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Características de uma época
Características de uma época
Características de uma época
E-book328 páginas4 horas

Características de uma época

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Sobre este e-book

Bojuru, ou Bujuru, é um vilarejo perdido na vasta planície litorânea do extremo sul brasileiro. Apesar de sua pouca densidade populacional, possui um templo católico digno das grandes cidades. Outra característica marcante do lugar são algumas casas antigas, sufocadas pelas modestas construções atuais, que juntamente com a igreja, permanecem como testemunhas silenciosas da opulência da antiga Fazenda Real de Bujuru. O local já viveu seus tempos áureos, mas acabou sucumbindo ao crescimento econômico de São José do Norte, com sua localização estratégica às margens do canal de São Gonçalo. As ruas da vila, varridas pelo vento com frequência a visita de pescadores, que se aventuram na abundante piscosidade de sua praia. A história inicia aqui, em uma modesta pousada, a qual Carlos, um bem sucedido executivo, escolheu como refúgio para passar as férias em pleno inverno, na tentativa de serenar a mente e encontrar uma luz que lhe ilumine o caminho. O enredo e os personagens são fictícios, mas a beleza natural do lugar é real, tal qual seu antigo nome.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento17 de jul. de 2019
ISBN9788583385004
Características de uma época

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    Características de uma época - Chico Neto

    © Chico Neto 2019

    Produção editorial: Vanessa Pedroso

    Revisão: Josias A. de Andrade

    Capa: Editora Buqui

    Editoração: Cristiano Marques

    Produção de ePub: Cumbuca Studio

    CIP-Brasil, Catalogação na fonte Sindicato Nacional dos Editores de Livros

    C46c

    Chico Neto

    Características de uma época [recurso eletrônico] / Chico Neto. - 1. ed. - Porto Alegre [RS] : Buqui, 2019.

    recurso digital

    Formato: ebook

    Requisitos do sistema: adobe digital editions

    Modo de acesso: world wide web

    ISBN 978-85-8338-500-4 (recurso eletrônico)

    1. Romance brasileiro. 2. Livros eletrônicos. I. Título.

    19-57833 | CDD: 869.3 | CDU: 82-31(81)

    Vanessa Mafra Xavier Salgado - Bibliotecária - CRB-7/6644

    19/06/2019 | 25/06/2019

    Todos os direitos desta edição reservados à

    Buqui Comércio de Livros Digitais Ltda.

    Rua Dr Timóteo, 475 sala 102

    Porto Alegre | RS | Brasil

    Fone: +55 51 3508.3991

    www.buqui.com.br

    www.editorabuqui.com.br

    www.facebook.com/buquistore

    Em meio à natureza exuberante,

    um barco solitário flutua serenamente

    sobre o fio d’água, à espera de alguém

    que esteja disposto a uma travessia segura…

    Chico Neto

    Sumário

    Capa

    Créditos

    Folha de Rosto

    Bojuru

    Homenagem

    Prólogo

    Viver é uma grande aventura, e a única certeza irrefutável é que num piscar de olhos o que era deixa de ser, ou vice-versa. Logo, o importante é aproveitar cada momento da melhor maneira possível e, principalmente, desfrutar em sua plenitude as coisas boas que a vida oferece, pois ela é tão efêmera quanto a luz de uma estrela cadente.

    Chico Neto

    Aos que sonham e que nunca desistem dos seus sonhos.

    … Esta sociedade produz muitas coisas inúteis e, no mesmo grau, muita gente inútil. O homem, como dente da engrenagem da máquina de produção, torna-se uma coisa e deixa de ser humano. Ele passa o tempo fazendo coisas nas quais não está interessado, com pessoas nas quais também não está interessado; e, quando não está produzindo, está consumindo. Ele é o eterno lactente de boca aberta absorvendo sem esforços e sem atividade interior tudo aquilo que a indústria, que impede o tédio (e produz o tédio) lhe impinge: cigarros, bebidas, filmes, televisão e toda a sorte de engenhoca.

    Erich Fromm – Revolução da Esperança

    – I –

    Num amplo escritório de uma empresa multinacional, em meio ao burburinho de vozes e o som estridente dos telefones tocando sem parar, um engenheiro mecânico, ocupando cargo de chefia, manuseia displicentemente o mouse do seu computador. Faltando dois dias para sair em férias, Carlos ainda não se decidiu aonde ir, ou o que fazer, durante o período em que ficará ausente do trabalho. A decisão de tirar férias em pleno inverno foi sua, e a razão se deve ao péssimo estado de espírito, resultante do esgotamento mental ocasionado pela excessiva carga de trabalho burocrático, da pouca aptidão para exercer a função e das incertezas da vida pessoal, cujo divórcio conflituoso, que se arrastava por vários anos, finalmente foi concluído.

    Carlos corre os olhos em torno de si, observa os colegas absortos nos afazeres, alguns dos quais vão ficar sobrecarregados durante sua ausência, e uma súbita inquietação se manifesta, pois não estará presente para coordenar as atividades sob sua responsabilidade. Em seguida, porém, ao se dar conta de que não tira férias há vários anos, mentalmente se questiona: Ora bolas, Seu Carlos! Estás pensando que a empresa vai deixar de existir se não estiveres por perto?.

    Após achar graça da indagação, ele fixa a atenção na tela do computador, digita o nome de uma agência de viagem e fica observando as opções de pacotes turísticos desfilarem. Após descartar as viagens ao exterior e também a outros estados, sob o argumento de que a cabeça não anda boa para longas distâncias, decide acessar o site de turismo local. Umas poucas vagas em hotéis da Serra Gaúcha se apresentam na tela, em razão da temporada de inverno estar no auge. Seguem-se vários minutos de indecisão sobre qual escolher, alguns por não conhecer; outros, pelo elevado custo das diárias. Lá pelas tantas, quando finalmente se decidiu por um, lembrou-se do burburinho que sempre ocorre nesta época do ano, e a aversão a locais movimentados o faz sair do site.

    Depois de espreguiçar-se na cadeira, com as mãos espalmadas à nuca, ele mentalmente se pergunta: E agora, meu chapa… O que você vai fazer?. Eis então, que lhe vem à mente a lembrança de uma pescaria no litoral sul do estado, para a qual fora convidado por um amigo, durante um feriadão, havia aproximadamente dois anos, justamente nesta mesma época. Depois de recordar a paisagem bucólica e a serenidade do local, ele sorri e mentalmente, exclama: Bojuru!.¹ Em seguida completa: Como não pensei nisso antes?.

    Satisfeito por ter encontrado a solução, ele torna a acessar a rede, mas desta vez na tentativa de encontrar o telefone da pousada onde ficaram hospedados. Mas, para sua frustração, não consegue lembrar-se do nome. Após tentar novamente, digitando apenas Pousadas em Bojuru, observa que apareceu mais de uma, e a dúvida permanece. Depois de vários minutos forçando a memória na tentativa de lembrar-se do nome, ele torna a fixar o olhar no mouse do computador e fica pensando no que fazer, uma vez que seria temerário viajar até lá sem fazer a reserva, pois a pousada em que ficaram hospedados é pequena e pode já estar com as vagas preenchidas por pescadores. O tempo vai passando e a dúvida permanece. Repentinamente, então, se recorda do amigo de pescaria, que costuma ir com frequência até lá e que certamente deve ter o telefone.

    Imediatamente ele apanha o celular, vasculha a agenda, e ao encontrar o número, sem perda de tempo, faz a ligação. A voz do outro lado da linha responde com surpresa, uma vez que, depois da pescaria eles não mais se falaram. Segue-se uma série de brincadeiras, recordando a aventura em pleno inverno, e mútuas indagações sobre o trabalho, saúde e alguns detalhes da vida particular, principalmente de Carlos, que relata o fato de finalmente ter conseguido o divórcio e ter se livrado de forma definitiva da ex-esposa. Esgotado o assunto, com os efusivos cumprimentos do amigo, ele relata o motivo de sua ligação, ressaltando estar precisando descansar e botar as ideias em ordem. Após concordar não ter lugar melhor para isso, o amigo lamenta não poder acompanhá-lo, depois repassa o número do telefone da pousada e deseja-lhe uma ótima pescaria.

    Tão logo encerra a ligação, Carlos digita o número indicado e, após vários toques, uma voz feminina atende. Depois de se apresentar e dizer que já esteve hospedado na pousada, ele indaga se há disponibilidade de vagas para a próxima semana. A voz vacilante responde que a dona da pousada deu uma saidinha, mas acrescenta que no momento há poucas pessoas hospedadas e que irá anotar o nome para fazer a reserva. Satisfeito, Carlos agradece a atenção, desliga o telefone e, aliviado, exclama mentalmente: Feito! Agora já temos aonde ir.

    O tempo vai passando, e Carlos permanece com os pensamentos alheios às suas tarefas profissionais. Lá pelas tantas, como ainda tem várias coisas a fazer antes das férias, retorna ao trabalho. Mas os números vão desfilando na tela e ele não consegue se concentrar. Irritado, levanta-se da cadeira, se dirige à máquina de café e aciona o botão da dose mais forte, na tentativa que o líquido estimulante ajude a relaxar a tensão. Na sequência, como sempre acontece após o cafezinho, resolve fumar um cigarro. Chegando ao local reservado aos fumantes, apelidado de fumódromo, cumprimenta um companheiro de vício que acabara de completar o ritual, esfregando a bituca do cigarro no cinzeiro, e após se proteger do vento frio, se manifesta:

    – Este vício danado nos obriga até mesmo a enfrentar os rigores do tempo para saciá-lo.

    Solidarizando-se com ele, o companheiro completa:

    – No inverno bem que poderiam permitir fumar dentro do escritório…

    Carlos sorri e replica:

    – O problema são os não fumantes… Embora o argumento maior seja que a fumaça prejudica o funcionamento dos computadores.

    O outro sacode a cabeça concordando:

    – É verdade! Quando os computadores não existiam, apesar de algumas reclamações, podíamos fumar tranquilamente em nossos locais de trabalho.

    Esgotado o assunto, segue-se a troca de meia dúzia de palavras abordando detalhes das atividades profissionais que exercem. Depois, como já tinha saciado a vontade de fumar, o outro pede licença, e com a desculpa de ter uma pilha de problemas a resolver, se afasta. Tão logo fica sozinho, Carlos acende o cigarro, que até então mantivera apagado entre os dedos, solta uma longa baforada de fumaça no ar e deixa a mente vadiar. Os pensamentos vão desfilando fragmentariamente até se fixarem, outra vez, em Bojuru, e a retrospectiva da pescaria o faz retroceder no tempo.

    Subitamente, então, surge um acesso de tosse e interrompe as reminiscências. A crise se prolonga por vários segundos, fazendo-o afrouxar a gravata e pigarrear para tentar eliminar o muco preso na garganta. Ofegante, ele respira fundo várias vezes, e tão logo recupera o fôlego, olha disfarçadamente em torno de si, conferindo se alguém tinha presenciado a cena. Aliviado por não ter ninguém por perto, esmaga o cigarro quase inteiro no cinzeiro e exclama com raiva:

    – Desgraça de vício!

    Antes de retornar ao escritório, torna a respirar fundo tentando aliviar o chiado do peito, depois ajeita o nó da gravata, e desviando o olhar para o cinzeiro repleto de pontas de cigarros, lembra-se da recomendação do seu médico de que precisa urgentemente largar o vício do fumo. A lembrança de que já perdeu a conta das inúmeras tentativas infrutíferas que fizera é seguida da exclamação mental: O médico está certo… Preciso me livrar desta porcaria!.

    De volta ao computador, Carlos digita a senha para acessá-lo, e sem conseguir conter o enfado, deixa escapar um suspiro. As atividades repetitivas, a superficialidade do ambiente e a inaptidão para a função estão se tornando insuportáveis. Para complicar ainda mais, uma indisposição estomacal, que ultimamente tem se manifestado cada vez com mais frequência, torna a se fazer presente. Visivelmente incomodado, ele apanha um antiácido na gaveta da escrivaninha e o coloca na boca. Depois, enquanto aguarda a dor aliviar, aperta o dedo indicador no mouse e fica observando os números correndo na tela. A aproximação de um colega de trabalho, trazendo nas mãos vários papéis para serem assinados, interrompe a brincadeira. Após conferir superficialmente os documentos, ele os assina e tão logo o colaborador retorna ao seu local de trabalho, mentalmente exclama: Que saco… Essa gente não dá sossego!.

    Os dias que se seguiram não foram diferentes dos anteriores, com exceção apenas das idas ao fumódromo, que por temer que ocorresse outra crise diante dos colegas, passou a escolher horários diferentes dos demais fumantes, para não passar pelo constrangimento. A dor estomacal também não lhe deu trégua, obrigando-o a ingerir antiácidos cada vez com mais frequência.

    Com a chegada da sexta-feira, último dia de trabalho antes de sair em férias, a correria para deixar tudo encaminhado fez com que o dia passasse num piscar de olhos. Tão logo ouviu a sirene anunciar o fim do expediente, Carlos interrompe momentaneamente seus afazeres e passa a agradecer os vários apertos de mão dos colegas mais próximos, desejando-lhe boas férias. Após os cumprimentos, ele permanece em pé diante do computador e se diverte observando os colegas saindo apressados. Os mais jovens, estampando no rosto o entusiasmo de poder curtir o fim de semana; enquanto outros, de mais idade, não deixam transparecer emoção nenhuma, a não ser o cansaço de uma semana inteira de trabalho extenuante. A sala pouco a pouco vai ficando vazia, e ele retorna ao que estava fazendo. Cerca de uma hora mais tarde, desliga o computador, apanha seus pertences e chaveia as gavetas da escrivaninha, pondo um ponto-final às atividades.

    No estacionamento, encontra-se com uns poucos retardatários, em sua maioria colegas de chefia, que após uma ou outra brincadeira de humor um tanto duvidoso, maquinalmente lhes desejam boas férias. Dando continuidade ao ritual, ele entra no carro, coloca o notebook no banco ao lado e reflete se não esqueceu nada importante. Concluído o breve check-list, suspira fundo, depois aciona a ignição do veículo, engata a marcha e pelo retrovisor, observa o perfil acinzentado dos pavilhões da empresa ficando para trás.

    Tão logo acessa a via principal, como costumeiramente acontece, enfrenta um acentuado congestionamento de veículos até chegar ao condomínio onde mora. Vencido o irritante e demorado percurso, Carlos estaciona o veículo na garagem do subsolo do prédio e se dirige ao hall de entrada, onde cumprimenta o porteiro da tarde, apanha algumas correspondências na caixa do correio, e como um autômato, se dirige ao elevador. Tão logo aperta o botão de subida é obrigado a segurar a porta para outro residente, que surgiu repentinamente, o qual cumprimenta apenas com um leve movimento com a cabeça, pois já tiveram várias desavenças em reuniões do condomínio e a aversão entre os dois é mútua. Após a subida silenciosa até o andar em que o indesejado companheiro de ocasião desceu sem se despedir, ele faz um gesto obsceno com o dedo e mentalmente manda-o à merda.

    No apartamento, Carlos se dirige ao closet, repete o gesto mecânico de colocar o notebook dentro de um armário, depois retira a gravata e o casaco, dependura-os meticulosamente no cabide e retorna à sala de estar. Prosseguindo o ritual, ele acende mais um cigarro antes de ligar o ar-condicionado, e enquanto confere com displicência os recados na agenda eletrônica, em sua grande maioria de subalternos desejando-lhe boas férias, vai dando uma tragada atrás da outra. Em seguida, achando graça do puxa-saquismo, olha com enfado para o aparelho, desliga-o e se dirige ao bar para preparar a costumeira dose de uísque.

    Após bebericar a bebida, automaticamente retira mais um cigarro da carteira, e quando ia apanhar o isqueiro, lembra-se que acabara de fumar. Depois de recolocá-lo no lugar, ele olha meio apatetado para o maço de cigarros e irritado, exclama:

    – Mas que merda! Vou acabar comendo cigarros em vez de alimentos…

    Em seguida, lembrando-se da crise de tosse que tivera na empresa, rememora as palavras do médico alertando-o para os males que o fumo provoca e reflete que está na hora de, mais uma vez, tentar parar de fumar. Seguem-se vários minutos de indecisão, ao cabo dos quais ele olha para a carteira de cigarros com desprezo, joga-a sobre a mesinha de centro e sentencia:

    – Se tenho que parar de fumar, este é o momento!

    Depois de chutar os sapatos dos pés, estira-se no sofá, com o copo de bebida na mão, liga o ar-condicionado para aquecer o ambiente e torna a sorver um bom gole. A semana inteira de intensa atividade mental, somada à expectativa das férias, o deixou completamente exausto. Um profundo suspiro ecoa na sala, e de olhos fechados, ele deixa os pensamentos vagarem, sem se deter em nenhum. Os minutos vão se sucedendo, e pouco a pouco uma súbita melancolia, que ultimamente tem se manifestado cada vez com mais frequência, torna a se fazer presente, aumentando ainda mais seu desconforto. Após abrir os olhos e olhar em torno de si à procura de uma explicação, conclui que o ambiente silencioso do apartamento, que a princípio lhe fizera tão bem, deve ser a causa da inquietação. Segue-se um momento de vazio mental, ao cabo do qual apanha o copo que colocara sobre a mesinha de centro, toma outro gole da bebida e exclama:

    – Vamos ter que achar uma solução, meu caro! Ficar sozinho já está dando nos nervos.

    Em seguida, após refletir um pouco mais e lembrar-se dos dissabores do processo de divórcio, arremata:

    – Desde que não seja outro casamento, é claro! Nessa arapuca eu não caio mais!

    Um sorriso irônico brota-lhe nos lábios, e o copo novamente é entornado. Ao se dar conta de que havia ingerido toda a bebida, ele deixa o copo vazio de lado, espreguiça-se e exterioriza o pensamento:

    – Você já está em férias, amigão… Vamos arrumar as malas, para pegar a estrada amanhã de manhãzinha!

    – II –

    No dia seguinte, Carlos acorda cedo e decide mudar os planos iniciais de viajar logo nas primeiras horas da manhã, pois além de precisar fazer uma rápida revisão no carro, tem que pagar alguns boletos que estão para vencer e sacar um pouco de dinheiro, uma vez que é temeroso levar apenas cartão de crédito a um lugar em que nem agência bancária tem. Horas depois, após concluir todas as tarefas, consulta o relógio, e como ainda dispunha de um bom tempo antes do horário que estipulou para viajar, resolve ir ao supermercado fazer algumas compras.

    Pouco afeito aos preparativos de viagem, coisa que sua ex-esposa costumava fazer, ele perambula entre os corredores sem saber o que comprar. Lá pela tantas, ao lembrar-se de que na pousada tem tudo o que precisa em termos de alimentação, apanha apenas um refrigerante e alguns salgadinhos para consumir durante a viagem. Quando se dirigia ao caixa, passa pelo setor de livros e conclui que seria uma boa ideia comprar algum, uma vez que ler é o tipo de lazer que não pratica há bastante tempo, e na pousada terá tempo de sobra para fazê-lo.

    Depois de folhear um por um os títulos, quase todos best-sellers, se depara com um pequeno livro de bolso, com o sugestivo título "Os devaneios do caminhante solitário",² e resolve conferir. Ele sorri ao reler o título, e mentalmente exclama: Vamos ver o que um solitário tem a dizer a outro solitário!. Em seguida, antes mesmo de ler a contracapa, já havia decidido comprá-lo.

    Na saída do supermercado, após observar as horas e constatar que faltam poucos minutos para o meio-dia, resolve passar no restaurante onde costuma almoçar, assim não precisará parar à beira da estrada para se alimentar. De volta ao apartamento, sentindo o estômago pesado pela farta refeição, decide sestear um pouco para fazer a digestão, antes de pegar a estrada.

    Cerca de uma hora e meia mais tarde, ele acorda assustado; e após conferir as horas, veste-se apressadamente, apanha a bagagem, e antes de sair confere se não esqueceu nada ou deixou algum aparelho ligado sem necessidade. Em seguida, sentindo certa apreensão em deixar o apartamento sozinho, somado à expectativa com a brusca mudança de hábitos, fecha a porta e inicia a viagem.

    O percurso de saída da cidade para o acesso à rodovia que o levará a Bojuru transcorre sem anormalidade, pois nessa época do ano o movimento em direção ao litoral reduz-se consideravelmente. Em determinado momento, após observar as horas no relógio do carro, mentalmente faz os cálculos do tempo necessário para chegar à pousada antes da noite, e ao constatar que não precisa se apressar, instintivamente alivia o pé do acelerador. Os minutos vão se sucedendo e ele segue com a atenção fixa na estrada. Lá pelas tantas, sentindo uma ligeira inquietação provocada pela falta de hábito de viajar sozinho, liga o rádio do veículo e deixa a mente vadiar.

    Com o passar do tempo, a inconsistência dos assuntos que afloram na mente faz com que os pensamentos acabem retornando ao ambiente de trabalho, do qual, nem mesmo nos fins de semana, consegue se livrar, uma vez que, frequentemente, recebe telefonemas vindos da empresa. Em seguida, ao se dar conta de que está em férias, reage com irritação e tenta mudar o rumo dos pensamentos. O tempo vai passando, e a escassa vivência fora do circuito profissional leva-o a pensar no mal-aventurado casamento, fazendo-o outra vez reagir irritado. Segue-se novo período de vazio mental, ao cabo do qual, ao lembrar-se do atual status social que conseguiu alcançar, resolve fazer uma retrospectiva de sua vida, coisa que nunca fizera.

    A imagem do menino mirrado, que vivia sonhando ser jogador de futebol profissional se materializa em sua mente, fazendo-o rememorar a ingenuidade do alvorecer da existência. Por um momento, os ídolos do mundo da bola desfilam diante de seus olhos, fazendo-o sorrir com amargura ao recordar-se das poucas habilidades futebolísticas, as quais jogaram por terra o seu primeiro grande sonho de vencer na vida. Na sequência emerge a segunda opção, a de seguir a carreira militar, influenciada pelos filmes do gênero e dos conselhos do pai, que não se cansava de repetir as vantagens financeiras e a estabilidade que a profissão oferece. Carlos esboça um sorriso irônico ao lembrar-se da fisionomia paterna, quando soube de sua dispensa do serviço militar, por excesso de contingente. Depois, recorda a sombria previsão do seu progenitor, de que tal qual ele, também iria terminar seus dias como um operário sem qualificação alguma.

    Ao término da música, o anúncio das notícias do dia interrompe seus pensamentos, fazendo-o prestar atenção no locutor, que começa informando sobre os desdobramentos das últimas denúncias de corrupção envolvendo políticos e empresários de grande projeção nacional. Segue-se um breve período de estarrecimento ao ouvir o nome de políticos nos quais, inclusive, votou na última eleição; e de empresários famosos, nos quais se espelhou. Depois, escuta com enfado os argumentos inconsistentes dos advogados de defesa, negando o envolvimento de seus clientes, que juram por todos os santos e santas não terem praticado as falcatruas; e revoltado com a desfaçatez, exclama:

    – Que desgraceira! Se fosse um cidadão comum, já estaria atrás das grades há muito tempo… Este país não tem mais jeito!

    Enojado com tudo aquilo, Carlos troca de estação. Depois, distraído com a operação de sintonizar uma que estivesse tocando música, não percebe a manobra arriscada de outro veículo, que vinha no mesmo sentido e o ultrapassou em alta velocidade, num local proibido, quase provocando um acidente com outro que vinha em sentido contrário. Após o susto, seguido do som da buzina e dos vários sinais de luz alta em protesto, ele recebe um gesto obsceno como resposta e fica ainda mais indignado, chegando, inclusive, a acelerar o carro para tentar alcançar o insolente.

    O inconsequente parceiro de estrada, entretanto, imprime mais velocidade ao veículo, fazendo-o desistir da perseguição. Seguem-se mais alguns minutos de indignação com a falta de civilidade, e pouco a pouco os ânimos vão serenando. Em seguida, concluindo que uma idiotice não justifica outra, ele retorna à retrospectiva de sua vida, lembrando a dura realidade enfrentada por garotos de sua antiga condição social, que antes mesmo dos primeiros fios de barba aparecerem, são obrigados a trabalhar fora para ajudar nas despesas da casa.

    O primeiro emprego de servente de pedreiro na construção civil, tão logo fora dispensado do serviço militar, exatamente como previra seu progenitor, ressurge na memória, e com ele a lembrança da indignação em aceitar tal predestinação. Depois, como o emprego era temporário, foi obrigado

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