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Esse Aires
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E-book194 páginas2 horas

Esse Aires

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Sobre este e-book

Este volume do selo Peixe-elétrico Ensaios é todo dedicado ao romance Memorial de Aires, de Machado de Assis. São ao todo sete ensaios, mais o posfácio assinado por Hélio de Seixas Guimarães, fruto de um encontro de críticos e pesquisadores reunidos em Lisboa, no ano de 2017.
1. Abel Barros Baptista e Clara Rowland – I can not, etc.
2. Humberto Brito – A expressão sem nome
3. Joana Matos Frias – Das negativas: preterição e ventriloquacidade no estilo-Aires
4. Amândio Reis – Viver é um ofício cansativo: biografia, escrita e apagamento em Memorial de Aires
5. Ariadne Nunes – Pare no D
6. Luciana Schoeps – O autor defunto Aires e as rasuras do manuscrito de Esaú e Jacob: postura enunciativa, narrador e imagem autoral
7. Pedro Meira Monteiro – Minados pelo tempo: sujeito e vontade no Memorial de Aires
Posfácio: Sobre restos, rasuras, elipses et cetera (Hélio de Seixas Guimarães)
IdiomaPortuguês
Editorae-galáxia
Data de lançamento29 de jan. de 2020
ISBN9788584742820
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    Esse Aires - Abel Barros Baptista

    livro.

    I can not etc.

    Abel Barros Baptista

    Clara Rowland

    (Universidade Nova de Lisboa)

    – Começo com a anotação de 8 de Abril, cuja primeira frase é "Papel, amigo papel, não recolhas tudo o que escrever esta pena vadia." (38)[1]

    O papel vai reaparecer diversas vezes, quase sempre sugerindo coincidência com o próprio Memorial ou com a actividade de o escrever. Aqui, no entanto, parece não ser bem isso. Pedir ao papel que não recolha tudo não seria afinal o mesmo que pedir a si mesmo que não escreva tudo? Não, é capaz de não ser... em todo o caso, não apressemos, é preciso fazer justiça à metáfora. A pena vadia escreve, o papel não deve recolher: a metáfora atribui ao papel um critério que a pena – ou a mão que a maneja – não tem. Ou então, retomando um tema machadiano mais do que familiar, o papel funciona também como errata: não recolher seria metaforicamente inscrever e depois corrigir, ou inscrever e depois apagar por efeito de uma correcção. O que

    te parece?

    – Mas funciona também de acordo com outro tema machadiano familiar, se quiseres começar por aí: o da truncagem. O Memorial desbastado ou decotado que a nota inicial apresenta instala, desde logo, uma diferença entre papel e escrita, que estas figuras prolongam, e que é também a diferença inacessível entre o Memorial de Aires e o Memorial de Aires. Não há papel que baste, diz Aires a 5 de fevereiro (30), se a pessoa pega a escrever, recordando a falta de papel com que Bento Santiago se depara a meio do Dom Casmurro. Esta é, porém, uma diferença significativa em relação aos romances anteriores: o texto do Memorial, na sequência dos dias e das entradas, exibe marcas de corte, de hesitação, de desvio e releitura, que parecem inteiramente compatíveis com a forma do diário, quando não o eram com o romance; no entanto, é em nome da narração (e do livro) que o diário é truncad

    o. Ou não?

    – Sim, é o que diz a nota de início (8): conservando só o que liga o mesmo assunto. O resultado é peculiar. Se o diário é truncado, expurgado de anedotas, circunstâncias, descrições e reflexões, ainda é diário? E o desbaste é desfiguração do Memorial ou desfiguração de Aires? O efeito, obtido ou a obter, até pode ser duplo: valorizar a narrativa apesar da forma diário ou por causa da forma diário. Em qualquer caso, é indispensável que o leitor tenha presente que a narrativa é ainda, ao menos em parte, embora parte desfigurada, um diário. Até me ocorreu que essa apóstrofe ao papel, o pedido para que não recolha tudo, replica a advertência: como se se dirigisse ao editor enquanto desbastador. E não é isso mesmo? Com o material do diário do conselheiro, o editor, aquele que desbasta e publica, faz um livro, que nem é inteiramente dele nem inteiramente de Aires... Tens nome que pudesses dar a um liv

    ro destes?

    – Para já, um livro a que não acho nome certo ou claro... Vê por exemplo a nota de 13 de ju

    lho (66):

    Sete dias sem uma nota, um fato, uma reflexão; posso dizer oito dias, porque também hoje não tenho que apontar aqui. Escrevo isto só para não perder longamente o costume. Não é mau este costume de escrever o que se pensa e o que se vê, e dizer isso mesmo quando se não vê nem pensa nada.

    Não é caso único – há outros momentos em que o Memorial escapa de tal modo ao mesmo assunto, que não sabemos onde está a narrativa, ou o que acontece ao critério do editor ou do papel. Mas talvez seja o momento em que é mais visível uma escrita sem assunto ou, mais propriamente, a escrita como único assunto. E talvez, também, da escrita como interrupção do assunto, pois são sete dias, mas podemos também dizer oito. Para darmos nome ao livro, então, teremos de dar conta da diferença entre este e outros capítulos, e, sobretudo, de dar um nome a este Aires que aqui aparece, não achas?

    – Pareces pressupor que o mesmo assunto deveria ser o da aposta, da viúva, do casal Aguiar... Não vejo como negá-lo, é claro, mas tens razão na delimitação desses momentos que parecem dispensáveis para a inteligibilidade do assunto único mas indispensáveis para o reconhecimento do diário. Eu para já admitiria a hipótese de o mesmo assunto se delimitar apenas na condição de os dois coexistirem. Não seriam porém o plano da escrita sobre si mesma e o plano da narrativa dos episódios quotidianos: preferia a dualidade entre um lá fora, onde o conselheiro Aires faz aquele papel que já conhecíamos de Esaú e Jacó, e um espaço que, não sendo propriamente interior, obriga à consideração de Aires sozinho, a sós consigo através da escrita, ou a sós com o papel. O passo por onde comecei, o de 8 de Abril, seria o melhor exemplo da articulação peculiar entre os dois planos. Com uma sugestão curiosa: de que essa dualidade nos deixa assistir a qualquer coisa que Aires esconde no lá fora, o interesse especial pela viúva, mas não revela no diário, pela simples razão de que parece ter dificuldade em dizer o que é ao certo esse interesse. Daí que peça ao papel que não recolha tudo, escreve sobre a viúva, e depois esclarece, explica, precisa ou corrige: é apenas atracção por certa feição de espírito (38), que a quer estudar, quando o que suscita este esclarecimento é a anotação do dia anterior em que ele, contando um encontro com Fidélia e D. Carmo, escreve que não pode impedir-se de olhar para trás depois de se separar delas na rua. Falava até no livre-arbítrio a perder a própria aparência de realidade... A parte que o papel não deveria recolher deveria ser esta, a que arriscava confundir-se com cuidados de amor. Se houvesse articulação entre esses dois planos, ou melhor, se houver, parece que o Aires de fora é muito mais seguro do que o Aires que escreve: e no entanto, o Aires de fora é o que o Aires que escreve descreve. Deslindas-me tu este

    paradoxo?

    – Não, não estava a sugerir que o assunto fosse a aposta, apenas que um dos primeiros problemas para a descrição de um livro como este é a possibilidade de identificação do assunto. A presença desses capítulos supostamente dispensáveis, parece-me, acentua aquilo a que chamas a oposição entre o lá fora e esse espaço, que aliás se não me engano é rigorosamente, ao longo do romance, o espaço da casa de Aires (sozinho ou com o criado, como na cena do primeiro sonho). Porque os capítulos em que Aires se fecha em casa para escrever sobre nada, ou sobre a ausência de assunto, se forem ainda parte de um mesmo assunto, e não pontos de tensão entre o diário e a narrativa, ou entre Aires e o editor, fazem do Aires que se descreve (a escrever ou a desempenhar, lá fora, o seu papel) talvez o único ponto de contacto. Mas isto apenas interessa na medida em que sujeita à escrita essas dimensões heterogéneas – acção e reflexão, exterior e interior – que na verdade parecem, desde logo, invertidas, como sugeres, ou pelo menos imbricadas. Desde logo, porque muito, no Memorial, se passa no plano da paralipse (para não dizer já da parábase). Isso não acontecia no Esaú e Jacó, em que a distinção entre fora e dentro, se não me engano, era clara. Ou parecia mais clara, naquela primeira descrição da função do Memorial, segundo a qual Aires, quando não acertava com a opinião dos outros, escrevia a sua, e por isso era sincero (cap. 12) – porque, nesse caso, o que complicava a clareza da linha era justamente a autoria assumida de Aires, que aqui não temos. E essa linha também era mais clara no conto O Diplomático, como dizias

    , não era?

    Não estou a fugir à tua pergunta, a que por enquanto só posso responder com uma dúvida. Aliás duas. A tua anotação de 8 de abril lança também dúvidas sobre as conversações do papel e para o papel, que na abertura do romance eram salvaguardadas pelo fogo a que lançarei um dia estas folhas de solitário (19). Por um lado, o Memorial é essa sobrevivência do papel a Aires, claro, mas o que podemos fazer com isso? Por outro, o próprio Aires parece baralhar a linha entre o lá fora e o exterior, e insistentemente, na parte final. Lembras-te quando ele diz que vai ler uma página do diário aos moços, depois de casados, e outra ao casal Aguiar? Fico a pensar se não há uma mudança, ou mesmo uma inversão, do paradoxo que referias, ao longo do livro, e que essa mudança tem a ver com o papel de Aires, que também muda. Em todo o caso, tanto o final, de que ainda não falámos, como estes momentos permitem um contacto entre a escrita e o exterior incompatível com a linha que referíamos. Por outro lado, se aceitarmos que o problema está numa descrição de Aires que abarque o Aires que escreve e o Aires que descreve e se descreve, que não pode coincidir com a explicação do Esaú e Jacó, então há um elemento a que temos de dar atenção, porque todos os problemas que levantámos até agora estão lá: a citação de Shelley e a sua repetição ao longo do livro. Ou é ced

    o, ainda?

    – Já tinha percebido que estás mortinha por falar do verso do Shelley. Eu por acaso também, e aliás o título grita lá em cima. Mas queria ainda retomar o que dizes do Esaú e Jacó, que me parece importante a vários títulos. A distinção entre o fora e dentro é realmente mais clara no romance de 1904, a tal ponto que os leitores, mesmo os críticos, tendem a esquecer que todo o livro é atribuído ao conselheiro Aires e reduzem-lhe o papel a personagem que de vez em quando anota umas coisas no diário. A ficção aí, sendo mais clara, é por outro lado mais extravagante: um autor suposto duma narrativa em que é suposto não ser autor. Ora aqui acontece o mesmo, parece-me, mas é o próprio Machado o implicado. Há uma frase da advertência do Memorial que sempre me causa estranheza: depois de dizer que a parte relativa a uns dois anos podia uma narração seguida, que talvez interesse, apesar da forma de diário que tem, o autor da advertência acrescenta: Não houve pachorra de a redigir à maneira daquela outra, – nem pachorra, nem habilidade. (8) Aquela outra refere-se, claro, a Esaú e Jacó. Ora, isto não se entende. O mesmo editor do romance sentiu-se mais ou menos obrigado a reescrever a parte selecionada e desbastada e dar-lhe forma similar, em vez da forma de diário? Agora não teve pachorra e quatro anos antes teve? Mas, ao acrescentar que também não teria habilidade, impede essa conclusão. Por outro lado, se não havia habilidade, porque se levanta o problema da pachorra? Significa isto, enfim, que houvesse pachorra, o Memorial poderia ter sido falsificado à maneira do romance por alguém sem h

    abilidade?

    Estas perguntas são necessárias, porque exigidas pela coerência do edifício que vem de Esaú e Jacó, mas não há meio de lhes responder sem causar incoerências inesperadas. É certo que o princípio da advertência, "Quem me leu Esaú e Jacó..., corresponde ao o que faz do meu Brás Cubas um autor particular" do prefácio à 4ª edição do Brás Cubas: uma reclamação de autoria, propriedade e domínio sobre o livro que ali se entrega ao leitor. Mas agora é mais do que isso. O paradoxo parece-me este: por um lado, o próprio Machado acaba por sugerir que poderia ter dado a este livro a mesma feição de Esaú e Jacó, ou seja, declara que a decisão final sobre a forma do livro lhe cabe inteiramente, pelo simples facto de ter sido ele a escrevê-lo; por outro lado, diz, e isso também não podemos ignorar, que a decisão é tomada sobre um texto já existente e que não foi ele a escrever, mas o conselheiro Aires. Esta parte, dir-me-ás, é a ficcional: sem dúvida. Mas também escapa à ficção, porque o que está ali implicado é afinal a conjugação do facto, inteiramente ficcional, de o conselheiro Aires ser autor de dois livros com o facto inteiramente não ficcional de os dois terem formas distintas. Para dizer logo tudo, ao mesmo autor, Machado entrega duas formas diferentes: e fá-lo depois de ter feito o oposto, quer dizer, de ter entregado formas similares, até confundíveis, a autores diferentes, como acontece com Brás Cubas e Bento

    Santiago.

    A ficção aqui confirma Machado dependente de autores que inventou: como estava em Quincas Borba, e aliás num aspecto muito próximo do que aqui temos, quando diz que a forma deste é a mesma do Brás Cubas, com a diferença de ser mais compacta a narração. A forma repete-se, e Machado sublinha a diferença depois de ter atribuído a invenção da forma a Brás Cubas. A figura do conselheiro Aires tem aqui o cerne da sua singularidade. Machado já não tem pachorra nem habilidade para reiterar a forma de Esaú e Jacó, mas

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