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Quarentena Literária - Contos, Crônicas E Poesia, Em Tempos De Caos E Pandemia
Quarentena Literária - Contos, Crônicas E Poesia, Em Tempos De Caos E Pandemia
Quarentena Literária - Contos, Crônicas E Poesia, Em Tempos De Caos E Pandemia
E-book558 páginas4 horas

Quarentena Literária - Contos, Crônicas E Poesia, Em Tempos De Caos E Pandemia

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Sobre este e-book

Este livro é uma antologia que reúne boa parte do conteúdo de um projeto literário criado no início do ano de 2019, originalmente em meu Instagram (@robson.felix), intitulado Projeto Pensamento Soltos. O Projeto Pensamentos Soltos nasceu da certeza de que só há uma estrada capaz de exercitar a criatividade de um escritor. E esta estrada é pavimentada por letras e mais letras. Afinal, é senso comum que só a prática leva à perfeição, não é mesmo? Além de ter sido um ótimo laboratório para a minha criatividade, regularidade e concisão mental, escrever diariamente foi um excelente processo terapêutico, capaz de me manter (mais ou menos) estável em meio ao caos que o mundo se tornou a partir do início do ano de 2020. Ao perseguir a ambiciosa meta de postar um conteúdo escrito por dia, por pelo menos um ano, nos ínfimos 2.220 caracteres que constituem a legenda do famoso aplicativo de imagens da Meta (Facebook), eu me certificava de estar trabalhando os músculos que compõem o meu corpo literário. Porém, para que a ideia funcionasse a contento eu me flagrei escrevendo diretamente no aparelho celular, bem mais que um texto por dia, visando garantir uma “frente” de conteúdos novos a serem utilizados em postagens futuras, principalmente nos dias em que a inspiração não me visitava. No início, confesso, foi bastante complicado administrar este processo de catar assunto. Não só a rotina de escrita não fluía, como os insights criativos não aconteciam com a diversidade e a frequência imaginada por mim, de forma a garantir a manutenção de longo prazo do Projeto Pensamentos Soltos. Porém, com o “andar da carruagem”, passei a ser estimulado por todo e qualquer evento que me surpreendia ao longo de dias comuns, incluindo-se aí a quarentena fruto da pandemia do COVID-19. Durante todo este processo aprendi a usar o bloco de notas do celular a meu favor, anotando fragmentos de textos, pensamentos fortuitos e palavras soltas, o que destravou o meu processo de criação e aliviou, de uma vez por todas, o gargalo das publicações diárias dos conteúdos escritos inéditos. Em resumo: este livro é uma seleção do material publicado dentro do Projeto Pensamentos Soltos ao longo do período de 21/02/2019 a 25/08/2020. Todos os textos selecionados para esta antologia foram revistos e (eventualmente) ampliados por mim especialmente para esta edição (o que não me exime de eventuais erros grosseiros), de forma muito amorosa, buscando preservar todo o aroma, frescor e a leveza criativa da época de sua concepção original. Compartilho este material, agora, com o intuito de homenagear as milhões de vidas ceifadas até o momento, no Brasil e no mundo, por esse malfadado vírus; além de buscar ajudar a todos nós a aliviar um pouco da angústia e culpa por termos sobrevivido aos nossos entes queridos. É isso! No mais, só me resta agradecer a você por compartilhar comigo este momento único, sagrado, do universo... Desejo a todos uma ótima leitura!
IdiomaPortuguês
Data de lançamento3 de jan. de 2022
Quarentena Literária - Contos, Crônicas E Poesia, Em Tempos De Caos E Pandemia

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    Quarentena Literária - Contos, Crônicas E Poesia, Em Tempos De Caos E Pandemia - Robson Felix De Almeida

    CONTOS

    O novo normal

    Carlos saiu de casa todo paramentado de o novo normal: máscara cobrindo o nariz e a boca, luvas cobrindo as mãos e álcool em gel no bolso de trás de suas calças.

    Do outro lado da calçada um homem mal-ajambrado caminha em sua direção e o aborda:

    – O senhor poderia me dar uma informação, por favor...

    – Desculpa, mas eu estou com pressa.

    – Se liga... vou te dar um papo... a casa caiu, informação é o caralho... isso aqui é um assalto... passa logo toda a grana, mané!

    – Um assalto? Como assim?

    – Passa tudo logo, mermão...

    – Estou sem dinheiro, desculpa... e a propósito: onde está sua arma?

    – Arma é o caralho, rapá... eu tô com Covid-19... se eu te der um escarradão na fuça tu vai ver só o que é bom pra tosse... tu vai direto pra vala, seu otário!

    – PeloAmordeDeus, tudo menos isso... é que eu estou sem grana mesmo, foi mal aí, meu amigo...

    – Então me passa o teu cartão de crédito – disse o assaltante já puxando uma maquininha...

    – Eu não tenho isso, não... seu moço. Eu estou negativado no SPC, no SERASA, no banco... minha conta está bloqueada, fui demitido da empresa em que eu trabalhava por causa dessa merda de pandemia... meu pedido do auxílio emergencial foi negado... estou na maior pindaíba, ouviu?

    – Porra tu tá pior do que eu, tá ligado? Pelo menos o meu auxílio emergencial caiu... então faz o seguinte, cumpádi... deposita pelo menos uns cem contos direto na conta da firma, através do pix, pra nós comprá uns créditos pro celular dos irmão lá da cadeia... e sem caô que eu sei onde tu mora, hein?!

    – Tudo bem, isso eu posso fazer... peço emprestado a algum amigo e deposito amanhã mesmo, sem falta, me passa o pix...

    – Pega lá no saite da firma, mais velho...

    – Firma? Site?

    – Qual foi, meu irmão... tu tá surdo ou o quê? tá me tirano, mané?

    – Não estou, não... só não havia entendido direito... me passa o site, então...

    – Anotaê: dábliu, dábliu, dábliu, ponto: O NOVO NORMAL É NÓS, ponto com, ponto beérre... tudo junto e sem acento, valeu? Ah, e não esquece de nos seguir nas redes sociais também e de ativar o sininho pra tu ser avisado quando tiver conteúdo novo... só não me enrola não, cumpadi, que amanhã eu broto aqui pra pegar o comprovante, tá ligado? – ameaçou e saiu andando, sem olhar para trás.

    Carlos ficou paralisado por alguns instantes, atordoado com o chamado novo normal, preconizado para um mundo pós-pandemia.

    Será que é uma pegadinha em quem estava furando a quarentena?

    Carlos se sentou na calçada e desabafou, gritando para o alto:

    Putaqueopariu... era só o que me faltava!

    Santo Antônio

    Fazia algum tempo que Sheela não beijava ninguém.

    E ela se ressentia disto.

    Desde que se separou, no meio do ano passado, encastelou-se em si mesma.

    E logo depois veio a pandemia do novo coronavírus.

    No começo, até que foi terapêutico aquele período de quarentena.

    Um resguardo para ela recuperar plenamente sua capacidade de amar.

    Agora, com a flexibilização das medidas de distanciamento social em sua cidade, Sheela se sentia ansiosa para amar de novo.

    Aos quarenta e poucos anos, ela já não acreditava mais em príncipe encantado montado em um cavalo branco.

    A verdade é que ela já não tinha mais tanto desejo sexual, como antigamente.

    Sheela só queria uma companhia para rir um pouco, comer um frango a passarinha, num boteco qualquer, acompanhado de uma cerveja bem geladinha... e para beijar muito.

    Era de beijar que Sheela mais sentia saudades.

    Beijo este que daqui a pouco seria catalogado pela Organização Mundial de Saúde como o mais arriscado vetor de contágio de uma variante qualquer, batizada de uma letra grega.

    Ela já não duvidava mais de nada.

    Os roteiristas dos últimos dois anos, segundo ela, tomaram LSD e até agora não voltaram, criando desde uma pandemia, passando por nuvens de gafanhotos e neve em São Paulo.

    Pensando em tudo isso ela não teve mais dúvidas e aprisionou o pobre do Santo Antônio, de cabeça para baixo, em seu freezer, até que encontrasse uma boca para poder beijá-la novamente.

    E de preferência sem máscara.

    Isso sim era um verdadeiro milagre.

    Positividade Tóxica

    Aurora zapeava pelas redes sociais com um misto de inveja e tristeza.

    Será que só ela estava deprimida durante aquela longa e entediante quarentena?

    Suas amigas, discípulas de Aline Cortado – a diva do Show de Truman, a musa da pandemia, a que faz de tudo um pouco dentro de casa –, pareciam disputar o título de pessoa mais animada do isolamento social.

    E a tal da Aline ainda tinha a pachorra de transmitir tudo ao vivo e em cores para o mundo: de yoga a pilates, passando pela preparação de pães de banana e sushis.

    E ela ainda arrumava tempo para fazer lives com astrólogos, filósofos e psicólogos, tão famosos e hiperativos quanto ela.

    Ah, e a super Aline também vendia conjuntinhos ‘mara’, perfeitos para malhar no conforto do lar, como uma verdadeira ‘diva pandêmica’.

    A mulher não para, concluiu Aurora, de forma retórica.

    O que ela não sabia era o porquê de ainda seguir aquelas pessoas (super)animadas e energizadas. Logo ela que sempre odiou aqueles recreadores, também conhecidos como Gentis Organizadores, ou GO's (ao menos eles eram assim chamados em sua época) de resorts e hotéis fazenda carérrimos, que acordam seus hóspedes ainda de madrugada para atividades supostamente esportivas tão divertidas e saudáveis quanto idiotas.

    Não fosse pelas crianças.

    Ah, e ainda tinham as crianças...

    Três, no total.

    Não havia maratona maior do que cuidar de todos aqueles capetinhas.

    Aurora estava a ponto de explodir durante aquele longo e tedioso confinamento, que estava mais para um ano (nada) sabático.

    Seu único desejo era dormir até que o mundo explodisse ou todo aquele pesadelo passasse dali a mais ou menos um ano e meio a dois, segundo as previsões mais otimistas dos infectologistas da Organização Mundial da Saúde.

    Mas, por mais que desejasse, ela não poderia fazer isso.

    Aurora precisava seguir em frente e cuidar para que tudo continuasse na mais perfeita (des)ordem, em sua casa.

    Ah, mas que tédio...

    Seu único prazer neste momento estranho do mundo era comer.

    Aurora engordava a olhos vistos.

    Seu casamento estava por um fio.

    Um lockdown constante, desde (bem) antes da quarentena.

    E sem previsão de (re)abertura.

    Mas ela não queria pensar nisso agora.

    Era melhor voltar pro Insta da Aline Cortado.

    Coque Alto

    Ela enrolou seus cabelos negros em um coque alto e olhou bem no fundo dos meus olhos:

    O que você quer de mim, afinal?.

    Eu queria tudo, mas não podia falar nada.

    Ao menos não assim... de supetão.

    Eu não queria assustá-la.

    Decidi por um recuo estratégico:

    Como assim?, perguntei de forma retórica.

    Ela voltou a atacar:

    "Você é algum tipo de serial killer, ou o quê? Eu vejo você me olhando o tempo todo na escola. Vejo, não... sinto".

    Sim, isso era verdade.

    Eu a ‘secava’ mesmo... e muito.

    Ela sentava-se bem na minha frente. E eu que nunca desconfiei que ela sentisse meu olhar persistente.

    Mas, era fato que eu ainda ficava admirado com cada fio de seu cabelo, envolto displicentemente numa sortuda caneta bic azul, e com seu pescoço alongado como de uma bailarina.

    Eu ficava hipnotizado com sua pele alva como o dia contrastando com os cabelos negros e longos, tão brilhantes quanto asas de um auspicioso corvo.

    Sua confessa consciência e sensibilidade corporal aumentaram o meu interesse.

    Se ela me desse um fora, eu simplesmente mudaria de musa.

    Claro que não sem sofrimento.

    Afinal, sou um romântico inveterado. Ou quem sabe um voyeur (confesso que até hoje eu ainda não me decidi entre quais desses dois tipos de desvio de caráter me define melhor).

    Resolvi ser direto e reto:

    Isso eu não posso negar, eu realmente te olho muito. Seu pescoço... tem algo nele que me dá certa nostalgia de um futuro distante, sabe assim?

    Não, não sei não, me explica melhor..., disse ela.

    Sinto saudades do que eu ainda não vivi, tentei ser poético.

    Como assim? Algum tipo de déjà-vu futurista?

    Não, não... está mais para um efeito borboleta, ou coisa assim, algum tipo de viagem no tempo.

    Eu bem gosto destes assuntos, fala mais...

    "Você já assistiu Dark, na #NETFLIX? É tipo isso."

    Não assisti, não... é legal?

    Quer ver comigo, lá em casa?

    ***

    E foi assim que tudo começou.

    E ficamos casados por mais de 25 anos.

    Ainda estaríamos.

    Não fosse pelo confinamento forçado pelo novo coronavírus durante o estranho ano de 2020 que além de muita gente, matou também todo o romantismo do mundo.

    Aurora

    Aurora era uma mulher triste e solitária.

    Ainda mais agora, em tempos de pandemia.

    Por causa de sua carência tornou-se compulsiva pelas redes sociais.

    Perdia-se, por horas a fio, nos mais diversos aplicativos disponíveis, vilipendiada por produtores de conteúdo, tão glamorosos quanto irresponsáveis, que propagam uma realidade totalmente fantasiosa.

    Aurora desejava ter uma vida tão feliz quanto a daquelas pessoas plastificadas que ela via na tela de seu celular.

    Mas, sua vida era dura.

    A realidade, que Aurora desconhecia, era que ninguém poderia ser feliz o tempo todo.

    O que ela via, refletido em seu aparelho móvel, era a mais pura ficção, puro delírio de um comportamento deliberadamente idealizado e romantizado.

    Por desconhecer a verdade Aurora sofria.

    E muito.

    Ela desejava estar em um daqueles eventos maravilhosos, viver aquelas vidas perfeitas, ter um daqueles relacionamentos sem máculas ou ressentimentos que espocavam diante dela a cada nanosegundo.

    Mas, qual nada.

    Não havia ninguém naquele lugar de total júbilo e eterna perfeição idealizada.

    Mas, aurora nem desconfiava disso.

    E por desconhecer a verdade ela sofria.

    Só a realidade poderia libertá-la de seu mundo de fantasia.

    O que ninguém sabia ao certo era se ela suportaria a dura e cruel realidade da vida bruta.

    Talvez fosse melhor para ela continuar vendo a vida pela janela de seu pequeno aparelho de celular.

    A verdade não era mesmo algo fácil suportar.

    Eclipse Solar

    Ele olhou para o céu, que já começava a escurecer, e observou a lua cobrir lentamente o sol.

    Sentiu um frio n’alma e lembrou-se, sem querer, de seu primeiro amor.

    Infantil, inocente, puro, como deve ser a descoberta deste nobre sentimento na primeira infância de qualquer pessoa.

    Talvez tivesse algo em torno de quatro ou seis anos quando ele apaixonou-se pela primeira vez.

    Obviamente não era nada além de uma curiosidade infantil pelo sexo oposto, porém ele intuiu que fora aquela emoção inocente a responsável pela catástrofe de toda sua vida afetiva.

    Lembrou-se, vagamente, da tal menina de ascendência oriental.

    Lembrou-se também do primeiro beijo que dera em seu rosto, em pleno recreio.

    Naquela época, foi o que bastou para motivá-lo a pedi-la em namoro.

    Estranhamente, voltou à sua memória toda a cronologia de seu trauma amoroso.

    No dia seguinte ao romântico beijo ele acordou cedo, pediu à sua mãe para fazer um lanche extra, tomou um banho frio, arrumou sua cama e engomou-se todo para seu grande momento de sua curta vida.

    E seguiu para o colégio mantendo em alta a coragem necessária para revelar à menina oriental seu desejo de selar um compromisso mais sério.

    Porém, ela não foi à aula.

    Nem naquele dia e nem naquela semana.

    Nem mesmo nas semanas seguintes.

    Nem mesmo nos meses que se seguiram.

    Nem naquele ano.

    A menina oriental jamais apareceu novamente no colégio.

    Jamais ele voltou a vê-la, outra vez.

    E ele caiu na mais profunda depressão.

    A primeira de uma série de muitas outras que o perseguiriam ao longo de toda a sua vida.

    Os sintomas eram muitos: febre alta, apatia, falta de apetite, tristeza... chegando ao ponto de preocupar seriamente a sua mãe.

    Ele acendeu um cigarro no escuro de seu quarto, cinquenta anos depois de sua rejeição original, e deu o braço a torcer à Freud: a infância era mesmo a origem de todos os traumas humanos.

    Era essa a revelação que o eclipse solar fez questão de lhe mostrar: a causa primária da sua instabilidade emocional foi aquele beijo.

    A origem de todo o seu drama de rejeição fora um simplório amor infantil e inocente.

    Nesta hora uma lágrima gorda caiu de seus olhos.

    E, ao abraçar sua criança interior, curou-se completamente de sua ferida narcísica.

    Quase ao mesmo tempo, observada por Quíron, a lua ofuscava todo o brilho do sol.

    Loucura total

    Sofia gritava e chutava, enquanto colocavam nela uma camisa de força.

    Eu nunca desconfiei que ela fosse louca ou coisa parecida.

    Muito pelo contrário.

    Eu a achava inteligente demais, acima da maioria das pessoas com quem convivi em toda a minha vida.

    Muito mais inteligente do que eu, inclusive.

    E apesar do ocorrido, estranhamente, eu ainda acredito nisso.

    Ela era a comprovação de que a loucura era mesmo o mais elevado degrau da inteligência.

    Ela me encantava em todos os níveis.

    Francesa de nascimento e carioca por opção, ela era muito mais sociável do que eu jamais conseguiria ser.

    Sofia sabia viver.

    E até tentou me ensinar.

    Nunca presenciei qualquer sinal de surto ou coisa que o valha.

    Embora, na época, eu precisava me concentrar muito para que eu mesmo não surtasse.

    Sempre tive muito medo de perder o (tênue) fio que me segura à realidade, sob pena de cometer erros fatais, que me marcariam por toda a eternidade.

    Como no caso dela. 

    Sofia, até então uma pessoa (mais ou menos) equilibrada, agrediu um homem por quem ela estava muito apaixonada (ou imaginou que estava), logo no início da pandemia.

    O pobre homem nunca desconfiou da paixão de Sofia por ele.

    O amor dela era imaginário.

    Ou de vidas passadas, quem vai saber?

    Quem saberá a diferença das muitas versões de nós mesmos dentro do infinito multiverso?

    Acho que Sofia tinha algum tipo de permissão espiritual especial para atravessar portais, dimensões, ou mundos paralelos.

    Sofia era mesmo alguém muito especial.

    Um ser raro, em um mundo vulgar.

    O pobre alvo de Sofia era um inocente garçom de um bar em Santa Teresa, onde morávamos.

    Evangélico e casado, o rapaz jamais sinalizou qualquer interesse por ela.

    Talvez esse tenha sido o seu erro.

    O único ponto de contato entre os dois era a bebida que ele servia pra ela, de forma muito generosa.

    E isso foi mais do que suficiente para que Sofia se apaixonasse perdidamente por ele.

    Ao se sentir rejeitada, partiu para um ataque passional.

    Consegui evitar o pior.

    Porém, Sofia estava tão agressiva que não consegui impedir que ela parasse em um hospício.

    Eu até a acompanhei até a porta da ambulância, mas não me deixaram entrar.

    Disseram que ela seria contida, sedada e observada por alguns dias.

    Três dias depois tentei contato novamente.

    Porém, capitulei.

    Dei meia volta e fui embora.

    Não por medo do novo vírus.

    Na verdade eu fiquei com medo de que descobrissem a minha própria loucura.

    E também tive medo de que me trancafiassem naquele lugar horroroso, para todo o sempre.

    E em meu prontuário estaria escrito: louco de pedra.

    A arte de ser pai

    "Pai me conta a sua história, pra 'mim' dormir?", disse o garoto de quatro anos a seu progenitor, em pleno dia dos pais do incomum ano de 2020.

    Recém-separado, o pai se emocionou.

    Até então ele jamais havia parado para rever sua própria história, com toda a pompa e circunstância que seu filho agora exigia dele.

    Jovem demais para refletir sobre o que vivera, ele apenas viveu a sua vida de forma mais ou menos inconsciente.

    Provocado, achou mesmo que já era a hora de fazer a tal reflexão biográfica exigida por seu querido filho.

    Ele parou, pensou um pouco, respirou fundo e não conseguiu elaborar uma versão editada de sua própria vida, compatível com a idade do menino.

    Então ele resolveu resumir-se à alegria de ser pai e com a voz embargada respondeu:

    Minha história confunde-se com a sua, meu filho, pois minha vida só começou, de verdade, quando eu tive a confirmação de que teria a sua companhia nessa viagem louca, que é a vida. Eu te amo, meu filho... agora durma e sonhe com os anjos – disse o pai, com a voz trêmula, desmoronando do alto de sua imagem de força e invencibilidade.

    Está chorando papai? – inquiriu retoricamente o garoto, já praticamente embalado nos braços de Morfeu

    – Um menino do colégio me falou que homem não chora.

    – É que ele ainda não sabe como é emocionante ser pai – arrematou o herói do menino que, à esta altura, esquecendo-se do assunto principal, foi brincar no quintal de sua inocência, adormecendo, de forma repentina.

    E o pai, limpando suas lágrimas na blusa, entendeu a frase que seu falecido pai lhe disse quando do nascimento de seu filho:

    Nunca se esqueça: ser pai é dominar a arte de tornar-se desnecessário.

    Com isso ele tentou ensiná-lo a criar seu filho para o mundo, com um desapego carinhoso que só quem é pai pode sentir.

    Chuveiro de Diamantes

    Era um lindo chuveiro de diamantes.

    Mas, não era só isso.

    Junto com o anel veio um pedido de casamento.

    E o que ela poderia fazer?

    Aceitou.

    Na realidade ela não tinha certeza de nada.

    A relação era recente, frágil.

    E o humor dele, instável.

    Porém, o anel era lindo.

    E caro.

    O resto, afirmou sua mãe, se ajeita:

    Minha filha, o importante na vida é a segurança financeira... o amor vem (logo) depois.

    E ela acreditou.

    O que mais poderia fazer?

    Afinal, sua mãe já havia vivido o bastante para provar daquilo que dizia:

    Não faça como eu, minha filha... casei-me por amor e olha só no que deu.

    A pressão era grande.

    Seis meses depois do anel, casou-se na Candelária.

    A festa foi no Copacabana Palace.

    Mas, o humor de seu marido continuava instável.

    Pior, com o tempo foi piorando.

    A primeira agressão não demorou muito.

    Seis meses depois do casório.

    Mas, ela relevou.

    Afinal, o importante era a segurança financeira e isso ela tinha.

    Não era?!

    Porém ele foi ficando cada vez mais agressivo.

    Na cama e fora dela.

    Até que veio a gota d'água.

    Uma mensagem em seu telefone celular o deixou muito nervoso.

    Ela perguntou de quem era a mensagem e ele gritou que não era da conta dela.

    O telefone dele era algo indevassável.

    Um túmulo.

    Que ela cometeu o erro de violar, enquanto ele estava no chuveiro.

    Ela pensava em tudo isso enquanto esperava a ambulância.

    Na anamnese o médico perguntou-lhe o que lhe havia ocorrido.

    A reposta foi clássica: Escorreguei no banheiro.

    Outros episódios se seguiram.

    Até que se deu o pior.

    O importante mesmo é a segurança financeira, não é mesmo minha filha?, repetiu a mãe mercenária, junto ao corpo de sua primogênita.

    No atestado de óbito a causa mortis: complicações do Covid-19.

    A marca da besta

    Um vírus desconhecido estava dizimando milhares de pessoas no mundo todo.

    E não se sabia exatamente o motivo.

    A única coisa em comum era que eram todas tatuadas.

    Os especialistas especulavam que talvez fosse algo ligado à tinta utilizada para rabiscar o corpo.

    Outros especulavam que a culpa era, na verdade, da má higiene da agulha.

    Mais de dois bilhões de pessoas em todo o mundo já haviam morrido, em menos de três meses, em consequência do tal vírus e só então a origem da pandemia estava sendo estudada.

    Os números não paravam de crescer.

    A média móvel de mortos, no Brasil e no mundo, estava nas alturas.

    Os jogadores de futebol foram logo as primeiras vítimas.

    Quase todos sem comorbidades.

    A única coisa em comum: tatuagens.

    Acaba de sair uma última atualização do número de vítimas do novo coronavírus em todo o mundo: sete bilhões, quinhentas...

    Astolfo assustou-se com o número apresentado no jornal nacional:

    – Ué... só eu não tenho tatuagem nessa porra! É sério isso, produção?

    – Nossa produção já morreu toda, mas o Minerador Nacional de Dados, comandada por inteligência artificial, acaba de confirmar que os dois sobreviventes do novocoronavírus no mundo são brasileiros. Então como eu ainda estou por aqui só resta mais um sobrevivente que é você que está me assistindo agora. Então já sabe: abuse do álcool em gel e se puder fique em casa. Mas, cá entre nós... fazer o quê nessa cidade fantasma, não é mesmo? (piscadinha)

    Não sei se voltaremos a qualquer momento com novas notícias, conforme está escrito no teleprompter, mas enfim...

    Boa noite e fique agora com mais um capítulo repleto de emoções da sua novela preferida: Império.

    Tinder

    Me fala mais de você...

    O que você quer saber?

    Não sei, algo íntimo... idiossincrasias pessoais, talvez?

    Bom, vou lhe contar um segredo... assim começamos logo a nos conhecer melhor...

    Isso, nada mais íntimo do que um segredo pessoal compartilhado... mais até do que sexo. Me conta logo, que eu estou curioso...

    Então, lá vai, hein? Segura: eu coço a cabeça quando estou com muito sono.

    Sei, e...

    E, o quê?

    Ué, só isso?...

    Como assim, só isso?! Este é um segredo muito íntimo...

    Isso é um segredo? E íntimo?

    Sim, do tipo tatuagem na virilha...

    Como assim?

    Inteligência não é uma de suas virtudes, não é mesmo meu rapaz?

    Não precisa ser grossa...

    Tudo bem, me desculpa... o fato é que este é um segredo que você só descobriria se e quando dormisse comigo, se ligou? Tatuagem na virilha?

    Que merda de segredo é esse?... não vale!

    Como assim, não vale? Não é de qualquer tipo de coceira de que estou falando, é do tipo coceira de piolhos, sabe assim?!

    Isso não é lá muito romântico...

    Então combina comigo... porque eu também não sou muito romântica. E você?

    Eu o quê?

    É?

    Sou o quê?

    Romântico, caralho?

    Ah, sim... um pouco.

    Pois então não me venha com aquelas linguadas na orelha que eu odeio, além de não ser muito higiênico, em tempos de pandemia. Odeio!

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