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Diários De Montanha Russa
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E-book1.991 páginas4 horas

Diários De Montanha Russa

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Sobre este e-book

Eis o Livro Diário, onde há o dia a dia do autor, suas particularidades e reflexões que perpassam os acontecimentos do seu cotidiano. O que falar dessa escrita que muitas vezes apare-ce inverossímil para o leitor, mas que na vivência de João Rosa de Castro aparece com sentidos? Ao leitor não cabe a decifração dos enigmas nem o seu entendimento, mas usufruir das palavras da inti-midade do escritor que nos leva às várias situações vi-vidas por ele e que desejou compartilhá-las. Como a escrita em que revela ser a melhor hora, o melhor dia, o melhor mês e o melhor ano da sua vida ou quando dis-cute a questão das drogas baseado na discussão que Maria Rita Kehl protagonizou no Café Filosófico, ou a confissão de que não sabe consolar quando o assunto é morte, ao saber da morte do cão de sua musa de Janu-ário. Por fim, adentrar neste livro é permitir-se abrir às percepções, reflexões do seu autor e usufruir de suas palavras.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento22 de abr. de 2022
Diários De Montanha Russa

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    Diários De Montanha Russa - João Rosa De Castro

    DIÁRIOS DE MONTANHA RUSSA

    JOÃO ROSA DE CASTRO

    DIÁRIOS DE MONTANHA RUSSA

    2ª Edição

    São Paulo

    Edição do Autor

    2022

    Copyright © 2022 João Rosa de Castro Diagramação João Rosa de Castro

    Capa Jeferson Barbosa

    Revisão João Rosa de Castro

    Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

    C355d Castro, João Rosa de, 1972-

    Diários de Montanha Russa / João Rosa de Castro. 2.

    Ed. – São Paulo, 2022.

    226 f.

    ISBN 978-85-924958-5-5

    1. Obras Gerais. 2. Documentação. Documentos em Geral. Autoria. 3. Título

    CDD 000

    CDU 002

    Índice para catálogo sistemático:

    1. Obras Gerais. Documentação. Documentos em Geral. Autoria.

    920

    À Aurora.

    […]

    pois poderemos ser companheiros,

    unindo as nossas solidões.

    Eu emprestando a ti os meus olhos para invadir e tu me emprestando tua fúria para o meu mergulho,

    nos saciando como em cio e sexo puro,

    como em fuga para um eterno futuro,

    como um casamento até que norte nos separe, até que morte nos amarre,

    até que o mundo nos entenda e nos acolha;

    […]

    (Do poema Marítimo, de Léo de Carvalho)

    PREFÁCIO

    Eis o Livro Diário, onde há o dia a dia do autor, suas particularidades e reflexões que perpassam os acontecimentos do seu cotidiano.

    O que falar dessa escrita que muitas vezes aparece inverossímil para o leitor, mas que na vivência de João Rosa de Castro aparece com sentidos?

    Ao leitor não cabe a decifração dos enigmas nem o seu entendimento, mas usufruir das palavras da intimidade do escritor que nos leva às várias situações vividas por ele e que desejou compartilhá-las. Como a escrita em que revela ser a melhor hora, o melhor dia, o melhor mês e o melhor ano da sua vida ou quando discute a questão das drogas baseado na discussão que Maria Rita Kehl protagonizou no Café Filosófico, ou a confissão de que não sabe consolar quando o assunto é morte, ao saber da morte do cão de sua musa de Januário.

    Por fim, adentrar neste livro é permitir-se abrir às percepções, reflexões do seu autor e usufruir de suas palavras.

    Maria Alice Paes

    João Rosa de Castro

    DIÁRIOS DE MONTANHA RUSSA

    Tudo o que nos acontece é bom,

    e o que fazemos do que nos acontece é muito melhor.

    9

    João Rosa de Castro

    DIÁRIOS DE MONTANHA RUSSA

    Clara de Assis, 16 de novembro de 2008.

    Preciso de um espaço para escrever livremente, ainda que seja ao computador, ou mesmo a mão. Costuma ocorrer que tenho alguma coisa para dizer, mas não quero versejá-la. Quero só dizer em um espaço sem compromisso com nada. Nada anterior nada posterior. Algum trecho da minha pequena história que não se ligue a nada. Não seria um diário tão sério, que talvez me forçasse a escrever diariamente. Nem nada de metro, nem correção, nada de revisão ou sistematização. Um canal que me leve a dizer por dizer. Como se conversasse diante do espelho.

    Agora ouço o café filosófico na TV cultura. Gosto de André Martins. Havia semanas que os dois intérpretes, Maria Helena Guerra e Carlos Byngton, falavam longamente sobre os filmes escolhidos. Não gosto de cinema tanto quanto seria esperado que eu gostasse. Mas a interpretação dos dois psicoterapeutas é, no mínimo, interessante. Infelizmente, ou felizmente, não sei ao certo, minha vida não cabe nessas interpretações. Falam de amor, de paixão de amor, de relacionamentos, e parece que isso não conta mais para mim. Agora, mais do que nunca, estou mais ligado aos modos dos quais eu vou poder suportar a minha solidão. Mas eu estava dizendo. O André fala. É tão interessante como ele se perde na fala. Ele gagueja, erra nas estruturas do português, cambaleia —

    e diz. Diz muito mais do que o Luiz Felipe Pondé, que não comete um erro na sintaxe, mas é petulante. Onde já se viu? Petulância nos dias de hoje! Dizer que Deus não morre?! No! No! Long life to André! Mas é tão engraçado. Ele fala sempre de bem e mal. Do melhor e do pior. Parece que ele fala ainda às pessoas que estão aquém do bem e do mal: enfim, o mundo civilizado precisa disso.

    Nós, os clandestinos por excelência, não atinamos mais com essas coisas boas e ruins, certas ou erradas. Estamos tão ligados às

    coisas no máximo como elas são, que seria absurdo limitá-las a 10

    João Rosa de Castro

    DIÁRIOS DE MONTANHA RUSSA

    coisas boas ou coisas ruins. Senão vejamos, bom quer dizer

    branco, limpo, puro e mau quer dizer o que não é branco, não é limpo e não é puro. Se é assim, nós não fazemos nenhuma distinção, gostamos tanto do que é branco como do que não é. A nós nos parece que o que não é branco também pode ser esplendoroso. Ai. Ai de mim. Agora ele fala dos limites. Diz que encontramos o mal à medida que fruímos o bem. Não dá para ser.

    Eu amo o bem e amo o mal. Me lembra Nando Reis, que diz: eu admiro o que não presta, eu escravizo quem eu gosto, eu não entendo, eu jogo o lixo para dentro. Meus limites são mais retardados pelo meu desejo. O controle moral é uma repressão do desejo. Mas então. Enfim. Agora ele já disse tudo o que podia no café de hoje. Já desliguei a TV. Agora um silêncio toma a casa.

    Coloquei Björk para tocar. Um CD novo dela: Volta. Quer dizer, novo para mim, que comprei há poucos dias. Adorei. Estou adorando. Long life to Björk too. Mas por sobre ela jaz um silêncio medonho. O silêncio dos ladrões.

    Fazia tempo que não lia os jornais de papel. Tão tomado pelo espaço cibernético, só lia uma notícia ou outra pela Internet. Mas hoje, comprei o Vasto Interior. Folheei, selecionei a dedo o que ler e o que li, li com luvas. Um absurdo! Uma desfaçatez! Como pode uma pessoa, num domingo, ler 240 páginas de um jornal? Como eu poderia deixar de conversar com Chiquinha? Trocar um bom papo de domingo para ficar lendo o jornal? Só na cabeça do Vasto Interior mesmo! Mesmo que eu morasse sozinho. Se fosse este o caso eu telefonaria para Chiquinha, Núbia, Matheus, prima Larissa, primo Ampliato, etc. O domingo foi feito para o convívio familiar.

    Nada de se afastar de ninguém! Vivência! Convivência! Alegria!

    domingo é domingo. Mas não deixei de ler o João, nem o Veríssimo. Eles meio que são parentes de todos. Escrevem aos domingos. Vale a pena lê-los. Eu tinha lido em Dangling Man que o Joseph lia o jornal inteiro e ainda voltava para reler os quadrinhos.

    Como pode? Todos os autores criam personagens mais imbecis 11

    João Rosa de Castro

    DIÁRIOS DE MONTANHA RUSSA

    que eles mesmos. Duvido que o Bellow faria isto! Quando o personagem é superior ao autor, é porque o autor é Shakespeare.

    Mas eu, inspirado no Joseph, resolvi comprar o jornal hoje. Pelo viés de que o jornal representasse o mundo, e eu estava mesmo totalmente fora do mundo. Me senti menos marginal, depois de folhear as páginas do mundo. Obama! Isto é o mundo hoje. O

    mundo hoje é Obama e Obama hoje é o mundo.

    Voltei o CD da Björk na faixa Wanderlust. Puxa! Já ouvi milhentas vezes essa faixa e não canso. Talvez porque eu também tenha esse desejo de viajar e conquistar o mundo, mas me sinto preso a esta cidade que me corrói e me constrói ao mesmo tempo. Enfim, eu falava de Obama. Do jornal, do mundo. Sinto que a raça negra de verdade hoje está mais feliz; eu, por exemplo, estou ótimo. Sou filho da escravidão e da miscigenação. Dizem oficialmente que sou branco, mas me considero negro o bastante para amarelar o mundo. Que penso mal ainda que aja bem. O negro nasceu para agir. É por isto que considero a vitória de Obama uma vitória da humanidade ativa. Sinto o mesmo desconforto quando vejo um branco dançando que sinto quando vejo um negro pensando. Só a arte mesma para explicar esta inversão de papéis. A arte com o que ela traz em si: a técnica. As mãos negras, hoje, se apropriam da natureza com cem vezes mais autoridade do que as mãos de outras raças. E se apropriam também dos atabaques com mais naturalidade. Cultuam a ancestralidade como nenhuma outra raça.

    Há sensualidade e alegria nos seus cultos; há menos dor num peito negro. O mundo fala da religião… Os jornais também. E eu desconfiava mesmo que o rastafarianismo se estruturava no cristianismo. Enfim, assim como o vinho, a maconha também é um elemento demasiado cristão. Viva Dioniso! Caô Cabeciliê, Xangô! Eles não me entendem mesmo. Mas como pode uma pessoa fora de si fazer valer qualquer culto? E se uma pessoa não fica fora de si depois de beber do vinho ou de fumar dum baseado

    — por que não beber água ou ainda por que não fumar 12

    João Rosa de Castro

    DIÁRIOS DE MONTANHA RUSSA

    simplesmente o tabaco do cigarro, da cigarrilha, do charuto, do cachimbo e tal? Enfim, eu falara sobre isto com Matheus: há uma crise na demanda. Uma crise na procura. A oferta é acertada, no país do primado do trabalho. Assim eu indiretamente justificava os traficantes, cujo único erro é se apropriarem da natureza para fabricar as drogas… Quanto ao mais, por mim seriam todos soltos. E ficariam todos soltos, ocupados com sua importante distribuição: oferta é oferta. Oferta não se discute, sobretudo quando ela presume uma procura: e a procura é um fato, ao passo que a oferta é somente uma hipótese, a ser ou não confirmada com a procura. Deste modo, recrimino os usuários. Cem vezes mais culpados os usuários pseudoinocentes. Desconfio que o uso de drogas esteja relacionado com o medo da solidão. Assim como a tatuagem e o piercing, as telenovelas, etc., o uso de drogas mantém comércio com a vontade de estar junto. Vontade de pertencimento. Vontade de ser popular. Vontade de igualdade, liberdade e fraternidade [risos]. É a nova revolução francesa, que no lugar dos reis colocou em maus lençóis os próprios pais. Um espírito de rebanho. Uma pseudoliberdade em relação ao mundo e, sobretudo, em relação a si mesmo, já que o próprio aparelho psíquico pune, castiga e isola. Logo, urge que a cultura se transforme, que as expectativas não se tornem algoz de ninguém.

    O excesso de inteligência, o excesso de consumo, o excesso de desejo de respeito, glória, amor. Excesso de paixão de amor. Um mundo demasiado cristão, por não observar a lei, nenhuma lei — e viver na graça. Acha graça de tudo, vive rindo, come fezes e transa uma vez por ano, como as hienas. Mundo de hienas, isso é o que a cada dia nos queremos tornar.

    Agora eu estava conversando com Chiquinha. Eu dizia que desejava a morte de todos os donos de televisão, menos o estado.

    Ela disse que eu parasse com isso. Eu disse que merecia dar uma palavra em minha defesa. É absurdo que eu esteja no meu quarto e, senão quando, escute a voz desses invasores. Eu odeio 13

    João Rosa de Castro

    DIÁRIOS DE MONTANHA RUSSA

    Abravanéis há mais tempo do que muitos passaram a amá-los. E

    para que fique patente como tudo se vincula, a gente da TV

    contribui para a fuga de muita gente que se droga. É absurdo que tanta gente esteja se reunindo em auditórios tais quais os de Abravanéis, os de Jô Soares, os de Nico, os de Luciana Gimenez e muitos etcéteras. O subterfúgio de muita gente que vê nessas figuras a negação da humanidade é drogar-se — seja porque queriam estar lá no lugar deles e não podem, por quererem estar lá sendo entrevistados por eles e não podem, seja por que quereriam estar no auditório fazendo vezes de hienas, e não podem. Isto é: a televisão é a precursora de todos os nossos desencontros. Embora não me drogue também, fecho a porta do meu quarto e leio um bom livro e ouço uma boa música. Um livro branco e uma música também branca ou um livro preto e uma música também preta. E

    penso na arquitetura da minha própria casa. Putz! Um jardim de inverno. No futuro, vou receber meus amigos no meu jardim de inverno. O meu sono está quase chegando. Estou sentindo uma moleza. Já passa de uma hora. Os meus já foram dormir. E eu estou ferindo o teclado. Fazendo um ruído chato para os ouvidos de quem dorme. Talvez esse pequeno ruído interfira em seus sonhos. Não os ouço roncar — apenas dormem. Fico aqui fumando e imaginando cada coisa com que eu possa sonhar. Eu não quero sonhar. Digo, sonhar até quero. Mas não quero lembrar o que sonhar nem quero sonhar que estou sendo espancado ou ultrajado para chegar de manhã e esquecer tudo. Peço agora aos deuses que me deem uma noite normal e me guiem para uma semana normal. O que não posso é escrevinhar ainda mais; porque dizem que a noite existe para que se durma. De modo que vou dormir.

    Clara de Assis, 17 de novembro de 2008.

    14

    João Rosa de Castro

    DIÁRIOS DE MONTANHA RUSSA

    Acordei agora há pouco. Disposto. Quer dizer, sem sono. Fiz bem em não trabalhar no fim de semana. E esta semana será curta.

    Teremos no dia 20 um feriado: dia da consciência negra. Não me lembro do meu sonho. Minto. Sonhei com a primeira namorada e com o amigo falecido. Falávamos coisas no cinema. Parece que brigávamos, gritávamos uns com os outros. Um sonho incompleto. Agora tenho dois trabalhos para continuar: os dois últimos arquivos da revista e um documento jurídico. Já decidi que vou começar pela revista. Um assunto inóspito para mim, ainda que trate de pesquisas feitas com pacientes em hospitais do Brasil inteiro. Não entendo como aprovaram meu inglês para esse trabalho tão abrangente ao passo que um pequeno texto de outro cliente, que traduzi esses dias, voltou com uma série de correções ao meu inglês, meu pobre inglês sem pai nem mãe. Quando penso no meu inglês, vem em minha memória a imagem de Guilherme.

    Quanto tempo ainda sem conversarmos. Vinte anos de uma amizade inteira, sem interrupções, e agora ele não me liga e não me atende mais ao telefone. Mas, enfim, se estivéssemos falando eu não estaria escrevinhando estas páginas. Agora ficou mais difícil confiar em alguém. Se ele passou a achar que conviver comigo equivalia a se corromper; ele que tanto queria se purificar, fazendo catarse o tempo todo até dele mesmo, em quem mais posso confiar? Por outro lado, sinto certo alívio. É uma pessoa a menos com quem eu precise usar minha máscara. Nesses vinte anos, ele quis cuidar tanto dele mesmo, que não deve ter prestado nenhuma atenção a mim. Ai de mim! Como pude pensar que ele não me aborreceria agora? Alívio! Não preciso mais ficar ouvindo uma pessoa o tempo todo consciente e me alertando para os perigos da bem-aventurança — parece que sempre os esqueço. Uma pessoa que não confia nem na própria sombra. Uma pessoa que passa o dia inteiro assistindo televisão para não se sentir sozinho. Que, em vez de constituir uma família, passou a vida toda se privando do lar para poupar de sua presença a família do pai. Uma pessoa que 15

    João Rosa de Castro

    DIÁRIOS DE MONTANHA RUSSA

    se fiscaliza a si mesmo como se se pervertesse até mesmo ao pensar. Um pensamento totalmente tolhido pela ideia de Deus.

    Traição! Estou desencantado! Mas enfim: independência! Espero que ele viva muitos anos ainda, sem a minha companhia tão inerme. Só agora depois dos quarenta é que decidi armar a minha alma. Quero distância. Minha alma, minha palma. Pois bem, falava do meu inglês sem pai nem mãe. Foi inspirado naquela cena do Guilherme ouvindo os Long Plays do Practical Way to English, com o fone de ouvido envolvendo a cabeça, que meu inglês deu os primeiros passos. Agora vou dizer o que não sou eu que estou dizendo. Foi o trabalho que escolhi, o único que posso fazer de boa consciência. Com desprezo. Me sinto invisível, me sinto confortável. Seria ingratidão da minha parte, tanto para mim quanto para o Guilherme. Desde que me conheço por gente, ele está me incentivando, me pondo para cima. Às vezes tem umas recaídas e me humilha, assim como faz sistematicamente com todos. De modo que quero que fique claro que estou ficando livre de um homem iluminado, de um quase-além-do-homem. Não fosse sua simpatia pelo Deus dos hebreus, seria um além-do-homem completo, um filósofo. Mas agora, dorme com Deus e sabe-se lá o que sonha. Que fique com Deus o primeiro amigo: os dois se merecem. Não pretendo tocar mais neste assunto. Não falo mais nem de Deus nem do primeiro amigo. Quem sabe de um segundo ou de um terceiro.

    Clara de Assis, 18 de Novembro de 2008.

    Um dia que começou ensolarado. Aqui dentro fazia frio. Eu tossia.

    Parecia que meus pulmões não suportavam mais a nicotina, embora meu metabolismo destrutivo ma fizesse desejar. Não li Saul Bellow no primeiro tempo. Nas paradas para fumar, eu deitava no sofá da sala e ficava observando os quadros. Tinha de 16

    João Rosa de Castro

    DIÁRIOS DE MONTANHA RUSSA

    entregar o trabalho às duas da tarde. Começara às nove e pouco.

    Um contrato bem escrito — enfim, devolvi o arquivo a uma da tarde. Hoje era dia de comer carne bovina; da qual eu dei cabo agora à noite. Já passavam das duas da tarde quando almocei.

    Telefonei para a musa-psi para remarcar a consulta. Ela marcara para o dia 21 de Novembro. Desconfiei que não abririam o consultório nesse dia entre o feriado do dia 20 e o fim de semana.

    Acertei. Ela realmente tinha se equivocado na hora de anotar no meu cartão o retorno. Não iam trabalhar no dia 21 e agendamos para a próxima terça-feira. Ai de mim. Onze anos e eu ainda vou lá para falar de mim. Como me interessa falar de mim! Eu deveria estar cansado de mim mesmo, dos meus estalos, da minha voracidade para o novo. Voltei para o meu recanto. Depois liguei para o escritório de contabilidade. Informei os valores das NFs. É

    hora de pagar os impostos, antes que o feriado consuma o dinheiro que ainda me resta disponível e eu seja esquartejado. A empresa. Ah, a empresa. Como não pensei nisto antes? Eu nasci para ser empresário. É tão bom fazer o meu próprio horário, levantar em prol de um empreendimento que me elege. Preciso aproveitar que ainda não tenho funcionários. Depois que a empresa expandir, não vou mais poder me dar ao luxo de deitar no sofá entre uma produção e outra. Muito menos dividir o dia em dois tempos separados por uma janela à tarde. Por enquanto somos só nós três: me, myself and I – id, ego e superego, eu-pai, eu-filho, eu-espírito santo, eu-pai, eu-mãe e eu-criança, etc. A empresa funciona bem. Tudo pago até daqui a três meses. Bom.

    Diferentemente de muitas, a empresa não está no vermelho. Que permaneça assim por anos e anos e que os anjos digam amém.

    Tudo terminado, tudo revisado, todos os valores anotados.

    Almoço e descanso. Acordei depois das sete para o segundo tempo. Ainda bem que não me lembro do que sonhei. Considero o tempo de um dia mais que suficiente para fazer tudo o que tenho de fazer. No segundo tempo, recebidas as guias dos impostos, 17

    João Rosa de Castro

    DIÁRIOS DE MONTANHA RUSSA

    paguei tudo e fiquei livre. Livre e duro. Mas acordei melhor. Já não tossia, já não sentia um corpo depauperado por uma suposta gripe.

    Comecei a traduzir o último arquivo da Revista de Medicina.

    Finalmente. Foram mais de 30 mil palavras e agora restam ainda duas mil e poucas para concluir o projeto de novembro. Depois da produção de amanhã, só retomamos em dezembro. E estou na expectativa do feriadão. Prefiro não trabalhar. Se passo um fim de semana trabalhando, fico sem inspiração e me sinto pobre, escravo do meu próprio rigor. Quando terminei os pagamentos, já eram nove e meia. Comecei com o arquivo, e o trabalho fluiu bem. Nas paradinhas, li Nietzsche, fui à padaria, fiquei um pouco no portão observando a garoa fria e fiz alguma companhia à Chiquinha.

    Pensei um pouco sobre o debate no Roda Viva de ontem. Eles entrevistaram o príncipe do Brasil, Dom João de Orleans e Bragança. O cavalheiro é firmeza, com o perdão do chulo.

    Empresário e Fotógrafo. Não adere nem à direita nem a nenhum partido. Fala de tradição com propriedade. Parece otimista. Sua nobreza permanece nas ideias e gestos. Defende o parlamentarismo. E uma coisa que ele disse foi marcante: ao elogiar o empenho de Dom Pedro I, dizia: "ao passo que, aos 23

    anos, ele envidava esforços diplomáticos sérios, os caras de 23

    anos de hoje estão jogando videogame". O que aconteceu no Brasil? Os mais jovens agora jogam videogame, e, quando não, passam horas nos bares fumando narguilé, maconha ou cheirando cocaína. Nada de cinema mais, muito menos teatro. DVD com pipoca e guaraná são mais acessíveis, para os mais recatados e sabe-se lá o quanto se bebe de alcoólico para condenar meus cigarros. E, por fim, o silêncio encobrindo a nossa ignorância cada vez mais abrangente.

    Clara de Assis, 19 de novembro de 2008.

    18

    João Rosa de Castro

    DIÁRIOS DE MONTANHA RUSSA

    Que absurdo! Um trabalho me esperando para ser concluído hoje, e eu dormindo! Mas que posso fazer? O antipsicótico me faz desmaiar. Há muito tempo atrás, quando eu não tomava esse bendito medicamento, eu também dormia muito. De modo que não sei se durmo até as cinco da tarde pelo mesmo ou pelo novo motivo. Até que eu acordara às sete e meia da manhã. Mas estava um friozinho

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