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Formação Humana e Violência à Luz da Fenomenologia de Edith Stein
Formação Humana e Violência à Luz da Fenomenologia de Edith Stein
Formação Humana e Violência à Luz da Fenomenologia de Edith Stein
E-book531 páginas8 horas

Formação Humana e Violência à Luz da Fenomenologia de Edith Stein

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Sobre este e-book

O que é violência? Como enfrentá-la? Será que ela determina o modo de vida e a existência das pessoas? E a singularidade? E a liberdade? Como a Psicologia pode contribuir? Este livro pretende refletir sobre essas questões adotando um olhar amplo e cuidadoso para a pessoa humana, na perspectiva da antropologia filosófica de Edith Stein.
A primeira parte do livro é dedicada à apresentação do pensamento de Edith Stein, focando os elementos constitutivos do ser humano e seu processo formativo, as noções de força vital e motivação, a dimensão ética e a experiência religiosa.
A segunda parte apresenta uma reflexão a respeito das vivências fundamentais dos moradores do bairro do Uruguai, localizado em Salvador da Bahia, na região conhecida como Alagados. O acesso aos moradores deu-se pela convivência cotidiana a partir de visitas sistemáticas da autora ao local. Nessa convivência buscou-se o que Edith Stein chama de um "encontro vivo" com as pessoas. Uma vivência comunitária que possibilitou "ser e agir com eles", captando o que se revelava para além do "encontro isolado" de uma entrevista.
Dentre oito vivências fundamentais identificadas, pode-se destacar o improviso nas urgências da vida; a violência; a solidariedade; a maternidade e a religiosidade. Também foi possível identificar um movimento formativo comum, caracterizado por vivências psicofísicas de forte intensidade, a experiência do limite pessoal a partir de uma situação de morte eminente, o reconhecimento de um apelo interior de realização e o propósito de dar novo rumo à própria vida.
A autora pôde constatar que, nesse processo, não basta o reconhecimento do apelo do núcleo pessoal para que a pessoa assuma a direção da própria vida, mas que ela necessita de uma quantidade mínima de força vital para realizar-se nessa direção. A história do bairro; a arte; a solidariedade e a própria história de vida da pessoa foram algumas das fontes de força desveladas nos relatos.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento4 de out. de 2021
ISBN9788547343156
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    Formação Humana e Violência à Luz da Fenomenologia de Edith Stein - Suzana Filizola Brasiliense Carneiro

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    COMITÊ CIENTÍFICO DA COLEÇÃO PSI

    Dedico este livro aos moradores do bairro do Uruguai, cuja beleza expressa-se na arte de tecer a própria vida e de escrever uma história de fé e superação que é fonte de força e sinal de esperança. Que Nossa Senhora recolha a água da vida que colhi nos Alagados e a eleve aos céus como uma oferta agradável a Deus.

    Imagem de Nossa Senhora dos Alagados

    Fonte: a autora

    EXPRESSO MINHA GRATIDÃO

    Ao José Mario, à Tereza, ao João e à Anna, por acolherem este projeto no seio da comunidade familiar, compartilhando as alegrias e privações que se apresentaram no processo. Ao meu pai, Rubens (in memoriam), minha mãe, Beti, e aos meus irmãos, Marcelo, Marcia, Lucila e Cassio.

    Ao meu orientador professor Andrés Aguirre Antúnez, pela confiança e motivação e pela oportunidade que tive de aprofundar os estudos de Edith Stein por meio dos cursos da professora Angela Ales Bello por ele promovidos no Instituto de Psicologia na USP.

    À minha coorientadora professora Angela Ales Bello, por partilhar seu rico conhecimento, pelo testemunho de vida comunitária e pela honra e alegria que me proporcionou ao escrever o prefácio para este livro.

    Ao professor Miguel Mahfoud, pela amizade, escuta e pelo sustento que tem me oferecido desde o início de meu percurso acadêmico e pela sua participação na banca de qualificação e defesa.

    Ao professor Gilberto Safra, pela sensibilidade na arguição durante a banca de defesa. Ao professor Marcio Luiz Fernandes, pelo interesse e acompanhamento no exame de qualificação, bem como na banca de defesa. À professora Vitória Helena Cunha Espósito, pela sua abertura, confiança e proximidade desde os tempos do mestrado e pelo seu testemunho de vida.

    À Fapesp, pelo financiamento da pesquisa que originou este livro. Ao Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo.

    À irmã Jacinta Turolo Garcia, pela disponibilidade de sempre. À Maria Cecília Isatto Parise, pela ajuda com o capítulo teórico. À comunidade steiniana em São Paulo e no Brasil, pelo ambiente fecundo de troca, reflexão e aprendizagem. Em especial aos pesquisadores do Grupo Geist que se reuniram no Instituto de Psicologia da USP no início deste percurso, sob a coordenação do professor Andrés Eduardo Aguirre Antúnez; do Grupo de Pesquisa O pensamento de Edith Stein, coordenado pelo professor Juvenal Savian Filho da Unifesp e também aos organizadores dos Simpósios Internacionais Edith Stein a quem agradeço na pessoa do professor Moisés Rocha Farias.

    À Hilda Almeida dos Santos, Vania Castro, Secundino Neres dos Santos, Albertina Leandra dos Reis (in memoriam), José Lima dos Santos, Eurídice dos Santos Chagas (in memoriam), Eline Silva Sousa, Helvécio Celestino de Carvalho (in memoriam), Maria do Carmo Neves Cesário (in memoriam), Arnaldo dos Santos Filho (in memoriam), ao padre Etienne Kern e a todos os paroquianos da Igreja Nossa Senhora dos Alagados e São João Paulo II, pela acolhida e apoio sem os quais este trabalho não teria sido possível. À Olindina Chagas (in memoriam) pela acolhida e convivência fraterna. Aos moradores do bairro do Uruguai, e aos sacerdotes Dominique You, Bernard de Villanfray, Rafael Fornasier e Xavier Bizard. Ao Espaço Cultural dos Alagados, Escola Polivalente e Base Comunitária de Segurança. Ao professor José Eduardo Ferreira Santos (Dinho), embaixador da beleza da periferia. Aos irmãos da Comunidade Emanuel, minha família espiritual, pelo apoio, partilha e orações.

    À Cecília Duprat pela hospitalidade. À Maria Lucia de Souza Campos Paiva, pela presença amiga e inspiração no meu percurso na psicologia. À Ana Cristina de Souza Campos, pela confiança e oportunidade que me ofereceu de partilhar este percurso. À Cristiane Duarte Daltro Santos pela revisão do português. À Anna Maria Fiorito pela tradução do prefácio em italiano.

    À Edith Stein. Ao Senhor meu Deus, obrigado Senhor porque tudo é teu!

    APRESENTAÇÃO

    O que é violência? Como enfrentá-la? Será que ela determina o modo de vida e a existência das pessoas? E a singularidade? E a liberdade? Há espaço para a construção de projetos pessoais? Como a Psicologia pode contribuir?

    Essas foram algumas das questões que me motivaram a realizar a pesquisa de doutorado da qual este livro é fruto¹. A complexidade do tema implicava um olhar amplo e cuidadoso para a pessoa humana a fim de não cair na armadilha da adesão a respostas rápidas pautadas em visões simplistas, tais como a de que somos fruto exclusivamente do meio e, portanto, vítimas do contexto, ou da nossa própria força de vontade e, portanto, seres fechados e independentes.

    Nesse sentido, dedico a primeira parte do livro à apresentação dos resultados das pesquisas fenomenológicas de Edith Stein, autora que me acompanha desde o início de meu percurso acadêmico e que me ajudou a encontrar sentido no ser psicóloga ao me desafiar constantemente na sustentação de um olhar respeitoso, amplo e profundo para o ser humano. Stein nos ajuda a esclarecer aspectos importantes, tais como a totalidade da pessoa e sua abertura essencial a si, ao outro e ao transcendente; a compreensão de seu processo formativo que ocorre na inter-relação entre aspectos inatos, o contexto e as escolhas; a noção de força vital e a relação entre psique e consciência; a dimensão ética e a experiência do sagrado; e a relação entre pessoa e comunidade. Esses são alguns dos temas apresentados no capítulo dedicado à fenomenologia de Edith Stein.

    À luz dessa visão, na segunda parte do livro, apresento uma reflexão a respeito das vivências fundamentais dos moradores do bairro do Uruguai, localizado em Salvador da Bahia, na região conhecida como Alagados, por ter se originado da construção de palafitas sobre o mar. Minha história já havia se cruzado com os Alagados antes da pesquisa, e foram justamente as experiências incríveis que tive lá, na partilha de vida com seus moradores, que me provocaram a querer voltar e compreender melhor quem eram aquelas pessoas e como viviam em meio a um contexto no qual o colorido era fortemente carregado tanto de expressões de violência como de fé e de esperança.

    Foi assim que se deu o feliz encontro entre Edith Stein e os moradores do bairro do Uruguai. As pesquisas de Stein me ajudaram a enxergar a dinâmica pessoal e comunitária dos entrevistados e a identificar tanto as violências sofridas, quanto praticadas. Ajudaram-me também a reconhecer, nesses movimentos, as fontes de força e as possibilidades de enfrentamento e de construção de respostas pessoais dos moradores, para além daquilo que estava dado pelo contexto.

    Alegra-me muito que você, leitor(a), possa participar também desse encontro!

    PREFÁCIO TRADUZIDO

    A pesquisa de Suzana Carneiro apresenta um mundo pouco conhecido e coloca uma pergunta que poderia parecer estranha: que relação pode existir entre a atmosfera inquietante do bairro Uruguai, em Salvador da Bahia e uma filósofa fenomenóloga refinada como Edith Stein? Seguindo o índice, de fato, o livro, na introdução, faz referência ao clima de dificuldade e violência da localidade Alagados, que tive a oportunidade de visitar. Casas-barracos indicam grande indigência e permitem compreender que possa haver violência, violência que não experienciei pessoalmente, mas que me foi narrada pelo Bispo Petrini, o qual tinha se interessado muito por aquela região e que nos acompanhou em uma visita.

    Paradoxalmente, o fio condutor comum é a própria violência: aquela que experimentam os moradores do bairro e aquela que Edith Stein sofreu tendo sido morta em Auschwitz pelas mãos dos nazistas, em 1942. A violência indica a presença do mal no mundo. A pergunta que se coloca permanentemente é: podemos acabar com a violência? Ou, pelo menos, reduzi-la? Como fazê-lo? E por que combatê-la? Por que ela é negativa?

    Santo Agostinho já nos ensinava que o mal é característica da realidade finita em que vivemos; de fato, consiste exatamente naquela diferença que há entre Deus, o criador e as suas criaturas que, enquanto tais, não podem ser perfeitas como Deus, caso contrário, seriam Deus. Todavia, descrevendo os seres humanos, ele colocava em evidência que, tendo sido criados à imagem de Deus, eles têm a possibilidade de escolher o bem, e não só isso, mas depois da Encarnação do Filho de Deus e da sua obra de Redenção, têm uma possibilidade adicional, mediante a graça, de superarem o mal. Então, por que a violência no mundo? Porque no ser humano há também uma tendência ao mal, e resistir a tal tendência requer um trabalho de formação que envolve o indivíduo e a comunidade. No fundo, essa é também a mensagem de Edith Stein, e o sentido final do livro de Suzana Carneiro.

    Pude fazer referência a questões de caráter metafísico (o que é o mal?) e religioso (a ajuda de Deus para superá-lo), enquanto no livro de Suzana a força fundamental que a conduziu a interessar-se por aquele grupo de pessoas, muitas vezes reféns da violência por parte de alguns que a praticavam, foi de caráter religioso. Poder-se-ia dizer pastoral: no fundo, tratava-se de ajudá-los a compreender que há outras possibilidades, que no mundo não existe apenas violência.

    Todavia o livro não tem apenas um valor espiritual, mas é a demonstração da possível colaboração, que nesse caso realizou-se entre disciplinas diferentes e, ainda, a oportunidade de uma preparação cultural, pois qualquer tipo de saber sustenta o outro. Nesse caso, a filosofia sustenta a Psicologia; a Psicologia ajuda a compreender os seres humanos; e a compreensão sob um ponto de vista humano sustenta uma eventual atividade pastoral.

    Desejo colocar em evidência o que interessa culturalmente no presente livro, que é, exatamente, o encontro da Filosofia e da Psicologia, encontro com a finalidade de uma análise clínica. Como bastante notório, a escola alemã de fenomenologia, desde o seu fundador Edmund Husserl, nasceu na primeira metade do século XX para mostrar o possível subsídio que a investigação filosófica pode dar às diferentes ciências, em particular, às ciências humanas e à Psicologia, e isso ocorre por meio de uma pesquisa apurada sobre o ser humano.

    A discípula de Husserl, Edith Stein, dedicou-se a uma dupla tarefa: analisar a estrutura do ser humano e fornecer tal análise, sobretudo aos psicólogos, para que pudessem, sucessivamente, compreender o que acontecia nos seres humanos que encontravam, sob o ponto de vista psíquico e sob o ponto de vista espiritual. De fato, ela mostrou com grande sagacidade tanto as características das vivências psíquicas como aquelas das vivências espirituais. Sem as últimas, não se compreende a complexa estratificação da interioridade humana.

    A autora deste livro utilizou, até as profundezas, a lição de Edith Stein e pôs em evidência tanto a presença da força vital psicofísica como a da força espiritual na análise dos quatro casos humanos sobre os quais se concentrou. As entrevistas são conduzidas com grande profissionalismo e competência e, ao mesmo tempo, com grande proximidade humana, poder-se-ia dizer com simpatia, palavra que etimologicamente se refere ao sofrer junto e, nesse caso, tratou-se também de compartilhar as dificuldades e de abrir uma brecha à esperança.

    O livro é o testemunho da grande capacidade intelectual da autora de aprofundar disciplinas complexas, harmonizá-las e usá-las como instrumentos de conhecimento. Além disso, é um testemunho de vida, de uma vida madura sob o ponto de vista espiritual, como revela a coragem que Suzana Carneiro teve ao mergulhar em uma realidade humana diferente da sua, e não facilmente aceitável por parte de quem teve a boa sorte de nascer e de transcorrer a própria existência em um contexto protegido, certamente mais favorável.

    Recomendo, portanto, a todos a leitura deste livro, mesmo aos não especialistas, exatamente porque pode ser lido em diferentes níveis: existencial e cultural.

    Roma, 3 de fevereiro de 2020

    Angela Ales Bello

    Professora emérita de História da Filosofa Contemporânea da Universidade Lateranense de Roma. Professora da Universidade Antoniana e Fundadora e Presidente do Centro Italiano di Ricerche Fenomenologiche, Roma, Itália.

    PREFAZIONE

    La ricerca di Suzana Carneiro apre un mondo poco conosciuto e pone una questione che potrebbe apparire strana: quale legame ci può essere tra l’atmosfera inquietante del Barrio Uruguai di Salvadors de Bahia ed una filosofa fenomenologa raffinata, qual è Edith Stein? Se si scorre l’indice, infatti, il libro, nell’introduzione, si riferisce al clima di difficoltà e di violenza della località Alagados, che ho avuto occasione di visitare. Case - capanne indicano molto indigenza e fanno comprendere che ci possa essere violenza, violenza di cui personalmente non ho avuto esperienza, ma che mi è stata raccontata dal Vescovo Petrini, il quale si era interessato molto di quella regione e che ci aveva accompagnato nella visita.

    Paradossalmente il filo conduttore è proprio la violenza: quella che sperimentano gli abitanti del Barrio e quella che Edith Stein ha subito essendo stata uccisa ad Auschiwtz per mano dei Nazisti nel 1942. La violenza indica la presenza del male nel mondo; la domanda che perennemente si pone è: possiamo sconfiggere la violenza? O almeno arginarla? Come fare? E perché sconfiggerla? Perché è negativa?

    Già sant’Agostino ci insegnava che il male è caratteristico della realtà finita in cui viviamo; infatti, consiste proprio in quella differenza che c’è fra Dio, il creatore e le creature che, in quanto tali, non possono essere perfette come Dio, altrimenti sarebbero Dio. Tuttavia, egli, descrivendo gli esseri umani, metteva in evidenza che, essendo stati creati ad immagine di Dio, hanno la possibilità di scegliere il bene, non solo, ma, dopo l’Incarnazione del Figlio di Dio e la sua opera di Redenzione, hanno una possibilità ulteriore attraverso la grazia di superare il male. Allora, perché la violenza nel mondo? Perché nell’essere umano c’è anche una tendenza al male e ostacolare tale tendenza richiede un lavoro di formazione che coinvolge il singolo e la comunità. In fondo, questo è anche il messaggio di Edith Stein, ma è anche il senso ultimo del libro di Suzana Carneiro.

    Ho potuto fare riferimento a questioni di carattere metafisico (che cosa è il male?) e religioso (l’aiuto di Dio nel superarlo), in quanto nel libro di Suzane la spinta fondamentale che l’ha condotta ad interessarsi di quel gruppo di persone, spesso succubi della violenza da parte di alcuni che la praticavano, è stato di carattere religioso. Si potrebbe dire pastorale: si trattava in fondo di assisterli, di far capire loro che ci sono altre possibilità, che nel mondo non c’è solo la violenza.

    Tuttavia, il libro non ha solo un valore spirituale, ma è la dimostrazione della possibile collaborazione, che in questo caso si è realizzata, fra discipline diverse, e, ancora l’opportunità di una preparazione culturale, perché ogni sapere sostiene l’altro, in questo caso la filosofia sostiene la psicologia, la psicologia aiuta a comprendere gli esseri umani e la comprensione da un punto di vista umano sostiene un’eventuale attività pastorale.

    Desidero mettere in risalto ciò che interessa culturalmente nel presente libro ed è, appunto, l’incontro di filosofia e psicologia, incontro finalizzato ad un’analisi clinica. Come ormai è abbastanza noto, la scuola tedesca di fenomenologia movendo dal suo fondatore Edmund Husserl è nata nella prima metà del XX secolo per mostrare il possibile sussidio che l’indagine filosofica può dare alle diverse scienze, in particolare alle scienze umane e alla psicologia e questo avviene attraverso un’indagine accurata sull’essere umano.

    La discepola di Husserl, Edith Stein si è dedicata ad un duplice compito: analizzare la struttura dell’essere umano e fornire tale analisi soprattutto agli psicologi, affinché potessero successivamente comprendere che cosa accadeva negli esseri umani che incontravano da punto di vista psichico e dal punto di vista spirituale. Ella, infatti, ha mostrato con grande acutezza sia le caratteristiche delle vivenze psichiche sia quelle delle vivenze spirituali. Senza queste ultime non si comprende la complessa stratificazione dell’interiorità umana.

    L’autrice di questo libro ha utilizzato fino in fondo la lezione di Edith Stein e ha messo in evidenza sia la presenza della forza vitale psicofisica sia della forza spirituale nell’analisi dei quattro casi umani sui quali si è concentrata. Le interviste sono condotte con grande professionalità e competenza e nello stesso tempo con grande vicinanza umana, si potrebbe dire con simpatia, parola che etimologicamente ci rimanda al soffrire insieme e in questo caso si è trattato anche di condividere le difficoltà e di aprire un varco alla speranza.

    Il libro è la testimonianza della grande capacità intellettuale dell’Autrice di approfondire discipline complesse, di armonizzarle e di usare come strumenti conoscitivi. Inoltre, è una testimonianza di vita, di una vita matura dal punto di vista spirituale, come si può rilevare nel coraggio che Suzana Carniero ha avuto di immergersi in una realtà umana diversa dalla sua e non facilmente accettabile da parte di chi ha avuto la buona sorte di nascere e di trascorrere la propria esistenza in un conteso protetto e certamente più favorevole.

    Raccomando, pertanto, a tutti questo libro, anche ai non specialisti, proprio perché esso può essere letto a diversi livelli: esistenziali e culturali.

    Angela Ales Bello

    Professora emérita de História da Filosofa Contemporânea da Universidade Lateranense de Roma. Professora da Universidade Antoniana e Fundadora e Presidente do Centro Italiano di Ricerche Fenomenologiche, Roma, Itália.

    Roma, 3 febbraio 2020

    Sumário

    1

    INTRODUÇÃO 21

    1.1 PERCURSO PESSOAL 21

    1.2 O RESGATE DE UM OLHAR INTEGRAL PARA A PESSOA 25

    1.3 OS ALAGADOS MAIS LINDO DO MUNDO 28

    2

    A FENOMENOLOGIA DE EDITH STEIN 33

    2.1 EDITH STEIN E O MÉTODO FENOMENOLÓGICO 33

    2.2 ASPECTOS ANTROPOLÓGICOS 39

    2.2.1 O ser humano como coisa material 43

    2.2.2 O ser humano como organismo vivo 44

    2.2.3 O ser humano como ser animado 45

    2.2.4 O ser humano como ser espiritual 47

    2.2.5 O ser humano como ser social 55

    2.2.6 Antropologia dual de Edith Stein: o feminino e o masculino 58

    2.3 CONTRIBUIÇÕES DE EDITH STEIN PARA A PSICOLOGIA 65

    2.3.1 As vivências puras 67

    2.3.2 A vida psíquica 70

    2.3.3 A vida espiritual 73

    2.3.4 A relação entre psique e espírito 81

    2.4 ÉTICA E EXPERIÊNCIA RELIGIOSA 85

    2.4.1 Ética 85

    2.4.2 Experiência religiosa 88

    2.4.3 Hilética e noética nas manifestações religiosas 92

    2.4.4 Liberdade, escolha e dimensão religiosa 102

    2.5 FORMAÇÃO HUMANA 108

    3

    PERCURSO DE UMA PESQUISADORA 123

    3.1 O ACESSO ÀS VIVÊNCIAS 123

    3.2 A COMPREENSÃO DAS VIVÊNCIAS 128

    4

    VIVÊNCIAS FUNDAMENTAIS DOS MORADORES E PERCURSO FORMATIVO 131

    4.1 UM OLHAR PARA A SINGULARIDADE 131

    4.1.1 Helena 131

    4.1.2 Juliano 166

    4.1.3 Bruno 197

    4.1.4 Thaís 229

    4.2 VIVÊNCIAS FUNDAMENTAIS EM UMA PERSPECTIVA COMUNITÁRIA 266

    5

    CONSIDERAÇÕES FINAIS 319

    REFERÊNCIAS 333

    1

    INTRODUÇÃO

    Este livro tem por objetivo aprofundar a compreensão a respeito da pessoa humana, da sua dignidade e de seu processo de desenvolvimento à luz da fenomenologia de Edith Stein. Para tanto, toma como referência os aportes teóricos da autora referida, colocando-os em diálogo com a experiência de vida dos moradores do bairro do Uruguai, região dos Alagados, em Salvador da Bahia.

    Para compreender a constituição do ser humano, Edith Stein (2013) utilizou-se do método fenomenológico na forma como apresentado por Edmund Husserl, colocando-se diante das pessoas como um fenômeno que se manifestava a ela. Aproximou-se desse fenômeno a partir do contato com outros seres humanos e, principalmente, a partir do contato com aquilo que experimentava em si mesma. A autora afirma:

    Se quisermos saber o que é o ser humano, devemos nos colocar de modo o mais vivo possível na situação onde fazemos a experiência do seu ser, ou seja, daquilo que experimentamos em nós mesmos e o que experimentamos no encontro com os outros. (STEIN, 2013, p. 39).

    Em consonância com essa visão, este trabalho ganhou forma a partir de duas experiências marcantes que vivi em situações diferentes. A primeira no contexto do mestrado e a segunda no bairro do Uruguai, onde colhi os relatos de vida dos moradores. Parto, portanto, daquilo que experimentei pessoalmente, transformando as repercussões dessas experiências em questões norteadoras para este trabalho.

    1.1 PERCURSO PESSOAL

    O interesse pelo tema do desenvolvimento humano em contexto de violência surgiu a partir de minha pesquisa de mestrado (PUC-SP) sobre oficinas de literatura marginal na periferia de São Paulo, quando discuti, também à luz das investigações de Edith Stein, a importância das vivências comunitárias para a formação do sujeito. Na ocasião, embora situações de violência estivessem presentes nos relatos dos participantes, elas não eram o foco principal de minha investigação, permeando a discussão de forma sutil, periférica.

    Fui despertada para a questão da violência durante a defesa da dissertação ao ser questionada a respeito da relação que se poderia estabelecer entre o processo formativo dos jovens acompanhados e as situações de violência com as quais conviviam na escola, ou no bairro. Surgiu, então, o desejo de aprofundar a compreensão do processo formativo em Edith Stein e de investigar empiricamente esse processo em um local onde a violência estivesse presente, o que me remeteu ao bairro do Uruguai na cidade de Salvador, na Bahia.

    Meu contato com o Uruguai se deu pela primeira vez em 2007, a partir do contexto religioso no qual me insiro, a Comunidade Emanuel, hoje responsável pela Igreja Nossa Senhora dos Alagados², localizada no interior do bairro. A convite do pároco local na época, participei de uma semana missionária, durante a qual visitamos as casas, escutamos as pessoas e as convidamos para os projetos sociais da igreja (cursos profissionalizantes, reforço escolar, acompanhamento de gestantes, entre outros). Nessas visitas fui surpreendida pela reação das pessoas que se negavam a chegar perto da colina onde a Igreja estava localizada, alegando ser um local perigoso que evocava medo e tristeza.

    De acordo com os moradores, a colina era ponto de acertos de contas e desova de corpos de traficantes e da polícia. Os relatos ouvidos durante as visitas domiciliares mostraram que evitar falar sobre o local e desviar o trajeto do dia a dia parecia ser o modo encontrado pelas pessoas para amenizar o sofrimento decorrente da violência ali praticada contra vizinhos e familiares. Chamou-me a atenção o fato de que a colina, ponto de referência do sagrado para a comunidade religiosa católica, era também um marco da violência, congregando, em um único local, a manifestação de dois aspectos extremos do humano. O contraste e a convivência entre o sagrado e a violência, em uma região geográfica, remeteram-me ao modo como cada pessoa lida com essas vivências – que também convivem em nós – e tornaram o Uruguai um local privilegiado para a investigação do processo formativo.

    Para além dos relatos dos moradores, vivenciei uma situação pessoal que bem ilustra a repercussão do bairro em mim. Eram quatro horas da tarde quando saí com um grupo de moradores para fazer visitas às casas da região menos urbanizada do bairro. Entrei, com outras pessoas, em uma rua de terra sem saída. Um grupo de crianças se aproximou, e começamos a brincar com elas, quando uma das meninas que estava de frente para mim olhou ao longe e ficou pálida. Chamou as outras crianças e, em segundos, todas entraram em suas casas. A rua ficou deserta. Uma moradora que presenciava a cena nos chamou para entrar em sua casa. Disse que, na noite anterior, houvera um tiroteio naquela rua e que os responsáveis pelo ocorrido estavam ali novamente. Vimos pela janela dois homens bem vestidos que andavam até o final da rua e voltavam. Ficaram assim por alguns minutos até que se sentaram na entrada da rua, por onde deveríamos passar para ir embora. Apesar da tentativa de nos acalmar, a cara de pavor e a agitação da moradora me deixavam com mais medo. Era como se naquele momento todo o meu ser fosse reduzido ao medo.

    O padre que nos acompanhava fez a seguinte oração: Que não tenhamos medo daqueles que podem matar o corpo, mas que não podem matar a alma. Essas palavras me surpreenderam. Esperava naquele momento uma segurança, uma oração que pedisse que nos livrássemos daquela situação, mas não. A oração foi no sentido de nos fortalecer para enfrentarmos a situação. O pedido do padre foi para que houvesse uma mudança interior em nós e não na situação externa. Isso me fez refletir a respeito de diferentes posturas que podemos assumir diante das dificuldades e do enfrentamento da violência. Fez-me refletir também a respeito daquilo que as pessoas buscam na comunidade religiosa. No meu caso, esperava um conforto, um abrigo, mas recebi um empurrão para sair de meu medo e me dirigir ao outro. De fato, logo em seguida, o padre propôs que seguíssemos até o final da rua, alegando que todas as famílias tinham o direito de receber a visita. Como atitude de prudência, porém, voltaríamos antes de escurecer.

    Visitamos mais duas casas, embora eu não conseguisse me concentrar em mais nada, a não ser na vontade de ir embora o mais rapidamente possível. Naquele momento, pensei nas pessoas que moravam naquele local: na expressão de pavor das crianças da rua, no relato de um pai de família ao dizer que se sentia envergonhado perante os filhos por não poderem sair à noite; na expressão de surpresa das pessoas ao serem convidadas a subirem a colina. Será que sentem o medo que senti? Como os moradores do bairro do Uruguai vivem no dia a dia? O que motiva suas escolhas? O que move as relações?

    Após a visita nas duas outras casas, decidimos ir embora, pois estava escurecendo. Juntamos o grupo no final da rua e caminhamos em direção à sua entrada, onde um dos homens permanecia sentado. Assim que passamos por ele, ele se dirigiu ao padre dizendo: "Desculpa aí pelo que a gente fez ontem. O padre respondeu: Eu gostei da atitude de vocês". E fomos embora. Fiquei sem entender aquele diálogo. No caminho, o padre nos contou que, na noite anterior, um grupo de músicos estava indo para um evento na Igreja quando foram assaltados. Mais tarde, sabendo que os jovens eram conhecidos do padre, os assaltantes devolveram os instrumentos que tinham roubado e, por isso, naquele momento o rapaz pediu desculpas a ele.

    Esse acontecimento, aliado ao fato de sermos sempre alertados para andarmos com um crucifixo no pescoço, pois isso nos traria segurança – já que as pessoas não mexem com os missionários – chamou-me a atenção para a força da presença religiosa no bairro. A cruz, símbolo dos missionários que lá habitam, era respeitada. Novamente um questionamento: qual o sentido desse respeito? Quais as repercussões da presença dessa comunidade religiosa na vida das pessoas?

    A partir dessa experiência, pela qual fui profundamente afetada, interessei-me em investigar o processo formativo dos moradores do Uruguai e em querer compreender o que sentem, como vivem e pelo que são movidas suas ações e decisões. Perguntei-me: será que o medo e a religiosidade são vivências importantes na vida dessas pessoas assim como foram para mim naquele contexto? Diante dessa reflexão, meu intuito foi compreender quais eram as vivências fundamentais para os moradores do bairro do Uruguai.

    Portanto, meus olhos se voltaram para essas pessoas como fruto de meu próprio percurso formativo e da história do bairro do Uruguai, que se cruzou com a minha pela Comunidade Emanuel. Por um lado, minha pertença a uma comunidade religiosa que está ativamente presente no bairro há mais de 20 anos (responsável pela Igreja local) foi um aspecto importante no sentido de ter me exigido uma vigilância para sustentar a abertura àquilo que se mostrava, mantendo a postura fenomenológica da suspensão (epoqué). Por outro lado, vivenciei essa pertença como doadora de sentido e possibilidades, uma vez que por ela conheci o Uruguai, sua história e muitos de seus moradores. Graças a ela também, pude ter acesso a locais aos quais um estrangeiro sozinho não chegaria.

    1.2 O RESGATE DE UM OLHAR INTEGRAL PARA A PESSOA

    Para além do interesse pessoal, o percurso desenvolvido se deu, também, pelo reconhecimento da contribuição que uma autora como Edith Stein poderia oferecer no sentido do resgate de um olhar integral para o sujeito. Edith Stein dedicou grande parte de sua vida e obra à compreensão da pessoa humana, numa postura fenomenológica de deixar falar a coisa mesma, e em um diálogo articulador entre diferentes disciplinas, como Filosofia, Psicologia, Teologia, Educação, Direito, para citar algumas.

    Tomei como referência, para este percurso, a noção de formação humana apresentada por Edith Stein (1999b). Segundo a autora, Bildung, do alemão, significa conduzir a uma sabedoria de vida, à realização plena de si (STEIN, 1999b, p. 21). Esse processo acontece a partir da inter-relação de três fatores: as potencialidades naturais de cada pessoa (fator interno), o ambiente e o livre arbítrio. Esse último possui um papel fundamental na visão da autora, para quem toda formação é autoformação, uma vez que só participa do processo formativo da pessoa aquilo que ela acolhe como próprio no íntimo de sua alma (STEIN, 1999b).

    A visão da formação humana de Stein relaciona-se com sua antropologia filosófica. Partindo da análise das vivências do ser humano, Stein (2013) apresenta-nos uma estrutura essencial da pessoa, constituída pelas dimensões corpórea, psíquica e espiritual. Essa análise nos auxilia a olhar para os fenômenos psíquicos, sem reduzir a pessoa a eles, ou seja, inserindo-os em uma totalidade que engloba as dimensões corpórea e espiritual.

    Essa reflexão de Stein também oferece subsídios para a delimitação da compreensão a respeito da violência, aqui entendida como todo o fenômeno que viola a dignidade e a integralidade do ser humano, em qualquer dimensão que esse fenômeno incida, e não apenas fisicamente, como ela nos aparece de modo mais evidente. De acordo com Safra et al. (2009):

    A prática clínica dos psicólogos e dos psicanalistas tem mostrado a importância da violência no mundo atual e constata que este fenômeno afeta o ser humano de diferentes modos: em sua subjetividade e comportamento, em sua qualidade de vida, nas relações familiares e sociais, na educação, na vida política etc. Do ponto de vista filosófico e político, abala a concepção do que se define como humano e aponta para o desumano no outro e em cada um (p. 8).

    Ligado a essa visão, Safra (2006) também discute o olhar para a integralidade do ser humano. Ao constatar que muitos psicólogos reduzem as experiências trazidas por seus pacientes ao registro psíquico desconsiderando outras dimensões do humano, Safra aponta para a necessidade de revisão dessa postura e afirma ser essa uma discussão fundamental para a clínica. De acordo com o autor, ocorre um desencontro clínico quando respondemos às questões ontológicas trazidas pelos pacientes como se acontecessem em um único registro. O autor denuncia a dor de alguns pacientes devido à falta de abertura dos psicólogos para escutá-los no sentido que determinada experiência tem para eles. Relata observar o sofrimento de pessoas em consequência de tratamentos psicoterápicos orientados por perspectivas excessivamente reducionistas e abstraídas da experiência de vida. Não seria isso uma forma de violência?

    Nesse sentido, acredito que o exercício de uma escuta clínica, e não apenas escuta, mas da presença do psicólogo (de uma pessoa) que vai ao encontro do outro em seu contexto de vida, seja um caminho de grande contribuição para a revisão da prática clínica proposta por Safra. Acredito que a convivência e a escuta a que me propus neste percurso tenham sido, em si mesmas, uma forma de intervenção clínica, entre outras coisas, pela possibilidade de reflexão e elaboração que o relato oral de uma experiência proporciona (SZYMANSKI, 2010). De fato, segundo Szymanski (2010), a situação de entrevista exige que o entrevistado organize seu relato de forma a construir um discurso compreensível ao outro, e isso requer um movimento reflexivo. Tal movimento acaba por colocar o entrevistado diante de um pensamento organizado de uma forma inédita para ele mesmo (SZYMANSKI, 2010, p. 14).

    Edith Stein (1999a) também reconhece a importância da palavra como instrumento de autoconhecimento e conhecimento do outro; como instrumento de reflexão e formação. Ela afirma:

    Qual fruta madura ela [palavra] se solta do interior informando sobre seu funcionamento íntimo. Em forma de erupção desenfreada denuncia a efervescência e as tormentas internas; pronunciada irrefletidamente é sinal de agitação superficial. Mas sempre se trata de uma intervenção em outras almas. (STEIN, 1999a, p. 256).

    Para a autora, um dos objetivos do trabalho formativo deve ser auxiliar a pessoa a expressar exatamente aquilo que ela quer dizer. Nesse sentido, acredito que o relato oral tenha sido uma oportunidade para os participantes exercitarem o autoconhecimento e a comunicação de seu mundo interior.

    Finalmente, gostaria de frisar a relevância deste percurso no sentido de uma responsabilidade cívica que me motiva a olhar para uma realidade difícil como a dos moradores do Uruguai. Realidade certamente única em diversos aspectos, mas não solitária no contexto de pobreza e violência em que se insere. De acordo com a Organização Mundial da Saúde, para 60 países de diversas regiões do mundo, o Brasil registra a segunda maior taxa de mortalidade por agressão, sendo a violência mais intensa nos bairros pobres das periferias de grandes cidades (MESQUITA NETO, 2011). Nesse contexto periférico, duas formas particularmente presentes de violência são a policial e o homicídio praticado entre jovens integrantes do tráfico de drogas (ENDO, 2009; SANTOS, 2007).

    Ao investigar o homicídio entre jovens no Subúrbio Ferroviário de Salvador, Santos (2007) aponta para a necessidade de se compreenderem aspectos do desenvolvimento humano naquele contexto, a fim de orientar ações preventivas. Analisando as trajetórias de três jovens envolvidos com o tráfico e as repercussões na família, entre os moradores e nos projetos sociais do homicídio que sofreram, o autor destaca o desterro e a falta de memória da vida dos jovens assassinados como forte consequência da violência local. Aponta também para o sentimento de impotência dos familiares e dos projetos sociais, despreparados para enfrentar essa realidade, e cujas ações educativas, na sua maioria, não atingem os jovens que não se enquadram em um perfil ideal. Santos (2007) denuncia a impunidade em relação aos jovens que cometeram o homicídio e o silêncio das famílias que, por medo, evitam denunciá-los e muitas vezes se isolam, ou se mudam, para evitar um mal pior. Por outro lado, o autor aponta para uma importante repercussão causada pelo homicídio de jovens que não são vistos como ameaça pelos moradores. Nesse caso, a perplexidade ligada à comoção gerada pela sua morte faz com que sua memória permaneça viva ajudando outros jovens a buscarem novos projetos de vida e a se protegerem dos riscos presentes no contexto (SANTOS, 2007).

    Em trabalho posterior, Santos (2013) alerta para o perigo do olhar estigmatizado sobre a periferia, normalmente evidenciada em seus aspectos negativos e negligenciada na sua beleza. Nesse sentido o autor se pergunta: onde está a beleza da periferia? É o que ele busca responder ao dar visibilidade aos artistas do subúrbio ferroviário de Salvador. Santos (2013) contemplou a beleza nas expressões artísticas daqueles que não têm sua arte divulgada nas grandes galerias e, além de contemplá-la, compreendeu o poder de dinamizar a existência que ela tem. Segundo ele, estar diante de uma obra nos traz a força de viver, de querer existir sempre mais e melhor (SANTOS, 2013, p. 73).

    De acordo com Edith Stein (2004, p. 132), essa força de querer existir sempre mais e melhor – que pode ser potencializada pela contemplação de uma obra de arte – tem a ver com a moção que brota da profundidade da cada alma – ou núcleo pessoal, como veremos no capítulo sobre a Fenomenologia de Edith Stein. Trata-se de um apelo à realização de si que orienta o processo formativo, em diálogo com o contexto e com as escolhas pessoais. Foi esse o movimento que busquei captar nas vivências dos moradores do Uruguai, voltando meu olhar para a beleza de cada pessoa, expressa na arte de tecer a própria vida. E se é verdade que estar diante de uma obra de arte nos traz a força de viver e de querer existir sempre mais e melhor, isso me leva a crer que apresentar as obras de existência tecidas pelos moradores a eles mesmos já são em si uma intervenção. Nesse sentido, reconheço a importância da devolutiva deste percurso aos moradores, o que procurei concretizar de três formas: por meio de um encontro com eles em 2017, quando voltei ao bairro para apresentar os resultados do trabalho; pela criação da coleção Histórias de Alagados no Museu da Pessoa, uma plataforma virtual que permite a qualquer pessoa ter acesso aos relatos dos participantes que autorizaram sua identificação (www.museudapessoa.org) e por este livro.

    1.3 OS ALAGADOS MAIS LINDO DO MUNDO

    O bairro do Uruguai, em Salvador, na Bahia, pertence à região conhecida por Alagados. O bairro teve início em 1934, quando a Península de Itapagipe tornou-se Polo Industrial da cidade de Salvador, atraindo pessoas vindas do interior da Bahia em busca de trabalho. Por falta de recursos e de espaço habitacional para abrigar o grande contingente de pessoas, os migrantes acabaram ocupando uma região costeira pertencente à Marinha e construíram suas casas sobre a água, nos moldes de palafitas, daí a denominação Alagados (KERN, 2015).

    Com o passar do tempo, as porções de água invadidas e as palafitas passaram a ser comercializadas apesar da situação irregular, fazendo com que hoje a maioria dos proprietários não possua escritura de seu imóvel. O bairro começou a ser aterrado pelos próprios moradores que utilizavam lixo e restos de materiais de construção provenientes da Cidade Alta, conforme ilustra a descrição a seguir:

    [...] um caminhão da Prefeitura despejava o lixo na maré, enquanto crianças e algumas mulheres aguardavam. Logo que o caminhão dava ré, o grupo caía sobre o lixo, vasculhando em busca de algo útil como: brinquedos quebrados, roupas destroçadas, utensílios [...] De dentro das palafitas mais próximas, outras pessoas surgiam munidas de enxadas e pás e passavam a puxar o lixo para aterrar os vazios em redor da casa de madeira, espreitando a rua à espera de nova remessa. (KERN, 2015, p. 13).

    Imagem 1– Palafitas dos Alagados

    Fonte: http://salvadorhistoriacidadebaixa.blogspot.com/2013/08/alagados-de-itapagipe-60-anos.html Acesso em: 18 mar. 2016

    Hoje, com ajuda do governo, a região está quase toda aterrada e urbanizada. Quem a conheceu no tempo das palafitas vislumbra agora uma paisagem bem diferente. O bairro se desenvolveu bastante, apesar de ainda enfrentar dificuldades, principalmente no que diz respeito à infraestrutura.

    As calçadas, estreitas e altas, normalmente são ocupadas pelos moradores que se sentam em frente às suas casas; ou ainda por lojistas que expõem mercadorias do lado de fora. Isso dificulta o trânsito dos pedestres, que acabam disputando um espaço na rua com carros, motos, ônibus e bicicletas, além dos vendedores (de CDs por exemplo) que transitam empurrando um carrinho de mão. A situação se torna mais difícil quando chove muito e as ruas, recentemente asfaltadas, alagam devido à falta de estrutura para o escoamento, e ao lixo que se acumula pelo não comparecimento dos caminhões da prefeitura nos dias previstos.³

    Por outro lado, a boa localização, o comércio e a facilidade de acesso ao transporte público têm atraído pessoas de fora, o que repercute em uma valorização imobiliária na região. As casas de alvenaria crescem para cima, tornando-se pequenos edifícios (de três, quatro andares),

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