor a incriminar a mulher, isto é, a defrontar-se com um modelo pré-estabelecido de mulher, que ao não corresponder à imagem dominante passa a ser vista como desencadeadora do crime, seja por situações de ciúmes, seja por adultério, entre outras.

    Nesse sentido, vale lembrar o excelente trabalho, ainda muito válido, intitulado Legítima defesa da honra: ilegítima impunidade de assassinos, que mostra como a figura da ‘legítima defesa da honra’ fere tanto leis nacionais como tratados e normas internacionais dos quais o Brasil é signatário⁴. Ainda assim, persistem controvérsias entre doutrinadores brasileiros no que diz respeito à possibilidade de aplicar o dispositivo geral da legítima defesa aos casos de violência nas relações íntimas de afeto. Essas controvérsias referem-se à aplicação da legítima defesa como uma hipótese de exclusão da ilicitude, quando a conduta do agente se justifica de tal forma que é sequer considerada criminosa. O Código Penal, em seu artigo 25, define que entende-se em legítima defesa quem, usando moderadamente dos meios necessários, repele injusta agressão, atual ou iminente, a direito seu ou de outrem. A aplicabilidade desse dispositivo aos casos de violência doméstica e familiar contra as mulheres pressupõe uma noção ao mesmo tempo sexista e patrimonialista de que a autonomia das mulheres viola os direitos dos homens ao casamento e à livre disposição sobre os corpos femininos. Muito embora esse argumento jurídico esteja gradualmente perdendo força perante os tribunais, mantém significativa influência em amplos setores da sociedade, o que em grande medida se reforça pelos enquadramentos produzidos pela mídia.

    Por meio da análise do enquadramento utilizado pela mídia pode-se perceber não apenas seu desenho editorial, mas sobretudo, como as narrativas podem provocar/estimular certos interesses e mensagens que, transmitidas ao leitor ou à população, assim como a instituições e autoridades de modo geral, modelam comportamentos sociais e opiniões políticas fornecendo o material com que as pessoas forjam sua identidade (KELLNER, 2001, p. 9). Ainda segundo o autor a(s) mídia(s) atua(m) no sentido de:

    [...] fornecer os modelos daquilo que significa ser homem ou ser mulher, bem-sucedido ou fracassado, poderoso ou impotente. A cultura da mídia também fornece o material com que muitas pessoas constroem o seu senso de classe, de etnia e raça, de nacionalidade, sexualidade, de nós e eles. Ajuda a moldar a visão prevalecente de mundo e os valores mais profundos: define o que é considerado bom ou mau, positivo ou negativo, moral e imoral (p. 9).

    Portanto, o autor ancora a voz de muitos atores do Sistema de Justiça quando afirmam que em casos com grande repercussão na imprensa [...] admitem que a mídia pode influenciar no processo penal⁵. Por isso devem ser redobrados os cuidados dos profissionais de Comunicação ao cobrir um caso de feminicídio.

    Há, portanto, uma dimensão ética na atuação da mídia diante dos casos de violência em geral e, particularmente, nos casos de violência de gênero. Ainda que isso não tenha se propagado tanto quanto as iniciativas nacionais e internacionais de enfrentamento à violência contra as mulheres, é preciso assinalar o caráter formativo das narrativas produzidas pela mídia. O modo como os fatos são noticiados envolve relações de causa e efeito que, muitas vezes, buscam explicar a ocorrência de um acontecimento. Quando, por exemplo, uma notícia sobre um feminicídio brutal de uma mulher pelo marido afirma algo como estão sendo averiguadas as causas do crime, induz o leitor a buscar situações em que tal conduta seria justificada. Com isso, produz-se, discursivamente, um efeito de sentido segundo o qual a narrativa jornalística se aproxima da racionalidade do assassino. Portanto, de modo geral, pode-se afirmar que:

    É fundamental resgatar a dimensão ética dos meios de comunicação, também responsáveis por proporcionar, através da informação, melhorias nas condições de vida da população em geral. Nesse sentido, os meios de comunicação, especialmente a televisão e o jornal, devem tornar-se veículos primordiais de divulgação e reflexão de novas representações sobre a violência, contribuindo para uma visão menos estigmatizante e estereotipada de nossos problemas sociais (RAMOS; NOVO, 2003, p. 497).

    No caso específico da coleta sobre os crimes de morte de mulheres, por tratar-se de uma pesquisa de natureza quantitativa, compreendeu, inicialmente, os seguintes momentos: i) a coleta de notícias nos 26 estados da Federação e mais o Distrito Federal, com o objetivo de levantar o número de notícias publicadas; ii) na sequência, as notícias foram agrupadas por estado e respectiva região geográfica-administrativa para a sistematização e análise das características evidenciadas pela mídia eletrônica; iii) análise dos elementos constitutivos das notícias publicadas para além do enquadramento destas, pois observou-se que há uma metainformação (componentes éticos) que somente é compreendida a partir da apreensão de como se usam determinadas palavras, adjetivos, identificações e ilustrações, que acabam favorecendo um dado ‘direcionamento’ de acordo com grupos de interesses seja da mídia, da empresa, de instituições, ou de outros ‘elementos ou componentes de poder’. Para Scheufele (1999, p. 215 apud PORTO, 2002, p. 5), a mídia constrói a realidade social através do enquadramento de imagens da realidade.

    Por fim, seguindo alguns especialistas (PORTO, 2004; GOFFMAN, 2012), entende-se que um estudo que se propõe a analisar a mídia eletrônica por meio do enquadramento das notícias não pode se limitar a observar apenas o que foi noticiado, pois, segundo eles, as notícias utilizam-se de palavras, adjetivações, fotos e ilustrações que favorecem os direcionamentos para a construção de visões sobre a realidade.

    Dada a característica deste texto, não é nossa pretensão contemplar a análise da extensão/totalidade da pesquisa, mas aqui é importante destacar as reflexões iniciais mais de cunho conceitual-metodológico. Portanto, nesta análise foram propostas as seguintes etapas: i) a identificar a maior diversidade possível dos elementos e características que ‘descrevem’ ou (des)qualificam a mulher morta ou assassinada; ii) a identificação da maior diversidade possível dos elementos e características que ‘descrevem’ e (des)qualificam o agressor; e, iii) os qualificativos ou as tipificações que indicam a descrição do crime cometido. Tais elementos possibilitam, por um lado, conhecer e identificar os enquadramentos midiáticos, e por outro, a produção de representações sociais sobre os crimes de mortes de mulheres. Esses movimentos articulam-se, no sentido de se perceber como são produzidas as construções socioculturais de gênero no âmbito das relações de sociabilidades violentas.

    Sobre o enquadramento de notícias de feminicídio na mídia eletrônica

    O Brasil tem a quinta maior taxa de mortes de mulheres do mundo: 4,8 assassinatos para cada 100 mil mulheres – de acordo com a Organização Mundial da Saúde e segundo o Mapa da Violência de 2015 que trata sobre o homicídio de mulheres. Evidenciou-se que 106.093 mulheres foram assassinadas entre 1980 e 2013, sendo 4.762 só durante o ano de 2013. Em 2015 o número diminuiu, mas pouco: 4.621 mulheres foram assassinadas no Brasil, contabilizando 4,5 mortes para cada 100 mil mulheres, de acordo com a mesma fonte. Ainda, de acordo com dados do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), nos últimos anos pelo menos 50 mil mulheres foram mortas no Brasil, sendo os assassinatos enquadrados jurídica e sociologicamente como feminicídio. O estudo aponta que 13 mulheres são assassinadas por dia no país, devido à situação de violência por gênero⁶.

    O crime de feminicídio foi assim definido pela legislação: "Homicídio qualificado contra a mulher por razões da condição de sexo feminino: Considera-se que há razões de condição de sexo feminino quando o crime envolve: I – violência doméstica e familiar; II – menosprezo ou discriminação à condição de mulher.

    A alteração do Código Penal que incluiu o feminicídio dentre as qualificadoras dos crimes contra a vida, ou seja, como uma espécie de agravamento da pena dos crimes de homicídio, em sua forma tentada ou consumada, entrou em vigor no dia 10 de março, de 2015⁷. O Brasil foi o 16º país da América Latina a prever tal figura. Em suma, as três importantes novidades para o direito penal são as seguintes: I. Alterou o art. 121 do Código Penal para incluir como circunstância qualificadora do homicídio o feminicídio, descrevendo seus requisitos típicos; II. Criou uma causa de aumento de pena (um terço até a metade) para os casos em que o feminicídio tenha sido praticado: – durante a gestação; – nos três meses posteriores ao parto; – contra pessoa menor de quatorze anos; contra pessoa maior de sessenta anos; contra pessoa com deficiência; na presença de descendente da vítima. Pena: reclusão, de 12 a 30 anos. Incluiu, portanto, o feminicídio no rol dos crimes hediondos trazidos pela Lei 8.072/90.

    A Lei do Feminicídio faz referência expressa à vítima mulher, o que também ocorre no âmbito da Lei Maria da Penha (LMP – Lei 11.340/2006). Quando se trata da aplicação da LMP, há decisões jurisprudenciais e parte significativa da doutrina que se posicionam no sentido de aplicá-la para situações que envolvem mulheres transexuais e travestis.

    Diante da nominação jurídica explícita de feminicídio e importa dizer que nem todos os assassinatos ou mortes de mulheres podem ser tipificadas como crimes de feminicídio, não apenas da perspectiva jurídico-legal, mas sociológica, pois o crime de feminicídio pode ser considerado uma forma extrema de misoginia, ou seja, de ódio e repulsa às mulheres ou contra tudo o que seja ligado ao feminino.

    Quais aspectos/expressividades da violência contra as mulheres vêm sendo apresentados/transmitidos à sociedade, assim como para aqueles/as que têm poder de decisão?

    A missão da mídia é de informar sobre o crime, a morte das mulheres. No entanto, isso deve ser realizado tendo como referente determinados padrões éticos, cujo dever é de atentar para a responsabilidade social sobre o que está por trás dessa notícia. Tal enquadramento, na maioria das vezes não é observado, haja vista que o levantamento das nominações/tipificações encontradas nas notícias coletadas durante a presente pesquisa transcende a qualquer parâmetro ético, a saber:

    [...] homicídio, morte de mulher, assassinato, violência sexual e feminicídio, homicídio qualificado, duplo homicídio, estrangulamento, violência doméstica, morte de mulher, estupro coletivo, apedrejamento seguido de morte, espancamento, tentativa de violência sexual, duplo homicídio, estupro, feminicídio qualificado, tentativa de homicídio, homicídio doloso, tortura seguida de morte, corpo carbonizado de mulher desaparecida, assassinato e corpo carbonizado, tentativa de assassinato seguido de suicídio, crime passional, homicídio seguido de suicídio, execução de mulher, morte a esclarecer, morte e agressão, tentativa de feminicídio, morte de mulher e suposto sequestro, feminicídio/violência doméstica e familiar, assassinato brutal, violência sexual e morte de mulher, assassinato e corpo carbonizado, estupro e morte de mulher, estupro seguido de tentativa de feminicídio, agressão seguida de morte, latrocínio, morte de mulher seguido de suicídio, estupro/ duplo homicídio, agressão seguida de morte, roubo/assassinato, violência física/assassinato, cativeiro/ homicídio duplamente qualificado por motivo torpe/destruição de cadáver, violência física/assassinato, carbonizado/assassinato, homicídio qualificado com agravante de feminicídio, estrangulamento com sinais de crueldade, estupro seguido de morte, espancamento/ tentativa de violência sexual, assassinato, corpo não encontrado, bárbaro assassinato (FEMIVIDA, 2018, no prelo).

    Essas mais de cinquenta nominações indicam tanto o desconhecimento ou despreparo de profissionais da mídia, como também o sensacionalismo a que se propõem, gerando, muitas vezes, situações de desrespeito. Pois o ato do feminicídio não só assassina o corpo biológico da mulher, como também assassina o que tem significado e identidade, isto é, a construção cultural de seu corpo, que provavelmente vem sofrendo um continuum de violências cotidianas vivenciadas em anos e quiçá décadas de convívio.

    Ainda há enquadramentos que figuram como manchetes que chamam atenção por seus paradoxos, e que, com certeza, confundem o leitor, por exemplo: Garota confessa gravidez a ex-namorado e leva 80 facadas. A outra manchete: Garota de 14 anos é morta pelo amante após recusar aborto no Paraná. Ora, os dois crimes foram provocados por razões similares e contrárias, concomitantemente, e estabelecem relações de causa e efeito que em ambos os casos culpabilizam as mulheres.

    Ademais, observa-se que ao noticiar um crime de feminicídio, raramente a mídia estimula a reflexão sobre as causas da violência contra as mulheres. Sabe-se que muitas dessas mortes envolvem um contexto de desrespeito e menosprezo à condição feminina, por vezes até de misoginia e ódio. Fora do contexto de violência doméstica, são exemplos de feminicídio os assassinatos de mulheres acompanhados de violência sexual e/ou mutilação dos corpos, especialmente em áreas do corpo como seios, genitais e rosto⁸.

    Portanto, em boa medida os enquadramentos realizados sobre as mortes de mulheres também provocam a capacidade das pessoas em manipular algumas de suas expressões, verbais ou não, com vistas a persuadir aqueles com quem interagem a um dado enquadramento para uma situação. Segundo Campos (2012), tais manipulações, no entanto, não constroem necessariamente uma visão falsa ou mentirosa da realidade, mas apenas enfatizam determinados elementos ou possibilidades desta em detrimento de outros. Contudo, com grande frequência a vítima esbarra na incompreensão das autoridades sobre a complexidade da violência doméstica e dos altos e baixos que caracterizam o chamado ciclo da violência, que provoca as idas e vindas da mulher em tentativas frustradas de mudar a relação ou de buscar saídas para a situação de violência. Essa incompreensão faz com que as próprias autoridades, que deveriam defender a mulher, a culpem, julgando-a fraca, instável e incapaz de levar a denúncia de violência e o processo até o fim (AGÊNCIA PATRÍCIA GALVÃO, 2018, s/p).

    Referências

    ARAÚJO, Valmir Teixeira. Contribuições da análise do enquadramento noticioso para as pesquisas em comunicação. Disponível em: . Acesso em: 3 mar. 2018.

    BANDEIRA, Lourdes M.; VIEIRA, Larissa; CAMPOS, Sofia Guimarães. O enquadramento midiático dos crimes de feminicídio no Brasil: o padrão de reprodução e a invisibilidade de mulheres assassinadas. Texto apresentado no GT No. 11 – Género, Feminismos y sus aportes a las Ciencias Sociales, no XXXI Congresso da Associación Latinoamericana de Sociologia – ALAS, Montevidéu, Anais... dez. 2017.

    CAMPOS, Luiz Augusto. A identificação de enquadramentos através da análise de correspondências: um modelo analítico aplicado à controvérsia das ações afirmativas raciais na imprensa. Revista Opinião Pública. v. 20 n. 3 Campinas Dec. 2014.

    GOFFMAN, Erving. Os enquadramentos da experiência social. . Petrópolis: Vozes, 2012.

    GUAZINA, Liziane. O conceito de mídia na comunicação e na ciência política: desafios interdisciplinares. Revista Debates, Porto Alegre, v. 1, n. 1, p. 49-64, jul.-dez. 2007.

    HANGAI, Luis Antonio.A Framing Analisys de Goffman e sua aplicação nos estudos em Comunicação. Revista Açãomidiática – Estudos em Comunicação, Sociedade e Cultura. UFPR, Curitiba, v. 2. n. 1. 2012.

    KELLNER, Douglas. A cultura da Mídia – estudos culturais: identidade e política entre o moderno e o pós-moderno. Bauru, SP: Edusp, 2001.

    LESSA, Maria de Fátima P.; SILVA, Ivone Maria Ferreira da. O Enquadramento Noticioso da Violência na Imprensa de Cuiabá. Trabalho apresentado no DT 1 – Jornalismo do XIX Congresso de Ciências da Comunicação na Região Centro-Oeste (12 a 14 de junho de 2017).

    MIGUEL, Luís Felipe. Mídia e manipulação política no Brasil: a Rede Globo e as eleições presidenciais de 1989 a 1998. Comunicação & Política, Rio de Janeiro, v. VI, n. 2-3, p. 119-138, 1999.

    PORTO, Mauro P. Enquadramentos da mídia e política. In: RUBIM, A. A. (Org.). Comunicação e política: conceitos e abordagens. Salvador: Edufba, 2004. p. 73-104.

    RAMOS, Fabiana Pinheiro; NOVO, Helerina Aparecida. Mídia, violência e alteridade: um estudo de caso. Revista Estudos de Psicologia, n. 8, v. 3, 2003, p. 491 – 497.

    Sites consultados

    - https://www.meusdicionarios.com.br/feminicidio. Acesso em: 2 abr. 2018.

    - https://www.significados.com.br/feminicidio/. Acesso em: 2 abr. 2018.

    - https://conceitos.com/feminicidio/. Acesso em: 30 mar. 2018.

    -http://www.agenciapatriciagalvao.org.br/dossies/feminicidio/capitulos/qual-o-papel-da-imprensa/. Acesso em: 30 mar. 2018.

    IDEOLOGIA DE GÊNERO, COMUNICAÇÃO E EDUCAÇÃO NO BRASIL E NA ARGENTINA

    Tânia Mara Campos de Almeida

    Florência Cremona

    Introdução

    As reflexões sobre gênero e sexualidade sempre estiveram inseridas em intensos campos de batalha, quer sejam acadêmicos, políticos, estatais ou institucionais, por apontarem criticamente a arraigada estrutura e as dinâmicas do poder nas sociedades patriarcais e, em particular, nas modernas. Essas sociedades se fundam e se organizam a partir da centralidade da representação do essencialismo e binarismo biológico, atribuídos às categorias mulher-homem. Compreender essa representação atribuída à diferença sexual e sua consequente valoração e prestígio contextual é fundamental para se realizar o desmonte do controle dos corpos, da manutenção do poder e da distribuição injusta dos recursos necessários a todas as formas de vida no planeta. Afinal, o estabelecimento dessa diferença, intersecionada com outros marcadores sociais de desigualdades (tais como raça e classe social), é um ato político, significando liberdade e superioridade para homens; sujeição e inferioridade para mulheres e grupos feminizados (crianças, idosas/os, pessoas LGBTs e outros).

    Atualmente, as investidas empreendidas por movimentos, organizações e pessoas contrárias à, por estes denominada, ideologia de gênero tem merecido um olhar atento. Com ofensas agressivas e manipuladoras a essa dita ideologia de gênero e conclames à sociedade contra um inimigo em comum, vozes moralistas, conservadoras, doutrinais cristãs e heterofamilistas desqualificam e estigmatizam pensadoras/es feministas e dos estudos de gênero, queer e outros, além de deturparem e deslegitimarem conceitos, a começar pelos próprios termos que compõem essa expressão e outras equivales, tal qual teoria de gênero.

    Em seus discursos midiáticos, religiosos e educacionais, por exemplo, gênero aparece como uma mera opção, uma linha de pensamento, um item que pode, ou não, ser tomado em conta pelo sujeito e pelos grupos sociais. Desse modo, evita-se repensar as representações violentas e opressivas, transformando o tema em um problema específico de grupos minoritários, ressentidos e problemáticos: mulheres fora das normas, masculinidades dissidentes, lésbicas, gays, transexuais, enfim, todos que fogem aos estereótipos heterossexistas da mulher mãe submissa e do homem empreendedor, dominador, provedor e autônomo. Paralelamente, ideologia tem sido apresentada ao senso comum enquanto uma perspectiva fantasiosa e dogmática da realidade, ideias que tomariam conta do pensamento das pessoas de maneira perniciosa e destrutiva do âmago de suas humanidades.

    Contudo, o ponto de vista do conjunto de estudos feministas e de gênero é justamente desconstrutivo das narrativas de ahistoricização e descontextualização cultural-econômica dessas relações sociais, logo nada ilusório ou inquestionável, nada amarrado a apenas uma formulação teórica. Esse ponto de vista coloca sob indagação as premissas simbólicas e práticas que informam e conformam as identidades, os comportamentos, os sentimentos, os papéis e as funções sociais dos indivíduos e das famílias. As premissas têm sido discutidas pelos referidos estudos e por diversas teorias por serem justamente tomadas como verdades do Estado, da Igreja e do mercado, entidades promovedoras da adoção de modelos únicos à existência humana em políticas públicas, serviços, mensagens, enfim, em ações realizadas pelas mãos autorizadas de seus agentes para disciplinar a sociedade.

    Nesse cenário das acusações de ideologia de gênero, o presente texto tece uma aproximação preliminar a seu respeito em alguns espaços sociais comuns entre Brasil e Argentina, perguntando sobre Comunicação e Educação a partir de processos epistêmicos oriundos do entendimento da categoria gênero pela ótica desconstrutivista feminista. Ou seja, o texto procura refletir em torno do campo comunicacional pela sua perspectiva pedagógica, que ensina ao público um tipo de (in)sensibilidade e (des)entendimento, possui capacidade de influir no imaginário social, disseminar representações sobre o mundo e as identidades, bem como refletir em torno do campo educativo a partir de sua dimensão também pedagógica, discursiva e produtora de sentidos nessas sociedades.

    Embora os meios de comunicação sejam eventualmente acusados por adeptos da ideologia de gênero de com ela compactuarem e a difundirem em publicidades, programas e novelas⁹, o modo pelo qual violências e discriminações de gênero são abordadas, por seu intermédio, corrobora para a manutenção de valores e princípios do patriarcado, acabando por também atuar na geração de violência simbólica e no desmonte de importantes apontamentos dos estudos feministas e de gênero. Os meios de comunicação mostram-se, então, um campo ambíguo e de fácil manipulação do mercado para agregar diferentes grupos ao redor de seus produtos, ainda que por via de polêmicas. Já, no campo da educação, a ofensiva contra o que vem sendo chamado de ideologia de gênero se apresenta bastante explícita, aguerrida, uma bandeira de luta ferrenha nos dois países. Segundo Miguel (2016), a grande reatividade à igualdade de gênero se tornou transversal a muito campos e políticas governamentais, porém a preocupação central dos conservadores é com a educação e, em menor medida, com os meios de comunicação de massa.

    Como marco de sua implantação e do seu alcance a leigos na América do Sul, tem-se o lançamento do livro La ideologia de género o el género como herramienta de poder do advogado pró-vida argentino Jorge Scala em 2010, traduzido ao português pela editora católica Katechesis em 2011, sob o título Ideologia de gênero: neototalitarismo e a morte da família. Essa obra está alinhada a ideias dogmáticas de ultraconservadores religiosos, cujo um dos expoentes é Joseph Ratzinger, cardeal muito próximo ao papa João Paulo VI e encarregado por velar pela ordoxia da fé católica¹⁰ desde os anos 1980 até o início de seu próprio pontificado (2005-2013, papa Bento XVI), quando instituiu fortemente suas orientações à Igreja.

    Meios de Comunicação e Educação

    A cada minuto, assiste-se a casos de violência e discriminação contra as mulheres, as sexualidades não hegemônicas, aos modos de vida e as aparências corporais não tradicionais em ambos os países. Hoje, tais casos compõem cifras enormes e fazem parte da pauta dos meios de comunicação, assim como têm sido apontada a necessidade urgente de medidas a eles preventivas no âmbito educacional. Contudo, de que modo aparecem nesses espaços sociais e que debates incitam?

    Uma leitura crítica das pedagogias da crueldade (SEGATO, 2017), atuantes nos meios de comunicação para ensinar à audiência a não ter empatia com a vítima, a qual acaba sendo revitimizada pela banalidade e a espetacularização das abordagens

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