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Beijar na boca não pode
Beijar na boca não pode
Beijar na boca não pode
E-book185 páginas2 horas

Beijar na boca não pode

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Sobre este e-book

De madrugada, um gestor de RH em uma editora de São Paulo recebe um telefonema: um vendedor de livros foi assassinado num hotel de luxo no Nordeste brasileiro. O vendedor estava completamente fora do roteiro estabelecido, além de estar acompanhado de uma travesti, também assassinada. Sem entender as razões do duplo assassinato, o gestor viaja para providenciar o translado do corpo e cuidar dos trâmites burocráticos em relação aos livros da editora. Incumbido de resolver o assunto, decide refazer os passos do vendedor e acaba se envolvendo na história em circunstâncias inusitadas.

A viagem provoca conflitos e reflexões sobre violência e homofobia, entremeados por questionamentos sobre o papel dos livros num mundo em mudança, em meio à crise na leitura e ao surgimento de novas mídias. Acostumado a questões rotineiras e administrativas, pouco habituado com a estrada, defronta-se com realidades contraditórias, onde a simplicidade encontra a intolerância. Ao questionar as razões que conduziram aos assassinatos, o personagem repensa sua própria trajetória.
IdiomaPortuguês
EditoraAdelante
Data de lançamento1 de jul. de 2020
ISBN9786586421255
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    Pré-visualização do livro

    Beijar na boca não pode - RENATO MUNIZ B. CARVALHO

    Capítulo Um

    Um homem é sempre um contador de histórias. Ele vê tudo o que lhe acontece através delas. E ele tenta viver a sua vida como se estivesse contando uma história.

    J. P. Sartre

    Acontecia-me, às vezes, que tudo ia por si mesmo, abrandava-se e cedia terreno, aceitando sem resistência que se pudesse passar assim de uma coisa a outra.

    Julio Cortazar

    Apronto agora os meus pés na estrada. Ponho-me a caminhar sob sol e vento. Eles secam as lágrimas, vou ali ser feliz e não volto.

    Caio Fernando Abreu

    A morte chega de madrugada

    — Puta merda! Alô! Isso é hora de tocar o telefone? Alô! Alô! Se há uma coisa que me irrita é quando o telefone toca de madrugada e eu estou dormindo! ALÔ!

    — Alô! Seu Souza? Aqui é o Bartolomeu.

    — Quem? Que Bartolomeu?

    — É o Bartô, da editora, o segurança.

    — O que aconteceu pra você me ligar uma hora dessas, Bartolomeu? Pegou fogo na editora? O que é que houve? Morreu alguém? Você ganhou na loteria? No jogo do bicho? Putz! São quatro horas da madrugada, Bartô! Quatro da matina!

    — É que o Ricardo, o nosso vendedor… Quer dizer, o Ricardo, aquele que era nosso vendedor…

    — Como assim, Bartô? Fala direito. Você está dormindo? O que é que houve com o Ricardo?

    — Morreu.

    — Como? Como é que é? Como assim?

    — Não sei como ele morreu. Só sei que morreu.

    — Sim, eu entendi, Bartô, quero dizer: morreu mesmo? Morreu de quê? Como? Por quê? Quem te falou? Que merda de notícia é essa? Isso que dá contratar um vendedor metido a besta, só dá trabalho! Agora essa, morrer no meio da noite! O que é que eu tenho com isso? Quem te contou, Bartô? Droga! De onde você tirou isso? Quem te contou essa história?

    — Um delegado, lá de Aracaju. Ligou pra cá…

    — Puta merda! Como é que o cara faz uma coisa dessas, morrer longe de casa, em Aracaju, no Nordeste! E aí, Bartô? Continua!

    — Então, um delegado ligou agora mesmo e disse que o Ricardo foi assassinado, num hotel em Aracaju, e que ele tinha um documento, um crachá, dizendo que em caso de acidente era pra ligar para a editora. E pediu para avisar um diretor ou um supervisor. O senhor não é o chefe do RH? Eu não ia ligar pro Senhor Nogueira, né?

    — Não, Bartô, você fez bem. Estou indo agora para a editora. Não vá embora, me aguarde.

    Salvador, Bahia

    Esse foi o diálogo que tive com o Bartô na madrugada em que ele me contou da morte do Ricardo. Só explicando direitinho para entender como tudo aconteceu.

    Ricardo estava estreando como vendedor de livros. Era sua primeira responsabilidade na área externa. Estreou e morreu! A vida é assim. E tem mais: logo depois dessa notícia trágica, até tinha resolvido que não contrataria mais novatos, embora o Ricardo não fosse bem um novato. Com 46 anos, já tinha razoável experiência, não era velho, mas também não era nenhum calouro. Está certo, não tinha tanta experiência em vendas, contratei porque um conhecido de um conhecido pediu, sabe como são essas coisas, e acabei ficando amigo do cara. No início, trabalhou como encarregado de listas, de orçamentos e contato com compradores. Mas a vida é cheia de surpresas…

    Ele gostava de escrever. Teve um tempo em que escrevia artigos sobre vôlei em jornais do interior do Paraná. Seu sonho era publicar um livro sobre o vôlei, sobre a história e as regras do vôlei, as grandes partidas, os campeonatos, os jogadores… Pô! Vôlei? Que frescura! Deixa disso! Vôlei masculino! Eu cheguei a falar pra ele. Ainda se fosse futebol, basquete, tênis, mas vôlei? Ainda se fosse a seleção feminina! Sem preconceitos, mas quem liga pra vôlei? Nunca ia vender. Ia acabar encalhado nas estantes de um sebo. Ou acabava virando papel reciclado. Conversamos, mas já era! Nessa altura do campeonato, sem me dar conta dos desdobramentos, eu estava num avião, rumo ao Nordeste, antes fosse para curtir uma praia! Mas não, estava encarregado de buscar um cadáver, de um vendedor defunto, o Ricardo. Que programão, hein! Puta merda!

    Nove horas da manhã do mesmo dia e eu já estava no Aeroporto Internacional de Salvador. Não tinha voo direto para Aracaju mais cedo. O resultado é que tive de alugar um carro até lá. E nem iria poder enrolar, pegar uma praia, pois disseram que o translado do corpo tinha de ser feito com urgência, além da chateação e da burocracia toda. Era a minha grande oportunidade de ir ao Nordeste e estava pajeando um morto. E, antes de virar apenas um corpo sem vida, era um colega de trabalho, um amigo. Tornou-se um amigo, nesse curto tempo em que trabalhou com a gente. Essa é foda! Faça-me o favor! A morte devia ser algo agendado, com data marcada, para não atrapalhar a vida dos outros.

    Problemas de percurso

    — Sim, seu delegado. O Ricardo era nosso vendedor. Estava a serviço da nossa editora, de São Paulo. E não tínhamos nada contra ele, era um bom funcionário, nunca, em vida, tinha nos dado problemas, só agora, depois de morto… Tá, eu entendi, um inquérito…

    Porra! O imbecil queria saber detalhes da vida do Ricardo. Se ele era casado, solteiro, filhos, pais, tios, avós, amigos, amantes e inimigos. Como saberia detalhes se ele estava conosco só há nove meses? Apesar de nos darmos bem, ele era quase um mistério. Tinha paixão pelo vôlei e, segundo ele mesmo, um certo conhecimento de horóscopo, de Astrologia. Certo conhecimento… é foda! Ele não era gordo nem magro, tinha rosto liso, sem barba, uma pessoa de comportamento sério, poucos sorrisos. Tanto é que eu o contratei, essa é boa! Passou nos testes, respondeu bem às questões e pronto: aprovado. Era um cara normal. Puta merda! Normal, o que seria um cara normal? Vestia-se de modo convencional, não usava roupas de grife, não era um esbanjador, nada de gastos supérfluos. Era o que eu sabia, na época. Tomava banhos regularmente, usava perfume discreto e não falava alto. Usava calça comprida, camisa de manga curta com gola, meias e sapato pretos. Ah, e meias, meias finas pretas. Isso resolvia alguma coisa? Sei que era solteiro, reservado, calado, tímido… Qual era o problema? Começou na editora em fevereiro e, em outubro, morreu. Assim não dá! Nem em confraternização de fim de ano teve tempo de ir, nada de amigo secreto, nada de presentes de Natal, nada dessas coisas que ajudam a revelar melhor um cara, quem é a pessoa. Não ficou bêbado, não deu escândalos, não chorou… Não teve tempo, o coitado, de se mostrar, de dizer se tinha alguma tara, se gostava de chá ou de café, se era de direita ou de esquerda, em quem votou nas últimas eleições, se gostava de cerveja ou de cachaça, se tinha alguma doença grave, uma frustração ou manias.

    E então, apareceu um delegado chato abrindo inquérito policial, investigando, dificultando a vida de um pobre gerente de RH, aliás, diretor do Departamento de Gestão de Pessoal, o coração da empresa. Eu lidava com o capital humano da editora. Será que alguém ligava para isso? Gestão de pessoas… E quem disse que as pessoas queriam ser geridas? O Ricardo me perguntou se podia morrer?

    Antes de ir para Aracaju, só tive tempo de olhar as gavetas da mesa que o Ricardo usava e não encontrei nada que demonstrasse algum problema, desajuste psíquico ou social. Não tomava remédios controlados, nada. Drogas? Não sei. Normal. Um cara como qualquer outro, uma pessoa comum. Não tinha como definir melhor. No futuro, num futuro bem próximo, não sei se vamos poder caracterizar alguém como normal. Ah, não vamos!

    Nas gavetas, só encontrei objetos sem valor, como canetas, um montinho de clipes, um grampeador, recortes de jornal sobre vôlei e horóscopos. Antes de escrever sobre vôlei, ele escrevia uma coluna de horóscopo para um jornal no interior do Paraná. Já tinha dito isso para o delegado, mas acho que ele não entendia ou não estava interessado.

    Naquele momento, parecia que o Ricardo estava buscando opções para sua vida. Mas fazer previsão de horóscopo não estava dando certo, não agradava a todos, era confuso, não era um estudioso do ramo, revelava fatos muito negativos sobre alguns signos… Essa é boa! Funcionava ao contrário, ninguém queria saber de notícias ruins. Ninguém ia querer ler um horóscopo para saber que ia ficar doente, perder dinheiro, se separar do grande amor de sua vida, que iria morrer… Ele não gostava de fazer concessões, se a previsão não era boa, ele não dourava a pílula, citação mais arcaica, hein! Não, ele não disfarçava nem melhorava a previsão. Isso, pra quem acredita em horóscopo, devia ser péssimo. Podia ter ficado quieto, era só falar bem de todos os signos e ainda estaria no jornalzinho lá do interior. Acabou sendo demitido, mudou-se para São Paulo e foi parar na editora, primeiro como vendedor interno, fazendo contatos, elaborando listas para escolas e universidades, depois como vendedor externo. Essa era a primeira viagem grande que realizava. Era um sujeito um tanto reservado, sossegado, de pouca conversa. Gostava de literatura, de poesia. Lembro--me de dizer, um dia, que ele também escrevia contos e que pretendia, na hora certa, sempre segundo ele, escrever um romance. Era cada uma que eu ouvia! O cara achava que só porque escrevia colunas de horóscopo já podia virar um romancista? Eu apoiei, é claro! Só que nunca me mostrou nada do que escreveu, se é que ele escreveu alguma coisa!

    O delegado continuou seu interrogatório.

    — Não, seu Delegado, não conhecia a família dele, nem sei se tinha família direito. Parece que era do interior do Paraná, uma cidade chamada Tibagi, mas, como contato, só deixou o nome de um amigo em São Paulo, um tal de Freitas, e nada mais. Morava no Largo do Arouche, no centro de São Paulo, num apartamento simples, quarto e sala, 17º andar, com uma pequena biblioteca na sala, pelo que me recordo. Eu passei lá uma vez, de passagem, bem entendido. Tentei ligar para o colega de apartamento, mas não obtive sucesso. Tentei descobrir algo sobre os pais, mas não estão na internet e nem constam na lista telefônica. Hoje em dia, quem não está na internet não existe, já morreu ou é do século passado. Parentes? Nada, atualmente as pessoas não têm mais vínculos, as famílias estão cada vez menores, os filhos não se casam, não querem compromissos firmes, os avós reclamam que têm poucos netos, quando têm. Daqui a pouco ninguém mais vai saber o que é um tio ou pra que servem primos. A quantidade de viúvos é grande e a de idosos vivendo sozinhos então, nem se fala! Concorda?

    Duro foi ficar ouvindo insinuações e perguntas que nada tinham a ver comigo ou que eram apenas suposições:

    — O que esse seu funcionário estava fazendo com um travesti num hotel de luxo? Hein, seu Souza? Um pederasta? De quem é a responsabilidade? O patrão sabia disso?

    — Sim, eu quero colaborar, não estou enrolando, mas não tenho as informações que o senhor me pede. A ficha dele ficou na editora, em São Paulo. Eu não tenho autorização para tirar documentos do RH da empresa.

    E dava-lhe explicações inúteis… Enrolação, o estrago já estava feito.

    — Sim, ele fez os exames admissionais! Não tem maracutaia na editora, tudo dentro da lei…

    Onde esse cara chato queria chegar? Meu Deus! Era só liberar o corpo e acabou. Não, perda de tempo, inquérito, está bem… Ali, quem não tinha pressa era o Ricardo.

    — Sim, eu sou o gerente de RH, do Departamento de Pessoal, mas a empresa tem suas regras, suas normas internas, e eu não posso retirar documentos da empresa e trazer aqui para o Nordeste. Não posso e pronto! Fazer o quê? Se o senhor faz questão, vamos solicitar a um juiz, ou tentamos conversar com o Senhor Nogueira, o dono da editora. O dono faz o que quiser. O dono manda e nós obedecemos. O senhor sabe disso, não sabe?

    Aracaju, Sergipe

    Não dá para acreditar, mas eu tive de ficar em Aracaju por três dias. Nem tive tempo de ir à praia, de sequer molhar as canelas na água salgada do mar, que droga! Eu estava do lado da praia e nada… O corpo deve ter sido tratado por um processo especial, para não deteriorar, e ficou armazenado no IML local. Eu não entendia nada disso. Nem queria entender! O Ricardo foi assassinado e quem o matou, ao que tudo indicava, pulou da janela em seguida. Pulou do nono andar, espatifando-se no deck da piscina do hotel. E pensar que o Ricardo não tinha verba para esse tipo de hotel… O sacana estava gastando o dinheiro da editora com putaria e hotel luxuoso, que espertalhão! Sacana! Bem, mas o dinheiro talvez fosse dele, vai saber! O assassino, ou suspeito, se a teoria do delegado se confirmasse, parece que foi identificado como sendo um travesti. Só mais tarde fiquei sabendo seu nome. Ele disse que era qualquer coisa de Oliveira. Fazia ponto em Belo Horizonte, segundo as diligências iniciais do delegado. De onde ele tirou essas informações eu não sei.

    O que o Ricardo estava fazendo com um travesti num hotel de luxo em Aracaju? Nunca, nos nove meses de convivência

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