Dança, o Enigma do Movimento
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Dança, o Enigma do Movimento - Mônica Fagundes Dantas
COMITÊ CIENTÍFICO DA COLEÇÃO EDUCAÇÃO E CULTURAS
APRESENTAÇÃO
Quando este livro foi lançado, em 1999, não eram muitas as publicações sobre dança no Brasil, e também não eram muitas as graduações e especializações em dança nas universidades brasileiras. Embora nos últimos anos tenha havido um crescimento significativo dos títulos publicados em língua portuguesa, considero ainda pertinente uma reedição deste livro, pelas questões que ele coloca e, sobretudo, pela incompletude de suas respostas. Na época de sua elaboração, procurei problematizar conceitos que emergiam da minha experiência em dança e que se configuravam a partir de uma prática artística. Assim, busquei inspiração na estética da formatividade, de Luigi Pareyson, e na abordagem fenomenológica de Maurice Merleau-Ponty para tratar de temas como movimento, gesto, forma, técnica e poética, buscando descrever a dança como uma ação que se realiza construindo corpos disponíveis para a criação. Isso talvez explique o fato de que os leitores mais entusiasmados que tive foram, justamente, bailarinos e coreógrafos, cujas práticas e produções, de algum modo, encontravam eco nessas proposições.
A dança vem intensificando sua presença nas universidades brasileiras, seja por meio da produção de teses e dissertações em programas de pós-graduação de diversas áreas, seja por meio da criação e da consolidação de cursos de graduação em dança e, mais recentemente, pela criação do primeiro doutorado em dança. Assim, vem se afirmando como área de conhecimento em que o fazer, o saber e o pensar são indissociáveis. Espero, então, que este livro possa contribuir para uma perspectiva de produção de conhecimento amparada – e acolhida – pela experiência da dança.
A primeira parte desta obra é uma adaptação da dissertação de mestrado intitulada Dança: forma, técnica e poesia do movimento
. Se o texto tomou corpo para atender a uma formalidade acadêmica, sua realização foi toda permeada pela paixão: a paixão, o gosto, o deleite pela dança foi o que instigou e fez com que acreditasse na possibilidade e na necessidade de escrever sobre dança. E, assim, escrever sobre dança foi outra maneira de dançar.
Por isso, o texto aqui apresentado está muito próximo do original, com algumas atualizações de fatos e datas – nesse meio tempo faleceram Cecy Franck, Kazuo Ohno, Pina Bausch, Merce Cunningham e Trisha Brown. E nesse período realizei meus estudos de doutorado e pós-doutorado. Assim, para constituir a segunda parte do livro, foram acrescentados, ainda, quatro capítulos que abordam uma parte das minhas pesquisas que continuam a dialogar com os conceitos aqui discutidos. Neles, continuo a refletir sobre a construção de corpos dançantes e sobre perspectivas históricas, incorporando a reflexão realizada por autores norte-americanos, brasileiros e europeus nos últimos dez anos. Ressalto, igualmente, o capítulo que trata de perspectivas metodológicas para a realização de pesquisas na área da dança, um tema ainda emergente nas publicações em dança no Brasil.
SUMÁRIO
Parte 1
O enigma da dança
Sumário
PARTE 1
O ENIGMA DA DANÇA
1
POR PRINCÍPIO 13
1.1
A FENOMENOLOGIA COMO CAMINHO METODOLÓGICO
14
2
A DANÇA É O CORPO TRANSFIGURANDO-SE EM FORMAS 17
2.1 EM BUSCA DE CONCEITOS
17
2.2 DANÇA: O INDÍCIO DA ARTE NO CORPO
23
2.3 FORMAR PARA SER... FORMA
26
2.4 O MOVIMENTO: MATÉRIA-PRIMA E VISIBILIDADE DA DANÇA
29
2.5 O SABER E O FAZER TÉCNICOS: A TÉCNICA COMO TECHNE
31
2.5.1 A matéria-prima em transformação: movimento em processo de techne 32
2.5.1.1 Técnicas extracotidianas: o cotidiano do corpo que dança 34
2.5.2 A ação e a inspiração poéticas 41
2.5.3 Poéticas da dança 44
2.5.3.1 Identificação de matrizes poéticas na dança em Porto Alegre 48
3
MOVIMENTO: VISIBILIDADE DO SENTIDO EM DANÇA
55
3.1 SEMIOLOGIA: UMA VIA DE ACESSO
58
3.2 ALGUNS CONCEITOS EM SEMIOLOGIA ESTRUTURAL
60
3.2.1 Significação e linguagem 60
3.2.2 Língua/Fala 61
3.2.3 Signo 63
3.3 FORMATANDO A DANÇA À SEMIOLOGIA ESTRUTURAL
69
3.4 CONVIDANDO OS CONCEITOS A DANÇAR
74
3.5 OS CONCEITOS INICIAM SUA DANÇA
76
3.6 A CONSTRUÇÃO DE SENTIDOS COREOGRÁFICOS
77
3.7 AMBIGUIDADE: PLURALIDADE DE SENTIDOS
80
3.8 DE COREOGRAFIA E DE POEMAS
84
4
DANÇA:
O ENIGMA DO MOVIMENTO NO CORPO
91
4.1 O CORPO DANÇANTE
92
4.2 A IMPROVISAÇÃO COMO EXERCÍCIO DE FORMATIVIDADE
94
4.3 O CORPO DISPONÍVEL
95
4.4 SABERES NO CORPO
101
4.5 A CORPOREIDADE DO SENTIDO EM DANÇA
105
4.6 ENFIM 108
PARTE 2
DESDOBRAMENTOS
5
CORPOS EM PERSPECTIVAS:
AINDA SOBRE A CONSTRUÇÃO DE CORPOS DANÇANTES
111
5.1 CORPO OBJETO
112
5.2 CORPO DIONISÍACO
113
5.3 CORPO FENOMENOLÓGICO
114
5.4 CORPO SOCIAL
116
5.5 ENTRE O CORPO TANGÍVEL E O CORPO IDEAL
117
5.6 A MATERIALIDADE DO CORPO DANÇANTE: A DANÇA ENTRE O BIOLÓGICO E O CULTURAL
118
5.7 CONVIDANDO NOVAMENTE OS CONCEITOS A DANÇAR
120
6
A EDUCAÇÃO SOMÁTICA E
A BUSCA POR UM CORPO NATURAL EM DANÇA 123
6.1 O CORPO NATURAL EM ISADORA DUNCAN
124
6.2 O NATURAL NO CORPO EM EDUCAÇÃO SOMÁTICA
128
6.3 EDUCAÇÃO SOMÁTICA E CRIAÇÃO COREOGRÁFICA
133
6.4 APONTAMENTOS
135
7
A PESQUISA EM DANÇA NÃO DEVE AFASTAR O PESQUISADOR DA EXPERIÊNCIA DA DANÇA
137
7.1 A ETNOGRAFIA COMO ABORDAGEM METODOLÓGICA
138
7.2 A ETNOGRAFIA E OS ESTUDOS EM DANÇA
139
7.3 ALGUMAS EXPERIÊNCIAS
143
8
INTIMIDADE E EXPOSIÇÃO:
A PRESENÇA DE CORPOS NUS
E SEMINUS NA COREOGRAFIA CONTEMPORÂNEA 147
8.1
AQUILO DE QUE SOMOS FEITOS 149
8.1.1
Nu, mas vestido de ideias 150
8.2
BUNDAFLOR BUNDAMOR
153
8.2.1 A nudez das nádegas 154
8.3 ENCAMINHANDO CONSIDERAÇÕES TRANSITÓRIAS
156
9
POR FIM 159
REFERÊNCIAS 161
ÍNDICE REMISSIVO 171
1
POR PRINCÍPIO
Este livro não se propõe a resolver o enigma da dança. Ele propõe uma reflexão sobre a dança como arte e linguagem, motivada, principalmente, por um quase-consenso existente de que dança é a arte dos movimentos
ou de que dança é uma linguagem do corpo
, ou, ainda, de que dança é expressão
. Por não estar muito satisfeita com tais generalidades e por precisar preparar o terreno para futuras plantações (por meio, principalmente, da construção de conceitos próprios), neste estudo abordo a dança entendendo-a como forma técnica e poesia do movimento.
A dança enquanto forma é entendida como configuração de uma matéria-prima – o movimento corporal humano –; enquanto técnica é compreendida como processo de transformação do movimento cotidiano em movimento de dança; enquanto poesia é concebida como ato de criação mediante os movimentos do corpo. Desse modo, os conceitos de forma, técnica e poesia se articulam para construir uma concepção da dança como manifestação artística do corpo humano em movimento.
Os quatro primeiros capítulos buscam dar conta dessa proposta.
No primeiro capítulo – A dança é o corpo transfigurando-se em formas
– são discutidos alguns conceitos sobre dança, a fim de encontrar elementos que permitam diferenciá-la das demais manifestações da motricidade humana. Num segundo momento, trabalha-se com um referencial da Estética da Formatividade (PAREYSON, 1993) – que propõe uma reflexão sobre a experiência estética a partir do ponto de vista do homem enquanto autor da arte, no ato de fazer arte – para tratar a dança enquanto manifestação artística.
No segundo capítulo – Movimento: visibilidade do sentido dançante
– busca-se referências na Semiologia, para tratar da construção do sentido em dança, ou seja, de como a dança, entendida como atividade artística, torna visíveis os possíveis sentidos construídos coreograficamente.
No terceiro capítulo – Dança: o enigma do movimento no corpo
– são retomados os principais tópicos trabalhados nos dois primeiros capítulos, relacionando-os a algumas das ideias trabalhadas por Merleau-Ponty em Fenomenologia da Percepção (1971). Esse enfoque propicia uma compreensão de que os processos de criação coreográfica, aliados ao estudo de técnicas de dança e a diferentes experiências de movimento, proporcionam o surgimento ou o incremento de uma disponibilidade corporal para dança.
No quarto capítulo, que encerra a primeira parte, são apontadas outras possibilidades que essa abordagem da dança propicia.
1.1 A FENOMENOLOGIA COMO CAMINHO METODOLÓGICO
Para desenvolver o tema proposto, inspirei-me em Merleau-Ponty, procurando falar da dança como o filósofo fala da música, da literatura, do corpo e das paixões:
A literatura, a música, as paixões, mas também a experiência do mundo visível são tanto quanto a ciência de Lavoisier e de Ampére, a exploração de um invisível consistindo ambas no desvendamento de um universo de idéias. [...] A idéia musical, a idéia literária, a dialética do amor e as articulações da luz, os modos de exibição do som e do tato falam-nos, possuem sua lógica própria, sua coerência, suas imbricações, suas concordâncias, e aqui também as aparências são o disfarce de forças
e leis
desconhecidas. (MERLEAU-PONTY, 1992, p. 144).
Merleau-Ponty (1992) mostra que esses fenômenos não podem ser submetidos a uma análise lógico-formal, ou puramente científica. A dança, assim como a música e a literatura, possui coerência e lógica próprias, as ideias que ela apresenta não estão separadas de sua aparência e sua manifestação parece estar sempre além de qualquer explicação. Sob esse ponto de vista, a dança é como ela se mostra: não há subtexto, não há historinhas para contar além do que está sendo dito/mostrado/contado pelo corpo de quem dança, por meio dos seus movimentos. O universo de ideias da dança existe nos e pelos movimentos corporais e se manifesta no corpo que dança: em dança, tudo simplesmente é, o que não aparece, o que não está lá, não existe.
¹
Eu hoje acordei mais cedo
e, azul, tive uma idéia clara.
Só existe um segredo.
Tudo está na cara.
(LEMINSKI, 1987, p. 34)
Nessa perspectiva, a fim de trabalhar com a lógica própria da dança, encontrei dificuldades em definir uma metodologia rigorosa. A metodologia, segundo Japiassu (1994), é um domínio da interrogação epistemológica; método e objeto são indissociáveis: a escolha do método se faz a partir do objeto a ser estudado. Partindo desse pressuposto, busquei, na imprecisão do método, caminhos para submeter a dança a um recorte conceitual. Acredito que foi o próprio objeto abordado – a dança – que exigiu esse procedimento, e, em vez de querer apreender firmemente o objeto, explicá-lo e esgotá-lo, optei por descrever os seus contornos, seus movimentos, suas hesitações, seus êxitos e seus sobressaltos. Fiz isso sem esquecer, porém, que escolher uma maneira de descrever a dança é já uma maneira de compreendê-la. Optei, assim, pela fenomenologia como método de investigação.
A fenomenologia, como ensina Merleau-Ponty (1971, p. 8), preocupa-se em descrever, e não em explicar ou analisar:
O mundo está aí antes de qualquer análise que eu possa fazer dele [...] O real deve ser descrito e não construído ou constituído [...] O real e um tecido sólido, não espera nossos juízos para anexar os fenômenos mais surpreendentes nem para rejeitar nossas imaginações mais verdadeiras.
Dessa forma, o conhecimento se constrói embasado em uma experiência do mundo. Portanto, para dar conta de algumas ideias da dança é preciso estar em contato com a experiência da dança, fazendo das reflexões, discussões e interpretações, diálogos com a própria dança. Nesse sentido, é necessário trabalhar com zelo e com sensibilidade.
Para percorrer esse caminho, recorri novamente a Merleau-Ponty, pois os aspectos fundamentais de sua obra são a impossibilidade de separação sujeito-objeto, a retomada da percepção como base do conhecimento, a redescoberta da experiência corporal como originária e o resgate da unidade fundamental do mundo como mundo sensível. Para o autor, o entrelaçamento, a intersubjetividade e o espaço virtual aparecem como lócus privilegiado no qual o pensar precisa situar-se.
Nessa concepção, as ideias só são acessíveis porque possuímos corpo e sensibilidade: para que fenômenos como a dança não se esgotem como manifestação no corpo do dançarino, mas possam tornar-se elementos para uma reflexão teórica, é necessário que sejam frutos de uma experiência que é, fundamentalmente, experiência sensível; uma experiência que se realiza nos corpos, um compartilhar de corporeidades e de sensibilidades:
O mundo fenomenológico é, não o do ser puro, mas o sentido que transcende à intersecção de minhas experiências com as do outro, pela engrenagem de umas sobre as outras, ele é pois inseparável da subjetividade e da intersubjetividade que fazem sua unidade pela retomada de minhas experiências passadas em minhas experiências presentes, da experiência do outro na minha. (MERLEAU-PONTY, 1971, p. 17).
Sendo assim, a sensibilidade entendida como possibilidade de conhecimento, como uma forma de apreensão da realidade, permeada pela experiência vivida e compartilhada com o outro foi uma das vias para entender o movimento que se torna dança e o corpo que se transfigura em formas coreográficas.
A fenomenologia como uma diretriz metodológica possibilitou-me proceder a uma leitura teórica da dança, visto que, a partir de um olhar interno – atuo diretamente com dança, seja como bailarina, seja como professora, e vivo alguns problemas e questões que estão sendo levantados aqui –, foi possível dirigir minha visão a uma região específica, lançar um olhar diferenciado e diferenciador, um olhar que permitiu não só deixar-me invadir pelo espetáculo, pelo fenômeno que é a dança, mas que me distinguiu desse espetáculo, sem, no entanto, me apartar completamente dele e que, ao mesmo tempo, possibilitou-me observá-lo com cuidado, fixando determinados acontecimentos, situações e elementos, estudando-os, buscando subsídios para compreendê-los e depois reelaborá-los em um texto, em vários textos, para, enfim, poder retornar ao espetáculo, revivê-lo e, quem sabe, a partir de agora, revigorá-lo.
2
A DANÇA É O CORPO
TRANSFIGURANDO-SE EM FORMAS
[...] a dança se desenvolve num espaço sem objetivos e sem direções, é uma suspensão da nossa história, o sujeito e seu mundo na dança não se opõem mais, não se destacam mais um sobre o outro, em conseqüência as partes do corpo não são mais acentuadas como na experiência natural: o tronco não é mais o fundamento de onde se elevam os movimentos e onde soçobram uma vez acabados: é ele que dirige a dança e os movimentos dos membros estão a seu serviço.
(MERLEAU-PONTY, 1971, p. 293)
2.1 EM BUSCA DE CONCEITOS
Por mais diferentes que sejam as definições e conceituações de dança construídas pela bibliografia especializada, elas sempre comportam a ideia de que a dança é composta por movimentos e gestos corporais executados pelos homens e mulheres que dançam. Mas isso não basta para identificar a dança: gestos e movimentos são inerentes ao ser humano. Homens e mulheres expressam-se, manifestam-se, comunicam-se por meio de suas ações, de suas posturas e atitudes corporais, de seus movimentos e gestos, sem estarem, necessariamente, dançando. Persiste a questão: como diferenciar a dança dos demais comportamentos motores humanos?
Para Hanna (1977), a dança é um comportamento humano constituído a partir de sequências de movimentos e gestos corporais diferenciados de atividades motoras usuais. Tais movimentos e gestos são organizados culturalmente, atendem a propósitos e intencionalidades dos dançarinos e têm valor inerentemente estético.
Uma das especificidades do gesto em dança está, pois, no fato de que os movimentos transformados em gestos de dança adquirem características extraordinárias, pois os fatores espaciais, temporais, rítmicos, dinâmicos e o próprio modo de movimentação do corpo tornam-se diferentes: exigem-se novas posturas, novas atitudes corporais para que os movimentos usuais se tornem dança. Tomando como exemplo uma simples caminhada: ao ser incorporada a uma dança, assume as particularidades desta, transforma-se a serviço da coreografia e a maneira como os passos são realizados torna-se por si só importante. A caminhada já não é só uma maneira de fazer com que o sujeito se desloque de uma posição a outra, os movimentos do caminhar adquirem valor em si mesmos. Como diz Hanna (1977, p. 222), [...] movimentos e gestos comuns são transformados em figuras de dança
.
Langer (1980) também identifica no gesto o elemento básico da dança: "todo o movimento de dança é gesto, ou um elemento na exibição do gesto [...] O gesto é a abstração básica pela qual